BGOELDI. Humanas v13n1

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Boletim do Museu Paraense EmĂ­lio Goeldi CiĂŞncias Humanas

v. 13, n. 1 janeiro-abril 2018


IMAGEM DA CAPA Vasilha cerâmica da cultura Santarém do tipo “vaso de gargalo” medindo 18 cm de altura. Coleção Frederico Barata, Reserva Técnica Mario Ferreira Simões, Museu Paraense Emílio Goeldi. Foto: Nigel Smith, 2016.

BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS (ISSN 2178-2547) O Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia foi criado por Emílio Goeldi e o primeiro fascículo surgiu em 1894. O atual Boletim é sucedâneo daquele. The Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia was created by Emílio Goeldi, and the first number was issued in 1894. The present one is the successor to this publication.

EDITORA CIENTÍFICA Jimena Felipe Beltrão EDITORES ASSOCIADOS Alegria Benchimol - Museu Paraense Emílio Goeldi - Museologia Candida Barros - Museu Paraense Emílio Goeldi - Linguística Claudia López - Museu Paraense Emílio Goeldi - Antropologia Cristiana Barreto - Museu de Arqueologia e Etnologia - Universidade de São Paulo - Arqueologia Flávia de Castro Alves - Universidade de Brasília - Linguística Hein van der Voort - Museu Paraense Emílio Goeldi - Linguística Jorge Eremites de Oliveira - Universidade Federal de Pelotas - Antropologia Lúcia Hussak van Velthem - Museu Paraense Emílio Goeldi - Antropologia/Museologia Márlia Coelho Ferreira - Museu Paraense Emílio Goeldi - Etnobotânica Martijn van den Bel - Universiteit Leiden - Arqueologia Mily Crevels - Universiteit Leiden - Linguística Priscila Faulhaber Barbosa - Museu de Astronomia e Ciências Afins - Antropologia Richard Pace - Middle Tennessee State University - Antropologia CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO Ângela Domingues - Instituto de Investigação Científica Tropical - Lisboa - Portugal Bruna Franchetto - Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil Eduardo Brondizio - Indiana University - Bloomington - USA Eduardo Góes Neves - Museu de Arqueologia e Etnologia - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil Gustavo Politis - Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires - Tandil - Argentina Janet Marion Chernela - University of Maryland - Maryland - USA Klaus Zimmermann - Universidade de Bremen - Bremen - Alemanha Marcos Chor Maio - Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ - Rio de Janeiro - Brasil Maria Filomena Spatti Sândalo - Universidade Estadual de Campinas - Campinas - Brasil Michael J. Heckenberger - University of Florida - Gainesville - USA Michael Kraus - Universidade de Bonn - Bonn - Alemanha Neil Safier - The John Carter Brown Library - Providence - USA Nora C. England - University of Texas at Austin - Austin - USA Rui Sérgio S. Murrieta - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil Tânia Andrade Lima - Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil Walter Neves - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil William Balée - Tulane University - Louisiana - USA

NÚCLEO EDITORIAL Normatização - Arlene Lopes, Rafaele Lima e Taise da Cruz Silva Revisão ortográfica - Rafaele Lima Editoração, versão eletrônica e capa deste número - Talita do Vale


Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações Museu Paraense Emílio Goeldi

Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas

ISSN 2178-2547 Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi

Cienc. Hum.

Belém

v. 13

n. 1

p. 11-229

janeiro-abril 2018


ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA: Museu Paraense Emílio Goeldi Núcleo Editorial - Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Av. Perimetral, 1901 Terra Firme – CEP 66077-830 Belém - PA - Brasil Telefone: 55-91-3075-6186 E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 2018. – Belém: MPEG, 2018. v. 13, n. 1., v. il. Semestral: 1984-2002 Interrompida: 2003-2004 Quadrimestral a partir do v. 1, 2005. Títulos Anteriores: Boletim Museu Paraense de História Natural e Ethnographia 1894-98; Boletim Museu Paraense de História Natural e Ethnographia (Museu Goeldi) 1902; Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de História Natural e Ethnographia 1906-1914; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi de História Natural e Etnografia 1933; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, série Antropologia 1949-2002; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, série Ciências Humanas, em 2005. A partir de 2006, Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. ISSN 2178-2547 1. Arqueologia. 2. Antropologia. 3. História. 4. Economia. 5. Fotografia. 6. Cinema. I. Museu Paraense Emílio Goeldi.

CDD-21ª. ed. 300 © Direitos de Cópia/Copyright 2018 por/by MCTIC/Museu Goeldi


CARTA DA EDITORA

Aos tradicionais temas da Antropologia, da Arqueologia e da Linguística juntam-se, nesta edição, contribuições da história, da economia, e das artes visuais como o cinema e a fotografia. Nesta edição, um primeiro conjunto de estudos dedicados à Arqueologia traz contribuições da Amazônia e do Sul do continente incluindo Brasil e Argentina, além de investigação realizada no México. São três artigos e uma nota de pesquisa. Interações sociais de produtores de cerâmica Santarém e Konduri é o que sugere Marcony Alves em “Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas”. A análise de itens de coleções de ambas cerâmicas reforça sugestões prévias de compartilhamento dos vasos de gargalo. Alves identificou atributos diagnósticos de vasos de gargalo, típicos da cerâmica Santarém, em peças representativas da cerâmica Konduri. O poder simbólico das contas de vidro para mulheres da América do Norte sob domínio espanhol é o que trata Andreia Torres que analisou material encontrado no Convento da Encarnação na Cidade do México. A autora de “As mulheres novo-hispanas do Convento da Encarnação (Cidade do México) por meio das suas contas de vidro” mostra como as contas contribuíram para a construção de corpos femininos do século XVI ao início do XX. De Milena Acha, “Os processos da paisagem pastoril: caracterizando lugar e movimento” mostra como a paisagem inscrita por pastoresestabelece significados, revela estratégias de mobilidade e define espaço de memória em zona de atividade produtiva no Vale de Santa Maria, no nordeste Argentino. Em nota de pesquisa, grupo de Santa Catarina relata ocorrência de pinturas rupestres em gruta que abriga sambaquique, após investigação mais detalhada, pode se constituir em um primeiro registro dessanatureza no estado. Dione Bandeira é a primeira autora de “Resultados preliminares da pesquisa no sambaqui sob rocha Casa de Pedra, São Francisco do Sul, Santa Catarina, Brasil”. Saúde indígena e festas de santo em comunidade quilombola no Marajó são os temas das contribuições da Antropologia neste número. A contradição e a desatenção marcam as ações do Estado brasileiro no trato da questão indígena no artigo “A cosmografia Munduruku em movimento: saúde, território e estratégias de sobrevivência na Amazônia Brasileira”. Tendo como primeiro autor Daniel Scopel, o estudo discute a relação entre ambiente e saúde entre os Mundurukue revela que, enquanto a etnia trata dos dois de forma integrada com reflexos diretos no corpo de cada indivíduo, as políticas públicas investem recursos consideráveis na atenção à saúde, mas deixam que agridam o território indígena. Território e dádiva no contexto de festas de santo são elementos centrais para entender como se forjam alianças políticas entre comunidades quilombolas no Marajó. Etnografia de autoria coletiva, tendo como primeiro autor Petrônio Medeiros Lima Filho, “Festas de Santo, Território e Alianças Políticas entre Comunidades Quilombolas de BELTRÃO, Jimena Felipe. Carta da Editora. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 13, n. 1, p. 5-8, jan.-abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222018000100001.


Salvaterra - Marajó - Pará - Brasil”, demonstra como eventos religiosos-profanos dão sentido de pertença fundamental para fazer valer direitos territoriais. No bloco final de artigos, ciclos econômicos e meio ambiente, fotografia, cinema e termos de cortesia do Japão antigo completam a edição em interessantes abordagens históricas. História da economia extrativista a partir das observações de naturalistas viajantes é o que apresenta Carlos Valério Gomes. Mesmo com objetivos distintos de uma apreciação da economia regional já que estavam empenhados em coletar material, viajantes deixaram relatos das mudanças na economia regional do tempo das drogas do sertão. Esse é o argumento de “Ciclos econômicos do extrativismo na Amazônia na visão dos viajantes naturalistas”. Artigo de Marcelo Mahl reflete sobre as relações entre sociedade e ambiente no contexto da expansão econômica paulista, capítulo da história ambiental brasileira presente em “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo”, obra do geógrafo francês Pierre Monbeig. A fotografia foi usada a serviço de uma desejada integração do Centro-Oeste ao país. É o que demonstram os autores de “O incentivo à pesca comercial de Arapaima gigas (pirarucu) do rio Araguaia (Brasil central) na revista ‘A Informação Goyana’ (1917-1935)”, que tem como primeiro autor André Vasques Vital. Eles analisaram registro fotográfico dos peixes dos rios de Goiás em revista local do início do século XX em campanha para atrair a indústria e promover o desenvolvimento econômico do Estado. Paisagem amazônica presente na estética do Cinema Novo de Glauber Rocha dá corpo à incursão de Werner Herzog que filmou na região nos anos 1970. Renan Reis, em“O sertão virou rio e o rio virou sertão: um cineasta alemão e o Cinema Novo brasileiro”, argumenta por uma inscrição cinemanovistaglauberiana na obra do cineasta alemão. Representante da linguística histórica, estudo revela como se definiu o Princípio da Cortesia do japonês usado ainda hoje. Dois tratados do século XVII - a gramática ‘grande’ (1604-1608), do jesuíta João Rodrigues ‘Tçuzu’ [o intérprete] (1562–1633), e a gramática japonesa(1632) do dominicano Diego Collado (final do século XVI–1638) serviram de base para a análise de Gonçalo Fernandes em “A primeira codificação gramatical da Cortesia do japonês (século XVII)”. Naqueles trabalhos estava registrada a linguagem honorífica do japonês. Referência especial é feita para formas de tratamento dispensado ao gênero feminino. Pelo terceiro ano consecutivo o Boletim passou a receber submissões online. Com 240 itens submetidos, o tempo médio de processamento é de 90 dias. A agilidade se une a mais segurança no controle de conteúdo inédito e à expansão das ações de divulgação com abertura de novos canais para atender à diversidade de públicos, que o Boletim vem ganhando, por exemplo, ao alcançar a marca de mil seguidores em seu perfil no Facebook. Por mais conhecimento e mais ciência disponível para todos. Jimena Felipe Beltrão Editora Científica


HERANÇA CULTURAL E CONHECIMENTO ARTIGOS ARTICLES Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas Beyond Santarém: ‘necked vessels’ in the Trombetas River basin Marcony Lopes Alves........................................................................................................................................................................... 11

As mulheres novo-hispanas do Convento da Encarnação (Cidade do México) por meio das suas contas de vidro Women of New Spain from the Convento de la Encarnación (México City) through their glass beads Andreia Martins Torres........................................................................................................................................................................37

Os processos da paisagem pastoril: caracterizando lugar e movimento A pastoral landscape process: characterizing place and movement Milena Acha........................................................................................................................................................................................69

A cosmografia Munduruku em movimento: saúde, território e estratégias de sobrevivência na Amazônia brasileira Munduruku cosmography in movement: health, territory and survival strategies in the Brazilian Amazon Daniel Scopel, Raquel Dias-Scopel, Esther Jean Langdon.....................................................................................................................89

Festas de santo, território e alianças políticas entre comunidades quilombolas de Salvaterra, Marajó, Pará, Brasil Feast days, territory, and political alliances among quilombola communities in Salvaterra, Marajó Island, Pará, Brazil Petrônio Medeiros Lima Filho, Luis Fernando Cardoso e Cardoso, Edna Alencar................................................................................ 109

Ciclos econômicos do extrativismo na Amazônia na visão dos viajantes naturalistas Economic cycles of extractivism in the Amazon from the perspective of traveling naturalists Carlos Valério Aguiar Gomes............................................................................................................................................................ 129

Pioneiros e fazendeiros de São Paulo: a história ambiental e a obra de Pierre Monbeig Pioneers and farmers from São Paulo: the environmental history and Pierre Monbeig’s work Marcelo Lapuente Mahl .................................................................................................................................................................... 147


O incentivo à pesca comercial de Arapaima gigas (pirarucu) do rio Araguaia (Brasil central) na revista “A Informação Goyana” (1917-1935) Incentives for commercial fishing of Arapaima gigas (arapaima) on the Araguaia River (central Brazil) in the magazine A Informação Goyana (1917-1935) André Vasques Vital, Francisco Leonardo Tejerina-Garro.................................................................................................................... 159

O sertão virou rio e o rio virou sertão: um cineasta alemão e o Cinema Novo brasileiro The backwoods became a river and the river became the backwoods: a German filmmaker and the Brazilian Cinema Novo Renan Nascimento Reis.................................................................................................................................................................... 175

First grammatical encoding of Japanese Politeness (17th century) A primeira codificação gramatical da Cortesia do japonês (século XVII) Gonçalo Fernandes, Carlos Assunção................................................................................................................................................ 187

NOTA DE PESQUISA SHORT COMMUNICATION Resultados preliminares da pesquisa no sambaqui sob rocha Casa de Pedra, São Francisco do Sul, Santa Catarina, Brasil Preliminary report on research of the Casa de Pedra shell mound, São Francisco do Sul, Santa Catarina, Brazil Dione da Rocha Bandeira, Maria Cristina Alves, Graciele Tules de Almeida, Júlio Cesar de Sá, Jéssica Ferreira, Celso Voos Vieira, Vitor Marilone Cidral da Costa do Amaral, Magda Carrion Bartz, João Carlos Ferreira de Melo Jr.......................................................207


Artigos



Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 13, n. 1, p. 11-36, jan.-abr. 2018

Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas Beyond Santarém: ‘necked vessels’ in the Trombetas River basin Marcony Lopes Alves Universidade de São Paulo. Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo, São Paulo, Brasil

Resumo: As cerâmicas Konduri (XI-XV AD) e Santarém (XIII-XVI AD), pertencentes à Tradição Inciso Ponteada, são encontradas em áreas vizinhas ao baixo Amazonas. Uma das vasilhas mais emblemáticas da cerâmica Santarém são os vasos de gargalo, caracterizados pela presença de um gargalo constrito com flange, base em pedestal e bojo lobado, geralmente com dois pares de apliques formando eixos de simetrias perpendiculares. No presente estudo, a proposição de que esse grupo de vasos ocorria exclusivamente associado à cerâmica Santarém será reavaliada. A partir da análise de dezenas de vasos de gargalo Santarém, foi possível identificar elementos diagnósticos capazes de ser reconhecidos em fragmentos isolados. A análise de coleções cerâmicas oriundas de contextos Konduri, por sua vez, permitiu isolar mais de uma centena de casos com atributos diagnósticos. A revisão da literatura confirma a presença desses fragmentos em coleções que não puderam ser diretamente observadas. Os vasos de gargalo associados à cerâmica Konduri apresentam padrões incisos e aplicados particulares, sem equivalentes nos vasos Santarém. O compartilhamento de um tipo cerâmico tão distinto em escala regional reforça as sugestões encontradas nos estudos etno-históricos e arqueológicos sobre a existência de interações sociais entre os coletivos produtores das cerâmicas Santarém e Konduri. Palavras-chave: Cerâmica Konduri. Cerâmica Santarém. Baixo Amazonas. Vaso de gargalo. Interação. Abstract: Konduri (11th-15th AD) and Santarém (13th-16th AD) pottery styles occur in neighboring areas of the Lower Amazon and are both part of the Incised and Punctuate Tradition. ‘Necked vessels’ are among the most emblematic types of pottery in the Santarém style. These vessels typically have a constricted neck with a flange, pedestal base, and lobed body, generally with two pairs of zoomorphic adornos arranged in a perpendicular manner. This study challenges the assumption that this type of vessel was exclusively associated with Santarém pottery. Diagnostic traits to recognize necked vessels from isolated potsherds were defined based on analysis of complete specimens from Santarém. Hundreds of Konduri potsherds were directly analyzed or observed from available publications in order to identify diagnostic traits indicating the existence of necked vessels. Necked vessels from Konduri contexts were seen to have their own distinct characteristics involving particular incised patterns which differ from Santarém. The presence of such a distinct type of vessel on a regional scale reinforces previous suggestions based on ethnohistorical and archaeological studies of the existence of social interactions between the producers of Santarém and Konduri pottery. Keywords: Konduri pottery. Santarém pottery. Lower Amazon. ‘Necked vessels’. Interaction.

LOPES-ALVES, Marcony. Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 13, n. 1, p. 11-36, jan.-abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222018000100002. Autor para correspondência: Marcony Lopes Alves. Universidade de São Paulo. Museu de Arqueologia e Etnologia. Av. Prof. Almeida Prado, 1466 – Butantã. São Paulo, SP, Brasil. CEP 05508-070 (marcony.alves@yahoo.com.br). ORCID: http://orcid.org/0000-0003-2310-0648. Recebido em 10/10/2017 Aprovado em 08/01/2018

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Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas

INTRODUÇÃO Os vasos de gargalo têm sido considerados um dos tipos mais característicos da cerâmica Santarém (Figura 1, junto aos vasos de cariátides presentes na Figura 2). O presente artigo parte do levantamento de fragmentos relacionáveis à morfologia dos vasos de gargalo em coleções cerâmicas provenientes da região do rio Trombetas, área de dispersão de outro estilo cerâmico, denominado Konduri. Alguns aspectos da variabilidade formal dessas peças, como morfologia e antiplástico, foram estudados e comparados com os de vasos de gargalo Santarém. A partir dos resultados dessa comparação, é proposto um modelo de reconstituição da morfologia identificada na região do rio Trombetas, além de hipóteses baseadas em informações históricas e etnográficas do baixo Amazonas e de regiões vizinhas. Em coleções museológicas de cerâmica proveniente da região do rio Trombetas há um conjunto de fragmentos com características tecnológicas e iconográficas semelhantes às apresentadas pelos vasos de gargalo Santarém. Materiais do mesmo tipo já foram apontados como indicadores de uma ‘influência Santarém’ sobre o estilo Konduri (Gomes, 2002). A partir da identificação da

existência de fragmentos análogos em outras coleções, selecionamos e analisamos essas peças associáveis à morfologia dos vasos de gargalo e as comparamos com 36 vasos de gargalo Santarém inteiros/semi-inteiros e com oito fragmentados, pertencentes ao acervo de três museus no Brasil. As peças estudadas da região do rio Trombetas são majoritariamente resultado de coleta assistemática, com indicação genérica de proveniência. Isso não anula os resultados apresentados, uma vez que exemplos de fragmentos com as mesmas características foram encontrados em escavações sistemáticas (Guapindaia, 2008; Scientia, 2013; Jácome, 2017). A questão da relação entre os produtores das cerâmicas Santarém e Konduri tem sido tratada desde o início do século passado e continua em aberto. Nimuendajú (1949, 2004) foi o primeiro a identificar, entre 1923 e 1926, a cerâmica Konduri e propor que a sua dispersão ocorre da região dos rios Trombetas e Nhamundá alcançando até a serra de Parintins (Figura 3). O lago Salé, próximo ao lago Grande de Curuaí, seria uma ‘fronteira’, segundo Nimuendajú, uma vez que o autor encontrou nesse lugar peças Santarém e Konduri.

Figura 1. Vaso de gargalo (‘tipo 1’ de Frederico Barata) que compõe a coleção Valentim Bouças, do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Foto: Marcony Alves (2015).

Figura 2. Vaso de cariátides que compõe a coleção Amazônia, do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Foto: Marcony Alves (2015).

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 13, n. 1, p. 11-36, jan.-abr. 2018

Quadro 1. Diferenças entre as cerâmicas Santarém e Konduri. Informações sintetizadas de Hilbert, P. (1955, p. 73).

Desde o início do século passado, notou-se que estes estilos apresentam características tecnológicas semelhantes e aparecem em áreas contíguas. As datações radiocarbônicas para eles mostram que a cerâmica Konduri (XI-XV AD) começou a ser produzida um pouco antes do que a Santarém (XIII-XVI AD), mas que essas produções foram contemporâneas por pelo menos dois séculos (Hilbert, P.; Hilbert , K., 1980; Guapindaia; Lopes, 2011; Stenborg, 2016; Schaan, 2016; Gomes, 2016). As semelhanças entre essas cerâmicas levaram à sua classificação como pertencente à Tradição Inciso e Ponteada (Meggers; Evans, 1961) e ao modelo de expansão de línguas Karib (Lathrap, 1970). Hilbert, P. (1955) definiu as características da cerâmica Konduri e a diferenciou da Santarém a partir de um quadro com 11 traços (Quadro 1). Nenhuma revisão explícita foi feita ao quadro comparativo das cerâmicas Konduri e Santarém,

Atributo

Santarém

Konduri

Utilização de cauixi

Comedida

Abundante

Dureza

Entre 3 e 4

Entre 2 e 3

Decoração plástica Incisões retilíneas de paredes e curvas

Incisões retilíneas

Decoração de apliques e de alças

Parcimônia no uso de incisões

Combinação elaborada de pontilhados, entalhes e incisões

Pintura

Policromia e tintas fixas

Vermelha e friável

Fixação de apliques

Com ranhuras

Sem ranhuras

Borda oca

Frequente

Ausente

Vaso de cariátides

Frequente

Ausente

Vasilha trípode

Rara

Frequente

‘Alça em ponte’

Ausente

Presente

Cachimbos coloniais

Presente

Raros

Figura 3. Mapa construído por Curt Nimuendajú sobre a dispersão dos estilos cerâmicos no baixo Amazonas. Foram excluídas as referências a outros estilos mencionados. Fonte: adaptado de Palmatary (1960, p. 19).

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Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas

porém é possível notar que alguns dos atributos comparados precisam ser relativizados ou mesmo descartados. O caso mais evidente é o da presença de cachimbos angulares, pois hoje sabemos que foram feitos no período colonial (Barata, 1952; Symanski; Gomes, 2012). Todavia, pelo menos cinco diferenças elencadas continuam sendo válidas, sendo a principal delas a porcentagem muito alta de cauixi na pasta Konduri (Figura 4), em oposição à grande concentração de caco moído e à menor proporção de cauixi na cerâmica Santarém (Gomes, 2002). Outras características que podemos mencionar, a partir de Guimarães (1985), Guapindaia (2008), Souza (2014), Panachuk (2016a) e do próprio estudo das coleções, são: maior frequência e elaboração da policromia na cerâmica Santarém, em contraposição à raridade de pintura na cerâmica Konduri; abundância de vasilhas trípodes no estilo Konduri, sendo muito raras na outra cerâmica; ausência de incisões curvas em Konduri, oposta à sua abundância na Santarém; e também ausência de vasos de cariátides na cerâmica dos rios Trombetas e Nhamundá. Apesar do diálogo direto com

a caracterização da cerâmica Santarém feito por Barata (1950, 1953a), não há nenhuma referência aos vasos de gargalo na comparação feita por Hilbert, P. (1955).

OS VASOS DE GARGALO SANTARÉM Vários nomes já foram atribuídos ao que chamamos de vaso de gargalo (Nordenskiöld, 1930; Palmatary, 1939; Serrano, 1938), mas a denominação que se perpetuou foi aquela atribuída por Barata (1950). Apesar da permanência do termo ‘vaso de gargalo’, Barata o usou para agrupar duas morfologias distintas, as quais, segundo nossa concepção, apenas compartilhavam gargalo constrito com flange: uma mais padronizada (‘tipo 1’ do autor) e outra com formas muito distintas, com bojos zoomorfos ou antropomorfos (‘tipo 2’ do autor). Em trabalhos posteriores (Guapindaia, 1993; Gomes, 2001), a categoria foi usada apenas em relação ao conjunto mais padronizado. Os vasos de gargalo, assim, são vasilhas cuja estrutura é dividida em três partes (gargalo, corpo e base em pedestal) (Scatamacchia et al., 1996),

Figura 4. Alça em ponte, com pontilhado e entalhes, apresentando alta densidade de cauixi na pasta, atributos considerados característicos da cerâmica Konduri desde o quadro de Hilbert, P. (1955). Foto: Caroline Teixeira (2017).

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 13, n. 1, p. 11-36, jan.-abr. 2018

sendo que exibem um gargalo constrito e composto, além de apliques em formas de cabeças zoomorfas alongadas, geralmente em um eixo de simetria perpendicular a outro, no qual aparecem figuras quadrúpedes (Figura 5). O bojo de muitos vasos de gargalo é lobado, formando seis ‘gomos’. Em nosso estudo, constatamos que os vasos medem entre 10 e 30 cm de altura e têm uma capacidade volumétrica entre 250 e 670 ml. As partes estruturais deles refletem a sua construção em ‘blocos’ manufaturados separadamente e posteriormente unidos com barbotina e ranhuras. Essas vasilhas, a julgar por exemplares fragmentados, combinam um bojo feito por acordelamento e modelagem, afixado a outras partes completamente modeladas. A partir de levantamento da bibliografia e de coleções do Museu Paraense Emílio Goeldi, do Museu

Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Museu de Arqueologia e Etnologia/Universidade de São Paulo, foram identificadas 49 peças inteiras ou semi-inteiras, as quais apresentam o conjunto de elementos característicos dos vasos de gargalo (Tabela 1). Outras oito peças encontram-se fragmentadas, apresentando, aproximadamente, entre 40 e 50% das partes estruturais e dos apliques que compõem o vaso. Desse total, foram analisados 36 vasos Santarém inteiros/semi-inteiros e oito fragmentados, presentes nas três instituições com as maiores coleções de cerâmica Santarém no Brasil. Fotografias e descrições das outras peças mencionadas foram compiladas em outros estudos sobre a cerâmica Santarém (Serrano, 1938; Palmatary, 1960; Barata, 1950, 1953b; Nimuendajú, 2004; Corrêa; Barry, 2002; Leal; Amaral, 2011; Gomes, 2016; Jácome, 2017).

Figura 5. Partes de um vaso de gargalo (em perfil) e seus principais apliques (visão aérea) que compõe a coleção Valentim Bouças, Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Desenhos: Marcony Alves (2017).

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Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas

Tabela 1. Levantamento de vasos de gargalo conhecidos e identificados em instituições ou por meio da bibliografia. O asterisco (*) indica que não foi realizado um levantamento sistemático, sendo consideradas apenas peças em exposição ou com foto na bibliografia. Instituição

Inteiros e semi-inteiros

Fragmentados

Museu Paraense Emílio Goeldi

16

4

Museu de Arqueologia e Etnologia/Universidade de São Paulo

11

2

Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro

9

1

World Culture Museum

3

0

Penn Museum

3

0

National Museum of the American Indian

1

0

Centro Cultural João Fona

1*

0

Laboratório de Arqueologia Curt Nimuendajú/Universidade Federal do Oeste do Pará

0*

1

Museu do Forte do Presépio

0*

1

Localização desconhecida atualmente

5

1

Total

49

10

A maioria dos vasos dos quais se conhece a procedência foi coletada no sítio arqueológico Aldeia (12 peças), onde hoje se situa parte da atual cidade de Santarém. Outras vasilhas têm como procedência apenas ‘Santarém’, mas é muito provável que tenham sido coletadas no mesmo sítio (17 peças). Uma única peça (fragmentada) foi encontrada, até o momento, em escavação sistemática por Gomes (2010, 2016) neste sítio. Muitas das vasilhas nos museus não têm nenhuma indicação explícita de procedência, mas suas características estilísticas servem para associá-las com a cerâmica Santarém nos estudos de coleções museológicas (Guapindaia, 1993; Gomes, 2002). A composição dos vasos de gargalo é caracterizada não só por modelagens, mas também por incisões e vestígios de enegrecimento. As suas superfícies exibem estrias de polimento, quando não estão erodidas. Como em outras vasilhas provenientes de Santarém, os gargalos e as bases exibem padrões incisos (com sigmoides, volutas e retângulos, círculos e arcos concêntricos). Essas vasilhas apresentam em seu bojo dois pares de apliques característicos, que, por falta de melhores expressões, chamamos genericamente de ‘cabeças zoomorfas alongadas’ e de ‘quadrúpedes de corpo inteiro’ (Figura 5). Outros apliques, que por vezes

aparecem no bojo, formam eixos de simetria oblíquos aos das cabeças zoomorfas alongadas e quadrúpedes. Essas cabeças zoomorfas alongadas podem ser interpretadas – a partir de sua proeminência em relação ao tamanho total das peças – como forma de apoio, usado para segurar a vasilha – ‘garrafas com asas’, como denominou Palmatary (1960). Esses ‘apliques-asas’ são uma constante nos vasos de gargalo. Há três formas distintas de figurá-los, às quais foram atribuídas identidades zoológicas distintas pela literatura arqueológica. A mais numerosa delas é comumente identificada como ‘jacaré’, cuja boca é ondulada e aberta, com pequenos apliques zoomorfos em sua porção superior (Figuras 6A, 7A e 7B). Outra maneira de figurar a cabeça costuma ser identificada como ‘urubu-rei’ e apresenta formato arredondado, com incisões, relevos, além de um bico com ponta curva (Figuras 7C-7E). Há também uma forma pouco mencionada que poderia ser identificada como uma ave, tal qual a anterior, mas cujo bico está aderido ao bojo do vaso, formando um arco (Figuras 6C e 7F). Na coleção Tapajônica do Museu de Arqueologia e Etnologia/Universidade de São Paulo (MAE/USP), há uma peça com características singulares (Figura 6D), as quais não permitem agrupá-la com as outras formas de figurar as cabeças zoomorfas alongadas (Figuras 6A-6C).

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Figura 6. Variantes de vasos de gargalo: A) variante 1 apresenta maior elaboração da técnica dos ‘apliques-asas’ identificados como ‘jacarés’ na bibliografia, os característicos apliques ‘sapos-besouros’ e uma série de outras pequenas modelagens, além de maior diversidade de padrões incisos no vertedor do gargalo e aplicados e incisos na base; B) variante 2, muito semelhante à variante 1, sendo caracterizada por ‘apliques-asas’ identificados como ‘cabeça de urubu-rei’ e com tendência a um número menor de pequenos apliques zoomorfos em todas as partes do vaso; C) variante 3, caracterizada por ‘apliques-asas’ que lembram uma cabeça de ave, cujo bico se encontra afixado na parede da vasilha (diferentemente da variante 2) e com um número menor de modelagens aplicadas em relação às variantes 1 e 2, sendo que os característicos apliques ‘sapos-besouros’ aparecem muito simplificados ou não fazem parte da composição; D) variante única, é representada por uma única vasilha conhecida, cujos ‘apliques-asas’ sugerem uma figuração distinta das outras variantes, e que no lugar dos apliques ‘sapos-besouros’ apresenta apliques (zoo)antropomorfos. Desenho: Marcony Alves (2017).

A diferença entre esses apliques reflete-se na composição geral dos vasos de gargalo, o que nos levou a diferenciar três variantes e uma peça única (Figura 6). Quantitativamente, entre vasos inteiros e fragmentados, são conhecidos mais vasos de gargalo com apliques da primeira variante (37 peças) do que das outras duas (respectivamente, sete e quatro peças). Algumas peças apenas apresentavam o negativo desses apliques, o que impossibilitou a identificação de qual tipo foi colocado no vaso.

Um elemento muito importante – geralmente esquecido nas descrições dos vasos de gargalo – é a sugestão de um corpo para cada uma das cabeças alongadas a partir de pequenos apliques no bojo (Figura 8). Filetes, semiesferas e trapezoides sugerem um corpo de ave (com asas, patas e cauda) para a cabeça alongada. Todos esses elementos levam a considerar que, apesar das distintas identificações zoológicas feitas para as cabeças, é possível que se trate de uma variação de uma mesma personagem – apenas com exceção da variante única (Figura 6D).

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Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas

Figura 7. Variantes de apliques de cabeça zoomorfa alongada de vasos de gargalo: os primeiros são identificados na bibliografia como ‘jacarés’ (A e B) e os últimos como ‘urubus’ (C, D, E e F). Há, de fato, uma continuidade entre esses modos de figurar a cabeça zoomorfa. Isto fica claro quando se compara, por exemplo, as figuras A e C. Desenhos: Marcony Alves (2016).

Figura 8. Variações dos corpos que compõem uma figura junto às cabeças zoomorfas alongadas. Foto e desenhos: Marcony Alves (2015, 2017).

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Os apliques em forma de quadrúpede sempre apresentam cabeça subtriangular e corpo elíptico (Figura 9), variando muito menos do que os ‘apliques-asas’. Os olhos desse tipo de figuração são sempre aplicados com um ponteado circular e o dorso, com variadas incisões e/ou filetes. O ventre desses apliques é sempre côncavo. Geralmente, essas figuras são identificadas como batraquiformes (‘sapos’ ou ‘rãs’). Essa identificação é justificada principalmente pelas patas traseiras fletidas, que lembram as de anuros.

‘CABEÇAS DE URUBU’ E ‘SAPOS-BESOUROS’ Uma questão latente tanto nos manuscritos de Nimuendajú (2004) quanto em Palmatary (1960), Hilbert, P. (1955) e em trabalhos mais recentes (Gomes, 2002, 2009; Duarte Filho, 2010; Panachuk, 2011; Martins, 2012; Lopes-Alves, 2016) é a existência de peças características de cerâmica Konduri em coleções Santarém e vice-versa. Além disso, também já se falou em ‘combinação’ de elementos das cerâmicas Konduri e Santarém ou na existência de ‘influências’ de um estilo sobre o outro. No estudo da coleção Tapajônica do MAE/USP, os vasos de gargalo foram, inclusive, indicados como um dos principais indícios da interação entre diferentes comunidades do baixo Amazonas (Gomes, 2002, p. 161-162). A interpretação para a presença de peças características da cerâmica Konduri em coleções tapajônicas foi de que essas seriam ‘peças de troca’. Palmatary (1960, p. 21) sugere que essa recorrência de ‘combinação’ pode indicar uma relação muito próxima ou mesmo uma ‘integração’ entre os produtores dos dois estilos. Parte do que foi visto como ‘combinação’ pode ser resultado apenas do processo de formação das coleções particulares, reunindo peças de diferentes proveniências. Não obstante a isso, a existência desses materiais de estilo distinto está sendo confirmada

Figura 9. Aplique quadrúpede batraquiforme: face dorsal e perfil. Peça pertencente à coleção Tapajônica, Museu de Arqueologia e Etnologia/Universidade de São Paulo, São Paulo. Desenho: Marcony Alves (2017).

por escavações arqueológicas, evidenciando que não se trata apenas de um viés de coleções de museu1. Em meio às observações e às descrições de Nimuendajú (2004) e de Palmatary (1960, p. 57), os apliques chamados de ‘cabeças de urubu’2 foram destacados entre o material dos rios Trombetas e Nhamundá como parte da já mencionada ‘troca’ ou ‘combinação’ entre os estilos Konduri e Tapajó. Palmatary (1960) comenta que essas peças são parte da evidência de que existiu um ‘comércio ativo’ entre o baixo Tapajós e a bacia do rio Trombetas. As ‘cabeças de urubu’ aparecem em quase toda a área do baixo Amazonas visitada por Nimuendajú (Figura 10A), desde Parintins (Amazonas) até Óbidos (Pará). A alta frequência pode estar relacionada à intensidade das coletas no baixo curso do rio Tapajós. Esse tipo de aplique é uma das formas mais recorrentes e padronizadas nas coleções Aricy Curvello (Museu de História Natural/Universidade Federal de Minas Gerais),

Ver exemplos em Gomes (2008), Guapindaia (2008), Jácome (2011, 2017), Scientia (2013) e Schaan (2016). Optamos pelas denominações que sugerem uma interpretação zoológica (‘cabeças de urubu’ e ‘sapos-besouros’) porque elas pareceram a maneira mais fácil de apresentar os apliques. Não cabe discutir neste artigo como podemos interpretar figuras como estas, bem como as suas relações com as cosmologias ameríndias e os seus modos de figurar. Para a presente análise, as denominações poderiam ser apenas ‘aplique 1’ e ‘aplique 2’.

1

2

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Walter Marinho (Casa de Cultura de Oriximiná), Comissão Rondon/Barbosa de Faria3 (Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro) e em seis coleções domésticas em comunidades ribeirinhas do lago Sapucuá (Conuri, Ajará, Castanhal, São Pedro, Maceno e Macedônia) (Tabela 2), descritas em uma pequena expedição de barco à área. Na análise, foram

consideradas também três peças coletadas em dois sítios escavados da região do rio Mapuera (Mapium e Tawanã) dentro do Projeto Norte Amazônico e uma peça doada por um indígena Wai Wai (Aldeia Mapuera). Além disso, a abordagem valeu-se das pranchas presentes em Nimuendajú (2004) e do catálogo online do World Culture Museum (Världskulturmuseet, [201-]).

Figura 10. Apliques zoomorfos tratados no texto como (A) ‘sapo-besouro’ e (B) ‘cabeça de urubu’. Peças pertencentes às coleções Rosilane e Domingas (ambas da comunidade Conuri/lago Sapucuá). Fotos: Marcony Alves (2014). Tabela 2. Quantidade e porcentagem de apliques ‘cabeças de urubu’ e ‘sapos-besouros’ nas coleções estudadas. ‘Sapos-besouros’ Coleção

‘Cabeças de urubu’

% no total de % no total de Quantidade fragmentos Quantidade fragmentos cerâmicos cerâmicos

Total de fragmentos cerâmicos

Casa de Cultura de Oriximiná

45

4,35%

49

4,73%

1.034

Coleções domésticas (lago Sapucuá e baixo Trombetas)

12

4,34%

16

5,81 %

276

Comissão Rondon/Barbosa de Faria (Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro)

50

4,32%

95

8,21%

1.157

Aricy Curvello (Museu de História Natural e Jardim Botânico/Universidade Federal de Minas Gerais)

1

0,22%

7

1,55%

449

Projeto Norte Amazônico (sítios arqueológicos Mapium, Tawanã e doação)

3

-

1

-

-

Apesar de ter sido coletada por Barbosa de Faria, na instituição, parte da coleção é denominada de ‘Comissão Rondon’ e outra de ‘Barbosa de Faria’.

3

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As coleções estudadas possuem diferentes informações de proveniência (Figura 11). A coleção Walter Marinho não apresenta nenhuma informação sobre onde foram coletadas as peças, porém a maioria exibe características tipicamente Konduri. Na coleção Comissão Rondon/Barbosa Faria, na maioria dos casos, é disponibilizado o nome da comunidade/sítio arqueológico onde as peças foram coletadas, apesar de essa informação ter se perdido em um número pequeno de espécimes. Na coleção Comissão Rondon, há peças provenientes de proximidades de Óbidos (Sucuriju), da margem esquerda da foz do rio Trombetas (Sacuri, Jacupá, lago Paru), do lago Sapucuá (Ajará e Cocais) e do médio Trombetas (Abuí e Santa Maria). O material reunido pelo engenheiro Aricy Curvello vem da área de médio/baixo curso do rio

Trombetas (Porto Trombetas, Aimim e lago Batata) e das proximidades do lago Sapucuá (Terra Santa). Os ‘sapos-besouros’ (Figura 10B) são outro tipo de aplique, com frequência e padronização análogas às das ‘cabeças de urubu’ nas coleções da região do rio Trombetas. Essas modelagens exibem patas traseiras fletidas e cabeças triangulares que lembram anuros, mas que apresentam também uma separação entre corpo e tronco, podendo aludir a escaravelhos, como sugeriu Nordenskiöld (1930). Nenhum dos outros tipos de apliques aparece em tão grande quantidade e exibe tamanha padronização nas coleções estudadas. Os apliques quadrúpedes, da mesma maneira que as ‘cabeças de urubu’, são bastante frequentes na coleção reunida por Nimuendajú, predominando em áreas em que aparece a

Figura 11. Mapa evidenciando as localidades de onde provêm as peças. Nem todos os locais citados no texto puderam ser identificados, mesmo que aproximadamente. Mapa: Marcony Alves (2017).

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Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas

diferenças, possuem uma série de características em comum, o que permite agrupá-los como figurações das mesmas categorias de seres. Todavia, somente a partir dos apliques não é possível dizer se as peças encontradas na região do rio Trombetas são necessariamente partes dos vasos de gargalo. É necessário somar a esses apliques outras partes diagnósticas.

cerâmica Santarém. Em escavações arqueológicas tanto na cidade de Santarém (Schaan; Alves, 2015, p. 55; Schaan, 2015, p. 109-110, 2016, p. 31-33; Jácome, 2011, p. 104 e 110) quanto na região do rio Trombetas (Guapindaia, 2008, p. 115, p. 165-166; Scientia, 2013, p. 71) foram identificados ‘sapos-besouros’ e ‘cabeças de urubu’. Quando estivemos no lago Sapucuá, encontramos um fragmento desse aplique em superfície na terra preta da comunidade de Castanhal. Há, portanto, dois tipos de modelagens figurativas muito particulares por sua padronização e que aparecem em grande proporção em coleções cerâmicas provenientes tanto do baixo Tapajós quanto da região do rio Trombetas. Os apliques aviformes vêm sendo associados à forma dos vasos de gargalo quando encontrados em coleções de cerâmica Santarém (Gomes, 2002) ou no sítio Porto (Schaan; Alves, 2015), na cidade de Santarém. Da mesma maneira, os apliques quadrúpedes batraquiformes podem ser associados a essa morfologia de vasilha que em seu corpo combina os dois tipos de aplique em questão em Santarém. O mesmo poderia ser pensado com peças encontrado em outras áreas? A coleção reunida por Nimuendajú (2004), a mais ampla no que diz respeito à área de coleta conhecida, mostra que os fragmentos de ‘apliques-asas’ das variantes 1 e 3 não são conhecidos fora da cidade de Santarém. Nas coleções estudadas no presente trabalho, da mesma maneira, não se encontram essas duas formas, ocorrendo apenas a variante 2, ou seja, apliques em forma de ‘cabeças de urubu’. Os apliques ‘sapos-besouros’ são encontrados em formas bastante similares às dos vasos de gargalo Santarém. As diferenças mais proeminentes entre os vistos nos vasos de gargalo Santarém e os encontrados na região do rio Trombetas estão relacionadas à forma de construir o ventre e à curvatura da cabeça. O tronco dos sapos identificados em vasilhas inteiras exibe ventre côncavo, enquanto quase todos os apliques encontrados nas coleções do rio Trombetas têm o tronco oco, com um furo no centro e o ventre plano. Os apliques encontrados em coleções da região do rio Trombetas e os dos vasos de gargalo Santarém, apesar das

OUTRAS PEÇAS DO QUEBRA-CABEÇA A maioria dos vasos de gargalo encontrados na cidade de Santarém (sítio Aldeia) possui vertedor com padrões incisos e flange, bulbo, corpo lobado, bem como apliques, que compõem o corpo dos seres figurados nos ‘apliques-asas’, além de base em pedestal ou zoomorfa. O exame das coleções domésticas e de museus mostrou uma abundância de fragmentos equivalentes às partes dos vasos de gargalo, o que confirma a existência desses vasos na região do rio Trombetas (Tabela 3; Figuras 12 e 13). A consulta a pranchas da bibliografia mostrou que peças análogas já haviam sido coletadas por Nimuendajú (2004) nas áreas dos lagos Sapucuá e Grande de Vila Franca. Recentemente, também foram coletadas peças semelhantes em escavações sistemáticas na bacia do rio Trombetas (Guapindaia, 2008, p. 166, fig. 42-g; Scientia, 2013, p. 72). Não bastassem os fragmentos, são conhecidas vasilhas cerâmicas inteiras, encontradas na margem esquerda do baixo Amazonas, as quais podem ser classificadas como vasos de gargalo. Quase desconhecidos e pouco numerosos, há três vasos deste tipo que foram encontrados fora da cidade de Santarém – um no município de Monte Alegre (Barata, 1953b) e os outros dois em afluentes do rio Trombetas (Figuras 14 e 15), os rios Acapu (Nimuendajú, 2004) e Mapuera (Jácome, 2017). O vaso encontrado em Monte Alegre assemelha-se aos localizados em Santarém, ao contrário dos outros dois, que apresentam características singulares. Os encontrados nos cursos dos rios Acapu e Mapuera exibem, cada um a seu modo, padrões e motivos incisos e aplicados idênticos aos que vimos nos fragmentos em coleções domésticas e de museus. Semelhante ao vaso do rio Mapuera,

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Tabela 3. Quantidade de outras partes identificadas como fragmentos de vasos de gargalo. Coleção Gargalo Pedestal Parede lobada

Total de fragmentos cerâmicos

Casa de Cultura de Oriximiná

15

4

3

1.034

Coleções domésticas (lago Sapucuá e baixo Trombetas)

5

0

0

276

Comissão Rondon/Barbosa de Faria (Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro)

11

18

45

1157

Aricy Curvello (Museu de História Natural e Jardim Botânico/Universidade Federal de Minas Gerais)

1

0

0

449

Projeto Norte Amazônico (sítios arqueológicos Mapium, Tawanã e doações)

0

0

0

0

Figura 12. Fragmentos que sugerem uma forma variante de vaso de gargalo: A) vertedor com flange (coleção Madalena/comunidade de Maceno/lago Sapucuá); B) parede lobada com aplique sugerindo corpo aviforme (coleção Nimuendajú/comunidade de Cocal, lago Sapucuá); C) base anelar com filetes aplicados (coleção Walter Marinho). Fotos: Marcony Alves (2014) (A); World Culture Museum (s.d.) (B); Igor Rodrigues (2014) (C).

uma peça desse tipo na coleção Tapajônica (MAE/USP) permite a mesma correlação direta com fragmentos em coleções do rio Trombetas (Figura 16). Apesar de possuir indicação de procedência para a cidade de Santarém escrita na peça pelo colecionador, Gomes (2002, p. 118) classificou essa vasilha como uma manifestação de uma ‘influência Santarém’ sobre o estilo Konduri (Figura 16). O vaso encontrado no curso do rio Mapuera (Figura 15) foi coletado por indígenas Katuena, da aldeia Tamiurú. Essa peça foi fotografada durante trabalho de campo por Camila Jácome e Rogério Tobias, em 2011. O vaso encontrado no rio Acapu (Figura 14) pertence à

coleção Nimuendajú, do Museu Paraense Emílio Goeldi, e é um dos menores vasos de gargalo conhecidos (55 ml de capacidade volumétrica). Essas duas peças apresentam linhas circundantes incisas no vertedouro, da mesma maneira que quase todos os gargalos presentes nas coleções da região do rio Trombetas – apenas duas peças exibem arcos incisos. Os fragmentos de bojo lobado apresentam os padrões que aparecem em um dos dois vasos. O vaso do rio Acapu apresenta lóbulos com séries de incisões circulares. Por sua vez, os lóbulos do vaso mantido na aldeia Tamiuru exibem filetes ponteados que lembram um ômega (Ω) – elemento que aparece sobre as ‘cabeças de urubu’4.

Esse motivo parece remeter às patas fletidas de batraquiformes, como algumas cabeças zoomorfas indicam tanto em apliques ‘cabeças de urubu’ quanto nas paredes lobadas.

4

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Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas

Figura 13. Reconstituição esquemática de fragmentos da coleção Barbosa de Faria/Comissão Rondon (Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro) associados à morfologia dos vasos de gargalo na região do rio Trombetas. Foram combinados os dois padrões identificados nos bojos em um único modelo. Fotos: Marcony Alves (2017).

Figura 14. Vaso da coleção Nimuendajú, do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, encontrado na região do rio Acapu, afluente do rio Cuminá. Foto: Marcony Alves (2016).

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Figura 15. Vaso encontrado dentro do rio Mapuera (alto curso), nas proximidades da aldeia Tumiurú, na Terra Indígena Trombetas Mapuera. O vaso foi remontado pelos indígenas com massa adesiva epóxi. A ‘cabeça de urubu’ estava solta quando a foto foi tirada. Fotos: Rogério Tobias (2011).

As sugestões de um corpo de ave no bojo do vaso encontrado na bacia do rio Mapuera e nos fragmentos das coleções de cerâmica Konduri são diferentes do que mostra a maioria dos vasos de Santarém: têm asas maiores, exibem uma cauda e não possuem filetes aplicados que conectam cabeça e asa. A semelhança entre a configuração do corpo, associada à cabeça aviforme dos apliques, e os vasos encontrados em Santarém é notada somente no vaso ora citado, salvaguardado

no MAE/USP. As bases, tanto do vaso inteiro quanto dos fragmentos na região do rio Trombetas, apresentam filetes circundantes ponteados, como o do exemplar encontrado em Tamiurú, bem como outros padrões construídos a partir de filetes aplicados com ponteados ou ainda com incisões circundantes. Não foram identificadas bases nem padrões que sugerem caras antropomorfas ou incisões curvilíneas, como as encontradas nos vasos de Santarém.

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Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas

As pranchas presentes em Nimuendajú (2004, p. 272, 276278) mostram que pedestais, paredes lobadas e gargalos similares aos identificados na região do rio Trombetas (Figura 12B) também aparecem no lago Grande de Curuaí (ou Vila Franca), área onde ainda se encontraria uma variante da cerâmica Santarém (Palmatary, 1939). Os fragmentos identificados como partes de vasos de gargalo nas coleções da região do rio Trombetas não compartilham apenas motivos e padrões, mas também elementos da cadeia operatória. Destacam-se o polimento das superfícies, a queima oxidante externa e as altas porcentagens de caco moído como antiplástico, por vezes associada a cauixi e, raramente, apenas cauixi. Essas mesmas características indicam uma aproximação destas peças com características da cerâmica Santarém, como os vasos de gargalo, diferenciando-as das peças consideradas tipicamente Konduri, com abundância de cauixi (Figura 4). Os antiplásticos identificados em fragmentos da região do rio Trombetas são os mesmos encontrados nos vasos de gargalo encontrados na cidade de Santarém. A proporção de caco moído nos fragmentos da região do rio Trombetas tende a ser um pouco mais elevada (Figura 17). O que tal compartilhamento com variações poderia indicar?

Figura 16. Vaso de gargalo fragmentado da coleção Tapajônica, do Museu de Arqueologia e Etnologia/Universidade de São Paulo, São Paulo. Esta peça apresenta características muito similares às identificadas em fragmentos nas coleções de cerâmica da região do rio Trombetas. Foto: Marcony Alves (2017).

fora de Santarém não é surpreendente, mas reafirma a necessidade de rever o quadro comparativo proposto por Hilbert, P. (1955). Pesquisas recentes mostram que a área de dispersão da cerâmica Tapajó chega a 70 km a sul e a 50 km a leste do perímetro urbano da cidade de Santarém, na margem direita do rio Tapajós (Stenborg, 2016). A margem esquerda do baixo Tapajós foi estudada apenas na localidade de Parauá, onde foram encontrados raros fragmentos da cerâmica Santarém (Gomes, 2008). A região do lago Grande do Curuaí (ou de Vila Franca) não foi pesquisada depois do levantamento realizado por Nimuendajú, mas a cerâmica da região foi classificada como Santarém pelo autor. Apesar disso, Palmatary (1939) apontou a existência de diferenças em relação às peças provenientes da cidade de Santarém. A cerâmica Konduri é encontrada em uma área muito ampla, que vai desde Óbidos, passando pelo médio curso do rio Trombetas e chegando à margem direita, nos municípios de Juruti e Parintins (Nimuendajú, 2004; Hilbert, P., 1955;

OS VASOS DE GARGALO NO BAIXO AMAZONAS O problema da semelhança e da relação entre os estilos cerâmicos Konduri e Santarém data ainda das expedições do naturalista Rodrigues (1875), no século XIX, à região dos rios Trombetas, Nhamundá e Tapajós. Os apliques chamados de ‘cabeças de urubu’ e os próprios vasos de gargalo foram elementos que, apesar de não terem sido muito enfatizados, estiveram na base da constituição da noção de ‘combinação’ ou de ‘influência’ entre as cerâmicas Konduri e Santarém (Palmatary, 1960; Gomes, 2002). Ao mesmo tempo, os vasos de gargalo foram considerados por Frederico Barata e, de certo modo, por aqueles que o sucederam como uma das formas mais emblemáticas da cerâmica Santarém. Constatar a presença de fragmentos de vasos de gargalo

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Figura 17. Vaso de gargalo (Santarém, do Museu de Arqueologia e Etnologia/Universidade de São Paulo, São Paulo) e aplique ‘cabeça de urubu’ (sítio arqueológico Tawanã, baixo curso do rio Mapuera) com alta densidade de caco moído e baixa densidade de cauixi. Fotos: Marcony Alves (2017).

Panachuk, 2011, 2016a; Duarte Filho, 2010; Lima et al., 2013). Na região do rio Mapuera, afluente do rio Trombetas, é raro localizar cerâmica com características do estilo Konduri, que ocorre apenas no baixo curso (Jácome, 2011, 2017). O mapa construído por Nimuendajú (Palmatary, 1960) para mostrar a dispersão das cerâmicas Santarém e Konduri apresenta problemas e precisa ser reavaliado a partir de pesquisas recentes e também por meio do desenvolvimento de novos projetos na região. O primeiro problema do mapa é que as cerâmicas do rio Arapiuns e as encontradas em Monte Alegre foram consideradas como variações do estilo Santarém. A partir das pranchas presentes em Nimuendajú (2004), é evidente que existem muitas diferenças entre as cerâmicas encontradas na

cidade de Santarém e municípios vizinhos e as das outras duas áreas mencionadas. Barreto et al. (2016), inclusive, sugeriram que as cerâmicas de Monte Alegre são de um estilo local (Pariçó), com presença de elementos do estilo Koriabo. Da mesma forma, a cerâmica encontrada no lago Grande foi considerada como Santarém, mas parece apresentar singularidades não discutidas. Nimuendajú talvez tenha exagerado em relação à dispersão do estilo Santarém, ao mesmo tempo em que apresentou apenas uma parcela da área em que se encontra a cerâmica Konduri (Faria, 1946; Costa et al., 2004; Duarte Filho, 2010; Lima et al., 2013; Jácome, 2017). Os vasos de gargalo inteiros e os fragmentos são encontrados, principalmente, na área de dispersão das

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Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas

cerâmicas Santarém - incluindo o lago Grande de Curuaí - e Konduri, especialmente na bacia do rio Trombetas (Figura 18). Há poucas informações sobre o vaso de gargalo da coleção de Frederico Barata (1953b), cuja proveniência é indicada como sendo o município de Monte Alegre. Nimuendajú (2004) coletou peças com características Santarém em Monte Alegre, mas nenhum fragmento que pudesse ser associado a vasos de gargalo5. Os outros dois vasos inteiros, encontrados em afluentes do rio Trombetas, foram localizados em áreas com pouca ou nenhuma informação arqueológica. No caso do rio Mapuera, a

maioria dos dados restringe-se à parte do curso do rio Mapuera mais abaixo da aldeia Tamiurú, sendo que não temos conhecimento de nenhuma pesquisa realizada no rio Acapu. No baixo curso do rio Mapuera, os apliques ‘cabeça de urubu’ e ‘sapos-besouros’ aparecem associados a uma cerâmica com atributos característicos da Tarumã (Glória, 2017; Jácome, 2017). Há alguns indicadores de presença de vasos de gargalo na coleção reunida por Nimuendajú (2004) em áreas nas quais não aparecem as cerâmicas Santarém ou Konduri, mas se trata de apenas uma peça no rio Arapiuns.

Figura 18. Dispersão dos vasos de gargalo no baixo Amazonas. O mapa indica somente o conhecimento de alguma vasilha inteira ou de fragmento associável (apliques, bojo, base, gargalo) com sua respectiva variante. Mapa: Marcony Alves (2017).

Pesquisas recentes no sítio arqueológico Coroatá, em Monte Alegre, identificaram um gargalo semelhante ao dos vasos de gargalo, associado à cerâmica que combina elementos Pariçó e Koriano (Cristiana Barreto, comunicação pessoal, 2017).

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A grande variação dos vasos de gargalo, em termos de morfologia, de padrões incisos e de modelagens, é encontrada somente nas peças coletadas na cidade de Santarém. Essa diversidade é coerente com a própria variação das vasilhas da cerâmica Santarém, como é possível observar também nos vasos de cariátides. Os variados padrões incisos e alguns dos apliques que aparecem nos vasos de gargalo Santarém são encontrados em várias das vasilhas inteiras conhecidas. Os vasos de gargalo, a julgar pelos fragmentos conhecidos provenientes da região do rio Trombetas (e, talvez, do lago Grande), parecem exibir uma diversidade menor entre si, sendo sua principal diferença o uso do padrão em ômega ou de círculos incisos no bojo lobado, bem como as formas de figurar o corpo aviforme. As características dos vasos de gargalo identificados na região do rio Trombetas mostram distanciamento das consideradas características diagnósticas da cerâmica Konduri (Hilbert, P., 1955; Guapindaia, 2008; Guapindaia; Lopes, 2011; Souza, 2014; Panachuk, 2016a; Jácome, 2017). Não foram analisados apliques e fragmentos possivelmente pertencentes a vasos de gargalo com abundância de cauixi, nem a grande profusão de ponteados e de incisões. Essas peças, ao mesmo tempo que reforçam a sugestão de que os vasos de gargalo existiriam também como uma forma da ‘influência Santarém’ na cerâmica Konduri, mostram uma singularidade que não atende às imagens típicas de um ou de outro estilo cerâmico. Os vasos de gargalo que existiram na região do rio Trombetas, quando inteiros, tiveram uma forma com elementos parecidos com os de Santarém, mas uma série de outros elementos diferentes, como as incisões retilíneas no gargalo, os filetes ponteados aplicados no pedestal, as bases mais altas, maiores dimensões no geral, além da rara pintura vermelha/amarela espessa. Nenhum vaso inteiro, semi-inteiro ou fragmentado proveniente de Santarém identificado ao longo da pesquisa possui todos os atributos reunidos pelos fragmentos tratados anteriormente e também nos dois vasos encontrados em afluentes do rio Trombetas. A reconstituição esquemática e as duas peças inteiras encontradas nessa região mostram

que esses vasos não são versões simplificadas, sendo, pelo contrário, variantes com características próprias (Figura 13). Objetos que aparecem em pequenas proporções em um sítio, mas que são abundantes em outros, são geralmente considerados produtos de trocas e de interações. Essa premissa é chamada de princípio gravitacional (Rice, 1987), isto é, existe um centro que emite influências e outras áreas que ‘gravitam’ em seu entorno e recebem as suas influências. Os fragmentos diferentes do conjunto artefatual, tanto visualmente quanto em termos de antiplástico e de tratamento de superfícies, em arqueologia pré-histórica americanista, são tradicionalmente classificados como ‘intrusivos’, ‘atípicos’ e ‘peças de troca’. Explicações para essas ocorrências são as de existência de (1) ‘troca de objetos’, (2) ‘troca de mulheres’, (3) cópia/emulação, entre outras (Chilton, 1998). No caso do baixo Amazonas, a primeira e a terceira possibilidades foram levantadas. Hilbert, P. (1955) e Palmatary (1960) falam de elementos que seriam ‘peças de troca’, ou seja, “elemento comerciado ou permutado” (Hilbert, P., 1955, p. 64). Gomes (2002) sugere que o ‘estilo Santarém-Aldeia’ poderia ter sido copiado por comunidades menores. Um dos exemplos apresentados pela autora é a existência de vasos de gargalo e de fragmentos relacionados que diferem das características diagnósticas da cerâmica Santarém. Em termos de diversidade iconográfica e morfológica dos vasos de gargalo, o princípio gravitacional parece ser capaz de explicar o caso analisado. A cidade de Santarém, a área de onde poderia provir a ideia ou os objetos acabados, de fato, exibe maior variação entre as peças. O problema é que na região do rio Trombetas (e também no lago Grande) os apliques chamados de ‘cabeças de urubu’ e de ‘sapos-besouros’ não são raros, sendo alguns dos tipos mais numerosos das coleções. Mesmo considerando o viés esteticista das seleções de artefatos, não é possível ignorar que tais modelagens são quase onipresentes nas coleções particulares ou museológicas provenientes da bacia do rio Trombetas, além de figurarem em pequena quantidade no

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material obtido em escavação. Dessa maneira, parece difícil afirmar que os vasos de gargalo eram uma forma rara em boa parte da região na qual se encontra a cerâmica Konduri. Esses elementos, ao que nossa análise indica, são parte importante do conjunto artefatual presente na ocupação Konduri. Os vasos de gargalo evidenciados a partir dos fragmentos analisados teriam sido produzidos localmente ou seriam resultados de trocas de objetos? As peças poderiam estar sendo feitas em uma área e trocadas, de alguma maneira, até chegar a outras. Haveria um centro de produção? Se tiver existido, onde ele se localizaria? Os sítios Aldeia e Porto, na atual cidade de Santarém, poderiam ser esse centro produtor, caso certos vasos fossem feitos para o consumo interno e outros apenas para a distribuição externa, tendo em vista as diferenças regionais entre os vasos. O lago Grande de Curuaí (ou Vila Franca) pode ser um candidato mais provável de área de produção, uma vez que existem fragmentos extremamente parecidos com os que estudamos, provenientes do rio Trombetas. Uma foto de coleção doméstica da região do lago Grande, publicada por Troufflard (2012, p. 63), mostra uma série de possíveis fragmentos de vasos de gargalo. A produção local, como deve ter sido a dos vasos encontrados no sítio Aldeia, também pode ter ocorrido em todas as áreas – exclusivamente ou combinada com a troca de artefatos. É difícil precisar apenas a partir do estudo do estilo tecnológico se este é um caso de circulação de saberes (associado necessariamente à mobilidade de pessoas), de objetos acabados ou, ainda, se se trata da combinação de ambas as possibilidades. Na Amazônia central, a partir do método de ativação neutrônica, foi possível demonstrar que havia alguma forma de troca de artefatos acabados entre produtores das cerâmicas de estilo Manacapuru e Paredão (Hazenfratz et al., 2016). Ainda não foi possível aplicar nenhum método físico-químico a fragmentos de vasos de gargalo na região do rio Trombetas, do lago Grande de Curuaí (ou de Vila Franca) e do baixo Tapajós. Com os resultados dessas análises, será possível delinear melhor como se davam as

relações entre ceramistas das duas margens do baixo curso do rio Amazonas. Esse é ainda um trabalho por se fazer. Para além de setas de dispersão de ideias, é possível tratar a questão a partir do compartilhamento de saberes e de práticas, como sugerem Barreto et al. (2016), no estudo de sítios do município de Monte Alegre. O sítio Aldeia (e também o sítio Porto) poderia ser pensado como uma área em que as variações de uma forma amplamente compartilhada se intensificaram, diversificando-se. Talvez o maior número de pessoas em contato contínuo, vindas de lugares diferentes, em um dos maiores sítios arqueológicos pré-coloniais da Amazônia brasileira, pode ter propiciado o processo de diferenciação. Ao invés de um centro, teríamos um nó dentro de redes extensas. Isso explicaria a diversidade de vasos de gargalo no sítio Aldeia, sem supor uma origem e a existência de cópias menos elaboradas ou de ‘emulação’ em áreas como a região do rio Trombetas. Se o sítio Aldeia, na cidade de Santarém, puder, de fato, ser considerado um nó dentro de redes mais amplas, estaremos mais próximos dos relatos etno-históricos e etnográficos sobre a região e áreas adjacentes. Abundam referências sobre trocas entre povos indígenas amazônicos e guianenses, que cobriram áreas muito amplas da calha do Amazonas, das Guianas e de Orinoco (Arvelo-Jiménez; Biord, 1994; Dreyfus, 1993; Porro, 1996). Em um dos relatos mais detalhados sobre os ameríndios do baixo Amazonas no século XVII, Heriarte (1874 [1662]) conta que os Tapajó trocavam madeira, redes, urucum e muiraquitãs – estes últimos prediletos dos ‘estrangeiros do norte’. Além de falar das trocas, Heriarte indica uma forte ligação entre os coletivos do baixo Tapajós e do rio Trombetas: “[os índios do Trombetas] tem os próprios idolos, cerimonias, e governo que tem os Tapajós” (Heriarte, 1874 [1662], p. 38). Figura no texto até uma aproximação entre as cerâmicas das duas margens do Amazonas e sua troca: “Tem estes Indios [do rio Trombetas] e os Tapajós finissimo barro, de que fazem muito e bôa louça de toda a sorte, que entre os Portugueses he de estima, e a levam a outras provincias por contrato” (Heriarte, 1874 [1662], p. 39).

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O compartilhamento em todo o baixo Amazonas de um dos vasos mais característicos da cerâmica Santarém (Barata, 1950) é uma forte evidência de que essas interações, descritas na crônica, existiram no período précolonial tardio. Os vasos de gargalo, ao que tudo indica, são manifestação cerâmica de interações regionais de maneira semelhante às redes de relação pré-coloniais que se têm discutido para o Caribe e as Guianas (Hoffman et al., 2014; Mol, 2013; Boomert, 1987; Gomes, 2002; Barbosa, 2005). As etnografias sobre os coletivos indígenas guianenses têm mostrado que existem amplas redes de relações sociais, com guerras, trocas de objetos, saberes e pessoas, englobando diferentes coletivos indígenas e não indígenas até o presente (Gallois, 2005; Barbosa, 2005). As crônicas coloniais reforçam que esses não são modos de relação recentes, sendo, ao contrário, resultantes de uma história de longa duração. A palavra pawana, por exemplo, que significa ‘parceiro de troca’ em línguas Caribe, está amplamente disseminada nas Guianas e foi registrada pela primeira vez, em 1665, pelo padre Breton, nas pequenas Antilhas. Dreyfus (1993, p. 24) defende que existia, até o século XVIII, um “espaço político de comunicação social e ideológica” que ia desde as ilhas do Caribe até o rio Amazonas, no qual circulavam bens preciosos e prisioneiros capturados em combate para a prática de antropofagia. Os vasos de gargalo poderiam se inserir em redes como estas, conectando diferentes áreas do baixo Amazonas. O compartilhamento de um conjunto de artefatos específicos e padronizados é um fenômeno conhecido há muito tempo na arqueologia do baixo Amazonas. Os muiraquitãs, por exemplo, são amuletos líticos dispersos por esta área, pelas Guianas e pelo Caribe (Boomert, 1987). Outros fenômenos parecidos vêm sendo destacados fora do baixo Amazonas, como o caso dos vasos com flange mesial, que são encontrados desde o rio Madeira até o rio Napo, na Amazônia peruana (Oliveira, 2016), característicos da tradição Polícroma, sendo também encontrados na fase Paredão (tradição Borda Incisa). Oliveira (2016) sugere que a existência de vasos mais ou

menos padronizados em escala regional (Amazônia central) e pan-regional está mais relacionada ao compartilhamento de um estilo, e não necessariamente a trocas de objetos. Apesar do artigo seminal de Boomert (1987) sobre os muiraquitãs, ainda compreendemos pouco as diferenças entre peças de áreas distintas, mas, pelo que sabemos, esses artefatos exibem relação análoga entre semelhança/ padronização e variação regional. Como conhecido desde as crônicas coloniais, os muiraquitãs eram trocados entre diferentes coletivos indígenas. O mesmo pode ter ocorrido com vasilhas cerâmicas. Essas trocas, considerando-se a existência de variações regionais, no entanto, indicam que a circulação de objetos combinava-se ao compartilhamento de conhecimento técnico vinculado ao deslocamento de pessoas entre diferentes áreas. Em relação aos conjuntos cerâmicos Santarém e Konduri, os vasos de gargalo parecem ainda ser um caso particular de compartilhamento. A maioria das vasilhas dos dois estilos não apresenta o mesmo grau de semelhança. Além dos vasos de gargalo, apenas outros dois tipos de artefatos cerâmicos podem sugerir alguma relação mais direta entre os estilos. Um desses tipos são os vasos de dupla borda (ou concentric dishes), que foram apontados na bibliografia como exemplos de ‘influência’ ou de ‘combinação’ (Palmatary, 1960; Gomes, 2002). Essa morfologia não foi identificada nas coleções provenientes da região do rio Trombetas, mas parte desse tipo de vasilha coletada no sítio Aldeia apresentava bases trípodes e concentração de ponteados nos apliques, elementos característicos da cerâmica Konduri. As estatuetas femininas podem ser outro conjunto de artefatos padronizados compartilhados entre os estilos Santarém e Konduri. No lago Sapucuá, foram vistas três bases semilunares e uma cabeça de estatueta muito semelhante a algumas conhecidas em Santarém. Panachuk (2016b) apresentou dois fragmentos de estatuetas coletados em um sítio na bacia do rio Trombetas que sugerem a mesma correlação. Em todo o caso, os

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CONCLUSÃO Desde o início da invasão europeia na Amazônia, as crônicas relatam que contatos eram frequentes entre coletivos ameríndios de áreas relativamente distantes, entre várzea amazônica, Guianas e Antilhas. A arqueologia e a etnologia das terras baixas da América do Sul têm se questionado cada vez mais sobre o papel das interações e a complexidade da formação de identidades na região (Hornborg; Hill, 2011; Barreto et al., 2016; Gallois, 2005; Barbosa, 2005). Os vasos de gargalo podem ser mais uma evidência de que essas redes de relações têm uma profundidade cronológica que antecede a colonização entre o baixo Amazonas e a porção sul das Guianas. Os dados reunidos durante o estudo não deixam dúvida de que uma forma variante dos já conhecidos vasos de gargalo Santarém existiu associada ao estilo Konduri. As peças encontradas na região do rio Trombetas exibem atributos formais muito semelhantes aos dos vasos de gargalo Santarém. A grande quantidade dessas peças nas coleções estudadas e as características singulares dos materiais identificados nos levam a pensar que não se trata do que se costuma chamar de ‘intrusão’ ou de ‘peças de troca’. É possível que o conhecimento técnico relacionado à manufatura do vaso tenha circulado regionalmente a partir de relações sociais estabelecidas entre pessoas de diferentes aldeias. A hipótese de produção em uma área específica não pode ser descartada, podendo ser combinada com a de produção local, sendo necessários ainda outros estudos com a aplicação de métodos físico-químicos. A elaboração e a padronização desses vasos também fazem questionar se essas peças seriam usadas em rituais comuns a áreas distintas. As figuras dos ‘sapos’ e dos ‘urubus-rei’ são muito regulares e exibem características anatômicas distintas das espécies naturais às quais podemos relacioná-las: os apliques em forma de cabeça de ave são compostos de partes que sugerem outros seres (uma quimera) e os quadrúpedes possuem uma separação entre cabeça e tronco desconhecida entre anuros. A iconografia dos vasos de gargalo sugere a existência de referenciais cosmológicos comuns a todo o baixo Amazonas.

elementos compartilhados entre os estilos Santarém e Konduri parecem ser limitados a um conjunto específico de artefatos cerâmicos. Por que apenas objetos com morfologia e iconografia elaboradas parecem ter sido compartilhados no baixo Amazonas pré-colonial? Barreto et al. (2016) e Gomes (2016) sugeriram que uma das explicações possíveis para os compartilhamentos de certos objetos e motivos/padrões no baixo Amazonas pré-colonial pode ser a existência de compartilhamentos de práticas rituais de maneira análoga ao que se argumentou para contextos caribenhos (Mol, 2013). Possivelmente, os vasos de gargalo podem ser considerados como pertencentes a essa categoria de objetos rituais, sendo usados por diferentes coletivos em escala regional. Não há, no entanto, informações claras sobre esses usos, pois ainda dispomos de apenas duas descrições de coleta em contexto arqueológico no sítio Aldeia que sinalizam para o depósito com quebra intencional (Gomes, 2016) e menção do enterramento dessas vasilhas inteiras em bolsões (Barata, 1953a). Esse tratamento dedicado a um objeto específico, como indicou Gomes (2016), sugere uma forma de anulação da capacidade agentiva desses vasos. A elaboração de suas partes estruturais e as figuras zoomorfas e antropomorfas que evocam múltiplos seres têm servido de indício para tratar essas peças como vasilhas para o consumo de bebidas em rituais (Gomes, 2010). A mensuração de sua capacidade volumétrica, geralmente entre 250-670 ml, realizada ao longo deste estudo, aponta que os vasos deveriam ser usados para consumir pequenas doses de uma bebida, talvez por somente uma pessoa ou apenas um gole para várias. Outra possibilidade, que não exclui a anterior, é o uso para o armazenamento de substâncias específicas, em pequenas porções, como o curare, mencionadas nas crônicas coloniais (Nimuendajú, 1949). Mais estudos, especialmente de microvestígios, são necessários para tratar esses vasos como atores em ações ritualizadas (Araújo, 2016), e não essencialmente como objetos rituais, devido à sua elaboração técnica.

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Se associarmos o compartilhamento de vasos de gargalo aos muiraquitãs e às estatuetas cerâmicas, talvez não estejamos tão distantes do cenário descrito por Maurício de Heriarte, com os mesmos ‘ídolos’, ‘cerimonias’ entre povos indígenas habitantes dos baixos cursos dos rios Tapajós e Trombetas. O conhecimento atual sobre a arqueologia do baixo Amazonas ainda é muito desigual e profundamente baseado no estudo de coleções museológicas. As coleções que nós estudamos oferecem apenas uma ‘pista’ para as futuras pesquisas arqueológicas baseadas em escavações sistemáticas. Ainda há muito o que ser feito.

visitadas no Lago Sapucuá e, em Oriximiná, a Alice Guerreiro, Fátima Prestes e Fátima Reali.

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AGRADECIMENTOS A proposta deste artigo foi desenvolvida em minha monografia de conclusão de curso em Antropologia, com orientação de André Prous, na Universidade Federal de Minas Gerais. A pesquisa estava vinculada ao Projeto Norte Amazônico (UFMG), financiado pela Missão francesa de Minas Gerais e da Fundação de Amparo a Pesquisa de Minas Gerias. O estudo das coleções contou com auxílio do Colegiado de Graduação em Antropologia (UFMG) e, posteriormente, o Programa de Pós-Gradução em Arqueologia (USP). A continuidade da pesquisa no mestrado (USP), com orientação de Fabíola Silva, é garantida por uma bolsa de mestrado concedida pelo CNPq. A ideia inicial foi desenvolvida a partir de discussões com André Prous, Camila Jácome, Igor Rodrigues e Elber Lima. Cristiana Barreto discutiu vários elementos do trabalho, em diferentes eventos, contribuindo para a versão aqui apresentada. Manuscritos do artigo foram lidos e comentados intensamente por André Prous, André Strauss e Igor Rodrigues, que muito ajudaram a tornar a ideia mais compreensível. Os pareceristas anônimos ofereceram críticas certeiras, que enriqueceram a argumentação. Agradeço as equipes do Museu Nacional, Museu Paraense Emílio Goeldi, Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG e Casa de Cultura de Oriximiná, que tornaram possível o acesso às coleções. Da mesma maneira agradeço aos ribeirinhos das seis comunidades

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Para além de Santarém: os vasos de gargalo na bacia do rio Trombetas

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As mulheres novo-hispanas do Convento da Encarnação (Cidade do México) por meio das suas contas de vidro Women of New Spain from the Convento de la Encarnación (México City) through their glass beads Andreia Martins Torres CHAM - Centro de Humanidades (FCSH, Universidade Nova de Lisboa. Universidade dos Açores). Lisboa e Ponta Delgada, Portugal

Resumo: Este trabalho trata sobre a importância simbólica das contas de vidro na Nova Espanha, território do império espanhol na América do Norte até o istmo de Panamá e Filipinas. Nesta ocasião, apresenta-se a coleção arqueológica do antigo Convento da Encarnação, situado em plena Cidade do México. A intenção é refletir sobre o papel desses materiais na construção social de uns corpos de mulheres que aí viveram entre o século XVI e o início do século XIX. Ao mesmo tempo, debatem-se questões teórico-metodológicas enfrentadas pela arqueologia para abordar este tipo de contexto. Palavras-chave: Contas de vidro. Conventos. Gênero. Agências. Abstract: This paper sheds light on the symbolic significance of glass beads in New Spain, the territory of the Spanish Empire in the Americas north of the Isthmus of Panama and the Philippines. Here we present the archaeological collection of Convento de la Encarnación, located in the center of Mexico City. Our intention is to reflect on the role of material culture in constructing the social body of a particular group of women who lived there from the sixteenth century until the beginning of nineteenth century. Some theoretical-methodological issues faced within the discipline in addressing this type of context will be also debated. Keywords: Glass beads. Convents. Gender. Agency.

MARTINS TORRES, Andreia. As mulheres novo-hispanas do Convento da Encarnação (Cidade do México) por meio das suas contas de vidro. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 13, n. 1, p. 37-68, jan.-abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1 590/1981.81222018000100003. Autora para correspondência: Andreia Martins Torres. CHAM - Centro de Humanidades. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Lisboa. Av. De Berna, 26C. Lisboa, Portugal. CEP 1096-061 (andreiamtorres@gmail.com). ORCID: http://orcid. org/0000-0003-4650-2279. Recebido em 06/04/2017 Aprovado em 31/10/2017

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INTRODUÇÃO As particularidades dos processos de incorporação e de uso das contas de vidro no vice-reino resultam especialmente interessantes para entender a complexa trama de relações de significância gerada ao redor dos objetos, sobretudo em um entorno multiétnico. Não é demais recordar que os primeiros exemplares se introduziram na América por mãos de europeus, quando nenhuma das populações pretéritas desenvolvera ainda a produção artificial de vidro1. Até então, as suas contas faziam-se de um vidro natural chamado obsidiana, de pedra, cerâmica ou concha. Daí deriva assumir que elas foram uma das expressões mais emblemáticas dos processos de recepção do alheio, as quais caracterizaram os encontros e os desencontros ao longo da experiência da conquista. O resultado da colonização materializou-se em uma sociedade novo-hispana composta por diversos grupos indígenas que habitavam a região antes da chegada dos espanhóis, mas também por europeus, asiáticos e africanos de distintas afiliações étnicas. Embora a oficialidade impusesse diferenças assinaláveis entre cada casta e as suas matrizes culturais condicionassem as experiências individuais, nos espaços de convivência elas protagonizaram conversas, olhares, gestos ou mesmo odores. Assim, expressaram-se em ‘linguagens’ nem sempre perfeitamente ‘interpretadas’ pelos outros. A aparência foi uma dessas formas de comunicação, sendo em parte mediada por objetos que se colocavam sobre o corpo e transformavam o seu aspecto. Portanto, entende-se que a incorporação de determinados materiais por cada indivíduo constitui um gesto intencional e que a sua seleção ou o modo particular de se conjugarem transmitiram narrativas autorais, até certo ponto culturalmente condicionadas. As contas, pelo seu amplo uso em todo o mundo e destes tempos recuados, tiveram rápido reconhecimento e emprego pela generalidade da população. As preferências de determinado grupo por alguns modelos ou cores

remetem a uma disponibilidade econômica para adquirir essas peças mas, sobretudo, à maneira como participaram na construção social da sua identidade. Paralelamente, o mesmo modelo aparecia sobre corpos que se percebiam diferentes entre si. Para cada uma dessas pessoas, as contas remetiam a universos simbólicos particulares. Nesse âmbito específico elas eram capazes de entender também as contas dos ‘outros’, apesar de que, para ambos, tais peças remetessem a lógicas desconexas. Por tudo isso, as diferenças epistemológicas entre os diversos atores em cena na Nova Espanha propiciaram que estes objetos expressassem múltiplas vozes (Bajtin, 1990; Hodder, 1988). Entende-se ainda que as características assinaladas tornaram as contas de vidro protagonistas da transmissão ou da mediação de ideias entre pessoas com diferentes sistemas cognitivos. Tal como se afirmou em trabalhos anteriores (Martins Torres, 2017), o fato de esses materiais serem facilmente reconhecíveis por todos, dentro das suas próprias conceitualizações, ocasionou interlocuções, funcionando como plataforma para o diálogo entre categorias de pensamento díspares. No caso específico do Convento da Encarnação da Cidade do México, as normas/ regras da vida conventual observadas entre os séculos XVI e XVIII proporcionaram o estabelecimento das relações quase exclusivamente entre mulheres, incluindo monjas da elite espanhola e criolla2, mas também negras e índias que trabalhavam ali de criadas e que usaram/perceberam as contas encontradas no registo arqueológico.

REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS De acordo com o período cronológico abordado, este trabalho insere-se em um campo de investigação frequentemente designado de ‘arqueologia histórica’, no âmbito do qual se vêm estudando os sítios e os materiais do período vice-reinal no México (Charlton et al., 2016).

Nesses contatos iniciais, os designados abalorios tiveram um protagonismo especial, refletido nas crônicas da época e nas memórias desses episódios que seletivamente chegaram à atualidade (Díaz del Castillo, 1976). 2 Por criollos entende-se os descendentes de espanhóis nascidos na América. Por isso, seria incorreto fazer uma tradução direta pelo termo ‘crioulos’, cujo significado é substancialmente diferente. 1

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O crescente interesse por este ramo refletiu-se em uma produção científica que destaca a contribuição da disciplina para a construção de um discurso histórico com forte vertente etnográfica. Ao reconhecer-se a diversidade étnica que caracterizou a região durante a administração hispana, houve enorme potencial para uma aproximação entre os indígenas do presente e os do passado pré-hispânico. Não obstante, são escassas as monografias acerca de um sítio arqueológico que incidem sobre uma escala temporal ampla, como a que produziu Gamio (1922) nos anos 20 e, mais tarde, Charlton (1969) sobre o Vale de Teotihuacan. Cabe referir ainda as várias publicações a respeito do Vale de Mezquital de Fournier (1996) ou em colaboração com Lourdes Mondragón (Fournier; Mondragón, 2003), que abarcam diferentes períodos. O caráter excepcional destes trabalhos contribui para que o reconhecimento de que os diferentes grupos indígenas tiveram o seu próprio processo histórico esteja ainda longe de se incorporar ao discurso oficial da nação (Palka, 2009, 2005). Nos últimos anos, gerou-se no meio acadêmico um amplo debate epistemológico em torno da ‘arqueologia histórica’. Uma das principais críticas apontadas é o peso concedido à escrita, ignorando outras formas de expressão e de registo de memórias que, durante séculos, desempenharam papel preponderante em sociedades nas quais a alfabetização era um privilégio das elites, nomeadamente na Europa (Funari, 1999). Além de menosprezar as técnicas de transmissão oral ou a iconografia, o emprego desta terminologia na América desconsidera que diferentes grupos indígenas haviam criado e utilizado sistemas de escrita, com a forma de hieróglifos (maias), pictogramas e ideogramas (astecas). Desta forma, se tem estabelecido uma oposição entre o período pré e pós-conquista espanhola que cria uma ruptura entre ambos, de tal maneira que se omitem importantes processos e continuidades ou adaptações. Uma opção seria o termo ‘arqueologia colonial’ ou ‘da colonização europeia’ (Rowlands, 1998), mas alguns autores colocam em questão a viabilidade de usar essa expressão para referir-se ao contexto americano. Eles

defendem que a orgânica administrativa da monarquia compósita não supôs assumir uma diferença substancial entre as províncias europeias e as americanas do império ou, ainda, que essa terminologia concede uma falsa sensação de processo hegemônico. Talvez fosse prudente optar por expressões de caráter mais geral, como arqueologia do ‘período moderno’ ou do ‘mundo moderno’, cuja dimensão significativa não estabelece uma hierarquia tão demarcada entre os vários espaços, tal como assinalam Orser e Fagan (1995). Este aspecto é fundamental para romper com uma visão eurocêntrica e favorecer maior equilíbrio na análise dos fluxos entre continentes. Por meio dessa postura será mais fácil recuperar o impacto das culturas americanas no exterior, que reiteradamente vem sendo silenciado. Atendendo ao exposto, considera-se que para estudar os vestígios materiais novo-hispanos é imprescindível adotar um perspectiva que contemple simultaneamente as especificidades locais e a sua integração em contextos de natureza mais ampla, como a dimensão imperial ou as relações internacionais. Isso é o que apregoa um grupo de investigadores vinculados à global history, dedicados a pesquisar os desdobramentos da descompartimentação do mundo moderno, vinculada aos processos expansionistas europeus. Esta corrente historiográfica surgiu nos anos 80 e teve o seu equivalente na arqueologia uma década depois. Uma das maiores contribuições a esse debate foi dada pelas obras de Orser (1996, 1994), que alcançaram enorme impacto na arqueologia histórica, ao apresentarem, de forma programática, uma abordagem para analisar o mundo moderno por meio de uma perspectiva global. Devem ainda mencionar-se os nomes de South (1988) e Deetz (1977, 1991) como precursores da ideia de adotar esta escala para estudar sítios que, de alguma maneira, se conectam com essa modernidade. Os trabalhos de Andrén (1998) e as obras coletivas editadas por Funari (1999) ou Hall e Silliman (2006) constituem também iniciativas para uma descentralização europeia do debate e para o aprofundamento de questões teóricas relacionadas com a arqueologia global.

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Apesar de o tema animar a discussão acadêmica em vários países, os trabalhos baseados em estudos de caso não vêm acompanhando o ritmo das questões teóricometodológicas. Tal como sucede na história, na arqueologia a maioria das obras publicadas com o epíteto de global archaeology é constituída por livros que reúnem várias contribuições com a intenção de mostrar um panorama geográfico ou temporal amplo. Salvo raras exceções, cada artigo incide sobre uma área específica, sem estabelecer pontes com o que acontecia em outras regiões ou identificar como as suas histórias se conectavam. Agravando esta situação, verifica-se uma tendência, na disciplina, a utilizar o termo como sinônimo de ‘toda a arqueologia’, ignorando o intenso debate historiográfico que situa o início da globalização entre os séculos XV e XVI. Os fenômenos de expansão e de colonização anteriores são substancialmente diferentes e, portanto, não podem ser incluídas nesta categoria todas as culturas letradas, como sugere um grupo de pesquisadores. Apesar do termo ‘global’, a postura adotada não trata de generalizar, mas sim de identificar a diversidade de soluções geradas dentro dessa nova ordem. Por isso, ela é válida para analisar qualquer grupo sociocultural moderno, independentemente do seu grau de participação nos processos de globalização ou de mundialização. Ainda que as dinâmicas de certas sociedades pudessem primar pelo isolamento, desde a perspectiva das instituições e das circunscrições político-administrativas, elas se enquadraram em uma superestrutura. Os comportamentos desviantes e a singularidade de cada objeto de estudo constituem partes de uma mesma realidade plural. De igual modo, sustém-se que esta posição face ao recorte investigativo não limita a análise do objeto de estudo (e dos fenômenos sociais, culturais ou econômicos a que esteve associado) ao contexto exclusivo dos processos de dominação. Se bem o enfoque permitiu perceber estratégias de resistência e negociação interessantes, limitar as possibilidades a esse universo seria negar toda a originalidade e o peso de processos construídos à margem dessa estrutura. Seria assumir a existência de uma realidade

única e negar que, para cada grupo ou em cada lugar, foram geradas percepções distintas dessa conjuntura. Com a postura assinalada anteriormente, adota-se um enfoque de gênero porque, mais além das relações comerciais e dos contatos interculturais que tiveram lugar na Nova Espanha, falar sobre as contas de vidro do Convento da Encarnação é pensar sobre as mulheres que as usaram, sobre os impulsos que conduziram à sua aquisição e como elas desempenharam um papel relevante na construção social dos seus corpos. Embora estas peças não fossem usadas exclusivamente por pessoas do sexo biológico feminino, o caso analisado remete a um universo espacial e temporal dominado por elas. Este tipo de abordagem, centrada em resgatar a presença das mulheres na arqueologia, surgiu na Europa, nos anos 70. Ele foi promovido por autoras como Marie Sorensen, de nacionalidade norueguesa, que incorporou aos seus trabalhos um olhar sobre as relações de gênero em sítios da idade do bronze (Sorensen, 1991, 2013). Já nos anos 80, esta corrente teve como principais figuras as pesquisadoras Conkey e Spector (1984), que adotaram um enfoque feminista em suas reflexões na área da pré-história. Cabe ainda mencionar o nome de Voss (2012), cujas publicações se têm centrado em temas tão relevantes como a ‘arqueologia do colonialismo’ e as suas interfaces com questões associadas à sexualidade e à raça, ou seja, em que medida essa nova estrutura política promoveu e condicionou as suas relações, ou ainda à teoria queer. Já a canadense Gilchrist (1994, 2011) constitui uma referência incontornável no estudo de contextos monásticos de época medieval no Reino Unido e, embora o período cronológico e o ambiente étnico-social não se possam comparar com o caso analisado neste artigo, os seus trabalhos apresentam vários pontos de convergência em relação aos debates apresentados no texto. No México, esta área de estudo encontra-se pouco desenvolvida em comparação com outras especialidades, reproduzindo uma tendência comum a muitos outros países. Ainda assim, nomes como os de Rodríguez-Shadow (2009, 2007a, 2007b), González e Zamora (2007),

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Hendon (1999), Brumfield (2007, 2001), Fonseca Ibarra (2008), Wiesheu (2007) ou Estrada Muñoz (2006) têm contribuído de maneira sistemática com o aprimoramento dos nossos conhecimentos sobre questões de gênero. Todos os autores referidos anteriormente dedicaram-se à época pré-hispânica ou à contribuição das mulheres para o desenvolvimento da arqueologia mexicana. Por isso, salvo trabalhos pontuais como os de McEwan (1991), o estudo deste setor da população novo-hispana tem-se confinado ao âmbito acadêmico da disciplina de história. Não é intenção aprofundar na discussão sobre a invizibilização dos sítios e de materiais arqueológicos de período moderno por parte dos órgãos de poder, nomeadamente nas práticas de musealização. No entanto, é possível que este seja um dos principais motivos pelos quais a arqueologia histórica não voltou a sua atenção para as questões de gênero, refletindo uma tendência generalizada, que só nos últimos anos começa a se reverter, fruto da atividade de certos departamentos do Instituto Nacional de Antropología e Historia (INAH), como a División de Subacuática. O mesmo argumento aplica-se em relação ao interesse por este tipo de objeto em particular, as contas, ou pelo material com que eram feitas, o vidro. A maioria das publicações trata sobre cerâmicas e só raramente centra-se na interpretação das estruturas ou outro tipo de vestígio. Por isso, durante muito tempo este material foi estudado por uma historiografia de corte nacionalista, que reivindicava a cidade de Puebla como o primeiro centro produtor de vidro artificial em todo o continente. Na arqueologia, os únicos trabalhos sistemáticos são o recente livro de Salas Contreras e López Ignacio (2011)3, o artigo publicado por Peralta Rodríguez e Alvízar Rodríguez (2010)4 ou a monografia de

licenciatura de Nieto Estrada (1996), que se centram em cronologias tardias. Não é demais recordar as palavras de Williams (1987) ao estudar as missangas usadas por uma comunidade de mulheres no Quênia. Está comprovado que a importância dos objetos não é proporcional ao seu tamanho e que as coisas pequenas não têm porque ser ignoradas. O seu estudo permite aceder a dimensões da realidade que frequentemente se silenciaram e que, ainda assim, fornecem relevantes elementos para entender questões tão interessantes como o consumo, o gosto ou aspectos relacionados com a produção de arte. Atendendo ao exposto, o estudo das contas de vidro modernas do Convento da Encarnação, dentro de uma perspectiva global e de gênero, constitui uma ampla novidade, quer pela adoção deste recorte, quer pela matéria e o tipo de objeto.

O CONVENTO DA ENCARNAÇÃO O Convento da Encarnação é um importante testemunho das primeiras fundações da Ordem Concepcionista no vicereino. Originalmente, construiu-se apenas um pequeno mosteiro naquela zona, ao final do século XVI, mas as redes tecidas por estas religiosas alcançaram a elite novo-hispana e conseguiram o apoio de personagens importantes para a cidade, a fim de patrocinar a construção do convento5. As cerimônias para a sua edificação tiveram lugar em 1639 e delas participou diretamente o vice-rei, marquês de Cadereyta, demonstrando uma estreita proximidade com as esferas de poder. Desde então, o convento assumiu-se como um elemento importante para a paisagem urbana e um dos símbolos de sua riqueza, que se media também pela quantidade e pela grandiosidade dos seus templos (Figuras 1 e 2)6.

Este livro está baseado na monografia de licenciatura desta autora (López Ignacio, 2000). O vidro foi também o tema da monografia de licenciatura desta autora (Alvízar Rodríguez, 2007). 5 A primeira notícia identificada sobre o convento diz respeito a um pleito sobre se haver passado no novo convento às casas que eram de Rodrigo Pacheco. Archivo General de la Nación (AGN), Bienes Nacionales, v. 673, exp. 3, 1597. 6 Vejam-se os vários quadros cartográficos nos quais foram pintadas as ruas e os edifícios notáveis da cidade. Em todos eles torna-se evidente o destaque dado às construções de caráter religioso, constando quase sempre da legenda que acompanhava a ilustração. Um dos exemplos mais antigos é o quadro de Luis Gómez de Trasmonte, Cidade de México, 1628, tinta e aguada, 47,2 × 65 cm, Florença, Biblioteca Medicea Laurenziana. 3 4

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Figura 1. Localização do Convento da Encarnação. Detalhe de “Biombo com vistas da Cidade do México”, autor desconhecido, segunda metade do século XVIII. Fonte: Museo Franz Mayer (Ciudad de México - México). Foto: Andreia Martins Torres (2013).

Até meados do séculos XVIII a sua dimensão aumentou consideravelmente através da compra sucessiva de lotes contíguos. Entre eles, destacam-se as casas que pertenceram a Francisco de Oñate e que, em 1729, repartiram-se entre o convento e a instituição da Real Aduana para a construção do seu edifício7. A importância da instituição foi de tal ordem que estas mulheres chegaram a gerir um volume de negócios considerável, comprando casas, ingenios, mesones, postos de comércio nos mercados da cidade ou, ainda, atuando como uma das principais entidades prestamistas da capital8. Essas ações foram normalmente intermediadas por um mordomo que atuava como representante do convento, mas não se deve menosprezar a intervenção dessas monjas nas opções adotadas, na sua capacidade de exercer influência, nomeadamente para captar recursos9. Além disso, eram elas que geriam a sua contabilidade, como se expressa nos diversos livros de registros assinados por uma abadessa ou Contadora Mayor10. Apesar de tudo, os interesses econômicos e o crescente comércio da cidade afetaram profundamente a história do edifício. Localizado junto à aduana da

Figura 2. Localização do Convento da Encarnação no Quartel Nordeste da traça urbana da Cidade do México, no “Decreto de empadronamiento de los habitantes de los cuarteles de la ciudad de México”, autor desconhecido, 1752. Fonte: Archivo General de la Nación, México Mapas, Planos e Ilustraciones, n. 2825.

cidade, onde se realizava o controle de todas as mercadorias que ingressavam na capital, o aumento dos fluxos exigiu reformas de ampliação que obrigaram a ceder parte do imóvel, já nos finais do século XVIII11.

AGN, Bienes Nacionales, v. 18, exp. 8, 1729. Sobre os engenhos, cabe referir que na Nova Espanha a palavra costumava designar uma oficina têxtil (AGN, Bienes Nacionales, v. 18, exp. 14, 1711). O meson era uma casa onde se dava albergue a viajantes e seus cavalos (AGN, Bienes Nacionales, v. 18, exp. 10, 1795). Em 1774, o convento possuía um cajón (posto) arrendado a María del Pilar Pacheco (AGN, Indiferente Virreinal, v. 2483, exp. 40, 1774). 9 Em 1677, chegaram a interceder junto ao Consejo de Índias a favor da candidatura de Juan Centeno de Vera, tesoureiro da Casa da Moeda (Archivo General de Indias (AGI), Escribania, 959, 1677). 10 AGN, Regio Patronato Indiano, Templos y Conventos, contenedor 118, v. 226, exp. 2, 1795-1796. 11 A venda das casas mencionadas ocorreu durante os anos de 1777 a 1779 (AGN, Tierras, contenedor 946, v. 2238, exp. 7, 1777-1778; AGN, Obras Públicas, contenedor 17, v. 41, exp. 1, 1778; AGN, Reales Cédulas Originales, v. 116, exp. 228, 1779). 7 8

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O processo de negociação durou algum tempo e não foi pacífico, gerando desentendimentos em relação ao valor de certas casas. Elas aparecem representadas nas Figuras 3 e 4, as quais incorporaram o processo litigioso entre ambos. Limitada a sua capacidade de extensão, o convento conservou, todavia, uma dimensão considerável e continuou a ser utilizado com essa finalidade até 1861, altura em que o plano de refundição religiosa obrigou à desocupação das instalações. Segundo foi possível averiguar

durante as escavações no local, esta fase intermediária, que durou até 1863, caracterizou-se pelo entaipamento de algumas das suas divisões para serem vendidas a particulares ou ocupadas por órgãos de governo. Com a aprovação da lei de extinção das ordens religiosas, o edifício foi definitivamente expropriado pelo Estado, que aproveitou as potencialidades do espaço como sala de exposições, escolas ou residência de estudantes sem recursos para, finalmente, albergar uma biblioteca e a Secretaria da Educação Pública (Salas Contreras, 2006).

Figura 3. “Inmueble que al oeste se encuentra la entrada principal, dividido en 5 estancias, 1 patio central y al final una vivienda la cual es contigua al convento”, José Álvarez e Francisco Antonio Guerrero y Torres, mestres, 1777. Fonte: Archivo General de la Nación, México, Mapas, Planos e Ilustraciones, n. 1387.

Figura 4. “Casa Contígua a la Aduana. Superficie de terreno en forma rectangular dividido en 7 cuartos (3 grandes, 1 mediano y 3 chicos), 1 estancia y 1 pasillo que sale a la Plazuela de Santo Domingo; está contiguo al convento y la calle de la Perpetua”, José Álvarez e Francisco Antonio Guerrero y Torres, arquitectos, 1778. Fonte: Archivo General de la Nación, México, Mapas, Planos e Ilustraciones, n. 1386.

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CARACTERIZAÇÃO DA POPULAÇÃO DO CONVENTO O espaço conventual era um contexto exclusivamente feminino, onde supostamente se resguardava as suas castidade e pureza. Os seus corpos estavam sujeitos a prescrições adicionais, pelo vínculo com o sagrado, e obedeceram a um regime de clausura. Ainda assim, as circunstâncias próprias da vida conventual e a imposição de certo isolamento relativo ao mundo exterior proporcionaram condições especiais, que requerem ser tratadas cientificamente e investigadas do ponto de vista da materialidade, nomeadamente dentro das temáticas de gênero e das práticas da vida cotidiana. Nesses âmbitos dominados exclusivamente por elas, logrou-se superar algumas das dualidades de gênero impostas pelo

Os trabalhos arqueológicos realizados pela Dirección de Salvamento Arqueológico e dirigidos por Dr. Carlos Salas (1989-1993) trouxeram à luz novos dados sobre a sua arquitetura mas, essencialmente, sobre como as pessoas que ali viveram se organizavam e desenvolviam as suas atividades dentro do convento. Desde a igreja à enfermaria, passando pelos diferentes pátios, talvez o que mais surpreenda seja a grande área dividida em quarteirões, onde se localizaram as casas destas mulheres, normalmente estruturadas em torno de um pátio e uma cozinha (Figura 5)12. As contas de vidro aparecem em diferentes áreas do convento, associadas a várias atividades que pautaram o quotidiano no interior do edifício.

Figura 5. Planta do piso térreo do Convento da Encarnação, Carlos Salas. Fonte: Salas Contreras (2006, não paginado). A falta de moradias suficientes fez com que algumas mulheres ocupassem outras zonas do convento. Em 1654, Ana de la Natividad comprava pela quantia de 1.310 pesos uma sala e um ovatório para se instalar em regime de clausura “con el dinero de mi renta y otras cosas adquiridas con el trabajo de mis manos” (AGN, Indiferente Virreinal, v. 1069, exp. 46, 1653). Esta era uma soma considerável, uma vez que, em 1792, uma “celda pequeña” valia 225 pesos (AGN, Indiferente Virreinal, v. 5627, exp. 21, 1792).

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Antigo Regime e desfrutar de certa autonomia. As atividades que desempenharam como coletivo ou a título individual e as relações que estabeleceram entre si ou vinculadas à vida pública são especialmente relevantes. Através delas percebe-se o poder alcançado por estas mulheres, a forma como se organizaram e as solidariedades de gênero que teceram. Apesar de tudo, a população do convento não foi uniforme e os espaços que utilizaram ou as atividades cotidianas desempenhadas dependeram muito do estatuto que alcançaram dentro da instituição. No caso das monjas, ele esteve determinado essencialmente pela possibilidade de pagar um dote, que, para a época, alcançava um valor considerável e era dos mais elevados da Nova Espanha13. Por isso, regra geral, elas pertenciam à elite de sangue espanhol. Um grupo importante estava constituído pelas chamadas monjas de hábito negro e coro cuja família pagava o custo do dote, o valor da sua moradia e, eventualmente, as obras de que elas necessitassem. Em ocasiões, o vice-rei exerceu ingerência direta nestas questões, como no caso da filha de Don Pedro Garibay, a quem determinou que dessem 2.000 pesos dos prêmios caducos da lotaria para completar o dote e um desconto de 50 pesos para pagá-lo, em 178714. Houve ainda situações em que esse valor foi patrocinado por obras pias, mas se tratavam sempre de donzelas órfãs de boas famílias cujo poder econômico não alcançava a mesma proporção do que o seu prestígio social15. O grupo das monjas de hábito branco esteve conformado por aquelas mulheres que durante o noviciado não reuniram o valor total do dote, assumindo por isso uma posição inferior. Além de terem a obrigação de servir as demais, era-lhes negada a participação nas orações que ocorriam no coro da igreja.

Por tudo o que foi exposto, entende-se que o convento não representou um estilo de vida uniforme e que a hierarquia estabelecida com base no critério econômico condicionou o direito de acesso aos principais cargos e ao voto para a sua eleição. Tal como sucedia em outros âmbitos da sociedade vice-real, a aparência e a ostentação foram o meio para validar publicamente esse estatuto e nunca lhes foi exigido voto de pobreza. Quando ingressavam de novicias, elas almejavam garantir o mesmo estilo de vida a que estavam acostumadas, fazendo-se acompanhar dos seus bens mais apreciados. As distinções perpetradas no interior do convento não eram mais do que o espelho de uma sociedade bastante hierarquizada e podem apreciar-se no registo arqueológico. Os vestígios das suas moradias demonstram diferenças consideráveis no tamanho dos aposentos16. Logo, seria muito interessante que se fizessem estudos individualizados do espólio encontrado nos sucessivos aterros de lixo localizados nos pátios de cada casa. Sabe-se que dessas lixeiras provêm uma enorme quantidade de fragmentos cerâmicos de produção local, importações europeias e porcelanas chinesas, mas as opções de estudo adotadas pelo arqueólogo no seu relatório não permitem ter uma noção dos tipos de peças que tiveram maior incidência nas casas maiores, onde viviam as mulheres mais ricas, uma vez que concede apenas uma visão geral da presença desse espólio no convento, sem diferenciar os compartimentos. Além das monjas, nestes espaços residiram igualmente seculares. Não raras vezes, estas instituições receberam ‘meninas’ que deveriam se educar nos valores da religião para, depois, casarem e reproduzirem o modelo no entorno da sua família. Algumas nunca chegaram a

Este dinheiro entraria diretamente para os fundos da comunidade e, segundo a documentação consultada, desde os finais do século XVII e início do século XVIII ele custava 3.000 pesos, subindo ainda nos anos 30 para 4.000 pesos (AGN, Bienes Nacionales, v. 128, exp. 37, 1691; AGN, Bienes Nacionales, v. 482, exp. 29, 1707; AGN, Indiferente Virreinal, v. 5253, exp. 67, 1738). 14 AGN, Reales Ordenes, v. 11, n. 198, 1787; AGN, Lotería, contenedor 1, v. 7, exp. 5, 1786 e 1797. 15 Vejam-se, por exemplo: AGN, Indiferente Virreinal, v. 6066, exp. 26, 1692; AGN, Bienes Nacionales, v. 535, exp. 35, 1732; AGN, Indiferente Virreinal, v. 5008, exp. 78, 1786. 16 Entre 13 e 36 m2 (Salas Contreras, 2006, p. 80). 13

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abandonar a proteção das religiosas e viveram aí com esse estatuto ou ingressaram no noviciado17. Houve, ainda, casos em que a instituição atuou como ‘depósito’ temporário de mulheres adultas, para garantir a sua honra ante a ausência da proteção direta de algum varão. Esse parece ter sido o caso de Teresa Cortés, que certamente se viu envolvida em uma disputa pelo controle do seu corpo e de seus bens por parte de familiares e um pretendente chamado Luís Gómez de Escobar. No ano de 1672, ele escrevia ao convento solicitando expressamente que essa mulher que se encontrava aí depositada não tivesse qualquer contato com a família18. Apesar de agir como protetor da moral e dos bons costumes, existem motivos para suspeitar que nem sempre se cumpriu o estrito isolamento dessas mulheres. No ano de 1754, a monja María de Guadalupe escrevia a seu irmão Pedro José de Castañeda sobre um tema que a tinha em cuidados e que lhe estava mermando a saúde. Afligia-a pensar sobre os motivos que levariam uns homens a entrarem todas as noites no convento. Até aquele momento não se tinha reportado o desaparecimento de nenhum objeto e supunha que não eram ladrões. Portanto, entende-se que as suas atividades seriam de outra natureza e que gozavam da conivência de alguma residente, que não denunciou a sua presença19. Completando este quadro, encontrava-se a criadagem do convento e a que cada uma dessas monjas podia manter pessoalmente, embora a sua presença estivesse sujeita a autorização20. Segundo as palavras do viajante Gemeli Careri, o seu número superava três vezes o das religiosas e, portanto, representavam uma parte importante da população do convento. A maioria era de índias e mestiças, mas também se

podiam encontrar mulatas ou negras. Aparentemente, elas só raramente possuíam escravas (Careri, 1976, p. 68-69). María de la Cruz foi uma delas, referida na documentação como negra de Angola e viúva. Ela pertencia à Madre Josefa de Santo Tomás e, no ano de 1663, enfrentou grandes dificuldades para conseguir a autorização desta religiosa para casar com Anton Manuel, negro livre e também viúvo21. Além de servirem no que se poderiam considerar como labores domésticos, algumas monjas tiveram autorização para manter negócios a título particular e usar a sua mão de obra para atuar no exterior do convento. Nesse contexto, em 26 de março de 1649, a monja María de la Trinidad recebia licença do Conde de Salvaterra para trazer pelas ruas um negro vendendo mercadorias, eventualmente algum trabalho manual executado pela própria religiosa ou alguma criada22. Talvez isso fosse mais frequente entre as de hábito negro ‘supernumerárias’, ou seja, cujas despesas eram pagas através dos réditos de seus dotes. Nesses casos, o convento não assumia os gastos com alimentação, vestuário ou habitação, e os mesmos deveriam correr por conta de seus parentes ou, eventualmente, por uma fonte de rendimentos particular. Dentro dos seus aposentos, estas mulheres gozaram de grande autonomia e privacidade, onde espanholas, índias e negras certamente partilharam confidências, tal como acontecia no âmbito doméstico secular. Elas puderam incluir percepções acerca das contas de vidro ou de histórias nas quais tiveram algum protagonismo. A sua presença no registro arqueológico sugere que elas foram um elemento importante do cotidiano conventual, aparecendo em diferentes espaços do edifício.

Esse terá sido o caso da ‘menina’ María de la Encarnación, que, em 1678, recebia 400 pesos para ajuda de seu dote da obra pia fundada por Alvaro de Lorenzana (AGN, Bienes Nacionales, v. 474, exp. 10, 1678). 18 AGN, Indiferente Virreinal, v. 5603, exp. 94, 1672. 19 AGN, Indiferente Virreinal, v. 3942, exp. 37, 1754. 20 Por isso, Sor Clara de San Joseph solicitou licença para que pudesse entrar no convento a sua criada Polonia Lutgarda, sendo o ano de 1716 (AGN, Indiferente Virreinal, v. 5752, exp. 43, 1716). Do mesmo modo, decorrendo o ano de 1663, a religiosa Ana de San José Neli solicitou uma criada, por se encontrar doente (AGN, Indiferente Virreinal, v. 2885, exp. 7, 1663). Também se localizaram pedidos em nome da instituição, como o que emitiu a abadessa Luisa de Encarnação, em 1600, solicitando seis índias ou mulatas livres (AGN, Bienes Nacionales, v. 78, exp. 39, 1600). 21 AGN, Indiferente Virreinal, v. 828, exp. 31, 1663. 22 AGN, Reales Cédulas por Duplicado, v. 14D, exp. 754, 1649. 17

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No que concerne especificamente às contas de vidro, analisaram-se os 32 exemplares que compõem a coleção custodiada pelo depósito do departamento de Salvamento Arqueológico do INAH, na Cidade do México. Para o efeito, adotaram-se os critérios estabelecidos por DeCorse et al. (2003) para a classificação de contas de vidro. Desse modo, descreveram-se, de forma genérica, os aspectos relacionados com a técnica de produção, a forma, a estrutura23, a cor e o tipo de decoração impressa, identificando a cronologia e o local de produção (Apêndice). Ainda assim, optou-se por apresentar a imagem de pelo menos um exemplar de cada tipo de conta, mas sem realizar um estudo acerca da composição do vidro. Tal escolha deve-se ao fato de ter sido comum reciclar este material ou importar ingredientes para utilizar nas fórmulas locais, o que poderia levar a interpretações equívocas acerca do local de produção dessas peças (Departamento del Fomento General y de la Balanza de Comercio de España, 1805). Cabe destacar que nenhuma das contas analisadas foi recolhida em contexto residencial. Estes achados concentram-se essencialmente na zona da igreja, em contextos funerários. Mais além das suas funções meramente estéticas, estas peças são um exemplo de como os adornos e os complementos foram relevantes na construção dos corpos dessas mulheres. Para entender estas ambivalências basta interpretar a diversidade dos âmbitos em que foram aplicados por parte desta comunidade. Será em torno delas que estruturaremos esta análise.

assistia aí à missa. Era à vista de todos que se encontravam diferentes estátuas religiosas sobre as quais se colocavam finos tecidos bordados e joias, que poderiam incluir contas de vidro24. Ainda assim, ela contava com espaços mais reservados, como a sacristia, o coro e o antecoro ou sala de profundis (pagaduría). Detectaram-se igualmente sete criptas na nave principal do templo com enterramentos e localizou-se o antigo presbitério da igreja inicial. Associadas a estes contextos, apareceram algumas contas de vidro.

O CORO DA IGREJA O coro dos conventos de monjas foi um espaço reservado exclusivamente ao uso das mulheres de hábito negro e, pontualmente, também das ‘meninas’ que tinham sob seu cuidado. Ele separava-se do corpo da igreja por uma gradearia, de acordo com o protocolo geral que limitava ao máximo o contato destas mulheres com o mundo exterior. Era desde aí que elas assistiam à missa, longe do olhar dos outros fiéis e onde, de modo geral, passavam o dia em orações, em atos de devoção coletiva e particular, que contemplavam expressões musicais25. Neste local tiveram lugar as cerimônias mais importantes do convento, nomeadamente a eleição da madre abadessa ou da profissão de voto, que contou com a presença de personagens políticos importantes26. Em todos eles requereram-se demonstrações de ostentação, quer na decoração quer no vestuário daquelas que participavam dos ritos. Neste caso, o coro tinha dois andares e durante a escavação do piso térreo encontraram-se 82 enterros dispostos em três capas, os quais pertenceriam a monjas de hábito negro e possivelmente a algum benfeitor ou personagem importante que conseguiu pagar o valor de

IGREJA A escavação da igreja abrangeu as zonas do corpo propriamente dito, onde circulava a população civil que

Simples quando foi feita com uma única capa de vidro, composta quando se aplicaram várias capas de cor diferente e complexa quando possui uma única capa de vidro, mas foi executado algum tipo de decoração. 24 Sabe-se, por exemplo, que em 1749 se adquiriu uma imagem de São José e que a sua colocação na igreja foi celebrada com 40 dias de indulgências (AGN, Indiferente Virreinal, v. 5211, exp. 47, 1749). 25 Uma dessas monjas que se dedicou às artes foi Sor María Francisca de la Santísima Trinidad que, no ano de 1737, pedia autorização ao arcebispado da Cidade do México para se examinar de música (AGN, Indiferente Virreinal, v. 1116, exp. 2, 1737). 26 Inclusive da vice-rainha: “Domingo 4, profesó en la Encarnación la hija del castellano de Acapulco; hubo muchos fuegos en la noche antes y hoy, y gran concurso; la señora virreina dentro del convento, dice fue madrina de la religiosa” (Robles, 1946, p. 295). 23

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ter morada eterna entre estas mulheres. O costume de vender o espaço perdurou até finais do século XVIII e início do século XIX, e foi neste contexto, sob o pavimento de madeira original, que se encontrou um fragmento de adorno composto por uma conta. Embora a camada se tenha formado efetivamente nos últimos anos de ocupação do convento, ela correspondia a terras de remoção para a reutilização do espaço como ossário. Por isso, a peça em questão enquadra-se cronologicamente entre o século XVII e início do século XIX. Trata-se de um aro de ouro, com forma aberta e três argolas no lado exterior, apresentando, nessa zona, uma decoração de linhas incisas. De uma dessas argolas, pende um pingente composto por capucha polilobulada de metal prateado, com vestígios de sobredourado, aplicado sobre uma conta modelada globuloide de cor vermelha-opaca e totalmente lisa (Figura 6)27. É possível que os outros aros tivessem igualmente algum tipo de adorno, assemelhando-se

muito ao perfil de um brinco de três lágrimas que esteve em voga durante todo o século XVIII (Figura 7). Nesse caso, a ausência de representações de monjas com este tipo de complemento sugere que a peça terá pertencido a uma secular, quem sabe a uma das ‘meninas’ protegidas por alguma monja ou por alguma benfeitora. Não se deve descartar ainda a possibilidade de não ser um brinco e ter pertencido à decoração de uma das coroas ou ramos que as monjas colocavam durante a cerimônia de profissão ou quando eram enterradas (Figuras 8 e 9).

O ANTECORO OU SALA DE PROFUNDIS DA IGREJA Situada na parte norte da igreja, esta zona antecedia o coro, comunicando-se com a parte baixa do mesmo mediante um acesso junto ao muro sudeste.

Figura 6. Adorno com conta de vidro modelada, de forma globuloide, com extremidades aplanadas e orifício transversal de secção circular, com cor avermelhada-opaca. Dimensões: largura - 9 mm; altura - 8 mm; orifício - 2 mm. Fonte: Catálogo de Salvamento Arqueológico (CATSA) 17375, Sítio Coro Bajo, Unidade Estratigráfica (UE) 76, capa V - contexto de entulho, não associado a enterramento. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

Figura 7. Detalhe do quadro “De español y mestiza, castizo”, Andrés de Islas, século XVIII. Fonte: Museo de América de Madrid (Espanha), número de inventário 1980/03/02. Foto: Joaquín Otero Ubeda (sem informação de data) (Gobierno de España, s.d.).

CATSA 17375, Sítio Coro Bajo, UE 76, capa V - contexto de entulho, não associado a enterramento.

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Figura 8. Detalhe do retrato de “Gertrudis Gimenez, monja profesa”, autor desconhecido, 1820. Fonte: Museo Nacional de Historia, Castillo de Chapultepec (Ciudad de México, México). Foto: Andreia Martins Torres (2011).

No seu subsolo encontraram-se diferentes camadas arqueológicas correspondentes a sepulturas femininas, na sua maioria de monjas adultas ou de idade avançada (Salas Contreras, 1996b) 28. Segundo o arqueólogo Carlos Salas, esta terá sido a zona reservada àquelas que morreram de doenças infecciosas, uma vez que não se detectaram enterramentos na capela privada do jardim, onde normalmente tinham lugar. A profundidade a que se encontrava esta divisão e os cuidados em isolar as deposições com capas de cal diminuiriam o risco de contágio, isolando os restos e acelerando o processo de decomposição.

Figura 9. Retrato de “Sor Prudenciana Josefa Manuela del Corazón de María Ramírez de Santillana y Tamariz, professa do Convento da Encarnação da Cidade do México”, feito por Andrés López, em 1872. Fonte: New York State Office of Parks, Recreation and Historic Preservation (USA) (Retrato…, s.d.).

Apesar disso, nestes estratos registaram-se detalhes interessantes sobre a indumentária dessas mulheres no leito de morte e que ficaram impressos nos blocos recuperados. Através dos registos arqueológicos sabe-se que as monjas foram enterradas sem mortalha e com os dedos das mãos entrelaçados. O vestido consistia no hábito,

A única exceção são quatro sepulturas infantis, de crianças com idades compreendidas entre 10 a 13 anos e que foram enterradas entre as monjas.

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um avental, uma touca e um véu, do qual se preservaram fragmentos de rendas em fio de cobre e maguey, complementados com adornos bastante exuberantes que atendiam à solenidade da ocasião (Salas Contreras, 2005). Desses adereços conservaram-se fragmentos das coroas e do ramo que se colocava junto a um braço. Ambos estavam feitos em fio de metal, alguns com banho de prata, que se cobriam com tiras de papel e eram decorados com flores naturais, de papel ou em massa. Além destas peças, foi comum o uso de um medalhão ao peito e, em

um dos casos, o seu bordado com contas ficou registado em um fragmento de cal29. Hoje em dia conservam-se vários desses exemplares no Museo Nacional de Historia (MNH), desde modelos menores até peças mais elaboradas (Figuras 10 e 11) que encontram paralelo na pintura (Figuras 8 e 9 respectivamente). Complementando os acompanhamentos funerários colocava-se um rosário, geralmente sobre o ombro esquerdo, o qual era feito à base de contas, terminando em forma de cruz e de cujos braços pendiam três medalhas.

Figura 10. Moldura de medalhão feita em contas de vidro, sem indicação de autor ou procedência e sem data. Fonte: Museo Nacional de Historia, Castillo de Chapultepec, México, número de inventário 10-379013. Foto: Andreia Martins Torres (2011).

Figura 11. Escudo de cera com orla em contas de vidro, sem indicação de autor ou procedência, século XVI. Fonte: Museo Nacional de Historia, Castillo de Chapultepec, México, número de inventário 10-288072. Foto: Andreia Martins Torres (2011).

Associado à sepultura número 50.

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Em duas dessas sepulturas, que correspondem a enterramentos primários indiretos, foram recuperadas nove contas que pertenceriam a rosários. Sem embargo, não se dispõe de mais informação sobre a existência de outro espólio com o qual estivessem associados, uma vez que não parece ter sido realizado até o momento qualquer estudo detalhado do espólio de cada enterramento. Na sepultura 39 detectaram-se sete contas de vidro, modeladas, globuloides e de pequenas dimensões, de cor vermelho-opaco e ainda com os respectivos remates pertencentes à correia metálica que os uniria (Figura 12)30. Devido às condições de preservação do original desconhece-se o seu modelo, sugerindo-se a possibilidade de tratar-se de uma simples correia, colar ou terço de finais do século XVI e início do século XVII. Nesta época as joias vermelhas estiveram em voga entre as classes privilegiadas, sendo que o seu uso entrou em decadência no século posterior, quando as pérolas

ganharam destaque entre as elites e passaram a ser associadas ao adorno próprio dos grupos populares. Estas dinâmicas reproduziram as tendências da moda peninsular e acreditava-se que este material possuía poderes mágicos para garantir a proteção do indivíduo, tanto física como espiritual. Essas propriedades transferiram-se a todas as contas vermelhas, nomeadamente às de vidro, e a presença destes exemplares em um contexto arqueológico associado a doenças infecciosas cobra um sentido especial (Martins Torres, 2016). As contas referidas são bastante diferentes dos dois fragmentos de uma peça modelada, de forma ovoidal, encontrados na sepultura 53. Ela foi elaborada em vidro translúcido, com uma fina capa dourada e sem qualquer decoração impressa (Figura 13)31. A técnica com que se executaram é muito semelhante à das contas registadas na lixeira da enfermaria, onde se aprofundará toda a discussão que este tipo gera atualmente.

Figura 12. Sete contas modeladas de forma irregular, variando entre cilíndrica e globuloide achatada, com orifício transversal de secção circular e cor vermelho-opaca. Dimensões: largura - 3-2 mm; altura - 4 mm; orifício - 1 mm. Fonte: CATSA 17345, Capa III, EP#39. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

Figura 13. Fragmento de conta (?) modelada, de forma ovoidal (?), com orifício transversal de secção circular e cor âmbar translúcida. Dimensões: largura - 1 cm; altura - 9 mm, orifício - 2 mm. Fonte: CATSA 17350 2/2, C12 Cuadro E Copa III Asoc. a EP#53. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

Estas peças foram registadas com o número de inventário CATSA 17345, Capa III, EP#39 e, embora estejam catalogadas como contas de vidro, a sua semelhança com o coral exigiria análises químicas para o comprovar. Ainda assim, no momento em que se acedeu a estes exemplares, já não se conservavam os elementos metálicos com que foram encontrados, muito possivelmente pelo estado de degradação em que estariam. 31 CATSA 17350 2/2, C12 Cuadro E Copa III Asoc. a E.P.#53. CATSA 17350 (1/2 e 2/2). São dois fragmentos da mesma peça. 30

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De maneira geral, os dados compilados acerca da presença de contas de vidro nestes contextos funerários são extremamente reveladores. O peso da aparência e a ostentação na sociedade novo-hispânica refletiu-se no convento, como já se afirmou antes. Além das disparidades no tamanho das residências, os cuidados com a sepultura eterna foram igualmente diferenciados e constituíram uma oportunidade para demonstrar publicamente essa diferença. Isso porque as suas irmãs e os familiares que viviam fora do convento assistiam às cerimônias fúnebres. A sepultura eterna requereu cuidados especiais com o corpo e o seu adorno, particularmente das monjas de hábito negro que tinham um status superior. Os acompanhamentos e a forma como se associaram estiveram sujeitos às convenções da ordem e expressam uma sensibilidade negociada entre mulheres religiosas para se apresentar condignamente ante Deus. Além do rosário, que constituiu um dos elementos mais quotidianos da vida no convento e através do qual se levava a conta das orações, o vestido era cuidadosamente elaborado, incluindo arranjos florais e bordados de contas de vidro. Segundo alguns autores, esta arte foi introduzida, ou pelo menos fomentada, no convento (Castelló Yturbide; Mapelli Mozzi, 1998), onde as espanholas ensinaram as índias a bordar diferentes roupas, nomeadamente para a decoração das casas ou de alfaias religiosas, como as que ainda hoje se encontram em diversos museus mexicanos. Mas o mais pertinente para o caso que nos ocupa é a possibilidade de os escudos bordados com missangas terem sido executados por elas, como parte dos labores próprios da mulher da elite novo-hispânica ou fruto do seu processo educativo nessas artes. Além das monjas de hábito negro, foram enterradas ali outras mulheres que certamente padeceram do mesmo mal e que, pela sua posição na hierarquia do convento, não mereceram os mesmos cuidados. As suas sepulturas

têm acompanhamentos mais simples, alguns dos quais incluíam apenas o terço ou o rosário.

AS CRIPTAS No interior das sete criptas localizadas na igreja detectaram-se vários níveis de enterramentos que pertenceriam a indivíduos de uma mesma família, confraria ou irmandade, a quem estava dedicado o altar situado por cima das mesmas (Salas Contreras, 1996a)32. Em uma delas recuperou-se uma conta modelada em forma de pingente e com extremidade mais larga e acabamento côncavo (Figura 14)33. Ela está elaborada em um vidro verde translúcido, bastante fino e sonoro pelo qual se deduz a sua qualidade, mas a ficha que a acompanhava não refere o número da unidade de escavação onde foi recolhida. Neste sentido, não se poderão tecer maiores considerações sobre o exemplar, sabendo-se apenas que se encontrava depositado em níveis de entulho da cripta, podendo pertencer originalmente a um brinco (Figura 15) ou a um adorno de qualquer objeto de arte decorativa.

Figura 14. Fragmento de conta em forma de pingente, modelada, com orifício transversal de decção circular e cor verde muito translúcida e brilhante. Dimensões: largura - 1,6 cm: altura - 9 mm; orifício - 2,5 mm. Fonte: CATSA 23615, UE C14, Capa III, Relleno de la cripta. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

Uma dessas irmandades foi a de Santo António de Pádua que se fundou em 1699 (AGN, Indiferente Virreinal, v. 1254, exp. 12, 1722). CATSA 23615, UE C14, Capa III, Relleno de la cripta.

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aproximadamente 80 m2, e na qual seriam atendidas várias pessoas simultaneamente. De fato, só no mês de fevereiro de 1633 o livro de contas do convento apresenta pagamentos a dois médicos (Andrés Fernandez e Rodrígo Muñoz) e a um cirurgião barbeiro, bem como evidencia diferentes gastos na enfermaria no valor de 34 pesos34. Independentemente do local onde estaria o hospital do convento, importa destacar que foi neste espaço onde se registou a maior concentração de contas de vidro (20 no total). A sua associação com âmbitos de debilidade corporal, que exigiram proteções especiais, ajuda a entender melhor o significado destes objetos. A sua finalidade não diferiria muito daquelas ervas, pós ou minerais guardados no interior dos potes de farmácia e dos quais se preservaram fragmentos. Enquanto uns aliviavam a dor física, outros confortavam a alma e ajudavam o processo de cura por intervenção sobrenatural. O mais provável é que estas contas integrassem rosários com os quais se pedia o favor divino para uma rápida recuperação ou para encomendar as almas daqueles que morriam nestas circunstâncias. Tampouco dever-se-á descartar a possibilidade de terem pertencido a amuletos que tanta difusão tiveram na Nova Espanha, manifestando saberes de origem pré-hispânica associados a conceitos pagãos propriamente peninsulares. Dos vinte exemplares encontrados, todos foram elaborados por modelagem e treze deles estão recobertos com uma capa dourada. Desses, dez têm forma globuloide e um apresenta forma globular. Este grupo está composto por sete exemplares que não possuem qualquer decoração impressa (Figuras 16 e 17)35, dois que mostram um padrão composto por linhas incisas (Figuras 18 e 19)36 e dois que possuem decoração de linhas incisas alternadas por linhas perladas (Figura 20)37.

Figura 15. Exemplo da aplicação de pinjentes em joalharia/bijuteria. Peça sem identificação de procedência. Fonte: Museo Nacional de Historia, Castillo de Chapultepec, México, número de inventário 10-379123 1/2. Foto: Andreia Martins Torres (2011).

O PÁTIO DAS JACARANDAS Esta divisão situa-se de modo contíguo à igreja, entre o quarteirão residencial e o pátio das noviças, junto ao designado pátio das tinas. Nesta zona, e por baixo do pavimento datado do século XVIII, foi detectada uma camada de entulhos com abundantes materiais cerâmicos e de vidro. A maioria das formas relaciona-se a práticas médicas, por exemplo potes, pratos e tações com indicação de farmácia, pelo que se supõe que tais terras foram removidas desde a lixeira da enfermaria. De acordo com os dados obtidos durante a escavação, o arqueólogo Carlos Salas sugere que o hospital funcionaria na parte norte das galerias, onde se localizaram cinco salas contíguas, com grandes dimensões, e que permitiriam criar distintos espaços para hospitalização, enfermaria e recuperação (Salas Contreras, 2006). Tratase de uma área bastante considerável do convento, com

AGN, Indiferente Virreinal, v. 3555, exp. 10, 1633. Sobre os gastos com a enfermaria durante o século XVII, veja-se também AGN, Indiferente Virreinal, v. 74, exp. 12, 1648-1651. María Luisa Rodríguez-Sala investigou sobre os cirurgiões novo-hispânicos e refere o nome de Antonio de Figueroa, que trabalhou no Convento da Encarnación no início do século XVIII (Rodríguez-Sala, 2011). 35 CATSA 17369 4/5, sem indicação da UE em que foi recolhida. CATSA 17369 (1/5 a 5/5); CASTA 22874 2/2, sem indicação da UE onde foi recolhida. CATSA 22874 (1/2 e 2/2). 36 CATSA 17376 2/2, sem indicação da UE onde foi recolhida. CATSA 17376 1/2, sem indicação da UE onde foi recolhida. CATSA 17376 (1/2 e 2/2). 37 CATSA 23617 1/3, sem indicação da UE onde foi recolhida. CATSA 23617 (1/3 e 2/3). 34

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Figura 16. Conta modelada, de forma globular, com orifício transversal de secção circular e cor verdosa, quase transparente e translúcida, com superfície externa dourada. Dimensões: largura - 5 mm; altura - 8 mm; orifício - 1 mm. Fonte: CATSA 17369 4/5, sem indicação da UE em que foi recolhida. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

Figura 19. Conta modelada de forma globuloide, com orifício transversal de secção circular, de cor verdosa, quase transparente e translúcida. A superfície exterior é dourada e está decorada com linhas transversais incisas. Conserva-se ainda um fragmento de correia metálica (possivelmente prata) na qual estaria inserida. Dimensões: largura - 5 mm; altura - 6 mm; orifício - 2 mm. Fonte: CATSA 17376 1/2, sem indicação da UE onde foi recolhida. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

Figura 17. Conta modulada, de forma globular, com orifício transversal de secção circular, de cor âmbar translúcida. Dimensões: largura – 5 mm; altura - 5 mm; orifício - 1 mm. Fonte: CASTA 22874 2/2, sem indicação da UE onde foi recolhida. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

Figura 20. Conta modelada de forma globuloide, com orifício transversal de secção circular, de cor verdosa, quase transparente e translúcida. A superfície exterior é dourada e está decorada com linhas transversais incisas, intercaladas com linhas perladas. Dimensões: largura - 7 mm; altura - 6,5 mm; orifício - 1 mm. Fonte: CATSA 23617 1/3, sem indicação da UE onde foi recolhida. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

Figura 18. Conta modelada de forma globuloide, com orifício transversal de secção circular, de cor verdosa, quase transparente e translúcida. A superfície exterior é dourada e está decorada com linhas transversais incisas. Dimensões: largura - 8,5 mm; altura - 1,1 cm; orifício - 2 mm. Fonte: CATSA 17376 2/2, sem indicação da UE onde foi recolhida. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

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Existem ainda peças únicas, como uma de forma romboidal sem decoração (Figura 21)38 e outra ovoidal, decorada com linhas incisas e perladas intercaladas (Figura 22)39. Devido à cobertura, é difícil determinar a cor exata do vidro com que foram elaboradas ou detectar características particulares da sua composição. Pelo que se observou em zonas a descoberto, elas foram feitas com um vidro esverdeado e translúcido, com exceção de duas peças de tom amarelado, também transparente, que correspondem ao tipo globular e globluloide sem decoração impressa (Figura 17)40. De modo geral, este tipo de conta dourada tem sido identificado em várias escavações na Cidade do México, nomeadamente na Rua Fernández Legal 62, onde apareceu associado a um edifício religioso41. Sabe-se ainda que este modelo se difundiu por zonas mais periféricas, como povoações de índios, conforme revelaram as escavações feitas na região de Nejapa, onde foi detectado um enterramento do século XVII de um jovem indígena, com uma grande quantidade de contas douradas (King et al., 2012). Nas missões, a presença destes exemplares está bastante bem documentada, nomeadamente na Florida, onde aparecem associados a um enterramento de uma jovem de 20 anos de idade, coincidindo com uso feminino similar ao registado no Convento da Encarnação (Blair et al., 2009). Apesar de tudo, ainda muito pouco se sabe sobre estas contas. Elas foram detectadas em contextos da primeira metade do século XVII, mas é possível que o seu uso se tenha prolongado por pelo menos até meados do século XVIII. Ao observar atentamente os retratos das monjas coroadas (Figuras 10 e 11), rapidamente identifica-se que os seus rosários estão montados com contas douradas muito semelhantes às encontradas no registo arqueológico. No entanto, dos contextos de deposição no convento

Figura 21. Conta modelada de forma bitroncocônica, com orifício transversal de secção circular, de cor verdosa, quase transparente e translúcida. A superfície exterior é dourada. Conserva-se ainda um fragmento de correia metálica na qual estaria inserida. Dimensões: largura - 6 mm; altura - 1,1 cm; orifício - 2 mm. Fonte: CATSA 23618, sem indicação da UE onde foi recolhida. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

Figura 22. Conta modelada de forma ovoidal, com orifício transversal de secção circular, de cor verdosa, quase transparente e translúcida. A superfície exterior é dourada e está decorada com linhas transversais incisas, intercaladas com linhas perladas. Dimensões: largura - 1 mm; altura - 8 mm; orifício – 1 mm. Fonte: CATSA 23617 3/3, sem indicação da UE onde foi recolhida. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

CATSA 23618, sem indicação da UE onde foi recolhida. CATSA 23618. CATSA 23617 3/3, sem indicação da UE onde foi recolhida. CATSA 23617 3/3. 40 CATSA 22874 (1/2 e 2/2). 41 Achados que estavam associados à Igreja de la Concepción e respectivo campo santo. Este edifício foi fundado por Hernán Cortés e refundado nos finais do século XVII. 38 39

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estudado só se pode inferir que são anteriores à construção do piso em madeira no século XVIII. O seu acabamento dourado foi classificado como sendo de ‘ouro’ e frequentemente se lhes atribuiu uma origem peninsular, baseando-se no simples fato de não existirem paralelos nos principais centros produtores europeus de vidro, à época. Esta última ideia apresenta várias falhas, a primeira das quais consiste no fato de não se ter encontrado ainda nada semelhante em Portugal ou na Espanha. Considera-se que esta teoria parte de um desconhecimento do desenvolvimento do setor na Nova Espanha e de uma desconsideração pela capacidade técnica dos seus artesãos para produzir estes objetos. Nos últimos anos, as publicações de Peralta Rodríguez (2005, 2013) e de Fernández (1990) revelam que a produção vidreira foi um setor importante. Do mesmo modo, a investigação particular (e ainda inédita) que se tem vindo a desenvolver com base em fontes de arquivo revela a existência de especialistas na manufatura de contas. Dada a concentração exclusiva destes exemplares no território americano e o fato de terem existido, na Cidade do México, pessoas capacitadas para os fazer, não se deveria descartar a possibilidade de se tratarem de produções locais. Efetivamente, durante a intervenção de emergência que teve lugar na Cidade do México, na Rua Bolivia, n. 16, foi detectado um forno de vidro com restos de escória e que se pensa ter sido utilizado para a produção artesanal de vitrais. O relatório menciona um número considerável de berlindes e de contas de vidro de vários modelos, nomeadamente do modelo em questão. Embora não se refira o local exato onde as contas se encontravam depositadas, este dado deve ser levado em consideração, uma vez que se pode estar diante de um forno que, pelo menos ocasionalmente, terá produzido este tipo de adornos de vidro. A prova definitiva de que este modelo foi produzido na Nova Espanha encontra-se em um artigo da Gazeta Mexicana, escrito por José de Alzate ao final do século XVIII:

No se puede dejar pasar en silencio una práctica acostubrada por los Candileros, quiero decir, por los Artesanos que fabrican por medio del candil pequeñas piezas de vidrio: Los que trabajan vidrios por mayor en México por una práctica muy bien pensada, dán color azul al vidrio por mezcla de cobre; los Candileros se surten de él; y para construir cuentas de Rosarios, que tengan el color de cobre, color muy apetecido por los Indios, después de fabricadas las cuentas, las exponen al humo ú ollín del candil; entonces el cobre mezclado al vidrio se revivifica; y es cierto que qualesquiera persona que ignore la verdadera Química, juzgará aquellas cuentas por de cobre: ¿qué prueba esto? La revivificación del cobre, en virtud del flogistico de la grasa: añadase esto á lo expuesto sobre la revivificación de la plata; lo seguro es, que si al mas habil Azoguero se le entrega el metal de cobre, seguro es no conseguirá la mas pequeña porción de metal de cobre: apliquemos esto mismo respecto á los minerales ó metales de plata (Alzate, 1785, p. 7).

Através do relato assinalado, sabe-se que eram os ‘candileros’, e não os vidreiros, a produzirem estas contas e que eles usavam um vidro de tonalidade azul, obtida pela incorporação de cobre à fórmula de produção, para depois o fazer ressurgir através do ollín (ar em nahuatl) quente do candil/lamparina. Isso justifica o aspecto dourado e o tom verdoso dos exemplares recuperados. Ainda que não se fizessem análises à composição, tudo indica que a sua película exterior não é de ouro, mas sim de cobre, como esclarece Alzate (1785). De acordo com as palavras do autor, pareceria que o consumo deste tipo de conta se restringiria à produção de rosários para o uso da população indígena. De fato, a sepultura onde se encontrou no convento uma dessas contas poderá pertencer a uma criada indígena, uma vez que os seus acompanhamentos são escassos e isso seria pouco apropriado para uma monja de hábito negro. No entanto, a grande representatividade destas peças na enfermaria torna pouco provável atribuir o seu uso exclusivamente a este grupo específico de mulheres que habitaram o convento. Como já se afirmou, os rosários com que se pintaram as monjas de hábito negro depois de mortas e antes da sua sepultura apresentam características morfológicas semelhantes. A sua estética dourada, capaz de confundir o

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espectador e de induzi-lo a pensar que se tratavam de joias em ouro, satisfazia plenamente os critérios de ostentação da sociedade vice-reinal. Para a elite criolla, essas peças pareciam-se às bollagras42 de tradição mourisca, usadas na Espanha. Paralelamente, são sobejamente conhecidos os exemplares pré-hispânicos que revelam a perícia dos artesãos nativos para produzir contas de ouro ocas, como as que se recuperaram na região de Oaxaca43. A proximidade com modelos pré-hispânicos e mouriscos sugere que as peças em questão puderam pertencer a qualquer um dos grupos que procurasse uma associação com tais referenciais. Portanto, acredita-se que estas contas diferenciadas constituem um desses exemplos materiais que se associaram à definição da identidade de vários grupos, embora, para cada um deles, elas remetessem a universos simbólicos distintos. Essas plurivocidades e eventuais negociações seriam especialmente apelativas em situações de doença, sobretudo considerando-se que nesses espaços circularam monjas e criadas que faziam o que estava ao seu alcance para manter o local nas melhores condições e propiciar a cura necessária para a recuperação do enfermo. O outro grupo de contas mais ou menos uniforme consiste em um conjunto de quatro exemplares pequenos e com bastantes sinais de desgaste e decomposição. A sua forma varia entre globuloide de tom azul cobalto44 ou ovoidal de tom azul cobalto45 e azul turquesa46 (Figuras 23 e 24, respectivamente). Estruturados pela sobreposição sucessiva de camadas de vidro, que atualmente apresentam uma coloração opaca devido às condições de jazida, eles têm semelhanças com o tipo Nueva Cadiz encontrado em contextos americanos e que frequentemente são considerados importações italianas (Stemm et al., 2013). Tais suposições baseiam-se no fato de esta técnica ter

Figura 23. Conta modelada de forma globuloide, com orifício transversal de secção circular, de cor azul cobalto translúcido. Dimensões: largura - 4 mm; altura - 5 mm; orifício - 1,5 mm. Fonte: CATSA 22849 2/4, sem indicação da UE onde foi recolhida. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

Figura 24. Conta modelada de forma globular, com orifício transversal de secção circular, de cor azul turquesa, originalmente translúcido (?). Dimensões: largura - 6 mm; altura - 6 mm; orifício - 1,5 mm. Fonte: CATSA 22849 4/4, sem indicação da UE onde foi recolhida. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

Um modelo de conta globuloide e interior oco, realizado em metal precioso e decorado com motivos em relevo. Vejam-se, por exemplo, a joalharia popular de Alberca (Espanha) e as joias em ouro recuperadas em Monte Albán (Oaxaca). 44 CATSA 22849 1/4. 45 CATSA 22849 2/4, sem indicação da UE onde foi recolhida. CATSA 22849 2/4. 46 CATSA 22849 4/4, sem indicação da UE onde foi recolhida. CATSA 22849 3/4 e 4/4. 42 43

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surgido pela primeira vez em Veneza e Murano, mas, ao longo do período moderno, ela expandiu-se por toda a Europa, nomeadamente por Barcelona (Catalunha), Amesterdã (Países Baixos) e Hammersmith (Inglaterra). Por isso, não se pode descartar que o fluxo permanente de vidreiros destas regiões na Nova Espanha não tenha suscitado uma produção interna (Gasparetto, 1958; Van Dillen, 1933; Karklins et al., 2015). Nesta zona, foram ainda detectadas duas contas modeladas, de forma globular: uma de cor azul-escuro, quase negro (Figura 25)47, e outra negra (Figura 26)48, ambas de vidro opaco, mas também uma peça em forma de pingente (Figura 27)49. As duas últimas aparecem referidas como exemplares dos séculos XVI-XVII na ficha de sítio, mas não se sabe em que elementos se baseou o arqueólogo para definir tal cronologia. Cabe agora perguntar-se sobre o que levaria os seus donos a se desfazerem destas contas, a maioria sem qualquer fratura, sem ponderar a possibilidade de as reaproveitar? Talvez a resposta se encontre no discurso higienista desenvolvido ao longo do século XVIII e que, por

temor à propagação de doenças, defendeu a inutilização dos bens com os quais o paciente teve contato mais direto. Isso justificaria, em parte, a inexistência destas peças em contextos de habitação.

Figura 26. Conta modelada de forma globuloide, com orifício transversal de secção circular, de cor negra opaca. Dimensões: largura - 1 cm; altura - 1 cm; orifício - 2 mm. Fonte: CATSA 17346 1/2, sem indicação da UE onde foi recolhida, séculos XVI-XVII. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

Figura 27. Fragmento de conta modelada em forma de pingente, com uma das extremidades arredondada e diâmetro progressivamente mais estreito até a outra extremidade fraturada. O orifício é transversal e de secção circular, e a cor é azul turquesa translúcido. Dimensões: largura - 1,3 cm; altura - 1 cm; orifício - 2 mm. Fonte: CATSA 17346 2/2, sem indicação da UE onde foi recolhida, séculos XVI-XVII. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

Figura 25. Conta modelada de forma globuloide, com orifício transversal de secção circular, de cor azul turquesa algo translúcido. Dimensões: largura - 7 mm; altura - 5 mm; orifício - 3 mm. Fonte: CATSA 17351, sem indicação da UE onde foi recolhida. Foto: Andreia Martins Torres (2012).

CATSA 17351, sem indicação da UE onde foi recolhida. CATSA 17351. CATSA 17346 1/2, sem indicação da UE onde foi recolhida. Séculos XVI-XVII. CATSA 17346 1/2. 49 CATSA 17346 2/2, sem indicação da UE onde foi recolhida. Séculos XVI-XVII. CATSA 17346 2/2. 47 48

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O Convento da Encarnação da Cidade do México constitui um importante espaço para a reflexão sobre o comércio e o consumo das contas de vidro na Nova Espanha. Embora se tratasse de um edifício religioso, destinado a congregar as mulheres virtuosas da elite novo-hispânica, também residiram neste local seculares de diferentes grupos socioculturais que, a acreditar nas palavras de Careri (1976) referidas anteriormente, conformaram a maioria da população do convento. Por isso, não é possível continuar ignorando a pluralidade deste grupo. Ele constituiu-se por religiosas e seculares, livres e escravas, cujas vidas estiveram condicionadas pela arquitetura do edifício e pelas regras ditadas pela Ordem Concepcionista. Tais fatores, associados ao status de cada uma dentro da instituição, determinaram os espaços por onde poderiam circular, as atividades terrenais e espirituais que deveriam desempenhar ou o aspecto que teriam os seus corpos. Todos estes elementos moldaram as experiências e percepções individuais mas, ainda assim, elas exerceram a sua agência, alterando a funcionalidade original dos compartimentos, adquirindo novos lotes para ampliar o recinto ou decorando esses cenários e os seus próprios corpos com detalhes singulares. Além destes âmbitos que incidiram maioritariamente sobre as percepções visuais, estas mulheres desempenharam uma série de atividades no interior daquelas paredes, que geraram sons e odores específicos, algumas delas diretamente relacionadas com as contas de vidro. A grande concentração destes materiais na zona da enfermaria permite lançar a hipótese de terem sido usados em processos de recuperação, integrando rosários ou amuletos. No primeiro caso, elas associaram-se à passagem dos dedos por cada uma das suas contas, marcando o ritmo compassado das orações, através das quais se pedia a intervenção divina para alcançar a cura ou se encomendava a alma ante a iminência da morte. Relativamente aos amuletos, cabe referir que o seu uso não foi totalmente condenado pela igreja e que, em alguns casos, se associaram à imagem divina ou à medicina,

como sucedeu com o coral e as contas de vidro vermelhas. Embora no convento predominasse aparentemente a ortodoxia católica, a ingerência de mulheres indígenas de diferentes etnias americanas, africanas e eventualmente também asiáticas terá ocasionado comportamentos considerados desviantes e transferências culturais entre ambas. Por isso, não é difícil imaginar que as negras e as índias continuassem a usar os seus objetos de proteção ou remédios tradicionais para curar os seus próprios corpos. Também que, em casos de aflição, tenham acudido a saberes alheios, nomeadamente alguma monja mais receptiva, e usado fórmulas de outras mulheres para alcançarem o seu objetivo, o qual podia estar direcionado à cura do corpo, mas também à satisfação de certas ambições. Dentro do convento existiram espaços íntimos onde se puderam perpetrar secretamente essas partilhas, tal como sucedia em certos âmbitos da sociedade civil. Portanto, não se poderá descartar que as contas tenham sido protagonistas nesse tipo de ritual, misturando-se com ervas aromáticas, guardando-se junto ao corpo em sítios ocultos e proferindo-se orações que transformavam esses materiais e lhe conferiam poderes mágicos. Tais dinâmicas não deixaram evidências diretas no registo arqueológico. No entanto, as referências documentais sobre esses episódios no mundo exterior criam margem para pensar que no convento, onde viviam as mesmas mulheres e se reproduziam dinâmicas similares, as experiências não tivessem sido tão diversas. Na zona da igreja, o lugar ocupado pelas religiosas de hábito negro estava situado no extremo oposto ao altar, onde o padre realizava os sacramentos e ritualizava o processo de transformação do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo. Era no coro que elas assistiam à missa, resguardadas do olhar de terceiros por uma grade. Mas esse entorno, que as colocava em uma posição inferior à do homem, negando-lhe a possibilidade de oficiar tais cerimônias ou sequer participar de maneira próxima, era também a zona do convento onde elas se empoderavam. As mesmas grades que impunham um distanciamento físico

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possibilitavam a sua comunicação com a população exterior ao convento. Era também no coro onde elas exibiam toda a ostentação que logravam imaginar e pagar durante a cerimônia de profissão de fé. Com o mesmo vestuário, celebravam essa data com as irmãs e eram adornados os seus corpos enquanto eram velados e sepultados. Esses complementos aparecem no registo arqueológico onde se recuperaram rosários e bordados de contas de vidro. Isso sugere a sua importância como elementos constitutivos dos seus corpos e da sua identidade em momentos especiais da vida e da morte. Eles associavam-se a outros componentes que complementavam a gramática simbólica da sua aparência e potencializavam as experiências sensoriais. O brilho das contas contrastava com as cores do papel, para se misturar com o cheiro das flores naturais, enquanto se partilhavam momentos de felicidade e de tristeza. Tais adornos foram exclusivos deste grupo de mulheres, próprios dos seus corpos e de suas almas, comprometidos e inteiramente dedicados ao mundo sagrado, pelo menos em teoria. Embora as ações das religiosas fossem desenvolvidas no interior do edifício, como requeria o regime de clausura, o seu impacto repercutiu na cidade, na devoção dos habitantes e nos negócios ou estratégias políticas. Como se assinalou ao longo do texto, o poder dessas monjas superou largamente o âmbito estrito do convento. Através da educação das ‘meninas’, elas puderam perpetrar certas ideias na sociedade civil, nomeadamente no que concerne às funções e aos comportamentos que se consideravam apropriados para a mulher secular. Entre eles, incluíam-se as artes de bordar com pequenas missangas, como as que aparecem impressas no molde do escudo de uma monja de hábito negro cuja sepultura foi coberta de cal. Por isso, os vestidos mais faustosos e as peças mais delicadas usadas no vice-reino estavam realizadas com estes materiais, tal como sucedia na Península Ibérica. Na América, eles resultavam de um trabalho praticado apenas por mulheres e que requeria longas horas de dedicação, no decorrer das quais poderiam adotar uma atitude introspectiva ou, pelo contrário, conversar com suas companheiras.

Além das ‘meninas’, as criadas e os mordomos foram elos com o mundo exterior, através dos quais se mantinham atualizadas sobre os principais sucessos que as afetavam, ao mesmo tempo que atuavam como seus intermediários. Assim, exerceram influência sem a ingerência direta e permanente dos olhares masculinos, desfrutando de certa liberdade para gerir o seu cotidiano. No que concerne especificamente às contas de vidro, os usos identificados no convento demonstram que, apesar de existir uma tendência a associar estes materiais a contextos indígenas ou de população negra, eles tiveram um consumo importante entre as espanholas e as criollas. Para elas, vestir-se com adornos de contas e decorar as roupas da casa ou objetos móveis com essas peças era apresentar-se à espanhola. Isso justifica também a proliferação de objetos litúrgicos bordados de abalorios e de popotillo, sem que tais complementos comprometessem a dignidade do ritual. Ao mesmo tempo, previvia no imaginário de muitos homens da elite, como Alzate (1785), que estes adornos eram próprios de negros e de índios, possivelmente devido a um distanciamento maior deste setor da população relativamente a essas artes. Na prática, elas também penetraram no seu cotidiano, na sua roupa e nos seus acessórios, a exemplo da decoração de cigarreiras, mas a sua percepção sobre esses objetos não levou a uma associação direta com as contas que viam sobre os corpos de pessoas de outros grupos. Embora, na realidade, o êxito das missangas já não se pudesse comparar nos séculos XVII e XVIII àquele que transparece das primeiras crônicas americanas, existiu sempre um discurso de que eram essenciais em qualquer viagem ‘exploratória’ que implicasse contato com uma população isolada. Elas alcançaram as zonas mais periféricas do vice-reino, mas tiveram maior impacto em populações onde a presença espanhola foi mais efetiva, eventualmente pela maior pressão das autoridades locais para colocar as importações europeias nessas praças50. Neste caso, interessa ressaltar que, associadas ao uso desses objetos, foram transmitidas formas de estar e afinidades com o grupo

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de quem eram ‘próprios’. Através da cultura material, e especialmente das contas, se aproximaram indivíduos com universos conceituais distintos e que, ao partilhar alguns dos aspectos que definiam os seus corpos físicos, acabaram por se tornar aparentemente menos diferentes. Este fator foi importante para estimular simpatias e garantir certa estabilidade política, que acabaria por ficar associada também a estes objetos (Rodríguez-Alegría, 2010). Evidentemente, as utilizações e os significados que estes objetos adquiriram no contexto particular de cada grupo social são muito difíceis de ser determinadas. Porém, as fontes escritas e os achados arqueológicos revelam como foram gerados diferentes discursos em torno dos mesmos. Paradoxalmente, as contas de vidro serviram como símbolo de evangelização, da propagação de uma cultura europeia que serviu para aproximar grupos culturais muito diferentes, mas também para reafirmar identidades locais e certos aspectos que a igreja tentava combater. De tudo isso deriva a dificuldade em atribuir a utilização de uma conta específica a um grupo determinado, mais além do fato de se saber que algumas áreas do convento estariam vedadas às criadas e monjas de hábito branco (como o coro baixo ou a cripta) ou que as de hábito negro foram enterradas com objetos bordados em contas e com rosários de vidro. Por isso, é impossível fazer generalizações e cada contexto arqueológico fornece novos detalhes interessantes sobre as diferentes formas em que se usaram. De maneira geral, a situação estratégica do vicereino face às principais rotas comerciais possibilitou a manutenção de um fluxo constante de pessoas de todo o mundo. Nos mesmos barcos por onde circulavam esses indivíduos e a sua bagagem chegava uma enorme quantidade de mercadorias, nomeadamente contas, que estiveram disponíveis em qualidades e a preços variados para o consumo de toda a população. Se bem uma parte dessas peças eram importadas da Ásia através de Manila

(Filipinas), ou a partir da Europa, outras eram de produção local, como as contas douradas. O comércio desses gêneros rendeu grandes lucros e o seu consumo foi estimulado por meio de diferentes vertentes. Ele permitiu alimentar a economia da metrópole através do negócio de particulares, mas também da Nova Espanha, onde as redes de distribuição das produções europeias foram sustentadas por uma política imperial que favorecia o enriquecimento das elites mercantis lá instaladas. No que concerne ao setor vidreiro, sabe-se que só em período tardio foram concedidos incentivos à produção de contas na Espanha, e a maioria das exportações com destino à América seria adquirida no mercado exterior. Recorde-se que, desde 1505 a 1707, o vice-reino de Nápoles pertenceu ao império espanhol e a proximidade com os principais centros de produção de vidro poderá justificar, em parte, esta falta de interesse por estimular a produção peninsular. Por outro lado, parece ter existido um especial cuidado em promover a manufatura do vidro na Nova Espanha, inclusive durante o governo dos Bourbon. Nesse contexto, terá emergido a manufatura das contas de vidro douradas encontradas em escavações no atual território mexicano e norte-americano. Mas esse é um tema para outro artigo que esperamos escrever em breve.

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Vejam-se, por exemplo, as escavações em missões no atual território norte-americano (White, 2013; Mitchem, 1993; Deagan, 1987; Blair et al., 2009).

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64


65 Enterramento: sepultura 39 Séculos XVI-XVII (?)

Indeterminada

Séculos XVI-XVII (?)

Indeterminada

Opaco

Opaco

Enterramento: sepultura 39

Vermelho

Vermelho

Igreja: Antecoro

Globuloide

Globuloide

Igreja: Antecoro

Simples

Simples

3 mm x 4 mm x 1 mm

Modelado

Modelado

3 mm x 4 mm x 1 mm

CATSA 17345 6/7

CATSA 17345 7/7

Indeterminada

Séculos XVI-XVII (?)

Enterramento: sepultura 39

Igreja: Antecoro

3 mm x 4 mm x 1 mm

Opaco

Vermelho

Globuloide

Simples

Modelado

CATSA 17345 4/7

Indeterminada

Séculos XVI-XVII (?)

Enterramento: sepultura 39

Igreja: Antecoro

2 mm x 4 mm x 1 mm

Opaco

Vermelho

Globular

Simples

Modelado

CATSA 17345 3/7

Indeterminada

Séculos XVI-XVII (?)

Enterramento: sepultura 39

Igreja: Antecoro

2 mm x 4 mm x 1 mm

Opaco

Vermelho

Globuloide

Simples

Modelado

CATSA 17345 2/7

Indeterminada

Séculos XVI-XVII (?)

Enterramento: sepultura 39

Igreja: Antecoro

2 mm x 4 mm x 1 mm

Opaco

Vermelho

Globuloide

Simples

Modelado

CATSA 17345 1/7

Novo-hispânica

Séculos XVII-XIX

Origem

Cronologia

Contexto

Localização

Igreja: Coro Bajo

Entulho

Medidas: largura x altura x orifício

Decoração impressa

Outra coloração

Diafaneidade

Cor do vidro

Forma

Estrutura

Técnica de manufatura

Nº inventário

9 mm x 8 mm x 2 mm

Opaco

Vermelho

Globuloide

Simples

Modelado

CATSA 17375

Apêndice. Classificação das contas de vidro analisadas.

Indeterminada

Séculos XVI-XVII (?)

Enterramento: sepultura 39

Igreja: Antecoro

3 mm x 4 mm x 1 mm

Opaco

Vermelho

Globular

Simples

Modelado

CATSA 17345 5/7

Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 13, n. 1, p. 37-68, jan.-abr. 2018

(Continua)


Globuloide

Verdoso

Translúcido

Superfície dourada

6 mm x 5,5 mm x 1 mm Pátio das Jacarandas

Entulho Novo-hispano (séculos XVI-XIX) Novo-hispânica

Âmbar

Translúcido

Superfície dourada

5 mm x 6 mm x 1,5 mm

66

Pátio das Jacarandas

Entulho

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Novo-hispânica

Novo-hispânica

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

7 mm x 6 mm x 1 mm

Superfície dourada

Translúcido

Verdoso

Globuloide

Complexa

Modelado

CATSA 17369 3/5

Novo-hispânica

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

5 mm x 6 mm x 1 mm

Superfície dourada

Translúcido

Verdoso

Globular

Complexa

Modelado

CATSA 17369 2/5

Novo-hispânica

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

4 mm x 5,5 mm x 1 mm

Superfície dourada

Translúcido

Verdoso

Globuloide

Complexa

Modelado

CATSA 17369 1/5

Indeterminada

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Cripta

1,6 cm x 9 mm x 2,5 mm

Translúcido

Verde

Pingente

Simples

Modelado

CATSA 23615

Indeterminada

Origem

Cronologia

Contexto

Enterramento: sepultura 53 Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Localização

Medidas: largura x altura x orifício

Decoração impressa

Outra coloração

Diafaneidade

Cor do vidro

Forma

Estrutura

Técnica de manufatura

Nº inventário

Igreja: Antecoro

1 cm x 9 mm x 2 mm

Translúcido

Âmbar

Ovoidal (?)

Simples

Modelado

CATSA 17350 (1/2-2/2)

Apêndice.

Novo-hispânica

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

5 mm x 6 mm x 1 mm

Superfície dourada

Translúcido

Verdoso

Globuloide

Complexa

Complexa

Globuloide

Modelado

Modelado

Modelado

CATSA 17369 4/5

CATSA 17369 5/5

CATSA 22874 1/2

As mulheres novo-hispanas do Convento da Encarnação (Cidade do México) por meio das suas contas de vidro

(Continua)


67

Modelado

Complexa

Ovoidal

Verdoso

Translúcido

Superfície dourada

Modelado

Complexa

Globuloide

Âmbar

Translúcido

Superfície dourada

1 cm x 8 mm x 1 mm

Pátio das Jacarandas

Entulho

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Novo-hispânica

4 mm x 6 mm x 1 mm

Pátio das Jacarandas

Entulho

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Novohispânica

Linhas transversais incisas, intercaladas com linhas perladas

CATSA 23617 3/3

CATSA 22874 1/2

Novo-hispânica

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

9 mm x 4 mm x 1 mm

Linhas transversais incisas, intercaladas com linhas perladas

Superfície dourada

Translúcido

Verdoso

Globuloide

Complexa

Modelado

CATSA 23617 2/3

Novo-hispânica

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

7 mm x 6,5 mm x 1 mm

Linhas transversais incisas, intercaladas com linhas perladas

Superfície dourada

Translúcido

Verdoso

Globuloide

Complexa

Modelado

CATSA 23617 1/3

Novohispânica

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

8,5 mm x 1,1 cm x 2 mm

Linhas transversais incisas

Superfície dourada

Translúcido

Verdoso

Globuloide

Complexa

Modelado

CATSA 17376 2/2

Novohispânica

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

5 mm x 6 mm x 2 mm

Linhas transversais incisas

Superfície dourada

Translúcido

Verdoso

Globuloide

Complexa

Modelado

CATSA 17376 1/2

Novohispânica

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

5 mm x 5 mm x 1,5 mm

Superfície dourada (?)

Translúcido

Âmbar

Globular

Complexa

Modelado

CATSA 22874 2/2

Origem

Cronologia

Contexto

Localização

Medidas: largura x altura x orifício

Decoração impressa

Outra coloração

Diafaneidade

Cor do vidro

Forma

Estrutura

Técnica de manufatura

Nº inventário

Apêndice.

Novohispânica

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

6 mm x 1,1 cm x 2 mm

Superfície dourada

Translúcido (?)

Verdoso (?)

Bitroncocônico

Complexa

Modelado

CATSA 23618

Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 13, n. 1, p. 37-68, jan.-abr. 2018

(Continua)


68 Entulho Novo-hispano (séculos XVI-XIX) Indeterminada

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Indeterminada

Opaco

Translúcido (?)

Entulho

Negro

Azul turquesa

Pátio das Jacarandas

Globular

Pingente (?)

Pátio das Jacarandas

Simples

Simples

1 cm x 1 cm x 2 mm

Modelado

Modelado

1,3 cm x 1 cm x 2 mm

CATSA 17346 1/2

CATSA 17346 2/2

Indeterminada

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

6 mm x 6 mm x 1,5 mm

Translúcido

Azul turquesa

Ovoidal

Composta

Modelado

CATSA 22849 4/4

Indeterminada

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

6 mm x 5 mm x 1,5 mm

Translúcido

Azul turquesa

Ovoidal

Composta

Modelado

CATSA 22849 3/4

Indeterminada

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

6 mm x 5 mm x 1,5 mm

Translúcido

Azul cobalto

Ovoidal

Composta

Modelado

CATSA 22849 2/4

Indeterminada

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

4 mm x 5 mm x 1,5 mm

Translúcido

Azul cobalto

Globuloide

Composta

Modelado

CATSA 22849 1/4

Novo-hispana

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

5 mm x 5 mm x 1 mm

Outra coloração

Superfície dourada (?)

Origem

Cronologia

Contexto

Localização

Medidas: largura x altura x orifício

Decoração impressa

Diafaneidade

Cor do vidro

Forma

Estrutura

Técnica de manufatura

Nº inventário

Translúcido

Âmbar

Globular

Complexa

Modelado

CATSA 22874 2/2

Apêndice.

Indeterminada

Novo-hispano (séculos XVI-XIX)

Entulho

Pátio das Jacarandas

7 mm x 9 mm x 4 mm

Opaco

Azul escuro

Globuloide

Simples

Modelado

CATSA 17351

As mulheres novo-hispanas do Convento da Encarnação (Cidade do México) por meio das suas contas de vidro

(Conclusão)


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 13, n. 1, p. 69-87, jan.-abr. 2018

Os processos da paisagem pastoril: caracterizando lugar e movimento A pastoral landscape process: characterizing place and movement Milena Acha Museu de Arqueologia e Etnologia/Universidade de São Paulo. São Paulo, São Paulo, Brasil

Resumo: O movimento cotidiano dos pastores faz com que entrem em contato com o meio à volta e produzam inscrições culturais nessa paisagem apreendida. Assim, lugares e caminhos passam a ser marcos de prerrogativas espaciais e de memórias. Este artigo tem como objetivo levantar aspectos relacionados às estratégias de mobilidade e relacioná-las à paisagem de um grupo de pastores do vale de Santa María, na porção noroeste da Argentina. A partir de uma abordagem etnoarqueológica, pretende-se compreender como a persistência de vida pastoril contextualiza uma paisagem viva, carregada de significado e de elementos identitários. Busca-se também, a partir da noção de paisagem, trabalhar os conceitos de lugar e de movimento, a fim de demonstrar como o processo de apreensão das paisagens é fluído e constantemente internalizado a partir das classificações particulares dos grupos. Palavras-chave: Pastoreio. Paisagem. Mobilidade. Noroeste argentino. Etnoarqueologia. Abstract: Pastoralists recognize the environment through their everyday movements, a process which produces cultural inscriptions in the landscape and transforms places and paths into landmarks of spatial prerogatives and memories. The objective of this article is to consider some aspects related to the mobility strategies of a pastoralist group in the Santa María Valley of northwest Argentina. Using an ethnoarchaeological approach, we investigate how the persistence of pastoral life constructed a living landscape full of meaning and identity. We have also worked with the concepts of place and movement in order to demonstrate how this process is fluid and constantly internalized by the classification of the people. Keywords: Pastoralism. Landscape. Mobility. Northwest Argentina. Ethnoarchaeology.

ACHA, Milena. Os processos da paisagem pastoril: caracterizando lugar e movimento. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 13, n. 1, p. 69-87, jan.-abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222018000100004. Autora para correspondência: Milena Acha. Rua Marechal Deodoro, 12 – Batatais. São Paulo, SP, Brasil. CEP 14300-000 (milenacha@gmail.com). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6939-1076. Recebido em 19/07/2017 Aprovado em 08/01/2018

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Os processos da paisagem pastoril: caracterizando lugar e movimento

INTRODUÇÃO Os grupos pastoris da porção andina do noroeste argentino, especializados no tráfego de longas distâncias e em animais resistentes ao frio e à altitude, mantiveram-se nas serras desde o período pré-colonial, convivendo com as mudanças que se estabeleceram a partir do avanço incaico, hispânico e capitalista, e persistindo, preservando a sua autonomia e memória espacial, dentro do possível. Nas regiões de maior altitude, e mais distantes dos centros urbanos, pode-se destacar a persistência de muitos hábitos e tradições dos tempos pré-hispânicos (Rodriguez, 2008; Nastri et al., 2002; Browman, 2008; Alizadeh, 2008; Yacobaccio et al., 2011). Este aspecto, já ressaltado por alguns autores, tem evidenciando a importância de registrar estas persistências, a fim de serem expandidas as interpretações sobre o registro arqueológico e sobre as formas de adaptação do homem ao meio, ao longo do tempo. Tomando como ponto de partida os aspectos mais gerais da atividade pastoril, considera-se que, ao entender as organizações interna e externa do pastoreio em termos de dinâmica social e de adaptação ecológica, é possível compreender as condições a partir das quais se dão a ocupação, a reocupação e a permanência – ou, inclusive, o abandono – dos locais e das áreas de atividades deste grupo, sendo que este processo de territorialidade permite acessar as informações sobre a paisagem local (Zedeño, 1997; Zedeño; Bowser, 2008). Dessa forma, buscaremos demonstrar, neste artigo, que são criados ambientes significativos no contexto das práticas do cotidiano pastoril, capazes de definir o meio a partir das concepções dos próprios pastores sobre a paisagem. Diante de tal afirmação, este artigo apresenta uma análise de dados sobre a mobilidade pastoril e as interpretações da paisagem por esses pastores. Para tanto, serão definidas: as especificidades das práticas de movimento dos pastores em Santa María e, logo em seguida, a importância da mobilidade para compreender como essa paisagem pastoril é apreendida e compreendida. A partir de tais informações, pretende-se demonstrar que

os processos cotidianos responsáveis pelo deslocamento destes grupos de pastores ao longo das serras do vale de Santa María também estão produzindo e reproduzindo caracterizações sobre a paisagem.

CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS A pesquisa concentrou-se no vale de Santa María, especificamente nos eixos de captação da cidade de Santa María. A maior concentração de informações coincide com a zona referente à serra do Cajón, onde habitam os interlocutores com quem se trabalhou. A área está representada no mapa da Figura 1. O vale de Santa María é um dos vários que são áridos e constituem os vales Calchaquíes. Localizado na porção andina, referente às províncias de Catamarca e Tucumán, na região conhecida como noroeste argentino, recebe o nome pelo rio Santa María, que o percorre em sentido NorteSul. Em particular, esta zona caracteriza-se pelo relevo montanhoso que ocupa grande parte da sua superfície, formando vários vales alongados. A vegetação compreende uma variedade de pastagens (anuais e perenes), arbustos e árvores de pequeno porte (Tineo, 2005).

Figura 1. Mapa ilustrando a área de estudo, localizada na província de Catamarca, na fronteira com a província de Tucumán, Argentina. Mapa elaborado por Milena Acha (2017).

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Este trabalho centra-se nos pastores da região da serra do Cajón, os quais são um grupo de pessoas que se dedica ao pastoreio tradicional, ou seja, não fazem uso de pastagens preparadas para a sobrevivência do rebanho. Eles habitam a área que compõe a zona rural de Santa María, desde as regiões no interior das serras até as proximidades do centro urbano. A organização do espaço é pautada pela presença de propriedades no estilo rural. Cada família habita a sua própria casa, podendo ou não apresentar estruturas integradas de assentamento, como área residencial fixa, casas de campo e postos temporários. Apesar de privadas, as propriedades podem ser acessadas por todos os pastores, sendo cortadas por caminhos que levam às áreas de pastagens e de recursos hídricos. Os pastores podem ser definidos como uma comunidade de atividade tradicional, que se reconhece a partir de vínculos parentais, espaciais e, principalmente, pela atividade pastoril, integrando, assim, uma rede de reciprocidade. Apesar de não se distinguirem como grupo étnico, compartilham uma identidade por meio do habitus. Estas pessoas vivem em uma lógica de produção agropastoril com traços de transumância; produzem e consomem produtos primários e secundários do pastoreio, fazendo parte de trocas em mercados regionais. São populações católicas, em sua maioria, apresentando conjuntamente elementos de tradição indígena (como a marcação pelos caminhos com huancas1 e oferendas à Pachamama). As unidades de análise deste estudo foram os pastores e os seus núcleos domésticos. Ao todo, trabalhou-se com seis grupos de famílias e redes de relações de pastores, os quais permitiram observar os comportamentos de seus componentes nos dias de hoje e também acessar o banco de memória de cada núcleo familiar em relação a outras gerações. Quanto à escolha dos interlocutores, não houve um critério estrito, sendo utilizada a rede de

relações deles próprios, considerando as famílias e os locais que eles julgaram mais interessantes para a obtenção do maior número de dados sobre o pastoreio. Esta proposta se consolidou como válida para a coleta de dados, uma vez que o trabalho se centra na ideia de uma arqueologia mais colaborativa e nos intentos pós-coloniais de horizontalizar a própria ciência (Silliman; Dring, 2008; Skeates, 2012). Dessa forma, estabelecer diálogo entre as duas partes é fundamental, uma vez que a produção científica reside em um presente que é sempre político. Incluir outras formas de interpretar e simbolizar o mundo é aceitar uma arqueologia multicultural, considerando que, muitas vezes – como acontece neste caso de estudo específico –, a identidade e o sentido não estão associados à continuidade histórica, porém isso não lhe tira legitimidade (Gnecco; Ayala, 2011). Assim, considerando as representações de mundo e as posições sociais dos envolvidos, acredito que seja possível chegar às conclusões de maneira responsável em relação ao grupo e às comunidades envolvidas, principalmente tomando-se questões hermenêuticas e sensitivas, como é o caso da paisagem. Para a obtenção dos dados, deste modo, foi utilizada uma abordagem etnoarqueológica, visando identificar as relações entre comportamentos, visão de mundo e atividades em relação aos resultados materiais dos pastores deste vale. Além disso, a etnoarqueologia também possibilita uma compreensão mais profunda das relações que se estabelecem entre prática e simbolismo, seguindo uma perspectiva mais hermenêutica, considerando as condições sócio-históricas específicas (Hodder, 1986, 2012; Silva, 2002, 2009a; González Ruibal, 2003; Politis, 2002, 2015). Como método de análise, neste artigo, buscou-se trabalhar com os dados materiais, junto com a informação oral e a interpretação das pessoas sobre a paisagem, os lugares e os registros materiais.

Huancas significa ‘pedra sobre pedra’ em um idioma pretérito local (em locais dos Andes Centrais e Norte, estas formações antrópicas também podem ser chamadas de apachetas). O próprio nome remete à estrutura que consiste em rochas empilhadas, de tamanhos variados, e reproduzem uma pluralidade simbólica, como representações das serras e local de pertencimento à terra. São encontradas, ao longo dos caminhos, nos limites das áreas de pastagens e nas passagens da área de serras.

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A observação participante orientada arqueologicamente buscou evidenciar as relações que constituem um sistema pastoril, de acordo com a mobilidade, a identidade, o registro arqueológico e a constituição da paisagem. As entrevistas foram feitas a partir de perguntas direcionadas (não houve entrevistas estruturadas) durante as atividades e também em visitas regulares. As pessoas foram acompanhadas em suas atividades cotidianas, o que permitiu compreender a lógica das ações e dos lugares no dia a dia dos pastores. As atividades orientadas buscaram complementar a informação obtida nas tarefas rotineiras dos interlocutores. Assim, os mesmos lugares foram visitados em várias horas diferentes do dia, a fim de se compreender a dinâmica dos pastores, e os caminhos foram percorridos (prévia ou novamente) sem a presença dos interlocutores, para atestar tanto a possibilidade de seguir as designações de rotas e de trajetos, como a identificação dos elementos distintivos. Considerando isso, buscou-se demonstrar que é possível estabelecer uma relação entre as zonas pelas quais os pastores se movimentam e os lugares significativos, que são marcos de paisagem e de identidade. Como já foi colocado anteriormente, delimitou-se a serra do Cajón como área de atuação, nas zonas do interior das serras, onde estão os caminhos de pastoreio, os quais são marcados por uma paisagem que a todo momento traz o passado e o contextualiza no presente.

A etnografia, hoje, é fundamental para priorizar as diferentes perspectivas de tempo e de espaço, que implicam um diálogo mais efetivo entre arqueólogos e os interlocutores, além de um rearranjo dos conceitos históricos sobre os conceitos locais (Ferguson; Colwell-Chanthaphonh, 2006). Fazer uma etnoarqueologia nos termos metodológicos propostos permite abertura para novas propostas sobre a materialidade e a temporalidade para os diversos grupos, a partir das quais é possível relativizar as categorias buscadas e acessar as informações contextuais para alcançar o conhecimento integrado (González Ruibal, 2003, 2012; Hamilakis, 2011, 2016; Politis, 2015). Inclusive, também permite considerar a agência dos sujeitos como seres ativos inseridos em um sistema e um contexto, bem como os significados sobre adaptabilidade, sobre as práticas cotidianas e sobre a relação com a afirmação da identidade (Silva, 2009a). A pesquisa etnográfica, então, foi feita por meio da observação participante e das entrevistas orientadas arqueologicamente, que foram as ferramentas de análise. Esta forma de etnografia orientada arqueologicamente, também conhecida como ‘living archaeology’, é fundamental para entender os processos ligados à cultura material e permite ao arqueólogo vivenciar o sistema cultural na sua totalidade, assim como apreender os significados e as práticas culturais (Silva, 2009b). Portanto, a partir desta abordagem, pretende-se alcançar o valor prático que os locais utilizados apresentam, além do valor significativo (marco de memória e de identidade). Os resultados obtidos são referentes a trabalhos de campo, efetuados entre os anos de 2004 e 2015, variando em etapas realizadas nas diferentes estações no ano, para abarcar o comportamento ao longo de um ciclo anual completo. Desta forma, esteve-se presente nos períodos de outono, de inverno e de verão. As atividades que foram levadas a cabo nessas etapas responderam a duas lógicas: a) às atividades cotidianas dos interlocutores; b) às atividades orientadas etnoarqueologicamente2.

DEFININDO MOBILIDADE E PAISAGEM O tema da mobilidade vem sendo estudado de forma renovada nas últimas décadas, pois se tem dado ênfase à fluidez e à agência dos povos nômades durante todo o ciclo de seus deslocamentos. Considera-se que, apesar do foco da análise ser o movimento das pessoas através do território, a mobilidade é determinada pelas escolhas e pela organização sociocultural. Assim, mobilidade é definida como o tempo combinado com o tipo de movimento e

Os dados brutos do trabalho completo podem ser disponibilizados mediante requerimento via e-mail.

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de estratégias no acesso aos recursos, transformando ou ‘colonizando’ a natureza da paisagem (Layton; Ucko, 1999; Ingold, 2000). Assim, quando pensamos em grupos móveis, é fundamental refletir sobre a maneira como cada grupo se articula com o entorno por meio das atividades cotidianas e dos significados sociais que representam o mundo; o movimento, neste contexto, é um fator determinante para a percepção de entorno (Ingold, 2000). Deste modo, o uso recorrente de certas áreas passa a ter importância fundamental para a elaboração da memória e da noção de pertencimento a determinados lugares e territórios. As paisagens tornam-se culturais e os seus marcos e as suas características, índices de identidade. Portanto, compreender os diferentes aspectos da mobilidade também é uma forma de entender como os grupos ordenam-se dentro do espaço, dando significado a ele a partir de suas próprias percepções a respeito do mundo que os cerca e sobre si mesmos. Assim, pensar na mobilidade pastoril obrigatoriamente exige refletir sobre as questões da paisagem e dos traços desse movimento. Isso implica a relação das pessoas com o meio ao redor, considerando-se aspectos de significação e dos significados que são impressos na integração homem/ terra. Faz-se necessária a compreensão de ambos (significado e significação) para entender em que consiste mover-se pelos caminhos e lugares, pois, no movimento, as pessoas viajam através da paisagem. O processo de mover-se é também o de habitar essa paisagem, assim como ‘caminhar’ por um percurso o torna familiar, pois, conforme é utilizado, o próprio caminho torna-se parte do caminhante (Botin, 2013). Os lugares, por sua vez, são a forma como as pessoas incorporam, na paisagem, sensações, sentimentos, conhecimento e cultura, tornando-a algo experienciável e parte do habitus. As pessoas, no fluxo cotidiano, acessam os lugares, promovendo uma relação vivida com o espaço geográfico, o qual é internalizado, significado e integrado às próprias pessoas. Assim, a paisagem é uma simbolização do meio, permitindo que este seja apreendido e reconhecido como próprio do indivíduo. Este processo de simbolização

a motivação que incita esse comportamento (Wendrich; Barnard, 2008; Sellet et al., 2006). Especificamente sobre os grupos pastoris, a literatura evidencia que apresentam uma memória espacial, sendo que as rotas de deslocamento não mudam e os caminhos são identificados a partir de marcos significativos (Holl, 1998), os quais não se tratam apenas às prerrogativas de localização espacial, sendo referentes e índices de identidades que contextualizam a paisagem a partir da memória. Registros etnográficos mostram que os pastores apresentam grande diversidade nas estratégias de adaptação e de especialização em suas várias atividades econômicas, e que estas são parte de uma estrutura sociocultural (Frachetti, 2008; David; Kramer, 2001). Assim, o pastoreio pode ser considerado um fenômeno multifacetário com várias definições possíveis, que envolve tanto questões ambientais como padrões variáveis culturais (Holl, 1998; Odell, 1994). Parte-se do pressuposto de que a atividade pastoril é uma motivação dentro de uma série de possibilidades ambientais e culturais, considerando principalmente que este modo de vida é uma escolha que implica constante atualização da percepção de mundo e da identidade dos seus praticantes (McCabe, 2004). Neste sentido, o uso do espaço implica escolhas específicas, influenciadas por diferentes aspectos socioeconômicos, gerando constantemente referentes de identidade. A mobilidade destes grupos produz uma transformação da paisagem, tendo a percepção e o uso do território como uma junção entre a ordem sociocultural e o meio, conciliando fatores psicológicos, sociais, históricos e ideológicos (Smith, 2008). Desta forma, entender a mobilidade destes grupos é aprender sobre a interação humana com a paisagem, seus recursos e significados. Analisar esta paisagem vivida permite perceber a integração entre homem e meio, no contexto das relações cotidianas, em seus aspectos ambiental, social e simbólico (Ingold, 2000). A paisagem, aqui, é analisada como uma assinatura da significação e da identificação do espaço, que integra o social e o natural; e o homem é visto como produtor

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implica, primeiramente, uma aproximação da pessoa à paisagem e, segundo, uma relação de identidade do grupo em relação ao meio, pois as ideologias e as formas culturais de ver o mundo têm um papel fundamental na simbolização da paisagem (Gow, 1995). A experiência dos lugares é recíproca e dinâmica, e cria um processo de internalização da paisagem, relacionando diretamente espaço à familiaridade, às experiências e aos significados atribuídos pelas pessoas. Este fenômeno indica a maneira como elas interagem, representando a constante performática que reproduz e expressa o senso de lugar próprio (Basso, 1996). Mover-se e habitar os lugares permite apreender a paisagem, pois a vida é vivida no movimento entre todos os lugares. Os lugares, assim, são delineados pelo movimento das próprias pessoas e é nesse processo que se circundam os limites, através de trilhas e vias criadas pelo fluxo contínuo de seres vivos (Ingold, 2000, 2012). Deste modo, na conceptualização do que é lugar, são incorporadas – e consideradas – as definições que englobam os instrumentos de navegação, os quais são marcas da identidade de cada sociedade, uma vez que a percepção espacial não é única, universal ou objetiva, sendo, ao contrário, particular, histórica e culturalmente inteligível (Whitridge, 2004). Habitar um lugar é movimentar-se por um ambiente e reconhecê-lo. Percebe-se o ambiente por esse processo de habitar, que, além da locomoção, também implica ver, ouvir e construir. O conhecimento que existe nas informações acumuladas permite criar uma imagem mental dos lugares, dos trajetos e dos elementos apreendidos, que condicionam a região conhecida. Isso porque percebe-se a paisagem por meio de uma série de pontos pelos quais se habita um lugar (se caminha e se vive). Portanto, a paisagem nada mais é do que a cristalização de uma atividade em um campo relacional. Na vida cotidiana, marcam-se os passos dos caminhos, elementos e feições que são incorporados à própria capacidade do movimento. É através do caminhar que a

paisagem se transforma em paisagem habitada (dwelling), pois a vida está se movimentando através dela em um processo contínuo e que nunca acaba (Ingold, 2011).

MOBILIDADE PASTORIL: ESCOLHAS E HABITUS Uma vez definidos os conceitos de mobilidade e de paisagem com os quais se estão trabalhando, apresentamos as informações sobre a mobilidade pastoril desta zona. A organização do espaço pelo pastoreio é a ação que transforma elementos físicos em significados simbólicos, valores e símbolos, que definem a paisagem como marco identitário. A mobilidade destes indivíduos corresponde principalmente a situações nas quais o pastor se desloca com o rebanho para acessar os recursos, apresentando movimentos mais longos durante a estação de estiagem em comparação à chuvosa, visando melhor aproveitamento deste ambiente árido. O sistema de produção pastoril desta zona do vale de Santa María pode ser incluído na categoria agropastoril, combinado com o sistema de mobilidade transumante, uma vez que o sistema pastoril se caracteriza pela integração entre as estratégias adaptativas tradicionais, juntamente com as especificidades da geografia e das condições climáticas. Esta região do vale de Santa María tradicionalmente indica um histórico de uso da terra e de seus recursos a partir da combinação entre cultivos de cereais, vegetais adaptados, frutas e nozes e de pastoreios transumantes. A aridez e a dificuldade de irrigação fizeram com que estes vales não fossem favoráveis à agricultura em larga escala e as condições geográficas e climáticas, por sua vez, também fazem com que os vales sejam aptos para o pastoreio apenas por um período do ano (correspondendo ao final da primavera e ao verão), obrigando os pastores a apresentarem movimentos distintos, de acordo com as épocas do ano. Esta estrutura de movimentos condizentes com as mudanças climáticas e a oferta de água e de outros recursos naturais também foi destacada para outras zonas andinas, enfatizando a importância da mobilidade pastoril, aliada à economia vertical tipicamente andina,

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diante da qual se definiu um padrão compreendido como transumância vertical (Browman, 1983). Como estes pastores tradicionais alimentam os seus rebanhos com pastagens naturais não preparadas, diante das adversidades climáticas das diferentes estações do ciclo anual, eles são obrigados a movimentarem-se no interior das serras para alcançar pastos que não secam nem perecem nos períodos mais frios do ano. Portanto, por definição, lida-se com um ‘sistema agropastoril transumante vertical’, aliado às características que levam à definição de um sistema combinado de atividade agrícola moderada e de pastoreio tradicional. Sobre o termo transumância, existe uma série de definições destacadas na literatura pastoril. Há diferenças quanto à mobilidade de cada grupo, de acordo com as distâncias totais que percorrem ao final de um ciclo anual e as características do movimento. Este termo é utilizado para definir: a) ‘movimentos limitados em escala’: geralmente têm lugar em um único sistema de vale, ocorrendo de maneira vertical em relação aos vales e às partes mais elevadas; b) ‘movimentos distintos entre os integrantes de um grupo’: uma parte do grupo permanece assentada durante o total do ciclo anual, enquanto uma parcela pequena movimenta-se com o rebanho; c) ‘existência de acampamentos diferenciados’: há manutenção de um local permanentemente ocupado, integrado a uma rede de acampamentos temporários (Sidky, 2015). Assim, o pastoreio transumante pode ser definido pelo movimento vertical, o qual compreende grupos que se deslocam através de distintas altitudes, como é o caso dos pastores na serra do Cajón, do vale de Santa María. Também apresenta uma distinção entre movimentos sazonais – de inverno e de verão –, que são fundamentalmente característicos de todos os tipos de pastores nômades, pois fazem uma distinção entre os locais mais vantajosos para manter os seus rebanhos, de acordo com a sazonalidade, as condições climáticas e a geografia. As cabras são o foco do ciclo de transumância entre os interlocutores deste vale. É característico desta atividade

os animais pastarem durante um tempo determinado sem a presença do pastor para organizar o rebanho. Estas estratégias integradas permitem ao pastor uma dupla atividade, podendo estar no comando de um rebanho e também exercer outras tarefas para a sua própria família ou para outros, na forma de trabalho assalariado. Os rebanhos são de propriedade de cada pastor. O território também é demarcado por propriedades privadas, que representam os pastores. Porém, os locais de pastagens e os de água não são restritos, sendo de livre acesso ou constituindo áreas comuns. As espécies mais nutritivas de plantas e de gramíneas crescem no período do verão, com o aumento das chuvas na região. Esta vegetação é característica das altitudes mais baixas dos vales ou de suas proximidades. As chuvas ocorrem em um período que compreende, aproximadamente, os meses de novembro a março. Neste intervalo, com os vales férteis e com abundância de água, os animais podem pastar soltos dentro do perímetro referente à casa, sem necessidade de cuidados. Os pastores ficam mais tempo na casa principal, junto às mulheres e às crianças. As pastagens são produtivas unicamente nesses momentos de maior umidade, portanto, conforme cessam as chuvas, os vales vão secando e a vegetação vai diminuindo. Nesta ocasião, o pastor já tem necessidade de se movimentar com o rebanho, buscando por áreas que ainda estejam férteis, porém, na maioria das vezes, faz trajetos curtos. Esta é uma fase intermediária entre o outono e o inverno, no entanto, apesar da diminuição, ainda existem pastagens relativamente próximas. Os animais, muitas vezes, retornam aos currais principais. Com o avanço do inverno, as pastagens ficam mais escassas e os pastores fazem uso de locais para este fim e também utilizam água no interior da serra, aproveitando o tipo de vegetação mais resistente ao frio, que cresce nas zonas mais altas. Durante estes períodos, os rios dos vales em menor altitude secam em razão do término do degelo; a incidência de chuvas é escassa; e neva em grandes quantidades, cobrindo os campos e congelando as áreas de água.

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Por causa destas limitações climáticas, os pastores são obrigados a se movimentar em busca de lugares com água e com pastagens para os animais. Com isso, eles percorrem longas distâncias e utilizam vários locais de paragem, os postos temporários (na maioria das vezes, por apenas uma noite), durante a rota de pastoreio, até a volta das chuvas e do clima mais ameno, quando retornarão à casa de campo. No geral, os animais permanecem no interior das serras, porém os pastores deslocam-se da casa até os animais. Atualmente, poucos pastores ainda permanecem no interior das serras, mantendo-se próximos aos animais. O ciclo de transumância anual começa ao final de abril e começo de maio, e termina entre os meses de outubro e novembro, com a volta das chuvas. É baseado na observação da maturação das pastagens, na queda da incidência das chuvas, na diminuição das temperaturas e nos períodos de glaciação. Este calendário tem a função de gerenciamento dos recursos que resguardam as pastagens mais resistentes para os períodos de necessidade delas. Neste ambiente do vale de Santa María, o rebanho não conseguiria se sustentar sem a mobilidade, porém usar as diferentes áreas desse ecossistema frágil não necessariamente significa degradar o ambiente. Alguns autores defendem a ideia de mecanismos de preservação e de regeneração do ambiente, uma vez que o pastoreio é flexível e seletivo, e os rebanhos não pastam sem controle, mas em locais selecionados e avaliados. Os pastores tendem a dispersar-se e fazer uso mais extensivo de locais de água e de pastagens nas épocas chuvosas, buscando preservar certas pastagens nas épocas mais secas do ano (Sidky, 2015; Abusuwar; Yahia, 2010; Moritz et al., 2014). As decisões tomadas por cada pastor individualmente considerariam coordenar os movimentos de acordo com o ambiente (as mudanças na distribuição dos recursos), juntamente à distribuição dos vários pastores, considerando-se que há um senso comum na regulamentação do acesso aos recursos. Este comportamento permite concluir que existe certo equilíbrio entre a tomada de decisão para o movimento e a capacidade das pastagens em relação ao número de

animais (carrying capacity), confirmando uma escolha de padrão de movimento pastoril acertada (Moritz et al., 2014). Assim, como vários outros grupos de pastores em áreas montanhosas (Sidky, 2015), os do vale de Santa María movem os seus rebanhos por rotas claramente definidas através das sucessivas altitudes, para obter o máximo de aproveitamento dos diferentes nichos que sustentam o rebanho e, consequentemente, dos humanos, sem interferir no ecossistema das zonas andinas.

O ESPAÇO DAS SERRAS COMO LOCAL DE PASTOREIO A existência de pastores nestas serras do vale de Santa María não se resume aos dias atuais. Diante dos registros materiais de ocupações ancestrais, os pastores da atualidade perpetuam uma paisagem voltada às atividades pastor/rebanho. Assim, o espaço existe por sua fluidez, tanto do tempo como da repetição de caminhos e de lugares, e passa a integrar a tradição das pessoas. Especificamente na região que corresponde ao vale de Santa María, justamente sobre a serra do Cajón, a contínua presença de pastoreio na área do interior das serras é evidente. Destacam-se estruturas arquitetônicas que correspondem à infraestrutura produtiva de gado em contraste a sítios que são designados como categoria funcional de habitação. Ainda, a presença de animais domésticos para o pastoreio pode ser constatada a partir de estudos feitos com restos faunísticos (Izeta; Scattolin, 2006). Os sítios arqueológicos apresentados por Cantarelli e Torcoletti (2009) indicam a presença de áreas habitacionais, associadas a currais, em uma altitude intermediária de 2.700 m, provavelmente ocupados no período Tardio (entre aproximadamente 1000 a 1430 DC). Já sobre o cordão montanhoso, Nastri et al. (2002) identificaram um padrão de sítios que reconhecem como postos pastoris, os quais constituem grandes recintos (identificados como currais), associados a recintos pequenos (identificados como o refúgio do pastor). Ao adentrar a porção central da serra do Cajón, principalmente nas quebradas, alguns

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sítios arqueológicos identificados indicam a existência de pequenas instalações pré-hispânicas semelhantes aos postos de pastores da atualidade (Cantarelli et al., 2014), juntamente a outras estruturas dispersas pela serra, que datam do período Intermediário Tardio, em um momento indicado entre o século XIV e a primeira metade do século XV (Moritan et al., 2015; Cantarelli et al., 2014)3. Sobre os hábitos de mobilidade pastoril, o trabalho etnográfico de Sanz de Arechaga (1948) permite observar que os pastores passavam a maior parte do ano – de outubro a abril – entre os 2.000 e os 3.000 m. Este trecho é uma zona de maior presença de água e de pastagens, que cessam no período de inverno e, juntamente aos ventos frios que sopram da região da Puna, obrigariam os pastores a alcançar maiores altitudes, em regiões onde as pastagens ainda permanecem. Por isso, de maio a julho, os pastores seriam obrigados a buscar pastagens em maiores altitudes – entre os 3.000 e os 3.500 m – nas ‘grandes ciénagas’ (locais com maior quantidade de nascentes), onde a água aflora no verão e cresce uma vegetação resistente, chamada ‘pasto de raiz’. Porém, quando as propriedades são pequenas, a autora indica que seria possível apenas uma única investida, subindo acima dos 3.500 m em busca do pasto, resistente ao frio da região de Puna, para garantir a sobrevivência do gado até a primavera, quando os vales se tornam férteis novamente. Diante do apresentando, é possível afirmar que os dados mostram uma intensa e reiterada ocupação de pastores nas mesmas áreas mais altas das serras, a qual é indicada pela presença de áreas habitacionais em zonas mais baixas, de currais e de postos temporários sobre o cordão montanhoso no interior das serras. O espaço, há muito, parece estar dividido por esta atividade, que se ordena pela divisão de gênero. O sistema de pastoreio no vale de Santa María é definido por essas zonas em que os pastores e os seus rebanhos

se movimentam. Os pastores passam os períodos mais férteis – de outubro a abril – próximos às áreas dos vales e o período do inverno no alto das montanhas. Assim, a área do interior das serras é um espaço masculino, de movimento de rebanhos de animais adultos e de seus pastores, assim como a das casas é onde as mulheres trabalham, estão as crianças e os pequenos animais e são feitas as hortas, os pomares e os produtos para serem vendidos. Nas serras, caminhos e locais de parada que os pastores fazem uso muitas vezes são reconstruções de antigos postos. Como o conhecimento do espaço aqui é passado de geração a geração, existe uma constante retomada dele. Dentro dos percursos, reconhecem alguns locais como perigosos e não os acessam, mantendo-se no caminho sobre o qual se sabe que é um trajeto seguro, no qual podem transitar sempre que necessário em busca de fontes hídricas. É possível afirmar, então, a existência de uma recorrência: o pastoreio ocorre no interior das serras e este é o espaço dos animais adultos juntos aos pastores. Por conta disso, observa-se maior quantidade de caminhos e de rotas de pastoreio que levam ao alto das serras, sendo que grande parte dos currais e das áreas de pastagem está nas partes altas destas serras. No que se refere ao imaginário do pastor, ao perguntar sobre as características do pastoreio, a serra é o principal indicador que eles expõem. Ao perguntar a um interlocutor onde estão os pastores, o retorno é rápido, “ahhh, estão por lá, na serra... por lá... tá vendo?”. A resposta parece óbvia para este senhor de mais de oitenta anos. Para ele, está claro que os pastores estão – e devem estar – nas serras, pois é lá que estão os animais e o seu alimento. Desta forma, ainda quando é verão, este local é o marcador espacial dessa atividade. Isso acontece pelo vai e vem dos pastores e de seus rebanhos pelos caminhos e lugares dessas regiões mais elevadas, os quais também

Estes trabalhos – vinculados ao Proyecto Arqueológico sierra del Cajón, sob a direção do Dr. Javier H. Nastri – continuam em andamento, levantando dados referentes a estas ocupações pretéritas no interior da serra do Cajón. Cada vez mais, é possível assumir uma postura que indique a presença do pastoreio desde tempos pretéritos até os dias atuais. Diante de tal afirmação, é indispensável deixar claro que não se está afirmando uma continuidade étnica direta, mas a de um modo de produção e de aproximação da paisagem.

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são marcadores da domesticação da paisagem serrana, assim como dos animais e das plantas. Por isso, o tipo de animal que integra o rebanho é adaptável à variabilidade do ambiente em questão. A mobilidade pastoril, portanto, implica determinadas características que ditam o ritmo da vida. O ambiente tem importante influência na definição dos ritmos e das escalas, que, juntamente com o movimento, condicionam as formas de assentamento e de aproximação ao espaço. Este espaço habitado representa uma série de características comportamentais que são plausíveis de identificação e de análise.

informaram. O afloramento de argila estava localizado em uma ‘pampa de altura’. Nas proximidades (em uma altitude mais elevada), também havia um curral, utilizado pelos animais que não eram das proximidades. Logo na sequência do curral, estava o acesso aos caminhos mais elevados que levavam a Puna. Assim, um caminho não é apenas uma ligação entre pontos de destino e de chegada. Como se observa na Figura 2, cada caminho é o entrelaçado de vários outros, que conectam diversos pontos, ligando também outros percursos a mais pontos e a mais caminhos. Portanto, o ponto de destino tem a ver com aquilo que se almeja no caminho, e não com o fim específico. Sendo assim, um longo caminho de pastoreio conecta casas, locais de cultivo, currais, diferentes áreas de pastoreio (de inverno ou verão), recursos específicos (por exemplo, o afloramento de argila para cerâmica), locais de parada e outros caminhos. Esse emaranhado de lugares, destinos e trajetos parte do princípio da atividade pastoril e delineia a paisagem dentro dos marcadores que são reconhecidos pessoalmente. O caminho destacado na Figura 3 teve início na casa onde mora o senhor que nos levaria ao afloramento de argila. Desse ponto, seguiu-se pelo ‘caminho do rio’, pois era época de estiagem. Seguimos pelo leito do rio por alguns metros, sendo este um percurso que parecia aberto e possível de transitar em linha reta, porém o senhor nos indicou a necessidade de desviarmos para a esquerda e começarmos a subir o barranco, a fim de seguirmos por um trajeto que parecia paralelo ao que estávamos caminhando. Como referência, indicou-nos a presença de uma ‘grande árvore’, a qual delimitava o quintal que fora da casa de sua mãe, e disse que fazia esse caminho desde pequeno, a pedido da mãe (partindo, portanto, dessa casa, e não de sua residência atual). Este primeiro trecho era referente a uma área de menor altitude, onde estão localizadas as casas residenciais dos pastores. É uma zona com presença de árvores, de arbustos e de pastagens verdes no período de verão, como evidencia a Figura 4.

AS PAISAGENS PASTORIS: CONTEXTUALIZANDO O MOVIMENTO Definido o pastoreio na serra do Cajón, é possível ampliar a compreensão sobre os elementos que constituem essa paisagem. Tomando como ponto de partida os dados apresentados sobre a atividade pastoril, a seguir, faz-se a descrição de uma atividade de campo, na qual se evidencia como um pastor significa e identifica o meio físico à sua volta, transformando-o em uma paisagem apreendida. Assim, durante uma temporada de campo, no ano de 2013, surgiu a oportunidade de acompanhar uma expedição até um afloramento de argila. Os locais onde há argila considerada boa para se produzir cerâmica estavam localizados no alto das serras. O lugar que seria visitado estava, especificamente, localizado ao longo de um caminho de pastoreio muito utilizado há várias gerações, o qual consistia em uma rota bastante comum para alcançar os caminhos de altura, segundo me informou o senhor que conhecia bem o local. Este caminho era acessado por meio de vários outros, que provinham das diferentes direções, porém, no nosso caso, o acesso seria feito por intermédio de uma propriedade de um vizinho, atravessando o rio. Ao longo do caminho, encontravam-se locais de pastagens de verão (mais próximas ao rio), além de outras mais altas, aonde eram levados os animais quando a água do rio cessava em quantidade, conforme me

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Figura 2. Imagem feita por meio do site Google Earth, ilustrando o mapa de El Carmen, Tucumán, Argentina, com alguns caminhos destacados, que são aproximações. Mapa elaborado por Milena Acha (2017).

Figura 3. Imagem feita por meio do site Google Earth, ilustrando o mapa de El Carmen, Tucumán, Argentina, com os pontos do caminho destacados: o ponto vermelho indica a casa do pastor (‘saída’) e o de cor amarela, o afloramento de argila (‘destino’). Mapa elaborado por Milena Acha (2017).

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Logo, seguiu-se por entre algumas ‘casas’, para acessar um ‘caminho aberto e limpo’, simples de transitar. Por ele, estivemos durante alguns minutos, enquanto o senhor nos guiava, mostrando os indicadores, que, neste ponto, era avistar ao longe a ‘casa’ de um vizinho. Outros indicadores foram uma série de extensos muros de pedras, formando grande círculos – definidos por ele como ‘currais antigos’, feitos para manter uma quantidade grande de animais (Figura 5) – e alguns currais atuais, à esquerda, em tamanho menor. Ambos eram feitos de pirca (pedra sobre pedra), sendo que os currais atuais apresentavam uma porteira feita em madeira de cardón (Figura 6). Conforme se seguia a rota, enquanto eram apontados os marcadores do caminho, este senhor também indicava, à direita, a altura do local onde deveríamos chegar. Seguimos pelo ‘caminho aberto e limpo’ até alcançar novamente o rio, em um ponto mais à frente em relação ao que o havíamos deixado. Nas margens do rio, viam-se ‘pequenos diques’ em vários lugares4. Nesse momento, o senhor aconselhou a descer ao ‘rio’ novamente, pois à frente havia uma formação mais alta, que dificultava a passagem. Esta vista está indicada na Figura 7.

Caminhamos poucos metros pelo rio, ‘atravessando-o’, e chegamos a uma ‘porteira de madeira’, apenas amarrada com uma corda, o que permitiu a sua abertura. Ao atravessar esta porteira, acessamos um campo com vários arbustos, indicados pelo senhor como plantas de que os animais podem se alimentar, pois ficariam ali perto do rio nos períodos mais férteis. Passada a porteira, seguimos por outro ‘caminho limpo e bem demarcado’ (Figura 8).

Figura 4. Vista da zona na qual o trajeto foi iniciado, local onde há as residências dos pastores. Foto: Milena Acha (2013).

Figura 6. Porteira de um curral atual, localizado próximo aos grandes currais. Foto: Milena Acha (2013).

Figura 5. Extensos muros constituindo uma forma elíptica, localizados em uma área próxima às residências dos pastores. Foto: Milena Acha (2013).

Eram diques utilizados para reter a água nos momentos em que o rio não está caudaloso. Esta água é utilizada para regar plantios, para uso dos animais e para limpar os chiqueiros.

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Figura 7. Vista da descida ao rio. É possível visualizar a formação alta e a casa de um pastor à distância. Foto: Milena Acha (2013).

Durante este percurso, era possível notar a presença de estrume de animais no solo. Conforme avançamos, o ‘caminho tornou-se um pouco mais íngreme’, indicando que estávamos subindo a serra. Depois de certa altura, o ‘solo começou a ficar rochoso e a vegetação diferente’. Após alguns minutos por esse caminho mais pedregoso, paramos em um lugar de descanso, indicado por uma ‘formação de pedras’ em um espaço pequeno sem vegetação, só com terra. Esta parada, representada pela Figura 9, segundo o senhor, é possível apenas para os humanos – é um espaço reduzido, cabendo poucas pessoas, e nele os animais não param. A formação de pedra apresenta vários desgastes. Para este pastor, essas marcas indicam que outras pessoas sentaram e sentam-se ali constantemente. A partir dessa formação rochosa, a subida torna-se ainda mais íngreme, uma vez que o ‘terreno começa a ficar mais pedregoso e com rochas soltas’. Em alguns momentos, as rochas do solo foram posicionadas de forma a constituir ‘degraus’ para facilitar a subida, como é possível observar na Figura 10. Depois de alguns minutos de subida, fica perceptível que a vegetação muda abruptamente; as gramíneas com espinhos dão lugar a uma ‘formação de arbusto’; logo, abre-se um espaço plano na encosta da montanha, formando uma espécie de ‘clareira’, na qual é possível observar uma espécie de

Figura 8. Imagem que demostra o que é considerado um ‘caminho limpo e bem demarcado’, com espaço para o trânsito e solo assentado com rochas. Foto: Milena Acha (2013).

Figura 9. Vista da parada descrita, indicada pela área sem vegetação, e o caminho seguindo na subida da serra. Foto: Milena Acha (2013).

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construção de andaime de contenção nas bordas, no chão. O estrume e a areia solta e sem pedras expõem as marcas de animais, que passaram com constância. Em uma das partes, crescem plantas comestíveis para os animais (que não são comuns a essa altura nas montanhas). Também afloram grandes pedras que servem como parede, parapeito e resguardo. É um local seguro para se sentar, de onde se avista o caminho do rio e as subidas das serras, logo à frente. Do outro lado do rio, vê-se uma pequena casa de campo e um curral. A partir deste segundo ‘local de parada’ (Figura 11), para humanos e animais desta vez, segue-se um trajeto curto que leva até grandes rochas brancas, destacadas na vegetação. Esse local é o indicado pelo senhor que nos guiava como sendo o afloramento onde há argila.

Na subida, existem várias rochas brancas e grandes, parecidas com as que nos informaram ser o local onde havia argila, porém não são as indicadas. A diferença na formação e na composição de rochas, de solo e de vegetação é percebida por estas pessoas, pois, ao se realizar tantas vezes um mesmo trajeto, os elementos nele contido começam a ser percebidos nas suas várias características, criando familiaridade e, consequentemente, distinção. O local para a retirada da argila não está claramente evidente para olhos não treinados, pois está em uma encosta íngreme da serra, em uma zona bem alta, como é possível observar na Figura 12.

Figura 11. Local de parada já em uma zona alta das serras. As rochas são posicionadas formando ‘andaimes’, permitindo uma área aberta. Foto: Milena Acha (2013).

Figura 10. Rochas posicionadas intencionalmente para facilitar a locomoção pela área de serras, formando espécies de degraus. Foto: Milena Acha (2013).

Figura 12. Local da retirada de argila no alto da serra. Foto: Milena Acha (2013).

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Por sua vez, os caminhos também passam a ser reconhecidos na sua totalidade, sendo perceptível ao caminhante assíduo o que o constitui verdadeiramente e o que está fora do perímetro dele. Apesar de o trajeto não parecer linear – pois, enquanto se caminhava, a impressão era a de se estar dando mais voltas do que o necessário –, na Figura 13 é possível observar o mapa com os pontos plotados e o trajeto segundo outra perspectiva, na qual se percebe que o caminho é relativamente direto. Foram feitos somente marcadores de paisagem importantes para se seguir uma linha em direção ao destino, porém não se fez desvios ou trajetos mais longos, como é possível observar na Figura 4, onde o trajeto está destacado entre os pontos de saída e de chegada. Aos olhos de quem desconhecia aquela dinâmica, parecia um passeio por vários lugares; aos olhos daquele que definitivamente conhece a paisagem, os indicadores são claros. Inclusive, estes indicadores do caminho e do trajeto eram acionados pela própria história pessoal daquele pastor. Ao se chegar à primeira casa, o interlocutor

contou sobre o tempo que habitou ali, quando criança; contou sobre como a mãe lhe pedia para ir buscar argila, para produzir panelas. Desta forma, todo o trajeto tinha início naquela casa e também naquela lembrança. Ir buscar argila para a mãe e seguir os caminhos de pastoreio com os outros pastores mais velhos eram os eventos que ensinaram este pastor a se movimentar e a identificar os caminhos. Da mesma forma afetiva e funcional que ele havia aprendido, agora passava o conhecimento. Assim, as paisagens representam um valor prático, com caminhos e locais, e um valor simbólico, a partir de histórias, sensações e lembranças. Os caminhos não são simples trajetos marcados nas serras, mas sim repositórios de eventos e percepções, sendo que as duas representações são complementares e somente existem juntas. A paisagem aqui incorpora a mobilidade pastoril às histórias de vida desses pastores, que vão se repetindo, se transformando e persistindo, criando uma paisagem de um emaranhado de caminhos vivos. Portanto, as paisagens que este pastor descreve são, indiscutivelmente, paisagens do movimento pastoril.

Figura 13. Imagem feita por meio do site Google Earth, ilustrando o mapa de El Carmen, Tucumán, Argentina, evidenciando o caminho feito até o afloramento de argila. Mapa elaborado por Milena Acha (2017).

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Quanto aos caminhos, eles são de extrema importância na vida pastoril, sendo um acumulado de ações, de histórias e de símbolos que os fazem possíveis. Apenas quem realmente identifica os símbolos que demarcam a paisagem consegue perceber a maioria dos trajetos. Desta forma, é possível afirmar que o movimento implica lugares e trajetos, permitindo perceber e reconhecer a paisagem, pois a lembrança de jornadas aciona uma série de informações psíquicas e materiais. Cada elemento da paisagem – seja uma pedra, o pico de uma montanha, a cerca de um vizinho, entre outros – não é classificado isoladamente, funcionando como gatilhos para histórias narradas. Assim, aqueles que as ouvem e as vivem desenvolvem um conhecimento ao longo dos caminhos andados e das jornadas contadas. O movimento, por si só, é uma forma de conhecimento. Digo isto, pois pouco antes de ter feito esse trajeto junto ao senhor que nos guiava, fiz uma tentativa de alcançar o afloramento de argila apenas com as indicações que me foram passadas verbalmente. Esta tentativa foi frustrada, pois, apesar de parecerem muito claros os lugares e os caminhos, aos meus olhos eram quase imperceptíveis. O conhecimento das pessoas sobre a paisagem vem das histórias que se contam sobre ela, juntamente ao movimento através dela. Conhece-se a paisagem por experiências objetivas, pois ela depende do movimento ativo. Este movimento deixa traços na paisagem, é um processo de apreensão e de manipulação (limpeza de terreno, construções, o ato de caminhar e de descansar etc.). A paisagem é definida e categorizada: há lugares que são acessíveis e outros que não são. Sendo assim, o percurso foi seguindo uma série de informações paisagísticas que faziam sentido para o nosso guia. Durante o trajeto, foram utilizadas informações como: cruzar ou avistar casas conhecidas (casa da mãe do pastor, da filha, de vizinhos); seguir e/ou atravessar o curso do rio (mesmo quando está seco); ir por caminhos abertos e/ou limpos de vegetação ou fechados; ver caminhos reconhecidos pela dificuldade ou não do

trânsito; passar por porteiras, currais (em uso ou desuso); reconhecer tipos de vegetação; reconhecer tipos de terrenos e de afloramentos rochosos etc. Durante todo o percurso, ia-se contando e indicando casas, os caminhos e os currais, fazendo referência a quem pertenciam e a como chegar a cada um. O caminho para este senhor fazia parte da sua história de vida. Cada elemento presente na paisagem era um marco que integrava a sua história à história de vida do pastor. Desta forma, a paisagem constitui-se na relação entre as duas capacidades do habitus, a de produzir e a de diferenciar práticas que implicam a apreensão e a naturalização do espaço. Por isso que as diversas percepções de mundo levam à criação de componentes diferentes na paisagem, fazendo com que o trajeto fosse simples quando feito com quem o conhecia e difícil de ser seguido sem o conhecimento dos símbolos. Portanto, existe uma identidade envolvendo a construção de lugares, que, neste caso, está associada à atividade pastoril. O trajeto e o lugar são plausíveis de definição porque a sua representação existe na memória das pessoas, a qual pode ser acionada a qualquer momento, tanto quando se está fazendo o percurso como quando se está lembrando de como fazê-lo. Esta noção está relacionada à construção significativa de um local, que implica um pensamento e a ação que acessam diversas escalas: paisagem, territórios, comunicação, construções individuais, corpos etc. Assim, no processo de movimento, reconhece-se e retoma-se na memória o conhecimento; observa-se e apreende-se o entorno; e os trajetos e o conhecimento são descritos aos outros. Para isso, descreve-se a aparência de certos indicadores e os dados de proximidade e de distância que se conhecem (tipos de rochas, tipos de caminhos, tempo de caminhada, vegetação etc.). Descrever as rotas implica a internalização da paisagem à volta, pois, no cotidiano, mapas cognitivos começam a ser formados por intermédio da repetição, codificando o meio de forma inteligível. A partir dos sistemas

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cognitivos, percebe-se o que se deve ver, expondo-se o conhecimento espacial, através de códigos inteligíveis culturalmente. Assim, é através do caminhar e da repetição que caminhos e lugares passam a integrar a tradição das pessoas, principalmente porque estes pastores do vale de Santa María perpetuam a sua paisagem pautada no movimento de vida pastoril.

campo; à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro, que fomentou este trabalho; e aos pesquisadores do Proyecto Arqueológico Sierra del Cajón.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A discussão que permeia a paisagem vem se desenvolvendo intensamente nas últimas décadas, considerando cada vez mais a fluidez e a dinâmica com que as populações apreendem e significam o meio à volta. No caso dos pastores, a paisagem parte de classificações do seu cotidiano, onde integram testemunhos de um sistema pastoril a memórias de vida do pastor. Como vimos no trajeto descrito, o objetivo de se fazer o caminho era o de alcançar o afloramento de argila, porém todo caminho era marcado e reconhecido a partir de paisagem pastoril. Os caminhos andados e os locais de parada representavam o ritmo do pastor junto ao seu rebanho, e os marcadores da paisagem eram registros materiais da atividade pastoril nesses caminhos e lugares, visíveis nos currais que aparecem ao longo do trajeto, na vegetação e nos indícios da passagem dos animais. Neste caso descrito, todo o processo de apreensão da paisagem está ligado à mobilidade pastoril, sendo que os caminhos e os lugares são utilizados para levar os animais aos locais onde há os recursos necessários nas diferentes temporadas de um ciclo anual e, assim, criam familiaridade das pessoas com o meio. Deste modo, transformam uma área de recursos em lugares com significados, a partir de histórias de vida e dos registros materiais da mobilidade pastoril, estabelecendo uma relação de identidade do pastor com aquela paisagem.

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A cosmografia Munduruku em movimento: saúde, território e estratégias de sobrevivência na Amazônia brasileira Munduruku cosmography in movement: health, territory and survival strategies in the Brazilian Amazon Daniel ScopelI, Raquel Dias-ScopelII, Esther Jean LangdonIII I

Instituto Leônidas e Maria Deane/Fundação Oswaldo Cruz. Manaus, Amazonas, Brasil II III

Fiocruz. Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil

Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

Resumo: Neste artigo, examina-se a perspectiva do povo Munduruku sobre o meio ambiente, bem como a relação do conhecimento e da práxis deste povo em relação à prevenção e à resolução de problemas de saúde. A ocupação do território, o uso de recursos disponíveis e a vida social implicam efeitos sobre os corpos Munduruku, na medida em que a manutenção dos laços sociais e a proteção do ambiente são consideradas por eles como condições necessárias para a reprodução da coletividade. A partir de uma perspectiva particular aos Munduruku sobre como funciona o cosmo e sobre a eficácia das práticas de autoatenção, necessárias à reprodução biossocial individual e coletiva, evidencia-se, neste artigo, a relação intrínseca entre ambiente e saúde, evocando a articulação entre as dimensões pragmáticas, sociais, ontológicas e políticas das estratégias de sobrevivência coletiva e de manutenção do território, desenvolvidas pelos Munduruku frente aos desafios, às lutas e às ameaças emergentes das situações cosmopolíticas e interétnicas. Por fim, argumenta-se que a política brasileira sobre os povos indígenas é contraditória, pois, por um lado, investe grandes recursos na assistência à saúde e, por outro, ignora os conhecimentos tradicionais sobre saúde e ambiente, de modo que a política de desenvolvimento econômico atua contra as necessidades plenas de bem-estar. Palavras-chave: Xamanismo. Ambiente. Etnicidade. Índios Munduruku. Saúde indígena. Alteridade. Abstract: This article examines the Munduruku people’s perspective on the environment, along with the relation between their knowledge and customs and their use of preventive medicine and therapeutic practices. Territorial occupation, exploitation of available resources, and social life affect Munduruku bodies to the extent that maintaining social relations and protecting the environment are considered necessary for the group to multiply. This article demonstrates the intrinsic relationship between environment and health by presenting the Munduruku perspective on how the cosmos functions and the efficacy of self-attention practices, which are necessary for individual and collective biosocial reproduction. The connection between pragmatic, social, ontological, and political dimensions of strategies which the Munduruku have developed for their group to survive and maintain its territory in the face of the challenges, struggles and threats that emerge from cosmo-political and inter-ethnic situations is also explored. Finally, Brazilian indigenous policy is shown to be contradictory: while it invests considerable resources in health assistance, it simultaneously ignores traditional knowledge of health and environment in such a way that economic development policy undermines the conditions necessary for well-being. Keywords: Shamanism. Environment. Ethnicity. Munduruku Indians. Indigenous health. Alterity.

SCOPEL, Daniel; DIAS-SCOPEL, Raquel; LANGDON, Esther Jean. A cosmografia Munduruku em movimento: saúde, território e estratégias de sobrevivência na Amazônia brasileira. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 13, n. 1, p. 89-108, jan.-abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222018000100005. Autor para correspondência: Daniel Scopel. Instituto Leônidas e Maria Deane/Fundação Oswaldo Cruz. Rua Terezina, 476 – Adrianópolis. Manaus, AM, Brasil. CEP 69057-070 (daniel.amazonia@gmail.com). ORCID http://orcid.org/0000-0001-7074-5241. Recebido em 21/02/2017 Aprovado em 20/07/2017

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INTRODUÇÃO A Constituição brasileira garante aos índios o direito a organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e terras tradicionalmente ocupadas (Brasil, 1988). Entretanto, as relações entre o Estado brasileiro e os povos indígenas, em alguns setores, ainda permanecem marcadas por ações que violam os direitos humanos, depõem contra a vida de indivíduos e ignoram os valores, a organização política e a cosmologia desses povos. De forma geral, a história mostra-nos que as ações do Estado se impõem com pouco ou nenhum espaço para o diálogo que vise a um consentimento ou acordo entre as partes envolvidas, de modo a ignorar os protocolos indígenas que orientam as relações com os não indígenas e os demais seres que habitam o cosmo indígena. Ainda existem obstáculos no setor das políticas públicas de saúde voltadas aos povos indígenas no Brasil, propostas desde a década de 1990, apesar de serem percebidos avanços na diretriz da atenção diferenciada e da incorporação de indígenas nas etapas de proposição, execução e avaliação dos serviços (Diehl; Langdon, 2015). Embora o Estado reconheça que esses povos produzem e manejam saberes relativos à saúde e à doença, os quais articulam dimensões socioculturais e geográficas consideradas importantes no enfrentamento das enfermidades cotidianas, na prática, a sua política reproduz uma concepção de mundo subdividido em áreas de saber, a ponto de intervenções sobre o território indígena ignorarem sistematicamente as repercussões sobre o fator saúde (Grisotti, 2016). A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) recomenda respeitar e articular com “[...] concepções, valores e práticas relativos aos processos saúde-doença próprios de cada sociedade indígena e a seus diversos especialistas” (Brasil, 2002, p. 17-18), como meio de alcançar a melhoria das condições de saúde desses povos. No entanto, essa narrativa do respeito e da articulação entre os conhecimentos indígenas e as políticas públicas não escapa das amarras da administração burocrática.

No Brasil e no Canadá, por exemplo, ela não rompe com o desequilíbrio estrutural entre os saberes indígenas e o saber ocidental científico (Clapperton, 2016; Blaser, 2016; Langdon, 2013). Ao contrário, reproduzem uma hierarquia entre os saberes ocidentais e os saberes indígenas, perpetuando uma assimetria entre os conhecimentos científico e tradicional indígena. No Brasil, diversos estudos etnográficos apontam que a atenção primária ofertada no interior das aldeias segue o paradigma biomédico centrado na noção de indivíduo e de corpo, fundamentada a partir das abordagens jurídica e biológica ocidentais, e que tal serviço ignora os conhecimentos e o protagonismo dos indígenas na procura por manter a saúde (Langdon et al., 2014; Garnelo, 2003; Ghiggi Junior, 2015; Cardoso, 2015; Scopel et al., 2015). Entre as diversas consequências da atenção primária centrada na prática biomédica, cabe pontuar o reducionismo da noção de saúde, de doença e de corpo, que acaba por dificultar ações intersetoriais do Estado, tendo como meta a melhoria da qualidade de vida e o bem-estar das populações indígenas no Brasil. Esse reducionismo científico e biomédico impacta também nas ações governamentais, as quais afetam, direta ou indiretamente, as terras indígenas em outros setores, como o caso de demarcações territoriais, construções de hidrelétricas, barragens ou exploração de minérios, assim como em relação ao desenvolvimento de cidades, indústrias e agricultura intensiva em locais próximos às populações indígenas. Nesses casos, os estudos para detectar previamente ou avaliar posteriormente os impactos sobre a saúde das populações atingidas recebem “[...] pouca atenção [...]” nas avaliações dos impactos sociais e ambientais (Grisotti, 2016, p. 292). Sugere-se que a saúde permanece como um fator ignorado, como argumentaram Langdon e Rojas (1991), caracterizando-se como um setor deficitário e desarticulado, e que isso resulta, em parte, de uma noção restrita de saúde e de doença, a qual apresenta grandes diferenças quanto às noções indígenas.

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Neste artigo, apoiados em experiência etnográfica e em análise da bibliografia, os autores pontuam que as noções de saúde e de território encontram-se imbricadas para os Munduruku, e que a integridade de ambas implica protocolos de aproximação e de afastamentos que repercutem sobre a promoção e a manutenção de estratégias de sobrevivência e de reprodução individual e coletiva. Inicialmente, partindo da experiência etnográfica dos autores1, apresenta-se um modelo da cosmografia Munduruku e das práticas de autoatenção manejadas diariamente no esforço de manter a saúde individual e coletiva. Como estratégias coletivas de reprodução biossocial, sugere-se que tais práticas possam conformar elementos de etnicidade Munduruku, manejadas de forma a manter a continuidade social, cultural e territorial, desde um ponto de vista próprio às noções indígenas de autodeterminação e bem-estar. Apoiando-se na bibliografia2 que retrata mais de dois séculos de interação entre os Munduruku e os pariwat, um termo Munduruku com designação correspondente a inimigo, atribuído aos ‘brancos’ colonizadores e invasores do território, o artigo busca relacionar eventos e contextos marcados por epidemias e violência interétnica às estratégias de sobrevivência, às práticas de cura, de prevenção de doenças, de fabricação dos corpos e de produção de pessoas. A frequência e a intensidade de violências e de epidemias vivenciadas pelos

Munduruku caracterizam a interação entre os índios e os pariwat durante o século XX, corroborando a percepção indígena de perigo como condição característica desta interação. Sob essa ótica, observa-se a emergência do paradigma biomédico na atenção básica oferecida nas aldeias e o incremento da violência física e simbólica alavancada pelo Estado nacional na construção de barragens na Amazônia como elementos que configuram a continuidade de um processo histórico de confrontos e disputas. Investigando a forma como ocorreu o processo de territorialização vivenciado pelos Munduruku, argumenta-se que a política brasileira sobre os povos indígenas é contraditória. Por um lado, são investidos grandes recursos na assistência à saúde, por outro são ignorados os conhecimentos tradicionais sobre saúde e ambiente, de modo que a política de desenvolvimento econômico deponha contra as necessidades plenas de bem-estar.

OS MUNDURUKU E AS SUAS ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA O povo Munduruku, na atualidade, habita dez terras indígenas, situadas nos estados do Pará, do Mato Grosso e do Amazonas, no Brasil. Cada uma dessas terras abriga uma parcela dos Munduruku em situação sociocultural específica, devido a particularidades locais, que vão desde diferenças ambientais à memória e à experiência de

A pesquisa etnográfica foi realizada na Terra Indígena (TI) Kwatá-Laranjal entre os anos de 2009 a 2011, totalizando cerca de oito meses de trabalho de campo. A maior parte da pesquisa de campo foi conduzida na aldeia Kwatá, localizada no rio Canunã (Borba, Amazonas), a mais populosa deste rio, com cerca de 600 habitantes. Nela, apenas os mais velhos são bilíngues, sendo que no cotidiano se fala português. A pesquisa também sistematizou informações sobre eventos relevantes ocorridos em terras indígenas Munduruku, no estado do Pará, entre 2011 e 2016, a partir de participação em redes sociais e pesquisa em blogs e sites. 2 Não se pretende fazer uma revisão stricto sensu da bibliografia sobre os Munduruku. De fato, trata-se de um recorte antropológico de relatos encontrados em documentos históricos e em sínteses acadêmicas, organizados a partir da experiência etnográfica. Ao privilegiar um viés etnográfico, objetiva-se a compreensão através do que Ricoeur (1986 apud Cardoso de Oliveira, 1995) chamou de excedente de sentido, um conceito retomado por Cardoso de Oliveira (1995), ao refletir sobre a especificidade do trabalho antropológico: “Não é difícil para nós apreender, mesmo intuitivamente, o que significa esse excesso de sentido, desde que consideremos que tudo aquilo possuidor de alguma significação que seja irredutível a métodos pode ser de alguma maneira recuperado pela via da compreensão. Aliás, é por aí que nos reencontramos com a distinção gadameriana entre verdade e método, segundo a qual toda a verdade (ou simplesmente a veracidade) não se alcança pelo caminho exclusivo do método. Esse algo mais que lhe escapa não só pode, mas deve ser alcançado pela via da compreensão” (Cardoso de Oliveira, 1995, p. 225, grifos do autor). Neste artigo, valorizam-se os dados etnográficos de abrangência diacrônica, com ênfase na bibliografia, para situar o leitor no processo macro-histórico de construção e de manutenção do território e nas estratégias de sobrevivência desenvolvidas desde o contato com os colonizadores. Em outro artigo, os autores analisam dados etnográficos obtidos através da convivência cotidiana no âmbito doméstico (Dias-Scopel et al., 2017). 1

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processos históricos próprios3. Mesmo assim, é preciso destacar que os Munduruku identificam-se como um mesmo povo, originário de afluentes do alto Tapajós, cujo vasto território4 abrange quase a totalidade da área da bacia do rio Tapajós até o rio Madeira. Através da etnografia das práticas de autoatenção, observou-se que os Munduruku mantêm um conjunto de saberes cosmográficos imprescindíveis à reprodução da coletividade. De acordo com Menéndez, E. (2005), a noção de autoatenção não deve ser confundida com a de autocuidado, herdeira do paradigma biomédico e centrada na ideia de indivíduo. Ao contrário, a noção de autoatenção remete às ações que ocorrem no âmbito familiar, envolvem uma coletividade e são marcadas pela agência dos atores de modo relativamente autônomo aos especialistas. Essa noção não se restringe às práticas manejadas no contexto de eventos agudos ou crônicos de doença, mas abrange um conjunto de saberes e de práticas articulado de modo preventivo (Menéndez, E., 2005). Segundo Menéndez, E. (2009, p. 48), o conceito de autoatenção, stricto sensu, abrange as “[...] representações e práticas que a população utiliza tanto individual quanto socialmente para diagnosticar, explicar, atender, controlar, aliviar, suportar, curar, solucionar ou prevenir os processos que afetam sua saúde [...]”. Como esclarece Menéndez, E. (2009, p. 48), a autoatenção, lato sensu, pode ser definida abrangendo todas as atividades necessárias à “[...] reprodução biossocial dos sujeitos [...] que são utilizadas a partir de objetivos e normas estabelecidos pela própria cultura do grupo”.

Neste artigo, parte-se da noção de autoatenção em sentido lato para sublinhar que os Munduruku desenvolveram um conjunto de saberes que impactam diretamente sobre a reprodução biossocial dos indivíduos e a coletividade, de modo que tal reprodução pode ser entendida como resultado de estratégias adaptativas de sobrevivência coletiva 5. Os dados de campo permitem afirmar que, entre os Munduruku, predomina uma perspectiva xamânica do cosmo, segundo a qual a reprodução biossocial Munduruku está constantemente ameaçada. De acordo com esta perspectiva, o cosmo está prenhe de seres e agências considerados perigosos ou letais. Possuidores de ethos ativo, guerreiro e destemido, os Munduruku consideram que é preciso agir frente à diversidade de seres do cosmo, assim como sobre os corpos e sobre o ambiente, de modo a garantir o bem-estar coletivo. Entre um conjunto diversificado de práticas de autoatenção, tais como rituais de cura, de iniciação xamânica, de puberdade, fúnebres, de resguardo na menstruação e no puerpério, dietas, massagens, chás, banhos, cuidados com a potabilidade da água consumida, enfim, todo um conjunto extenso de atividades que incluem até a apropriação e a particularização de práticas, de recursos e de saberes biomédicos (Scopel et al., 2012), interessa destacar que também a ocupação do território, o uso de recursos disponíveis e a vida social implicam efeitos sobre a qualidade da relação com os demais seres, assim como sobre os corpos Munduruku. O respeito aos espaços e aos lugares dominados pelos seres cosmológicos, a manutenção dos laços sociais e a

Dados do Instituto Socioambiental (2017) registram que a TI Mundurucu, no Pará, tem 6.518 habitantes; a TI Kwatá-Laranjal, no Amazonas, apresenta 2.484; a TI Sai Cinza, no Pará, tem 1.739; as demais, juntas, somam 3.352 habitantes. 4 Trata-se do território étnico, e não daquele que é fruto da imposição do Estado nacional. Segundo Bartolomé (2010, p. 18), o “[…] territorio étnico posee así una geografía mítica que lo define y lo significa, exhibiéndolo como el ámbito sacrificial de una cultura. Dentro de estas relaciones de intercambio, el territorio otorga una especular definición y significación a sus habitantes, quienes se reflejan en el mismo espejo que su tradición simbólica ha construido”. 5 Sobrevivência no sentido de perdurar, semelhante ao que Portela Guarin (2003) descreve sobre as comunidades guambianas, paeces, coconucos e yanaconas do sudoeste da Colômbia, visto que as estratégias de sobrevivência Munduruku focalizam a continuidade coletiva, e não apenas a manutenção da vida biológica individual. Segundo Portela Guarin (2003, p. 63), “[…] perdurar es equilibrio, armonía y bienestar y en su búsqueda es necesario poner en práctica, en la cotidianidad, la ética comunitaria (normatividade cultural) que guía la conducta individual, social y de relación con el entorno como sistema global de pensamiento, producto del ejercicio de aprehensión y significación que se hace del cosmos para entenderlo, explicarlo y proyectarlo en las formas de relación intercultural”. 3

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ou que vagueiam pelo ar. Segundo esta perspectiva, a dinâmica entre os seres oculta aparências e formas corporais, e há sempre um potencial perigo escondido: uma planta pode transformar-se em homem, um feiticeiro em onça, um boto em humano sedutor etc. Todos os seres têm intencionalidade e são capazes de vingança. Para viver nesse cosmo, os Munduruku desenvolveram estratégias para se relacionarem com aqueles seres que representam graus diversos de alteridade (seja próxima ou radicalmente diferente). Embora algumas agências sejam inteiramente malignas e letais, e requeiram o completo afastamento, muitas outras, ainda que perigosas, podem ser domesticadas ou pacificadas, permitindo a estratégia de aproximação e de estabelecimento de ‘parcerias’6. Em sentido amplo, a etnografia das práticas de autoatenção Munduruku permite dar evidência às dinâmicas desse cosmo pleno de agências. Na vida cotidiana, homens, mulheres, crianças e idosos, todos procuram evitar perigos advindos das relações com a alteridade através de práticas intencionalmente realizadas com o fim de prevenir doenças e infortúnios causados por seres maus e violentos ou criar condições harmônicas de vida social, promovendo, assim, um ideal próprio do que seja a saúde dos indivíduos e da coletividade7. Os saberes de autoatenção Munduruku abrangem modos de ser e agir visando evitar danos, doenças e morte, e também criar e manter laços sociais entre parentes, amigos e vizinhos através das muitas formas e circuitos de reciprocidade e de ajuda mútua (Dias-Scopel, 2015; Scopel, 2013; Scopel et al., 2012). Assim, o conjunto de atividades de autoatenção não se restringe à terapia, em casos de doença, mas compreende também a promoção da saúde, da qualidade de vida e da reprodução coletiva, segundo a perspectiva dos Munduruku.

proteção desse território contra invasores não indígenas são considerados, pelos próprios Munduruku, como condições necessárias para a reprodução da coletividade. Em síntese, ao considerar o sentido lato das práticas de autoatenção, vistas como estratégias coletivas de sobrevivência, observa-se que esse conjunto de atividades se caracteriza como um saber cosmográfico que relaciona a saúde, o ambiente e o corpo. Por cosmografia, no sentido dado a este conceito por Little (2001), compreende-se o conjunto de saberes que um grupo étnico ou uma coletividade desenvolve para se estabelecer e se manter em seu território. Trata-se de conhecimento pautado na experiência coletiva, em relações simbólicas e afetivas que um grupo étnico estabelece para com um ambiente específico. Por meio das atividades de autoatenção, os Munduruku evocam a experiência e a memória social das lutas pela manutenção do território, a construção de identidades e os sentimentos de pertencimento étnico, as práticas xamânicas, os rituais de cura, as massagens, o uso de ervas medicinais ingeridas ou utilizadas em banhos, assim como o uso de remédios populares e, mais recentemente, de medicamentos alopáticos. Todas essas práticas são vistas como necessárias para lidar com doenças – ou preveni-las – e, mais ainda, como necessárias à manutenção da qualidade de vida coletiva, “[...] um processo estrutural, constante embora em contínuo processo de modificação” (Menéndez, E., 2009, p. 51). A pesquisa de campo revelou que a perspectiva xamânica Munduruku sustenta-se sobre a constante interação entre as diversas agências cosmológicas, tanto humanas quanto de objetos, plantas, animais, espíritos e outros seres não humanos que habitam espaços da aldeia, da floresta, dos mundos subaquático e subterrâneo

Essas ‘parcerias’ abrangem as práticas de parentesco, compadrio, residência e consubstancialidade, assim como de trocas de serviços, bens e favores em diferentes graus e intensidades (Dias-Scopel, 2015; Scopel, 2013; Scopel et al., 2012). 7 “Dado que os padecimentos constituem fatos cotidianos e recorrentes, e que uma parte deles pode aparecer para os sujeitos e grupos sociais como ameaças permanentes ou circunstanciais nos planos real e/ou imaginário, os conjuntos sociais têm necessidade de construir significados sociais coletivos sobre tais padecimentos para poder explicá-los, solucioná-los ou conviver com eles” (Menéndez, E., 2009, p. 268). 6

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Considerando que a qualidade das relações com a alteridade impacta sobre os corpos Munduruku, as práticas de autoatenção compõem o conjunto de estratégias de sobrevivência coletiva, as quais vão além das terapias, em casos de doença, abrangendo também as atividades cotidianas de prevenção e de profilaxia e, em um sentido mais amplo, as estratégias de atuação política frente à alteridade. As pessoas Munduruku devem seguir uma etiqueta marcada por afastamentos, permissões e interdições, que fazem parte dos modos de agir cotidiano ou de momentos rituais e liminares, práticas que surtem efeito sobre a qualidade de vida Munduruku. Além do respeito às etiquetas sociais, evitando conflitos e retaliações de feiticeiros, é preciso respeitar o poder de agências não humanas. Por exemplo, se um Munduruku vai pescar ou caçar, ele deve ‘pedir licença ao dono/mãe do lugar’, o ser invisível, protetor da floresta e dos animais, caso contrário poderá adoecer gravemente ou mesmo morrer se o ‘dono/mãe’ se sentir ofendido pela invasão de seus domínios. A invasão do pescador/caçador pode ser um motivo para que o ‘dono/ mãe do lugar’ ataque o corpo da pessoa Munduruku com ‘flechas’ invisíveis, que causam doença e morte8. A forma de ocupação e de uso do território e a qualidade da relação com os demais seres do cosmo,

para os Munduruku, implicam constantemente investigar, conhecer e manter um registro de lugares de caça e pesca, sobre quais seres vivem nesses lugares e quais os seus poderes. Esses saberes cosmográficos são evocados na práxis e sistematizados pela memória de casos vivenciados no passado, que possibilitam reconhecer, confirmar ou negar conhecimentos aplicáveis ao presente, lembrando que o infortúnio, a doença e a morte são vistos como o resultado de equívocos, comportamentos inadequados ou de agências maléficas. Em contraste à cosmografia capitalista, que reduz o território à materialidade, a uma paisagem de ‘coisas’, reificada como recurso a ser explorado, o território para os Munduruku é vivenciado de maneira ampliada, tido como um lugar de vida e de personificação, sendo que o ambiente não é experimentado como meramente produtivo, mas literalmente reprodutivo da vida social9. O caso Munduruku, como o de outros povos indígenas, exemplifica a dialética entre as dimensões simbólicas e materiais da vida coletiva, em que ameaças e impactos negativos ao território são absorvidos concretamente como perturbação, perigo, infortúnio, doença e morte, motivando uma série de práticas que buscam evitar, corrigir e anular tais efeitos negativos (Garnelo, 2007;

Segundo Scopel (2013), uma lista não exaustiva dos seres perigosos que habitam o cosmo incluiria: espíritos-mãe que protegem os animais de caça, a roça, os peixes dos abusos cometidos pelos seres humanos; ‘donos(as)’ de lugares específicos, que se confundem com os espíritos-mãe, mas que vivem em lugares específicos e que, por isso, protegem esses lugares e seus coabitantes; Ikẽrẽat, cuja tradução literal é ‘espírito feito’ ou ‘espírito mau’, mais frequentemente chamado de ‘o inimigo’ ou ‘maligno’, também identificado com o diabo cristão, que influencia as pessoas a cometerem atos violentos e acidentes que culminam em morte (assassinatos, suicídios, afogamentos etc.); espíritos dos mortos, especialmente aqueles que morreram de maneira violenta (‘afogado, atirado e enforcado’), sob influência de outro espírito mau, e que buscam também influenciar outras pessoas para levá-las consigo; seres maus, criados por feiticeiros para devorar suas vítimas, os quais assumem a forma de onças; seres malignos chamados Taufú, reconhecidos como feiticeiros que retiram as entranhas das vítimas, enchem-nas com folhas e fazem moquém com seus corpos, processo que as traz de volta para a vida somente para morrer em poucos dias; seres que habitam o mundo subaquático, os ‘bichos do fundo’, em especial ‘os botos malignos’ que vivem em cidades subaquáticas do Encante, os quais podem causar ‘mau olhado de bicho do fundo, assombro’ e mesmo ‘roubar a sombra de suas vítimas’, fazendo com que fiquem ‘doidas’ e morram. Os pariwat também poderiam ser incluídos nessa lista, um termo que significa ‘inimigo’ e que designa os não indígenas. 9 Concorda-se com Bartolomé (2010), segundo o qual esse tipo de relação institui uma economia política singular, pois “[…] esto no supone la reiteración de ningún adocenado discurso ecologista, ni mucho menos la apología del ‘buen salvaje integrado a la naturaleza’, sino la expresión de lógicas culturales cuya economía política no se basa en la destrucción sino en la reproducción de sus medios de subsistencia. Cuando un cazador no mata a una hembra de venado preñada, para no recibir la sanción mítica del Señor de los Animales, está recurriendo a un sistema simbólico normativo que regula la caza y que le posibilitará la reproducción de un recurso crucial. Es decir, que estamos hablando de certo tipo específico de racionalidad económica y no de idealizadas construcciones ideológicas sin referentes materiales” (Bartolomé, 2010, p. 20). 8

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Garnelo et al., 2010; Langdon, 1994; Menéndez, E., 2009; Wiik, 2001; Young, 1976).

mandioca. Segundo Menget (1996), ao mobilizar crânios como símbolos rituais para agradar à mãe da caça, os Munduruku evocavam a noção de que cada animal possuía um espírito protetor capaz de vingança, de causar doenças e de roubar almas, e que o papel do xamã era o de conciliar os humanos e os espíritos protetores dos animais. Em torno da prática guerreira, sedimentava-se complexa ideologia, uma vez que a caça de cabeças mobilizava capital simbólico, produzindo diferenciações de prestígio e poder (Menget, 1993). O guerreiro que capturava a cabeça de um inimigo deveria passar por um ritual que durava até três anos, período no qual assumiria as obrigações e restrições características do puerpério. Ao final do ritual, tomava o status de ‘mãe do pecari’, tornando-se membro do conselho de anciãos, enquanto a cabeça era transformada em um cinturão de dentes (Menget, 1996, p. 137; Murphy, R., 1958, 1960). As expedições guerreiras para a captura de cabeças também visavam aprisionar mulheres e crianças que futuramente se integrariam à sociedade Munduruku, sem que isso lhes causasse estigma ou status inferior. Assim, os raptados passariam a viver do mesmo modo que os próprios Munduruku, ou seja, passavam por uma transformação paulatina. A prática da captura de cabeças instituía um modo não biológico, mas estritamente cultural, de produção e reprodução de pessoas Munduruku (Menget, 1993). Ao mesmo tempo, produzia um sentimento de unidade e uma identidade coletiva para o povo Munduruku, pois, para as expedições, alistavam-se homens e mulheres de várias aldeias, sob o comando centralizado dos caciques (Murphy, R., 1958, 1960). Quando caçavam cabeças, a dinâmica social Munduruku parecia motivada pelas dispendiosas celebrações rituais, período quando as cabeças-troféu eram um símbolochave e cuja complexidade caracterizava toda uma economia

ECONOMIA POLÍTICA E REGIME DE ALTERIDADE DOS CAÇADORES DE CABEÇA Considerando que os saberes cosmográficos são socialmente construídos de geração em geração, faz-se necessário uma leitura – com viés apoiado na experiência etnográfica dos autores – de eventos históricos que poderiam fornecer elementos-chave de interpretação para se compreender as motivações coletivas, as memórias sociais e os acontecimentos mais recentes nas experiências Munduruku com a alteridade. No período colonial, a economia política dos Munduruku estava intensamente ligada à guerra para a captura de troféus feitos com a cabeça dos inimigos – de outros povos indígenas –, as quais eram embalsamadas em um longo ritual. Próprias desse período, as expedições guerreiras levaram os Munduruku a percorrerem grandes distâncias atrás de cabeças, de mulheres e de crianças. Spix e Martius (1976), por exemplo, citam que dois mil Munduruku atravessaram o rio Xingu, por volta do ano de 1780, chegando até o Maranhão, onde guerrearam com os Apinajé. Desde a perspectiva xamânica Munduruku, as expedições guerreiras tinham motivações relacionadas à captura de cabeças dos inimigos, as quais eram embalsamadas e utilizadas em rituais para a ‘mãe da caça’ (putxa xi)10. Consideravam que as cabeças embalsamadas de inimigos tinham o poder de atraí-la. Por sua vez, a proximidade de putxa xi, atraída para perto das aldeias, propiciaria abundância de animais e fartura de caça. Nesses rituais, legitimava-se o papel do xamã, visto como responsável pelo bem-estar de toda a coletividade (Murphy, R., 1958, 1960). Neles, o xamã alinhava crânios de animais, derramando-lhes uma bebida doce à base de

É importante notar que os Munduruku fazem referência a diversas ‘mães’ (da caça, dos peixes, da roça), contemplando a noção de que as forças produtivas da natureza são personificadas em uma ‘linguagem de parentesco’, como mães genitoras e protetoras (Dias-Scopel, 2015; Murphy, Y.; Murphy, R., 2004 [1974]). Sobre as semelhanças com os índios Mura, conferir Amoroso (2013).

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política particular aos Munduruku, permeando toda a sua vida coletiva. É importante, para este artigo, verificar o caráter expressivo e mediador que a captura de cabeças ocupava na relação entre os Munduruku e o espírito da mãe da caça, efetivando o ideal de bem-estar coletivo e de qualidade de vida através do xamanismo. Ao final do século XIX, a caça de cabeças cessou, e com ela as celebrações que dispunham das cabeças cortadas de inimigos como um elemento ritual que marcava o status do guerreiro. Contudo, não cessaram outras práticas diversas relacionadas à atração à mãe da caça, a mediar a relação com o mundo dos espíritos, assim como o regime de alteridade que repousa sobre a representação de um inimigo o qual deve ser incorporado, apesar das violências que caracterizaram o século XX, com o surgimento dos pariwat.

confronto entre a cosmografia Munduruku e a cosmografia colonial, dois modos distintos de uso e delimitação do espaço, sendo que a imposição do processo de territorialização, nesse sentido, apresentou-se como a definição administrativa do território, isto é, sua demarcação para o confinamento dos povos autóctones, conforme argumenta Oliveira Filho (1998). No século XVIII, os Munduruku iniciaram perseguição sistemática aos índios Mura, no baixo Madeira, de tal forma que estes, notoriamente inimigos dos portugueses, buscaram abrigo junto aos colonizadores (Amoroso, 1992; Athila, 1998; Scopel, 2007). A redução voluntária dos Mura surpreendeu os portugueses, porém, o surgimento de caçadores de cabeça nas proximidades da vila de Borba aterrorizou a população de colonos e de índios recém-aldeados. Os trabalhadores negavam-se a incursionar pela floresta, enquanto os administradores locais começavam a solicitar à administração colonial armas e proteção militar. Os portugueses cogitaram a organização de ‘expedições punitivas’ aos Munduruku, mas a inviabilidade da invasão e de ataque em seu próprio reduto, no alto Tapajós, levou o comando militar português a elaborar estratégias para uma aliança. Para iniciar uma aliança, os militares portugueses capturaram dois Munduruku e, ao invés de maus tratos, deram-lhes comida e presentes, além de soltá-los, com a condição de que retornassem com a liderança maior dos Munduruku para celebrar um acordo de paz (Santos, F., 1995)11. Firmada a aliança com os colonizadores, os Munduruku engajaram-se em várias empreitadas coloniais, inclusive ajudando os portugueses a guerrear contra outros povos indígenas, rebeldes à redução em vilas (Menéndez, M., 1992). Pelo menos durante o período colonial, os Munduruku puderam manter notável autonomia política,

A DIMENSÃO TERRITORIAL E O SURGIMENTO DOS PARIWAT Desde o século XVII, a motivação guerreira e o crescimento populacional Munduruku implicaram ocupar um vasto território. A vastidão da Mundurucânia, ou o país dos Munduruku, está registrada em muitos documentos históricos, isto é, o dimensionamento territorial da Mundurucânia remonta à própria origem e ao aparecimento dos Munduruku aos portugueses, ainda no período colonial. Esse território abrange desde a margem direita do rio Madeira, toda a calha do rio Tapajós, entendendo-se até as savanas em direção à serra do Cachimbo (Arnaud, 1974; Ioris, 2005, 2011; Leopoldi, 2007; Menéndez, M., 1992; Murphy, R., 1956, 1958, 1960; Ramos, 2003; Ribeiro, 2002 [1970]; Santos, F., 2002, 1995; Wolf, 1997). Contudo, com a administração colonial, o processo de territorialização imposto pelo Estado caminhou para o secionamento do território original. Teve início, então, o

Esses relatos, registrados em cartas da administração colonial, mostram a estratégia portuguesa de tratar bem os dois prisioneiros, que faz lembrar o modo como, no xamanismo Munduruku, há expectativas de que espíritos e inimigos tentem consubstancializar os cativos, oferecendo comida, presentes e cônjuges. Segundo a cosmologia Munduruku, os espíritos subaquáticos também buscam oferecer comida e presentes aos visitantes humanos, para que eles não retornem à superfície (Scopel, 2013). Cumpre notar que os Munduruku também tratavam bem as mulheres e as crianças capturadas na guerra, com intenção de incorporá-las à sociedade (Murphy, R., 1960).

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ao passo que, paulatinamente, foram se engajando no sistema capitalista, como produtores de farinha e, mais tarde, na extração da borracha, que trocavam por mercadorias pariwat (Murphy, R., 1960; Wolf, 1997). Na medida em que se incrementou a relação entre os Munduruku e os pariwat, segundo Murphy, R. (1960), esses índios acabaram desenvolvendo estilos de vida distintos. Um grupo manteve-se na área de savanas, enquanto o outro se estabeleceu às margens dos rios amazônicos. A adoção de práticas consideradas ‘civilizadas’ foi estimulada pelo governo colonial, por meio das reduções e descimentos, uma política que buscou estabelecer os indígenas em torno de vilas e de missões às margens dos rios (Menéndez, M., 1992). Uma parcela dos Munduruku buscou incrementar as relações de parceria com os pariwat, estando mais flexível à adoção de costumes não indígenas, e a outra, contrariamente, investiu na ortodoxia das práticas consideradas tradicionais, fixando-se nas campinas12. Às margens dos rios amazônicos, a organização social possibilitava uma divisão sexual do trabalho menos rígida, uma vez que os homens trabalhavam em colaboração com as mulheres. Logo, não havia eksás (casa dos homens), nem ritos para os espíritos das flautas, o que, para Murphy, R. (1960), facilitava o incremento das relações comerciais entre os Munduruku e os pariwat.

Wolf (1997), analisando os dados de Murphy, argumenta que os Munduruku das margens dos rios amazônicos estariam motivados a produzir excedentes, inicialmente de farinha e, mais tarde, de látex e de outros produtos13, para efetuar trocas por mercadorias dos pariwat, de modo que isso os engajou nas economias regional e global. A partir da lógica da produção de excedentes para a troca, o padrão de residência tornou-se matrilocal, priorizando a unidade e a continuidade da força de trabalho doméstico feminino, além de incorporar a força masculina no sistema produtivo de excedentes. Wolf (1997) argumenta também que, inseridos em uma economia global, os Munduruku participavam, junto com os regatões, os comerciantes e as empresas exportadoras, de uma rede extensa de produção e de circulação de mercadorias (commodities e bens de consumo)14. Na próxima seção, ver-se-á que a intensificação das relações com os pariwat, contudo, deixará aflorar a dimensão traiçoeira destes, correspondendo ao perigo inerente do contato com a alteridade radical e corroborando o lugar que a alteridade pariwat passará a ocupar na cosmografia Munduruku. Isso permitirá compreender que as estratégias de aproximação e de afastamento são vistas como atividades que objetivam proteger a vida e promover a manutenção e a reprodução individual e coletiva dos Munduruku.

Foram justamente notícias sobre a emergência de dois estilos de vida distintos entre os Munduruku que atraíram o interesse do antropólogo Robert Murphy. Para ele, essa situação seria ideal à pesquisa comparativa que resultou em sua clássica etnografia sobre o tema da mudança cultural (Murphy, R., 1960). Ainda que a análise do autor buscasse dar conta de questões antropológicas formuladas a partir do paradigma culturalista americano de sua época, suas conclusões apontam para uma noção dinâmica da cultura, pioneira na interpretação do papel da alteridade nas sociedades indígenas sul-americanas. Podem-se creditar a Murphy importantes descobertas e refinadas análises sobre o lugar dos ‘inimigos’ na economia simbólica Munduruku e o sentimento de unidade e pertencimento étnico que se fortalece na relação com o outro (Murphy, R., 1957, 1958, 1960, 1961, 1962; Murphy, Y.; Murphy, R., 2004 [1974]). 13 Nas primeiras décadas do século XX, com o declínio da borracha, a castanha foi o principal produto extraído das florestas (Santos, A., 2009). Durante o século XX, os indígenas trabalharam na coleta de óleos e resinas, como de pau-rosa e de copaíba. Atualmente, o açaí tornou-se o principal produto do extrativismo na TI Kwatá Laranjal, cuja produção anual, que chega a dezenas de toneladas, é expressiva. 14 O leitor deve atentar para o fato de que as reflexões sobre os primeiros contatos e o engajamento ao sistema capitalista não justificam imaginar que as sociedades indígenas sejam culturalmente estáticas. Um exemplo relevante de como a apropriação de algo ‘externo’ pode dinamizar e fortalecer a identidade coletiva é o da conversão dos Xokleng ao protestantismo. Conforme analisado por Wiik (2001), os Xokleng definem-se como ‘índios crentes’, sendo que a conversão ao cristianismo, ao invés de ter enfraquecido os sentimentos de pertencimento étnico, serviu para reforçar laços de consubstancialidade e dinamizar a vida ritual nas aldeias. Outro exemplo relevante é analisado por Langdon (2016, p. 198) sobre os Siona, pois, segundo a autora, a revitalização do xamanismo entre eles seria o resultado de estratégias de adaptação de sobrevivência: “[…] the case of the Siona experience with the revitalization of the use of yajé [...] must be seen as a strategy of survival that has emerged from their autochthonous shamanic practices and knowledge, and not one that is merely an appropriation of external forms and demands”. 12

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VIOLÊNCIA E EPIDEMIAS Durante os séculos XVIII a XX, a Mundurucânia foi palco de conflitos violentos entre índios e pariwat, e também de graves epidemias, com grande número de morte de indígenas. Ainda no século XIX, toda essa região foi palco da Cabanagem, movimento de revolta contra o governo imperial, que ocorreu entre 1835 e 1840 (Menéndez, M., 1992). Miguel A. Menéndez destaca que a adesão de indígenas aos revoltosos não foi integral e homogênea, pois muitos índios que estavam inseridos na economia agrícola das vilas apoiaram as forças governamentais. Esse ponto parece compreensível, considerando que os Munduruku foram aliados dos portugueses. A cabanagem gerou grande apreensão entre os Munduruku, sendo que alguns de seus grupos procuraram refugiar-se dentro da mata, para fugir de perseguições e retaliações (Ioris, 2011). A violência dessa revolta teve tamanho impacto que até hoje os Munduruku mais velhos narram histórias sobre a Cabanagem, lembrando a violência do Estado, sempre perseguindo os indígenas. A violência estatal passa a ocupar um lugar de importância, na medida em que se estabelece como política indigenista punitiva, com vistas à expropriação do território Munduruku e à liberação para a exploração capitalista15. Evidentemente, esse processo de violência continuada configurou-se como clara ameaça à reprodução social Munduruku. Segundo Ana Flavia M. dos Santos, no início do século XX, após o declínio da atividade de extração da borracha, os Munduruku dos rios Canumã e Mari-Mari tiveram as terras demarcadas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Contudo, com a valorização da castanha no mercado internacional, os Munduruku do rio Canumã tiveram as suas terras invadidas. Segundo esta autora,

“A violência foi um elemento constante nas disputas pela exploração dos castanhais, muitas vezes invadidos, em época de safra, por bandos armados” (Santos, A., 2009, p. 106). O papel do Estado nesses processos foi ambíguo, pois, muitas vezes, os atores locais posicionaram-se como inimigos dos índios, quando “Perseguições e expedições punitivas exclusivamente determinadas por interesses privados transformavam-se em ações de Estado” (Santos, A., 2009, p. 305). Essas perseguições acarretaram a dispersão dos índios pela floresta. Famílias inteiras viveram como fugitivas em seu próprio território por muitos anos. Recentemente, os professores Munduruku da TI Kwatá Laranjal publicaram um interessante livro com resultados das próprias pesquisas junto aos mais velhos (Oliveira, 2002)16. O livro é composto por textos e ricas ilustrações. O conjunto da obra expressa bem a continuidade entre o que poderia se chamar de dimensões históricas e cosmológicas da experiência de alteridade (claramente inseparáveis para os Munduruku), uma vez que apresenta narrativas que demonstram tanto o interesse na agência de animais, plantas e objetos, quanto relatos de contato e de conflito com os pariwat. Do ponto de vista da história registrada pelos professores Munduruku da TI Kwatá Laranjal, os contatos e conflitos com os pariwat resultaram em grande violência e pânico. As narrativas registradas pelos Munduruku descrevem os pariwat como usurpadores de terras, que tentavam agradar para depois explorá-los no trabalho extrativista (Oliveira, 2002). Um dos eventos rememorados pelos Munduruku refere-se à morte de Luiz Bentes, um português que se apossou de terras no Kwatá para explorar os castanhais e o trabalho indígena, no início do século XX. Ele instalou um posto de trocas de

Sobre os modelos de usurpação de terras indígenas utilizados por colonizadores no baixo Madeira contra os índios Mura, conferir Athila (1998). Narra-se que os colonizadores buscavam, primeiramente, amizade e relações de afinidade, para, em um segundo momento, usurpar as terras e expulsar os índios. 16 O livro merece destaque pela forma coletiva como foi escrito e pela riqueza textual e imagética. Várias das narrativas transcritas pelos professores indígenas foram ouvidas pelos autores durante o trabalho de campo, sendo que se optou por citar a produção escrita dos professores como forma de valorizar o trabalho de pesquisa deles. Para detalhamento dos casos citados com base em pesquisa documental, sugere-se a leitura da tese de Santos, A. (2009). 15

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mercadorias por castanhas e manteve boas relações com os índios, até que começou a ser visto como mesquinho. Bentes passou a proibir os índios de usufruir dos castanhais. Em consequência das desavenças, o português foi morto pelos Munduruku em uma batalha liderada pelo cacique Urbano Cardoso. Outra narrativa dá conta da ação do invasor e vilão chamado Galdino Mendes, que se apossou de terras na Foz do Mapiá. Inicialmente, ele também buscou relação amistosa com os Munduruku, mas logo começou a ‘ficar ruim com os índios’, impedindo-os de navegar no igarapé. Ainda hoje, os Munduruku contam com detalhes como Galdino fora ferido em uma batalha liderada pelo cacique Vitor Cardoso. Relatam esses eventos, observando o papel heroico dos caciques, que não se sujeitaram à expropriação do território e reagiram contra os opressores, matando-os. Lembram também que houve represálias por parte da ‘polícia’, ou seja, a morte do pariwat motivou ação punitiva por parte do Estado. As mortes dos usurpadores são eventos lembrados como exemplos notáveis da ganância pariwat, da reação guerreira indígena e da violência estatal que ocorreu em seguida, o que acabou instalando verdadeiro terror entre os Munduruku17. A nora do cacique Vitor lembra que crescera fugindo do ‘barco da força’. Toda a sua família vivia ‘escondida no mato’, ‘sem poder fazer fogo durante o dia’, com medo dos ‘soldados que matavam os índios e queimavam as aldeias’. Mesmo os que não vivenciaram esses episódios foram profundamente marcados pelas narrativas dos mais velhos, implicando efeitos no comportamento das crianças, que ainda

hoje fogem e se escondem à chegada de barcos forasteiros na aldeia, até na ocorrência de elementos evocados em sonhos e pesadelos com soldados. Em outras palavras, a experiência de violência do Estado continua informando o cotidiano indígena. Durante o trabalho de campo, em uma roda de conversa, ao fim da tarde, uma interlocutora narrou um pesadelo que tivera na noite anterior. Em seu sonho, via-se fugindo, perseguida por soldados, “Aí eu estava lá, atrás do camburão deles, escondida dentro d’água, só pensando, será que eles mataram meus filhos?”18. As invasões dos pariwat ao território Munduruku também implicaram epidemias, de acordo com as “Histórias que os velhos não esquecem”, conforme consta na segunda parte do livro dos professores Munduruku (Oliveira, 2002). Do ponto de vista indígena, o perigo oferecido pela alteridade pariwat resultou em doenças, visto que, além de serem violentos com os Munduruku, eram agressivos e desrespeitosos, logo, irracionais, com os demais seres do lugar. A narrativa de um ancião da aldeia Laranjal, Pergentino Lopes da Silva, conta que os pariwat, por diversão, fizeram o barranco do rio alvo para tiros de espingardas, e que aquele lugar era “muito respeitado, ninguém podia ofender”. Segue narrando que, para os Munduruku, “[...] tudo tem a sua mãe e nenhuma mãe gosta que mexam com seus filhos. E o pessoal ofendeu a mãe daquele lugar” (Maciel, 2002, p. 68). Segundo o ancião, como consequência do ato de agressão gratuita dos pariwat à ‘mãe do lugar’, ela se vingou sobre os Munduruku, disseminando febres e obrigando-os a mudar o local da aldeia. Conta também que apenas após o ritual xamânico os curadores pajés conseguiram “fechar a mãe

Narrativas Siona descrevem a negociação com seres de outro lado da realidade, acessível apenas no ritual xamânico, e incluem também a ‘polícia’ como representante da violência colonial: “And two police came to catch the Indians. When the Indians saw them, they drank all the yajé that was left in the pots. Then the police caught them and took them and locked them in prison” (Langdon, 2016, p. 186). Sobre a centralidade dos sonhos na experiência de alteridade indígena, conferir Bartolomé e Barabas (2013). Sobre os modos de promoção capitalista do terror e a interação com o xamanismo na Amazônia, ver Taussig (1993), para quem as imagens de terror produzidas pelo colonialismo eram uma parte importante do poder simbólico, manipulado pelos xamãs em rituais de cura. Para uma discussão complementar a Taussig (1993), considerando as formas de incorporação do poder simbólico de elementos biomédicos em rituais xamânicos, conferir Greene (1998). 18 Essa violência narrada vai se repetir no século XXI, quando o governo federal inicia a construção de hidrelétricas em terras Munduruku, como se verá depois, desta vez, registrada em vídeo e publicada na internet. 17

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da sezão” que “estava com raiva”, mas que já era tarde e que o “prejuízo já havia sido feito”. Ao evocarem a dimensão cosmográfica para dar sentido à irracionalidade pariwat, projetam-se expectativas sobre as possibilidades e os limites da relação com o outro. A presença dos pariwat, intensificada no século XX, trouxe uma série de efeitos que necessitaram de estratégias diversas. Guerrear, fugir e realizar ritos para acalmar espíritos são exemplos de ações, cuja eficácia se efetiva no desenvolvimento das gerações de Munduruku e em suas experiências de narrar e manter viva a memória, reproduzidas como um saber que se atualiza na práxis. Na primeira metade do século XX, cristaliza-se a ambiguidade do Estado nacional, especialmente pela violência promovida em apoio à expropriação de terras durante o período da extração da castanha, como visto, através de políticas que visavam ‘integrar’ os Munduruku à economia nacional. Cabe relatar que esses índios, a partir da criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), passam a exercer um papel político mais contundente, que se deixa vislumbrar pela ênfase dada pelo livro dos professores Munduruku ao processo de demarcação da TI Kwatá Laranjal. Não é exagero reconhecer que o processo de demarcação da TI Kwatá Laranjal foi um grande feito, apesar das adversidades, possibilitando reforçar sentimentos coletivos que unem os Munduruku dessa TI, pois promoveu uma aberta discussão, experiência, avivamento da memória e dos índices de pertencimento étnico. Desse processo, interessa evidenciar o protagonismo Munduruku como elemento central de um drama social, conforme a conceituação de Turner (2008 [1974]), pleno de polifonias e crises, mas que, ao fim, descreve uma estratégia intencional para garantir a reprodução biossocial coletiva: a reconquista da terra. As primeiras demarcações oficiais da TI Kwatá Laranjal foram realizadas pelo SPI ainda nas décadas de 1910 e 1920 (Oliveira, 2002), mas esses lotes eram muito pequenos, uma prática estatal que visava promover a ocupação do entorno pelas frentes de expansão nacional. De certa forma, ainda que pequenas, as primeiras demarcações de lotes tornaram

inequívoco, perante o Estado, o reconhecimento de que os Munduruku eram detentores do próprio território. Semelhante a outros contextos (Amoroso, 1992; Athila, 1998; Santos, A., 2009; Scopel, 2007), essas primeiras demarcações foram orientadas pelas políticas oficiais, que visavam integrar os indígenas à sociedade nacional. Apesar disso, os Munduruku continuaram a usufruir do amplo território, expulsando usurpadores, como visto anteriormente, mas também turistas, madeireiros, caçadores e pescadores pariwat, que, constantemente, procuram invadir suas terras sem autorização. Com a criação da FUNAI, em 1967, houve a instalação de postos indígenas nas aldeias Kwatá e Laranjal. A partir de demandas indígenas, o órgão oficial reconheceu a legitimidade de instaurar um processo de demarcação que contemplasse uma área maior do que aquela inicialmente mapeada pelo SPI no início do século XX. Um primeiro levantamento topográfico foi realizado em 1976, porém não atendeu às demandas indígenas, sendo que os trabalhos foram retomados em 1979 e 1981 (Oliveira, 2002). Esses levantamentos topográficos mobilizaram a participação do conselho de lideranças indígenas e a realização de reuniões sistemáticas para mobilizar os jovens e engajá-los no processo. Os Munduruku exerceram um papel ativo em diversas etapas dos trabalhos, inclusive nas expedições às partes remotas da terra indígena, na abertura de trilhas e de picadas necessárias ao serviço topográfico. A demarcação da terra indígena dinamizou a memória coletiva e impulsionou os diversos segmentos da sociedade Munduruku à ação, à participação e à colaboração, reforçando coesivamente sua própria coletividade. O processo permitiu diversas discussões e debates, como narram os Munduruku do Canumã, a exemplo de sua exigência quanto à demarcação dos castanhais tradicionalmente ocupados, objeto das disputas narradas pelos mais velhos. Apesar da participação indígena nos trabalhos iniciados em 1976, o levantamento de 1981 não atendeu às expectativas, tendo sido rejeitado por diversas falhas e por deixar de fora partes importantes do território.

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AS AMEAÇAS CONTINUAM COM O DESENVOLVIMENTISMO PARIWAT Atualmente, o Estado tem mobilizado políticas ambíguas e contraditórias em relação aos Munduruku, como exemplifica o caso recente da construção de usinas hidrelétricas no território do alto Tapajós. Nesses processos, é notável o desrespeito aos direitos indígenas, sobretudo no que se refere ao necessário consentimento livre, prévio e esclarecido, conforme convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assim como o uso de violência física e simbólica desproporcional (SALSA, 2016). Um exemplo importante diz respeito às ações relativas à construção da usina hidrelétrica Teles Pires, localizada na divisa entre os estados do Mato Grosso e do Pará, como exemplo concreto da violência estatal contra os índios Munduruku, marcada pela falta de diálogo, pelo desconhecimento dos protocolos indígenas, que constituem as bases das relações sociais entre eles e os pariwat, e por ignorar a cosmologia indígena e os impactos de grandes obras sobre a saúde coletiva do grupo19. Ao analisar a forma como o Estado brasileiro vem consolidando políticas desenvolvimentistas na Amazônia, ao longo do século XXI, Hanna et al. (2014, p. 64, tradução nossa) concluem que “Um maior respeito aos povos indígenas precisa ser demonstrado” e que a legislação precisa ser aprimorada com “[...] mecanismos para evitar [distorções] [...]” no licenciamento das obras, além da previsão de punição para os responsáveis por fraude em relatórios sobre os impactos negativos dessas mesmas obras às populações locais (Hanna et al., 2014). Os potenciais impactos negativos, diretos e indiretos, desse tipo de empreendimento não são difíceis de prever, considerando a vulnerabilidade das populações indígenas frente ao incremento da presença de não indígenas e

Mesmo assim, o processo oficial acabou por motivar e legitimar os direitos dos Munduruku, pois se tornava inequívoco que eram detentores de uma área muito mais ampla do que aquela até então demarcada. Em 1983, as terras Munduruku da TI Kwatá Laranjal foram invadidas por uma empresa petrolífera francesa. Os estudos geológicos realizados pela empresa provocaram desmatamentos, além de utilizarem explosivos, o que gerou pânico, rememorando os eventos violentos das expedições punitivas. Desta vez, com o apoio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), os Munduruku acionaram a justiça e o caso teve repercussão internacional (Dreyfus-Gamelon, 1984). Com a ação judicial, obtiveram indenização e, com ela, iniciaram uma nova demarcação, em 1989, às próprias custas (Munduruku, 1982; Oliveira, 2002). No ano de 1991, os moradores da TI Kwatá Laranjal criaram a União dos Povos Indígenas Munduruku e Sateré Mawé, uma associação que passou a intervir no processo de demarcação da terra, ainda inconcluso naquele momento. Somente em 1997 é que o processo de demarcação foi retomado pela FUNAI. Em 2004, esta TI foi homologada. A longa trajetória política que movimentou os Munduruku deste território a defender a sua demarcação é expressa por eles como uma ‘reconquista’ (Oliveira, 2002). A reconquista do território, segundo os próprios Munduruku da TI Kwatá Laranjal, é vista como um passo importante para a garantia de sua reprodução biossocial. Nesse processo, os indígenas estabeleceram e adquiriram habilidade em diversas práticas de organização social, que permitiram efetivar tal reprodução, a exemplo da organização de conselhos de líderes e de reuniões, da participação dos jovens etc. Conclui-se que o envolvimento coletivo em atividades políticas se constituiu como uma estratégia coletiva de sobrevivência, semelhante ao caso analisado por Langdon (2016) entre os Siona.

Essa usina é um empreendimento de infraestrutura contemplado no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, que prevê a construção de seis usinas ao longo do rio Teles Pires, afluente do rio Tapajós, no estado do Mato Grosso, e a construção de barragens ao longo dos rios localizados no estado do Pará.

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da invasão do território, do desmatamento ilegal, da monetarização das relações sociais, da prostituição, do agravamento das condições epidemiológicas e da desnutrição infantil (Langdon; Rojas, 1991; Wiik, 2001). Prevendo estes e outros efeitos negativos, os Munduruku opuseram-se à construção das usinas na Mundurucânia. Porém, não foram ouvidos pelo governo, que, em atitude autoritária, contra o interesse dos Munduruku, valeu-se de violência física e simbólica para resguardar os interesses desenvolvimentistas: Em uma ação sem precedentes, o Governo Federal enviou tropas militares para a região em 2013, para acompanhar os analistas conduzindo estudos de impacto ambiental, um pré-requisito para o leilão da construção dos projetos hidroelétricos. Essa ação não apenas viola os direitos humanos do povo Munduruku, como também demonstra que o Governo Federal está disposto a usar as Forças Armadas para proteger os interesses da elite ao invés de fazer valer os direitos dos povos indígenas20 (SALSA, 2016, não paginado).

O envio de tropas e a morte de um Munduruku foram registrados em vídeo e divulgados na internet, reencenando mito e história no rio Teles Pires: helicópteros, tiros, soldados, morte, pais fugindo para proteger os filhos e terror! (Aranha; Mota, 2014). Violência física e simbólica mobilizadas pelo Estado no afã por desenvolvimento. A partir dos eventos de violência policial e militar, na aldeia Teles Pires, intensificaram-se os protestos contra o projeto desenvolvimentista (Hanna et al., 2016). Cartas, fotografias e vídeos começaram a ser publicados e produzidos, no intuito de registrar e requerer visibilidade para as demandas

indígenas relativas ao planejamento para a construção de usinas hidrelétricas na Mundurucânia (CIMI, 2013; Carta..., 2016; Shepard, 2013). Nesses documentos, os Munduruku registram a importância sagrada de lugares que seriam destruídos pelas hidrelétricas e destacam a ameaça que tais projetos representam para o modo de vida indígena. Neles, os Munduruku do alto Tapajós mostram a clara intenção de proteger cachoeiras, rios e florestas, vistos como lugares sagrados, habitat de animais e de seres encantados, parte viva de sua cosmografia. Nas cartas, relacionam nomes de lugares a experiências míticas e históricas21, ensinando que onde a paisagem pareceria homogênea e sem significado para os pariwat, para eles haveria vida. Os Munduruku mostraram-se preocupados com a ganância pariwat e os efeitos deletérios que a construção das barragens poderia causar à saúde de indígenas e dos próprios pariwat, evocando uma dimensão mundial do impacto negativo desses empreendimentos22. Cabe notar que uma das estratégias adotadas pelos Munduruku para dar resposta à violência estatal foi iniciar um processo de demarcação territorial, evidenciando a íntima relação entre ambiente, território, saúde e reprodução biossocial desde o ponto de vista indígena. Assim, os Munduruku da TI Sawré Muybu procuraram apoio de organizações não governamentais (ONG) para divulgar a ‘autodemarcação’ de suas terras, ‘cansados de esperar’ pelos órgãos oficiais, alegando que o governo não tinha interesse em concluí-la, para que isso não atrapalhasse a construção da usina hidrelétrica São Luiz do Tapajós (Gepp, 2015; MPF/PA, 2015; Autodemarcação..., 2015).

Trecho de carta assinada por Jonathan D. Hill, presidente da Society for the Anthropology of Lowland South America, enviada à presidente Dilma Roussef em 22 fev. 2015. 21 Semelhante aos Baniwa do rio Negro, os Munduruku não apenas mantêm um vivo catálogo dos sítios, como curvas do rio, cachoeiras, pedras, inscrições, lagos e montanhas, mas um rico acervo sobre o comportamento de animais específicos em ditos sítios ou acontecimentos que levaram os heróis míticos e deuses a deixarem marcas no relevo terrestre (Garnelo, 2007; Garnelo et al., 2010). 22 Bartolomé (2010), sintetizando dados etnográficos em toda a América Latina, afirma que, em geral, os territórios são sacralizados e venerados com respeito pelos indígenas que, frequentemente, utilizam linguagem metafórica para expressar afetividade territorial. Ao citar o exemplo de um discurso Kuna contra a mineração, o autor pondera: “La profanación de la tierra era vivida como una agresión a la comunidad integrada por la sociedad y su medio ambiente, con el que se mantiene una relación no sólo productiva sino también vital y afectiva, expresada a través de la metáfora del parentesco. La intensa afectividad que tipifica este tipo de relaciones, se manifiesta en la frecuente sacralización de los ámbitos vitales” (Bartolomé, 2010, p. 18). 20

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Em 2016, o Greenpeace promoveu um abaixoassinado, que reuniu mais de 1,2 milhão de assinaturas contra a construção de hidrelétricas no rio Tapajós, contribuindo para a visibilidade do caso (Greenpeace, 2016). Pouco depois, não por coincidência, em meio à complexificação da conjuntura política nacional, ao pessimismo relacionado à macroeconomia do país, às denúncias de corrupção envolvendo as grandes construtoras, a luta dos indígenas surtiu efeito e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) observou as diversas falhas técnicas e omissões no processo de licenciamento ambiental da usina hidrelétrica São Luiz do Tapajós, sobretudo quanto ao “[...] componente indígena [...]” (IBAMA, 2016, não paginado). Com isso, o processo de licenciamento foi arquivado, ou seja, foi negada a licença de implantação da obra. O arquivamento inclui, possivelmente, variáveis, as quais permanecem ocultas, mas é importante reconhecer que os Munduruku têm notável consciência sobre as tendências que orientam o processo histórico de sua relação com os pariwat, de tal forma que eles veem o arquivamento como resultado da própria resistência guerreira23: Foi mais uma vitória nossa, a gente conseguiu mostrar pro governo que existe os Munduruku na beira do Tapajós. A gente sabe que o governo vai sentar para ver de novo, mas a gente está aqui, a nossa resistência está forte, nossa aliança, nossos parentes ribeirinhos também, pescadores, quilombolas. Continuamos na luta (Maria Leusa Munduruku, coordenadora do movimento Munduruku) (Heinen, 2016).

No que tange aos programas de desenvolvimento impulsionados pelo Estado sobre territórios indígenas, segundo Cardoso de Oliveira (2006), é necessário assegurar que as relações interétnicas sejam efetivadas em termos mais simétricos no diálogo entre lideranças, técnicos

e administradores, ainda que essa simetria seja um ideal de difícil concretização. Desde o período desenvolvimentista impulsionado pelos governos da ditadura militar, nos anos 1960, planeja-se o aproveitamento do potencial energético de recursos hídricos em territórios indígenas, porém sem priorizar o necessário diálogo interétnico (Santos, S., 2003; Santos, S.; Nacke, 1988). O atual ciclo desenvolvimentista demonstra que se manteve a característica de planejamento pautado por decisões extremamente centralizadas, subsidiárias de macroprojetos econômicos. Efetivamente, há décadas, a prática de governantes e de gestores têm sido ignorar as vozes indígenas e os efeitos negativos desses empreendimentos para as populações locais (Santos, S.; Nacke, 1988; Little, 2003).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, argumentou-se que a relação entre etnicidade e território aponta para desdobramentos que vão além da delimitação espacial, destacando, para tanto, a relação intrínseca entre ambiente e saúde, dentro de uma perspectiva cosmográfica Munduruku. As epidemias e as violências vivenciadas desde o período colonial impuseram aos Munduruku desenvolver diversas estratégias de manutenção e defesa da vida. Paralelamente, essas experiências convergiram com a própria experiência de alteridade em relação aos pariwat, às frentes de expansão demográfica e às intervenções do Estado nacional. Essa perspectiva, alicerçada na cosmografia e nas experiências de alteridade, expressa um ponto de vista muito consistente. Segundo Santos, R. e Coimbra Jr. (2003), as frentes de expansão demográfica e econômica da sociedade nacional exerceram importante papel sobre os determinantes da saúde indígena, por meio da introdução de novos patógenos, ocasionando graves epidemias, por usurpação de territórios, dificultando ou inviabilizando a

Como sugere Ortner (2016), as atualizações locais do neoliberalismo assumem dimensões inusitadas, como se percebe no caso brasileiro, constituindo-se como um tema de interesse antropológico nas últimas três décadas, especialmente por contrabalancear os efeitos dark desse processo global com as manifestações políticas de resistência e as transformações locais.

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subsistência, e/ou pela perseguição e morte de indivíduos ou mesmo de comunidades inteiras. Desse processo histórico emerge que a demarcação de terras indígenas se tornou uma condição necessária para a reprodução biossocial dos grupos indígenas, mas que, por si só, não garante tal reprodução, segundo Verdum (2006). Para o autor, contribuem para as atuais condições de saúde entre os povos indígenas: [...] as dificuldades de demarcação, regularização, desintrusão e vigilância dos territórios indígenas; a degradação ambiental promovida no interior e no entorno destes territórios; a disponibilidade de alimentos; o tipo de relacionamento estabelecido com a sociedade envolvente; a localização geográfica, as formas de produção e auto-sustentação indígena; o acesso aos serviços de saúde e educação escolar, entre outros fatores (Verdum, 2006, p. 19).

Os territórios indígenas precisam ser garantidos e respeitados, sendo necessária a promoção de saúde em termos respeitosos e sensíveis às especificidades étnicas, conforme a PNASPI (Brasil, 2002). Todavia, sobre esses fatores pesa a desarticulação da estrutura burocrática estatal, que sustenta o modelo médico hegemônico de paradigma biomédico e curativo. Esse paradigma, centrado no individualismo, não valoriza as dimensões ambientais, sociais e culturais da saúde, servindo para justificar a desarticulação das políticas de saúde com outros setores de ação/intervenção do Estado. Segundo esse modelo, fatores como aqueles citados por Verdum (2006) e por Santos, R. e Coimbra Jr. (2003) transcenderiam a competência do setor de saúde. Isso contradiz a perspectiva Munduruku, para quem saúde, corpo, território, ambiente e coletividade não estão apenas inter-relacionados, mas são indissolúveis, não se configurando como categorias distintas, tal como quer o modelo médico hegemônico, produtor de dita setorização24.

Segundo Menéndez, E. (2003, 2005, 2009), o setor de saúde deveria compreender e articular-se com o saber local, especificamente com as formas indígenas de autoatenção, para promover serviços mais eficazes. Entretanto, pesquisas recentes no Brasil demonstram que os membros das equipes interdisciplinares que trabalham com povos indígenas ignoram ou desvalorizaram os conhecimentos e as iniciativas indígenas (Langdon; Garnelo, 2017). A mesma situação é encontrada entre os povos Munduruku (Silva, 2011; Scopel, 2013; Dias-Scopel, 2015). Neste artigo, constatou-se que a perspectiva xamânica Munduruku inclui os pariwat em um cosmo pleno de agências e perigos. Desta perspectiva, a relação com o outro implica aproximações e afastamentos. De um ponto de vista Munduruku, a reprodução biossocial está constantemente ameaçada, seja pelos seres do mundo invisível subaquático e da mata (bichos do fundo, espíritos do ar etc.), seja pelos pariwat (brancos, civilizados, inimigos), pelas epidemias, violências e invasão do território. Os Munduruku fazem com que se reflita acerca da ambiguidade das ações do Estado, para quem a ‘saúde indígena’ se reduz apenas à intervenção sobre os corpos dos índios, visto que a perspectiva cosmográfica de seu povo impele a compreender que, através da experiência de alteridade e da atualização das identidades étnicas, os Munduruku tomam consciência das múltiplas dimensões do processo de produção, negociação, violência e imposição de sentidos e significados, os quais não são estáticos, nem dados a priori. É na práxis que os saberes indígenas são acionados, que a cosmografia entra em movimento e que se efetivam as estratégias de sobrevivência e melhoria da qualidade de vida coletiva. A reprodução biossocial dos Munduruku concretiza-se através de uma cosmografia em ação e, logo, da diplomacia e da resistência de um povo guerreiro.

Corroborando argumentos de Freitas (2003, p. 146, grifo do autor) “[...] não há uma única noção de meio ambiente, mas somente ambientes histórica, geográfica e socialmente constituídos [...] [isto] coloca em xeque a concepção hegemônica do realismo ambiental tanto nas ciências naturais e engenharias, como nas diferentes instituições públicas e privadas em que têm se dado as decisões que afetam nossas vidas”.

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A partir da abordagem etnográfica sobre os processos de saúde/doença/atenção, é possível evidenciar que os problemas de saúde entre os povos indígenas transcendem ao ‘setor da saúde’. Neste sentido, advoga-se que uma política de saúde que busque melhorar a situação sanitária dos povos indígenas precisa ser intersetorial, e que projetos de desenvolvimento precisam respeitar os direitos e as necessidades dos indígenas e os seus territórios.

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Festas de santo, território e alianças políticas entre comunidades quilombolas de Salvaterra, Marajó, Pará, Brasil Feast days, territory, and political alliances among quilombola communities in Salvaterra, Marajó Island, Pará, Brazil Petrônio Medeiros Lima FilhoI, Luis Fernando Cardoso e CardosoII, Edna AlencarII I

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Belém, Pará, Brasil II

Universidade Federal do Pará. Belém, Pará, Brasil

Resumo: O artigo trata das festas em homenagem aos santos padroeiros e de devoção, realizadas por moradores de quinze comunidades quilombolas, localizadas no município de Salvaterra, na ilha do Marajó, estado do Pará, Brasil. A análise toma como centrais o conceito de território e a noção de dádiva, para compreender os processos de construção de alianças políticas, envolvendo moradores das comunidades quilombolas Salvá, Mangueiras, Caldeirão, Bairro Alto, Pau Furado, Bacabal, Santa Luzia, Providência, Deus Ajude, São Benedito da Ponta, Siricari, Boa Vista, Paixão, União/Campina e Rosário. O estudo mostra, com base em pesquisa etnográfica, que as festas em homenagem aos santos realizadas nesses locais contribuem para a construção e a reafirmação de alianças políticas, bem como para estabelecer uma ligação entre os territórios, ao enlaçar e envolver as comunidades em um grande circuito de festas, que extrapola as fronteiras dos territórios comunitários. As festas de santo, portanto, são eventos que permitem a reafirmação do sentido de pertencimento a uma comunidade e a um território, reforçando a disposição de lutar pela garantia de direitos territoriais perante o Estado. Palavras-chave: Quilombola. Festas de santo. Reciprocidade. Alianças políticas. Abstract: This article analyzes patron saint festivals held among 15 quilombola communities located in the municipality of Salvaterra, Ilha do Marajó, in the state of Pará, Brazil. The analysis relies on the central concepts of territory and gifts to understand the construction of political alliances among the quilombola groups. Based on ethnographic research, this study demonstrates that the patron saint festivals held in these communities help build and maintain political alliances, as well as gather and mutually engage communities in one large celebration circuit that extends beyond the borders of these communal territories. In this way, patron saint festivals are events that reaffirm the sense of belonging to a community and a territory, reinforcing the willingness to struggle against the state for guaranteed territorial rights. Keywords: Quilombo communities. Feasts of saints. Gift. Political aliances.

LIMA FILHO, Petrônio Medeiros; CARDOSO, Luis Fernando Cardoso e; ALENCAR, Edna. Festas de santo, território e alianças políticas entre comunidades quilombolas de Salvaterra, Marajó, Pará, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 13, n. 1, p. 109-128, jan.-abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222018000100006. Autor para correspondência: Luis Fernando Cardoso e Cardoso. Universidade Federal do Pará. Faculdade de Ciências Sociais. Rua Augusto Corrêa, 1 – Guamá. Belém, PA, Brasil. CEP 66075-110 (luiscardt@gmail.com). ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9384-1498. Recebido em 05/09/2017 Aprovado em 17/10/2017

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INTRODUÇÃO No município de Salvaterra, localizado na ilha do Marajó, estado do Pará, desde o ano de 2004, quinze comunidades negras rurais, com longa história de conflitos agrários com fazendeiros, passaram a se autodefinir como quilombolas e adotaram estratégias de luta pelo seu reconhecimento étnico e pela titulação de seus territórios. As comunidades são Salvá, Mangueiras, Caldeirão, Bairro Alto, Pau Furado, Bacabal, Santa Luzia, Providência, Deus Ajude, São Benedito da Ponta, Siricari, Boa Vista, Paixão, União/ Campina e Rosário (Lima Filho et al., 2016). Desde o surgimento, essas comunidades negras – muitas com mais de cem anos de existência –, ao criarem estratégias de luta para manter ou mesmo conquistar territórios, vêm desenvolvendo laços de fidelidade/confiança e, por esse meio, tecendo alianças políticas entre si. Com a inclusão do artigo 68 na Constituição Federal (CF) brasileira de 1988, que versa sobre o Ato das Disposições Constitucionais e Transitórias (ADCT) 1 – o qual determina o reconhecimento e a titulação dos territórios dos “[...] remanescentes das comunidades dos quilombos [...]” –, criou-se um novo sujeito de direito (Brasil, 2002, não paginado). A partir de então, em todo o Brasil, centenas de grupos sociais2 autoidentificaram-se3 como quilombolas, criando intensos processos de ressignificação cultural e de reconstrução de histórias, por meio da recuperação das memórias dos moradores de localidades até então referidas como comunidades negras rurais.

No Brasil, a assunção dessas novas identidades está diretamente vinculada à reivindicação de direitos sociais e coletivos por terra, uma vez que o Estado não disponibiliza outros instrumentos jurídicos de reconhecimento desses direitos. Ressalta-se que, até a promulgação da CF de 1988, grande parte dos grupos sociais habitantes das comunidades que reivindicam o seu reconhecimento como quilombolas era classificada como camponeses, tanto pela forma de reprodução social e de uso da terra quanto pelos tipos de conflitos, que envolviam o acesso às áreas necessárias aos seus modos de vida, considerados como fundiários, e não como de natureza étnica (Steil, 2001). Com a CF de 1988, portanto, a categoria território, e não terra, passa a nortear os processos de reivindicações de direitos de vários grupos sociais, quando há o reconhecimento de uma presença ou de ocupação histórica de um território, partilhando um espaço comum, definido com base em três fundamentos, conforme enfatiza Little (2002): a história que permeia a memória coletiva referente à ocupação do território; um lugar específico – o território –, que passa a ser objeto de um sentido/ sentimento de pertencimento por estes grupos sociais; e as formas coletivas ou comuns de uso dos recursos naturais desenvolvidas por estes grupos sociais. Neste contexto, o Centro de Defesa do Negro no Pará (CEDENPA), com o apoio da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do chamado programa Raízes, desenvolvido pelo governo do estado do Pará, foi responsável, a partir dos anos 2000, pela identificação e pelo mapeamento de

O artigo 68 (ADCT) da Constituição Federal de 1988 significou, pela primeira vez em muitos séculos de história do Brasil, a criação de um dispositivo jurídico que não apenas reconhece a existência de ‘remanescentes das comunidades dos quilombos’ (Brasil, 2001), como também institui a obrigação do Estado de regularizar e titular os territórios desses ‘remanescentes’. As lutas desses povos foram ampliadas pelo decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, o qual estabeleceu que as terras ocupadas por esses remanescentes, a serem reconhecidas e tituladas pelo Estado, são aquelas utilizadas para a garantia da reprodução física, social, econômica e cultural dessas comunidades, e não apenas as reduzidas áreas utilizadas para moradia (Brasil, 2003, não paginado). 2 O termo ‘grupo social’ é usado aqui para referir-se a uma coletividade constituída por pessoas que realizam ações conjuntas, unidas por laços de afinidade e por objetivos comuns, e podem ser “[...] definidas por formas comuns de acesso a recursos produtivos e por sua participação em relações sociais similares para ganhar a vida [...]” (Schmink; Wood, 2012, p. 51). 3 No ano de 2002, o Brasil ratificou a convenção 169 da Organização Intenacional do Trabalho (OIT), a qual assegura o respeito à autodefinição dos povos. Dentro do processo de regularização de territórios quilombolas no Brasil, a Fundação Cultural Palmares (FCP) é responsável por emitir e registrar a certificação das comunidades que se autodefiniram como quilombolas. A autoidentificação referida aqui diz respeito a estes dois processos: tanto à autodefinição destas comunidades como quilombolas quanto à sua certificação pela FCP. 1

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comunidades negras rurais em todo território estadual paraense. No município de Salvaterra, foram identificadas as comunidades de Pau Furado, Boa Vista, Mangueiras, Bairro Alto, Providência, Deus Ajude, Campina/Vila União, Siricari, Bacabal, Salvá, Paixão e Caldeirão. Antes do mapeamento, as pessoas dessas comunidades negras rurais não conheciam o direito à titulação do território quilombola, garantido pelo artigo 68 do ADCT/CF, apesar de estarem lutando há gerações para recuperar áreas que foram subtraídas por expropriadores (Lima Filho et al., 2016). No processo de autoidentificação, as mulheres destacaram-se como principais protagonistas, como lideranças políticas que trouxeram o debate identitário às suas comunidades e o difundiram nestes espaços. O protagonismo feminino é evidente, por meio da organização e da participação de mulheres negras nos Encontros de Mulheres Negras Quilombolas do Pará, promovidos pelo CEDENPA4 nesse município. Elas articularam uma rede de apoio, formada por mães, esposas, avós, filhas e netas, que contribuiu para a construção de um debate sobre a autoidentificação quilombola e ganhou densidade, espalhando-se pelas várias comunidades negras de Salvaterra. Esses encontros também foram fundamentais para que os agentes pudessem se informar sobre os procedimentos necessários ao reconhecimento de seus territórios. Segundo Acevedo Marin (2009), não foi por acaso que as mulheres se destacaram como a maioria das presidentas das associações criadas em cada uma das comunidades quilombolas de Salvaterra5:

O primeiro Encontro de Mulheres Quilombolas do Estado do Pará se realizou em Bacabal, em 2002, e constituiu um fato político para as mulheres participantes. Elas receberam representações das comunidades do território quilombola de Salvaterra e de fora da ilha. Esse tempo dos ‘primeiros encontros’ foi o momento de emergência da identidade coletiva – de quilombola, [do ser quilombola], do ‘ser negra’. Teresa dos Santos Nascimento relata, pausadamente, e interpreta o ato de contar e como o grupo se interrogou sobre a sua história: “não conhecia a gente bem... e cada um começou a contar e através da conversa foi surgindo a história. Cada um conta uma história. As pessoas eram capazes de contar. Ninguém sabia que era quilombola. A gente começou a falar que era nossa identidade. [...] Eu sou negra e tenho o maior orgulho dessa terra” (Acevedo Marin, 2009, p. 217).

Desta forma, a autoidentificação quilombola passou a se configurar como uma referência fundamental na tessitura das alianças políticas dentro destas comunidades e entre elas; antes, estas alianças baseavam-se principalmente nas relações de compadrio e de parentesco. Nesse contexto, para o que Acevedo Marin (2009, p. 217) descreveu como “[...] o momento de emergência da identidade coletiva – de quilombola, [do ser quilombola], do ‘ser negra’”, contribuíram de maneira decisiva os encontros de mulheres e os trabalhos desenvolvidos pelo CEDENPA. Não foi por acaso que, logo após a realização dos encontros de mulheres negras quilombolas, no ano de 2004/2005, a Superintendência Regional do INCRA de Belém (INCRA-SR01) recebeu solicitações de reconhecimento e de titulação dos territórios quilombolas no município de Salvaterra.

Segundo Acevedo Marin (2009, p. 217), “O I Encontro de Mulheres Negras Quilombolas foi promovido pelo Centro de Defesa e Estudos do Negro no Pará (CEDENPA). […] A agenda do encontro incluía, prioritariamente, relações raciais, discriminação do negro, direitos, relações de gênero, saúde, questões de terra e luta pela titulação, economia, renda, organização e mobilização política. […] Os grupos ampliaram e aceleraram o controle de sua identidade social e de estratégia política durante estas mobilizações e discussões, como mostraram os três Encontros de Mulheres Negras quilombolas, realizados em Bacabal (2002), Deus Ajude (2003) e Mangueira (2004), no município de Salvaterra”. 5 “[...] do total das associações quilombolas de Salvaterra que deram entrada em processos no INCRA [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], solicitando o reconhecimento e a titulação de seus territórios quilombolas, 60% tinham mulheres como presidentes e mesmo nas outras associações que eram presididas por homens, as vicepresidentes, 1ª Secretárias entre outros cargos nas associações eram ocupados por mulheres, o que evidencia o aludido protagonismo feminino na organização das associações das comunidades quilombolas de Salvaterra” (Lima Filho, 2014, p. 57). 4

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A partir desses processos de autoidentificação quilombola e das perspectivas de reconhecimento de direitos criadas pelo artigo 68 do ADCT/CF (Brasil, 2002), foram criadas outras estratégias de luta contra expropriações, entre as quais destacamos a atuação do Conselho das Associações das Comunidades Quilombolas de Salvaterra. Segundo Acevedo Marin (2009, p. 220), esse Conselho:

comunidades. Por meio dessas relações, elas reforçam o processo político de luta pelo reconhecimento étnico e dos territórios via titulação. Tais relações reforçam as situações de cooperação, esmaecendo os conflitos inerentes às várias sociabilidades que permeiam a interação destes grupos. Neste contexto, parece fundamental perguntar: como se constroem as alianças políticas entre as comunidades quilombolas do município de Salvaterra? Abordagens utilitaristas buscam explicar a construção dessas alianças políticas como se fosse um fato recente, fruto de um ‘oportunismo’ gerado pelas possibilidades abertas pelo artigo 68 do ADCT/CF (Brasil, 2002). Esta visão embasou, inclusive, uma campanha midiática com sugestão de que estavam sendo ‘inventados quilombos’, no sentido pejorativo do termo. Se a autodefinição étnica como “[...] remanescentes das comunidades dos quilombos [...]” (Brasil, 2002, não paginado) pode ser considerada um fenômeno relativamente recente, surgida a partir de 1988, é fato evidente que as comunidades que se autodefiniram como quilombolas não surgiram agora, assim como não são recentes os processos de construção de alianças políticas e as lutas para garantir a reprodução física, social, econômica, cultural e religiosa desses coletivos. Essas comunidades já vêm construindo alianças de diversas naturezas entre si há muitos anos, seja por meio de casamentos, de realização de trabalhos cooperativos ou por pactos políticos visando manter as suas terras, em uma situação histórica marcada pelo confronto com criadores de gado cujas fazendas avançam sobre seus territórios e, mais recentemente, havendo também o avanço da monocultura do arroz.

Em 2007, cumpriu uma agenda de discussões sobre o território quilombola em cada povoado. Atualmente tem uma sede na cidade de Salvaterra. Este Conselho dirigiu documentos de denúncia sobre as cercas aos ministérios do Meio Ambiente, Justiça, Ministério Público do Estado, Grupo Regional de Patrimônio da União e à recémcriada Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável para os Povos e Comunidades Tradicionais - CNPCT [...]

Como se pode ver, o marco da autoidentificação quilombola foi responsável pela tecitura de alianças políticas que originaram uma espécie de unidade de atuação das comunidades quilombolas de Salvaterra, a qual se expressa de inúmeras formas6. Longe de ser monolítica, esta unidade é, de fato, permeada por muitas disputas internas e por conflitos, mas permitiu a emergência de uma identidade coletiva e política, relacionada à existência e à atuação conjunta destas comunidades, materializada, entre outras, nas ações do conselho7. As atuais alianças envolvendo as comunidades quilombolas de Salvaterra revelam ampla rede de cooperação, de solidariedade e de reciprocidade, fundadas no parentesco, bem como nas trocas materiais e simbólicas existentes entre as famílias que formam as

Um dos símbolos e, ao mesmo tempo, representação da aludida unidade política das comunidades quilombolas de Salvaterra, em termos territoriais, é o fascículo intitulado “Quilombolas da Ilha de Marajó”. Nele, é possível observar o mapa “O território quilombola de Marajó”, indicando um território único envolvendo todas as citadas comunidades (PNCSA, 2006, p. 7). 7 “Durante a campanha para a prefeitura do município de Salvaterra [no ano de 2012], as comunidades quilombolas elaboraram um documento reunindo o conjunto de suas reivindicações e o Conselho das Associações, em ato solene, convocou todos os candidatos à prefeitura para participarem de uma reunião com os representantes e pessoas das comunidades. Nesse evento, o Conselho apresentou o documento e solicitou o comprometimento dos candidatos em atender suas reivindicações. Apenas dois candidatos se fizeram presentes na reunião com os quilombolas de Salvaterra, e apenas um deles assinou e registrou o compromisso em cartório. Esse [candidato] foi eleito prefeito, tendo iniciado seu mandato no ano de 2013, sob grandes expectativas dos quilombolas” (Lima Filho, 2014, p. 60). 6

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unidade política, simbólica e territorial”, discutimos como alguns gestos relacionados à circulação de santos durante a preparação das festas são interpretados pelos próprios nativos como ‘símbolos de união’ e estão profundamente vinculados com a construção de cada comunidade como unidade política, simbólica e territorial. Por fim, no tópico “Os circuitos de festas de santo e o território identificado pelo PNCSA”8, evidenciamos a centralidade dos circuitos de festas de santo na constituição do território coletivo, que envolve o conjunto das comunidades quilombolas de Salvaterra, e que foi identificado pelas pessoas das diversas comunidades durante o trabalho do PNCSA no município. A ideia central que buscamos demonstrar é a de que as festas de santo – entendidas na perspectiva de Mauss (2003a) como fatos socias totais e como dádivas que vêm sendo dadas, recebidas e retribuídas – possuem uma centralidade na construção das alianças políticas dentro das comunidades quilombolas de Salvaterra e entre elas. São estas alianças políticas, animadas há gerações por meio dos circuitos de festas de santo, que ajudam na compreenção da contrução dos laços de fidelidade e de confiança existentes dentro destas comunidades e entre elas, e que fundamentam a autodefinição quilombola e a luta conjunta pelos direitos socioterritoriais, entre os quais destaca-se a luta pela titulação coletiva dos territórios.

Neste contexto, para compreender como se constroem as alianças políticas entre as comunidades, ao invés de concentrar a pesquisa nas instituições que usualmente têm sido pensadas como espaço de atuação política, tais como as associações de pescadores e de agricultores, que já existiam nas comunidades, ou mesmo as recentes associações quilombolas, optou-se por analisar as festas de santo, as quais vêm sendo realizadas ao longo de várias décadas (algumas delas são centenárias), cuja organização envolve o conjunto das comunidades quilombolas de Salvaterra. Elas estão relacionadas a rituais coletivos, que evidenciam as formas pelas quais as alianças são firmadas e reforçadas, e têm grande relevância na vida social dessas coletividades. Entre outros aspectos, há gerações, elas propiciam a partilha de um sentido de comunidade como unidade política, simbólica e territorial. Assim, a questão central suscitada por esta investigação é: como as festas de santo têm contribuído para a construção de alianças políticas entre as comunidades quilombolas do município de Salvaterra, arquipélago do Marajó, estado do Pará? Para responder a esse questionamento, o texto está divido em tópicos. O primeiro é intitulado “Festas e alianças políticas”, no qual discutimos as referências teóricas para se pensar a festa não apenas como ritual que reproduz solidariedade grupal, mas como epicentro da própria criação do coletivo. No segundo, “Partilha do território: circulação de pessoas e de santos”, apresentamos as maneiras pelas quais os circuitos de festas de santo propiciam a partilha do território, gerando um território comum, que enlaça as pessoas e contribui para a construção de alianças políticas. No terceiro, “A circulação das imagens de santo e a construção de cada comunidade como

FESTAS E ALIANÇAS POLÍTICAS Do ponto de vista sociológico, o debate sobre o conceito de festa remete às análises de Durkheim (2003), que considera a festa como uma manifestação social significante, tendo como função restaurar periodicamente a solidariedade grupal, e que se caracteriza pela suspensão da vida ordinária, a “renovação moral” e o fortalecimento da

Segundo apresentação que consta no site oficial do PNCSA: “O Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) tem como objetivo dar ensejo à autocartografia dos povos e comunidades tradicionais na Amazônia. Com o material produzido, tem-se não apenas um maior conhecimento sobre o processo de ocupação dessa região, mas sobretudo uma maior ênfase e um novo instrumento para o fortalecimento dos movimentos sociais que nela existem. Tais movimentos sociais consistem em manifestações de identidades coletivas, referidas a situações sociais peculiares e territorializadas. Estas territorialidades específicas, construídas socialmente pelos diversos agentes sociais, é que suportam as identidades coletivas objetivadas em movimentos sociais. A força deste processo de territorialização diferenciada constitui o objeto deste projeto” (Apresentação..., 2014, não paginado).

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coesão do grupo (Costa, 2009, p. 70-71). A abordagem de Durkheim (2003) está na base de quase todas as reflexões subsequentes sobre essa temática. Radicalizando esta perspectiva, Caillois (1950) define a festa como um rito de transgressão, que promove renovação moral, recriação do mundo e, por este meio, renovação da aliança entre os membros do grupo que a realiza. Contrariando as referidas abordagens, Duvignaud (1983) indica que as perspectivas de Durkheim (2003) e de Caillois (1950) sobre a festa dão ênfase à sua função de regenerar as alianças sociais, mas, segundo este autor, haveria um erro nessa concepção, já que a festa não tem função nem utilidade, ao contrário, ela é um questionamento, uma ruptura com a própria sociedade. Para ele, a festa é comparada ao jogo, à arte e ao imaginário, e teria “finalidade zero” (Duvignaud, 1983, p. 22-23). Para Perez (2012), na teoria antropológica clássica, a festa é percebida como objeto/fato e geralmente é estudada sob a rubrica de ritual religioso, sendo abordada de modo apenas descritivo e fazendo referências a coisas que são exteriores a ela. Este tipo de perspectiva, segundo essa autora, faz com que os estudos sobre este tema tenham uma lacuna, ao não a considerar em seus próprios termos. A solução para este problema teórico e epistemológico proposta por Perez (2012) é considerá-la como um evento, um mecanismo, um operador de ligações que estabelece não apenas a reprodução ou a renovação do sentimento coletivo, sendo também a sua própria origem, uma das suas fontes criadoras. É com base nessa visão que buscamos interpretar estes eventos, em especial as festas de santo, como situações que possibilitam a construção de alianças políticas. Por essa via, as festas podem ser interpretadas a partir da teoria do dom, elaborada por Mauss (2003a), ao tomá-las como dádivas que circulam entre os moradores das comunidades quilombolas de Salvaterra há várias gerações, pois o que importa não é o fato delas em si, mas sim o mecanismo, isto é, o operador de ligações que se instaura em seu interior (Perez, 2012).

O sentido maior dessa perspectiva aproxima-se daquela apresentada por Caillé (2002), com relação à teoria da dádiva, quando este autor considera que o mais importante na circulação da dádiva é o laço que se estabelece entre as comunidades e as coletividades, e não o bem trocado. Portanto, em ambas as perspectivas – tanto na festa quanto na dádiva –, o mais importante são as ligações, os laços que são gerados e reafirmados nos momentos festivos. Dessa forma, tanto a festa como a dádiva ajudam a explicar relações entre coletividades, se interpretarmos ambas como mecanismo, ou operador de ligações, que existe e tem sentido em uma lógica diferente das que movem o mercado e mesmo o Estado. Tanto a festa como a dádiva não desapareceram com o surgimento do capitalismo, da modernidade ou da globalização, elas existiram nas sociedades ditas arcaicas e primitivas do passado, e continuam presentes e vivas nas sociedades atuais. Segundo Perez (2012, p. 36): O que a festa transgride, no senso de ir além, é o próprio fato social, atingindo o societal, fazendo emergir o individual do coletivo, o afetual do contratual, a socialidade da sociabilidade, fazendo aflorar as emoções, os sentimentos não domesticados. Dito de outro modo: somos e fazemos coletividade porque produzimos imaginário, somos coletividade porque fazemos festa.

A festa é, portanto, mais do que um fato social, ela se abre para a liberdade das ações, fazendo com que aflorem as emoções e os sentimentos não domesticados. Ela é, ao mesmo tempo, livre e obrigada, não está subsumida a uma totalidade que a precede, mas “[...] [faz] emergir o individual do coletivo, o afetual do contratual, a socialidade da sociabilidade [...]” (Perez, 2012, p. 36). Nem uma lógica utilitária e racional calcada nos interesses individuais consegue submetê-la às suas imposições, pois, segundo a autora, este fato produz o coletivo. A afirmação de Perez (2012, p. 36), de que “[...] somos coletividade porque fazemos festa”, refere-se à tecitura das relações de confiança, de fidelidade, dos vínculos afetivos que produzem o laço coletivo e as

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alianças, mas, ao invés de submeter a festa ao coletivo, a autora evidencia que ela é um dos fundamentos da gênese da própria coletividade (que se constitui também por meio da festa). A explanação deste assunto feita por Perez (2012) segue pressupostos semelhantes aos da abordagem da dádiva feita por Mauss (2003a) e por Caillé (2002), pois estes evidenciam que a dádiva também está na gênese da constituição da própria coletividade e da tecitura do laço coletivo, das alianças, sobretudo das alianças políticas. Assim, para interpretar as relações entre festas e alianças políticas que se observam entre as comunidades quilombolas de Salvaterra, adota-se como pressuposto teórico o paradigma da dádiva ou o paradigma da aliança e da associação, como proposto por Caillé (2002, p. 20), que afirma: “[...] o pensamento da aliança e da associação privilegia a dimensão política das relações sociais [...]”. Esse autor filia-se a uma interpretação do texto “Ensaio sobre a dádiva”, de Mauss (2003b), com uma perspectiva antiutilitarista, enfatizando que a dádiva acontece de maneira ao mesmo tempo obrigada e livre e que, para além da noção de contratos individuais, ela é um dos fundamentos principais da tessitura dos vínculos e das alianças entre coletividades, tanto em sociedades ditas primitivas como nas atuais. Em seu estudo, Mauss (2003a) demonstrou que a circulação de dádivas estabelece relações entre coletividades, e não entre indivíduos, e que elas são e circulam como festas, feiras, danças, crianças, mulheres, homens, rituais, banquetes, amabilidades, além de bens e de riquezas. Mostrou, ainda, que esta circulação pode ser concebida como uma economia das dádivas, que continua a tecer vínculos e alianças entre coletividades e se constitui como um dos fundamentos constantes na construção dos laços coletivos, mesmo nas ditas sociedades complexas atuais. Por isso, segundo Mauss (2003a, p. 188-189), tal circulação é “[...] uma das rochas humanas sobre as quais são construídas nossas sociedades [...]”. Com base nesse pressuposto, é possível afirmar que nas festas de santo são estabelecidas relações não apenas entre indivíduos, mas, sobretudo, entre comunidades,

enquanto agentes políticos que possuem uma identidade e controlam um território. As pessoas que organizam e participam dessas festas devem ser vistas como morais (Mauss, 2003a), já que as suas ações são de sua coletividade, de sua comunidade. Portanto, neste artigo, tomamos as festas de santo como fatos sociais totais, no sentido atribuído por Mauss (2003a), por se tratar de um fenômeno que engloba e movimenta diversas instituições sociais, religiosas, jurídicas e morais ao mesmo tempo. Nessa perspectiva, as festas de santo realizadas pelas comunidades quilombolas de Salvaterra constituem formas de prestações totais, semelhante ao potlatch dos índios do noroeste americano (Mauss, 2003a), onde se observa que a circulação de dádivas e as obrigações de liberdade de dar, receber e retribuir se estabelecem nas relações entre coletividades humanas. Isso também ocorre no caso das comunidades quilombolas de Salvaterra, entre estas coletividades e os santos, com as divindades, ou seja, entre humanos e o sagrado, tecendo também vínculos e alianças. Esse estudo baseia-se em uma etnografia dos ‘circuitos de festas’ de santo realizados na comunidade quilombola de Bacabal, seguindo os ‘circuitos da festa’ de São Raimundo (santo de devoção) e os ‘circuitos da festa’ de Nossa Senhora das Dores (santa padroeira). Foi a partir das festas desta comunidade que buscamos compreender os processos de construção de alianças e o sentido que a festa representa para o conjunto das comunidades quilombolas do município de Salvaterra.

PARTILHA DO TERRITÓRIO: CIRCULAÇÃO DE PESSOAS E DE SANTOS Nossas festas são o movimento da agulha que serve para ligar as partes do telhado de palha, para que haja um único teto, uma única palavra (Leenhardt, 1922, p. 332 apud Mauss, 2003a, p. 213).

As festas promovidas pelas comunidades quilombolas de Salvaterra ocorrem principalmente entre os meses de

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junho e dezembro. Esses momentos constituem um ciclo de festas (Maués, 1995) ou de estação de festas (Caillois, 1950), que integra várias comunidades. Ao longo de muitas décadas, cada uma das quinze comunidades negras rurais vem homenageando os(as) seus(suas) santos(as) padroeiros(as), que são vistos(as) como uma espécie de protetores(as) da coletividade. Em reverência a essas entidades, os comunitários realizam anualmente as chamadas ‘festas de santo’, também conhecidas pelos nativos como ‘festas de tradição’, as quais, na Amazônia brasileira, têm sido objeto de estudos desde a década de 1940, por Eduardo Galvão, que as considerou como “[...] promessas coletivas com o objetivo do bem-estar da comunidade [...]” (Galvão, 1954, p. 31). Além da festa alusiva aos santos podroeiros, há também eventos para os ‘santos de devoção’, os quais recebem igual reverência das famílias. Assim, neste artigo, ao nos referirmos às festas de santo, estamos incluindo as celebrações em homenagem às(aos) santas(os) padroeiras(os) e às(aos) santas(os) de devoção. Incluímos também festas organizadas pelos clubes de futebol das comunidades em reverência aos santos, que carregam os nomes de santos padroeiros e realizam celebrações em homenagem a eles, também denominadas pelos nativos como ‘festas de tradição’. Considerando a permanência temporal, o alcance espacial e o envolvimento de vários agentes e coletivos locais na realização dessas festividades de santo entre as comunidades quilombolas de Salvaterra, verificamos que estas festas são eventos profundamente significativos e que se constituem em um dos elementos centrais na construção dos vínculos entre estas comunidades. Ao evidenciarmos esse fato, precisamos considerar, para além dos significados de uma única festa para uma única comunidade, os significados do conjunto destas festas para

a totalidade dessas comunidades. Nesse sentido, é preciso pensar em ‘ciclo de festas’, ‘estação de festas’ ou, como sugerimos chamar, ‘circuitos de festas’, a fim de entender o enlace que a circulação destas festas tece entre tais comunidades ao longo do ano e há várias gerações. Interpretamos essas festas como dádivas, as quais são, antes de tudo, movimento! Se consideramos, como Mauss (2003a), que a dádiva somente se estabelece pela circulação, no movimento contínuo de dar, receber e retribuir, verificaremos que a sua própria natureza é gerar movimento, e é neste movimento constante que se (re)estabelecem os vínculos, os laços e as alianças entre coletividades e comunidades. Mas o movimento da dádiva não se fundamenta em uma relação de igualdade, nem em uma interação que se finda em um único momento ou movimento. Pelo contrário, como nos explica Mauss (2003a): aquele que aceita receber também consente o desafio da dádiva, permite-se a entrar no circuito, concorda com o vínculo e, neste momento, encontra-se em uma relação de profunda desigualdade com o seu doador, submetido a uma relação ao mesmo tempo livre e obrigada, que o impele a retribuir, sob pena de ‘perder sua face’, de ser humilhado, de não estar à altura do desafio. Se o dar e o receber acontecem em um mesmo instante, é o tempo necessário para retribuir que abre espaço para a realização de vários movimentos, para a criatividade, para a iniciativa, para as articulações, para os empreendimentos, para a construção de laços coletivos, necessários para se retribuir à altura. E quando, após um tempo, o ato de retribuir acontece longe de equilibrar a relação entre doador e receptor, a desequilibra novamente 9 , invertendo os papéis e tornando o movimento contínuo, aprofundando a tecitura dos laços, a (re)criação dos vínculos, a produção de alianças.

Godbout (1998) explica que o sentido da dádiva é tecer vínculos e alianças. Nesse sentido, o bem que é trocado não é o mais importante, a dádiva é uma relação onde não se objetiva ‘quitar a dívida’, mas permanecer endividado, no sentido do movimento de dar, receber e retribuir. Desta maneira, é a permanência da ‘dívida mútua’ que renova o enlace. Essa lógica é diferente do fundamento do mercado: “O modelo mercante visa à ausência de dívida. Nesse modelo, cada troca é completa. Graças à lei da equivalência, cada relação é pontual, e não compromete o futuro. Não tem futuro e, portanto, não nos insere num sistema de obrigações” (Godbout, 1998, p. 41).

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Dessa forma, retribuir é começar! Longe de ser um fim, é sempre um recomeço, o que dá cada vez mais vida e vitalidade para as alianças. Para os laços sociais entre coletivos, é justamente o movimento recorrentemente gerado pela circulação de dádivas, ainda que sejam pessoas envolvidas nisso, as quais devem ser interpretadas tal como Mauss (2003b) ensinou: como pessoas morais, suas ações são da coletividade, da sua família, da sua comunidade. Não por acaso, este autor destacou, em seus escritos, que existe um ‘tempo necessário’ para que qualquer contraprestação seja executada. Entre as comunidades quilombolas de Salvaterra, as festas sucedem umas às outras, em um movimento propiciado por esse ‘tempo necessário’, existente entre o dar/receber e o retribuir. Assim, quando se encerra a festa de santo em uma comunidade, os preparativos já foram iniciados em outra, e se desenvolvem vários movimentos, até que a comunidade anfitriã, em um dado momento, torna-se convidada. Durante mais da metade dos meses do ano, as comunidades vivem um circuito de festas, por meio do qual convidam e aceitam os convites umas das outras. Um tempo depois, encontram-se nas festas, quando, então, a retribuição aos convites dados e recebidos acontece por meio da presença e da participação nestes intensos momentos de socialidade, de vida, que ao longo do tempo e do espaço, há gerações, continuam a marcar as relações intra e entre as comunidades quilombolas de Salvaterra. Por estas características, sugerimos chamar as festas de santo de ‘dádivas-festas’, e evidenciar a sua centralidade nas construções de vínculos e de alianças entre estas comunidades. Caillé (2002), ao se referir às redes de relações sociais tal como concebidas nas ciências sociais, compara-as com

a circulação das dádivas e evidencia que em ambas são a fidelidade e a confiança que estão no cerne da construção de vínculos e de alianças. Segundo este autor, são a fidelidade e a confiança que ligam, enlaçam e mantêm conectadas as pessoas e os coletivos. Para Caillé (2002), estes preceitos são o substrato principal dos vínculos tecidos tanto nas redes de relações sociais quanto na circulação de dádivas. Nesse sentido, o Kula, estudado por Malinowski (1978), onde a circulação ritual de pulseiras e de braceletes10 era o elemento central na construção de alianças políticas e na organização social dos moradores das ilhas trobriandesas, serve de inspiração para sugerir a circulação de ‘dádivas-festas’ como central na construção de alianças políticas intra e entre as comunidades quilombolas de Salvaterra. Mauss (2003a) descreve o movimento que enlaça tribos, coletivos, coisas, pessoas, relações como um círculo, evidenciando que o próprio significado da palavra Kula quer dizer isso, e explica que é: [...] como se todas essas tribos, expedições marítimas, coisas preciosas, objetos de uso, alimentos, festas, serviços de todas as espécies, rituais e sexuais, homens, mulheres, fossem pegos dentro de um círculo e seguissem um movimento regular ao redor desse círculo, tanto no tempo como no espaço (Mauss, 2003a, p. 215).

Nesse sentido, considerando a referência do Kula e pensando nos circuitos de festas de santo entre as comunidades quilombolas de Salvaterra, sugerimos a existência de uma espécie de ‘sistema de festas’, que, além de propiciar, ao longo do tempo e do espaço, a (re)criação de vínculos e de alianças entre as comunidades, possui importância fundamental na dinamização, na vitalidade e

Mauss (2003a, p. 218) afirma que: “Segundo Malinowski esses vaygu’a são animados de uma espécie de movimento circular; os mwali, os braceletes, transmitem-se regularmente de Oeste a Leste, e os soulava viajam sempre de Leste a Oeste. Esses dois movimentos de sentido contrário ocorrem entre todas as ilhas Trobriand, Entrecasteaux, Amphlett e as ilhas isoladas, Woodlark, Marshall-Bennet, Tube-tube e, finalmente, a extrema costa sudeste da Nova Guiné, de onde vêm os braceletes brutos [...]. Em princípio, a circulação desses signos de riqueza é incessante e infalível. Não se deve nem guardá-los por muito tempo, nem ser lento ou duro em desfazer-se deles, nem tampouco dá-los a outra pessoa que não os parceiros determinados num sentido determinado, ‘sentido bracelete’, ‘sentido colar’. Deve-se e pode-se guardá-los de um Kula a outro, e toda comunidade orgulha-se dos vaygu’a que um de seus chefes obteve [...]”

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na organização das relações intra e intercomunitárias. Nas festas de santo, há circulação de pessoas, de famílias, de objetos, de alimentos, de serviços etc. Ao longo do ano, homens e mulheres de diversas gerações circulam entre as comunidades em um calendário conhecido por todos, onde uma sucessão de festas – repetidas regularmente há anos – impulsiona um movimento destes coletivos, que se encontram intensamente nestes momentos e partilham seus territórios. Ao acompanhar os circuitos de festas de santo, pudemos observar como foram realizados estes fatos, desde o início das ‘caminhadas do santo’ – designação nativa para a circulação das imagens de santo, que são levadas por comitivas de uma comunidade a outra, com o intuito de convidá-las para a festa – até o momento em que, em retribuição ao convite, as pessoas das comunidades convidadas deslocam-se em direção à anfitriã para participar da festa. Apresentamos, a seguir, uma breve descrição da circulação da imagem de São Raimundo, que antecede a festa em sua homenagem na comunidade de Bacabal, tomando como base o ano de 2013. Nesse trabalho, buscamos ressaltar as relações que se estabelecem durante as ‘caminhadas do santo’, que evidenciam a construção das alianças políticas entre as comunidades. A comunidade de Bacabal reverencia Nossa Senhora das Dores como santa padroeira e São Raimundo como santo de devoção, ambos homenageados com festas pelos moradores. Para a realização desses eventos, há uma intensa preparação. Os dirigentes da festividade têm como atribuição e responsabilidade organizar todos os preparativos do evento. A cada dois anos, as famílias elegem novos dirigentes, que, se forem bem-sucedidos na organização e na realização da festa, são reeleitos para mais uma gestão. A organização da festa representa uma distinção entre os moradores da comunidade. Isso gera um espaço de disputa entre as famílias, pelo fato de ser entregue ao coordenador da celebração a chave da igreja, ‘morada

do santo’. Tal situação coloca o sujeito em uma rede de relações sociais e políticas, locais e regionais, à qual a igreja está associada, além estabelecer ligações com os dirigentes da paróquia situada na sede municipal. Uma das atribuições do coordenador é formar uma comitiva que deverá conduzir a imagem do santo a uma série de visitas, uma peregrinação envolvendo as comunidades participantes do seu círculo de relações sociais, com as quais mantêm vínculos de reciprocidade. Essas visitas servem para estabelecer e cumprir com compromissos, ao mesmo tempo em que se reafirmam laços sociais e políticos, renovados anualmente. Caso os compromissos não sejam cumpridos, o dirigente da festa perde o seu prestígio. Daí, cabe a ele fazer de tudo para que todos os acordos sejam realizados. Ele exige isso porque os que festejam o santo são sujeitos morais (Mauss, 2003a). Durante as várias ‘caminhadas que o santo faz’, há tanto o reforço dos laços entre as duas comunidades quanto o enlaçamento de um conjunto de localidades no entorno delas. Em 2013, a comitiva que realizou a caminhada de São Raimundo de Bacabal circulou pelas comunidades de Pau Furado, Bairro Alto, Santa Luzia e Boa Vista, e durante a caminhada de N. S. das Dores, santa padroeira de Bacabal, além das citadas, também circulou por Salvar, Caldeirão, Mangueiras, Providência, Deus Ajude, Siricari e São Benedito da Ponta. Todas estas se autodefinem como quilombolas e estão localizadas no município de Salvaterra. Mesmo aquelas que não foram visitadas no ano de 2013, entretanto, receberam convite por escrito para participarem da festa, como também foram enviados convites formais aos dirigentes ou aos presidentes de clubes de futebol que organizam as festas em suas comunidades. Movimentos semelhantes também se realizam entre as comunidades quilombolas de Caldeirão, Pau Furado, Bacabal, Boa Vista, Mangueiras, Bairro Alto, Deus Ajude, Rosário. Nessas caminhadas, é possível dimensionar a amplitude da circulação de pessoas propiciada pelas festas de santos e os tipos de relações estabelecidas nessas festividades.

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A CIRCULAÇÃO DAS IMAGENS DE SANTO E A CONSTRUÇÃO DE CADA COMUNIDADE COMO UNIDADE POLÍTICA, SIMBÓLICA E TERRITORIAL Quando realizamos a etnografia acompanhando a comitiva que levou a imagem de São Raimundo, santo de devoção da comunidade quilombola de Bacabal, pudemos verificar alguns gestos muito significativos, que dão pistas sobre a relação entre a festa e a constituição de cada comunidade como uma unidade política, simbólica e territorial. Um gesto em especial que se repete em todas as caminhadas de santo realizadas pelas comunidades quilombolas em cuja festa ainda há este tipo de procissão, e que aqui destacamos, é o momento no qual a imagem do santo visitante é colocada ao lado da imagem da santa padroeira da comunidade visitada. Antes que qualquer casa no local visitado receba a imagem e a sua comitiva, é na igreja que acontece o gesto simbólico da acolhida ao santo peregrino. Este mesmo gesto também finaliza este momento, o qual marca, portanto, o início e o fim das caminhadas do santo e da ação de convidar comunidades aliadas para a sua festa. Na Figura 1, observa-se a imagem de Nossa Senhora da Batalha, santa poadroeira da comunidade quilombola de Pau Furado, ao lado da imagem de São Raimundo, santo de devoção da comunidade quilombola de Bacabal. Este encontro aconteceu no ano de 2013, momento em que a comitiva de Bacabal, levando a imagem de seu santo, dirigiu-se a Pau Furado para fazer o convite para a sua festa. Esse gesto revela a histórica construção de cada comunidade como uma unidade política, simbólica e territorial. Para refletirmos sobre os significados deste gesto, que marca o encontro entre as comunidades durante a caminhada dos santos, partimos de uma interpretação nativa. Para dona Tereza dos Santos Nascimento, 68 anos, quilombola da comunidade de Bacabal, as duas imagens juntas, no contexto de uma comitiva que vem de uma comunidade convidar outra para sua festa de santo:

Figura 1. Imagens de São Raimundo e de Nossa Senhora da Batalha, na igreja da comunidade de Pau Furado, durante a ‘caminhada do santo’ realizada em 2013. Foto: Petrônio Medeiros (2013). É um símbolo de união! Porque a nossa padroeira ou o nosso padroeiro está recebendo um padroeiro ou uma padroeira que vem de outra comunidade saudar a nossa comunidade. Isso é um símbolo de amor e de união entre todos. Eu penso assim (entrevista realizada em 12 dez. 2013, na comunidade de Bacabal, Pará, Brasil).

A senhora Tereza dos Santos Nascimento e a sua família estiveram ao longo de vários anos à frente da realização das festas de santo na comunidade de Bacabal e conhecem, portanto, os procedimentos que permeiam a construção destas festas. Ao descrever como um ‘símbolo de união’ o gesto de colocar juntas as imagens dos santos, a senhora Tereza evidencia que, neste contexto, a imagem representa a própria comunidade como uma totalidade. Evidencia, dessa forma, que cada imagem de santo simboliza a comunidade que lhe dedica a festa, e a união destas imagens simboliza a união das comunidades. Maffesoli (2010) permite-nos dialogar com esta interpretação nativa e com os significados apontados por ela, ao explicar que essas imagens fazem referência a: [...] figuras emblemáticas, mas eles são, de certa forma, ideal-tipos, “formas” vazias, matrizes que permitem a qualquer um reconhecer-se e comungar com os outros.

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Dionísio, D. Juan, o santo cristão ou o herói grego, poderíamos desfiar infinitamente as figuras míticas, os tipos sociais que permitem uma “estética” comum e que servem de receptáculo à expressão do “nós”. A multiplicidade, em tal ou tal emblema, favorece infalivelmente a emergência de um forte sentimento coletivo (Maffesoli, 2010, p. 37).

Ao considerarmos, tal como Maffesoli (2010), que a emoção estética gera um potente sentir em comum, podemos vislumbrar que a cena das duas imagens de santo, enquanto símbolos, colocadas juntas no altar da igreja, produzem significados coletivos, múltiplos e totais, que se relacionam profundamente com a construção de alianças intra e entre comunidades, permitindo que compreendamos melhor a afirmação nativa de que esse gesto simboliza união. Seguindo a trilha de Maffesoli (2010), pensamos a imagem do santo como uma matriz (forma vazia) que serve de receptáculo à expressão do ‘nós’ de uma comunidade, no contexto de um santo que vem saudar, visitar e convidar outra localidade para a sua festa, e que é recebido por outra matriz. Neste contexto, a imagem da santa padroeira, expressão do ‘nós’ da comunidade visitada, recebe e acolhe o santo peregrino na sua ‘casa’, a igreja. Podemos, assim, vislumbrar a emergência de um potente sentimento coletivo, que percebe cada comunidade como uma unidade política, simbólica e territorial, representada por cada imagem de santo e, ao mesmo tempo, um sentimento de aliança, que envolve as comunidades enlaçadas por aquele gesto, representado pela reunião das imagens dos santos no altar. Não é por acaso que dona Tereza descreve este gesto como de união; não é por acaso que Maffesoli (2010) chama a atenção para a possibilidade de sentimento de comunhão que a estética destas imagens pode produzir. Para aprofundar ainda mais a referência nativa à união relacionada às imagens dos santos juntos, os gestos que encerram a caminhada no local visitado continuam a iluminar a relação entre as festas de santo e a constituição de cada comunidade como uma unidade política, simbólica e territorial. É justamente ao final da caminhada, após terem sido visitadas todas as casas das famílias que aceitaram

receber o santo – e, assim, acolheram o convite para a festa –, momento em que a imagem peregrina retorna à igreja e volta para o lado da santa padroeira local – desta vez enchendo a igreja de pessoas da própria comunidade que se juntaram à comitiva do santo –, que podemos perceber a relação direta entre a imagem do santo e cada comunidade como esta unidade de que falamos aqui. Neste momento final da caminhada, com a igreja lotada e os santos juntos no altar, acontece uma série de gestos, como a entoação de cantos e de orações em referência às imagens dos santos. Posteriormente, as pessoas fazem fila. Uma a uma se aproxima e toca as fitas das imagens, com muita emoção e respeito. Com as fitas nas mãos, pedem bênçãos, fazem novas orações, conversam com os santos por meio das imagens. Ao fim, beijam as fitas e as tocam nos seus corpos, fazendo o sinal da cruz, interagindo com os santos por meio delas. Esses gestos se repetem dentro de cada casa onde a imagem do santo entrou junto com a sua comitiva. Nesses espaços, as famílias que recebem o santo peregrino fazem oferendas a ele, amarrando notas de dinheiro nas fitas da imagem, presenteando-o, de tal forma que, quando a imagem peregrina volta à igreja, suas fitas estão cheias de notas de dinheiro amarradas. Quando todos na igreja já realizaram esse gesto, inicia-se então a ação final feita pela comitiva do santo peregrino, de maneira pública, com todos que estão observando. Trata-se do ato de recolher todo o dinheiro arrecadado das fitas da imagem do santo, e conferir, além destes, também todos os outros recursos, como moedas e velas que foram dadas durante a caminhada, anunciando o valor total arrecadado para a comunidade visitada. Esse gesto acontece no fim da caminhada e evidencia uma relação entre a comitiva da imagem peregrina, a qual representa a comunidade que realizará a festa, e o coletivo de famílias presentes na igreja, que representam a comunidade visitada. Conferir e anunciar o valor arrecadado é, portanto, um gesto político de reconhecimento daquela comunidade como uma unidade política, simbólica e territorial, bem como de respeito com ela.

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Essa relação, para além das pessoas e das famílias presentes, se estabelece entre comunidades e envolve emoção, devoção, respeito e conhecimento em relação aos valores e contribuições de uma comunidade com a outra. Por meio deste gesto, as pessoas presentes na igreja – que devem ser percebidas como pessoas morais, na perspectiva de Mauss (2003a), cujas presença e ações representam a própria comunidade visitada – sabem, então, quanto foi arrecadado em contribuição para a festa. O fato fundamental e para o qual chamamos atenção é que contar e divulgar o que foi arrecadado não acontece em um lugar qualquer da comunidade visitada, nem em alguma casa específica, mas na igreja e ao lado da imagem da santa padroeira, que são, respectivamente, lugar e símbolo da comunidade como uma totalidade. Trata-se de um gesto de respeito e de relação entre comunidades, de reconhecimento daquela que é visitada como uma unidade política, cuja representação coletiva está presente na igreja naquele momento. Isto é simbólico porque acontece na igreja da comunidade, junto à imagem da santa padroeira, que representa aquela coletividade, e territorial porque acontece somente após a imagem peregrina do santo ter circulado por todo o espaço reconhecido como pertencente àquela comunidade. Este gesto, repetido há gerações na construção das festas de santo, evidencia que, mesmo antes da autodefinição como quilombola e da necessidade de estabelecer um território quilombola a ser regularizado, as comunidades já se constituíam e se reconheciam como unidades políticas, simbólicas e territoriais, bem como já dialogavam entre si, respeitando estas unidades, ajudando-se mutuamente na realização de seus empreendimentos, com destaque para as festas de santo. Em outro momento, é a comunidade de Pau Furado que, levando a imagem peregrina da sua santa padroeira N. S. da Batalha, visita Bacabal e, ao fim, também na igreja deste local, confere e anuncia o valor arrecadado. Assim, podemos perceber que o dar inicial – representado pela caminhada do santo e pelo

convite para a festa – e o receber – que acontece no mesmo momento no qual a comunidade visitada aceita receber a imagem do santo e presenteá-la – são relações estabelecidas entre comunidades, entre coletivos, e não entre indivíduos. São, portanto, relações de respeito mútuo, reconhecendo cada comunidade como uma unidade política, simbólica e territorial. Para mostrar este fato, apresentamos trecho da etnografia que evidencia nossa afirmação e indica que há um reconhecimento mútuo entre as comunidades como as unidades tratadas neste tópico, aprofundando este debate: Em outra caminhada que acompanhamos junto com a comitiva da comunidade de Bacabal, a imagem de São Raimundo foi levada para Vila Nova e como de costume visitou e convidou as famílias que moravam neste lugar para participarem da festa do santo, antes, porém, a comitiva tinha passado pelo lugar chamado Santa Luzia, e após ter visitado todas as casas, os membros da comitiva pararam na última e recolheram todas as doações feitas à imagem de São Raimundo, conferiram na frente das pessoas e divulgaram o valor arrecadado em Santa Luzia, depois se despediram e seguiram a caminhada para Vila Nova. Nestes dois lugares, Vila Nova e Santa Luzia, moram praticamente a mesma quantidade de famílias, ambos são mais ou menos do mesmo tamanho, porém, quando a comitiva de São Raimundo encerrou a visita a todas as casas de Vila Nova não realizaram o ritual de recolher, conferir e divulgar para as pessoas daquele lugar o quanto foi arrecadado. Na ocasião ficamos bastante intrigados, afinal, porque o ritual não foi realizado? Posteriormente pudemos compreender que Vila Nova, apesar de ter aproximadamente a mesma quantidade de famílias moradoras e o mesmo tamanho da área que Santa Luzia, não tinha o status de uma unidade política e territorial tal como Santa Luzia, isso porque, enquanto Santa Luzia é tratada e se reconhece como uma comunidade, Vila Nova, mesmo tendo tamanho e quantidade de famílias parecida é apenas uma localidade que pertence à comunidade de Bacabal, ou seja, Vila Nova é uma localidade que pertence à totalidade de Bacabal, tal como as localidades chamadas Bacabal, Mucura (Campo Alegre) e Combate. Todas essas fazem parte da comunidade de Bacabal, por isso o ritual de conferir e divulgar quanto foi arrecadado durante a ‘caminhada do santo’ aconteceu na igreja de Bacabal, e não na Vila Nova (Lima Filho, 2014, p. 151-152).

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Na descrição, percebemos que, mesmo sendo de tamanhos semelhantes, Santa Luzia e Vila Nova possuem reconhecimentos diferentes: enquanto a primeira é reconhecida e se reconhece como uma unidade – uma totalidade – como comunidade de Santa Luzia, a segunda é reconhecida e se reconhece como parte de uma totalidade, parte da comunidade de Bacabal. Note-se que, em Santa Luzia, a contagem e a divulgação do que foi arrecadado na caminhada do santo foram feitas na última casa visitada, isso porque lá não havia igreja construída. Mesmo assim, para além da igreja, o gesto de respeito de contar e de divulgar o que foi arrecadado aconteceu. Esses fatos permitem-nos aprofundar a compreensão de como a existência e a realização das festas estão intrinsecamente relacionadas à constituição política, simbólica e territorial de cada comunidade e à construção de alianças políticas (construção de laços de fidelidade e de confiança) entre as mesmas. Em seus estudos na comunidade quilombola Bairro Alto, também no município de Salvaterra, Cardoso (2008) mostra que há diversas unidades sociais diferentes dentro de uma mesma comunidade, as quais, como afirma o autor, possuem nome próprio, um sentimento de pertencimento e um território único. Segundo ele, contudo,

anteriormente, quando as unidades sociais se aglutinam na unidade política ‘comunidade de Bacabal’. Mas o que essa etnografia sobre a realização das festas de santo entre as comunidades quilombolas de Salvaterra evidencia é que, sem dúvida, como afirma Cardoso (2010), a comunidade, enquanto unidade política, constitui-se e apresenta-se para o diálogo com o Estado, mas, muito antes e há muito tempo, estas comunidades já vêm se apresentando e dialogando entre si enquanto unidades políticas por meio das festas de santo, independente da relação com o Estado. Por meio desses circuitos, há gerações, estas comunidades já dialogam entre si e se reconhecem como unidades políticas, simbólicas e territoriais. Antes mesmo do diálogo com o Estado e muito antes de se autoreconhecerem como quilombolas e reivindicarem a titulação de seus territórios, elas vêm, por meio de intensos circuitos de festas que se estabelecem ao longo do tempo (todos os anos e há gerações) e do espaço (enlaçando e envolvendo várias comunidades), construindo-se como unidades políticas, simbólicas e territoriais, ao mesmo tempo que constroem alianças políticas entre si. Diante desses fatos, sugerimos que a festa está no cerne da própria constituição destes coletivos, pois:

[...] quando é necessário afirmar a unidade do grupo diante dos poderes instituídos do Estado, Bairro Alto, uma das nove unidades sociais, aglutina todas as outras ao incorporar a palavra comunidade. Então Bairro Alto deixa de ser uma parte, para tornar-se um todo de reivindicação de direitos ao território. É, portanto, nesse momento que são suspensas as diferenças para surgir a comunidade enquanto unidade política que dialoga com os poderes estatais (Cardoso, 2008, p. 92-93, grifos do autor).

Cardoso (2010) mostra como, diante dos poderes instituídos do Estado e para afirmar a unidade do grupo, Bairro Alto deixa de ser apenas uma unidade social quando aglutina todas as outras unidades, ao incorporar a palavra comunidade. Situação semelhante aconteceu em Bacabal, evidenciada na descrição da caminhada do santo feita

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O fato de a comitiva não conferir e divulgar o quanto foi arrecado na unidade social Vila Nova significa que há muito tempo já existe uma compreensão de que a unidade política é a comunidade de Bacabal, e essa percepção está para além da marcação do prédio da igreja, pois na comunidade de Santa Luzia, onde não existe igreja construída, no final da caminhada a conferência e divulgação do valor arrecadado pelo santo foi realizado da mesma maneira que nas outras comunidades, porém, ao invés de em uma igreja, aconteceu no interior da última casa visitada em Santa Luzia. Portanto, a comunidade enquanto unidade política vem sendo construída há muito tempo nas relações intra e entre comunidades e se realiza não apenas na relação com o Estado, mas também em várias outras ocasiões como durante as festas de santo. Assim, ao final de cada caminhada de santo, quando a imagem junto com sua comitiva volta para igreja ou para o lugar de onde partiu na comunidade visitada, contabiliza todo o dinheiro arrecadado


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e anuncia para a comunidade, esse gesto é um ato político de reconhecimento daquela unidade política, simbólica e territorial, e de demonstração de respeito para com a mesma (Lima Filho, 2014, p. 153).

OS CIRCUITOS DE FESTAS DE SANTO E O TERRITÓRIO IDENTIFICADO NO PNCSA Buscamos demonstrar como as caminhadas de santo produzem compromissos entre as comunidades, por meio dos rituais de visitas entre elas, dando início a um circuito de reciprocidades. Convidar uma comunidade para a festa é o momento inicial do processo, significa dar. Este dom é recebido por elas quando aceitam o santo peregrino em suas igrejas e em suas casas. Receber o santo em sua casa, em sua comunidade, é estabelecer uma forte aliança, sobretudo, política. A retribuição, porém, não ocorre na mesma ocasião, apenas parcialmente, com um lanche ou almoço oferecido à comitiva, e pelas joias (dinheiro, ovos, ‘cirimbabos’), que são oferendas dadas ao santo. Isso ocorre somente um tempo depois, quando as famílias das comunidades convidadas vão à comunidade anfitriã para participar da festa, momento no qual se intensificam as socialidades, com farta distribuição de alimentos às famílias convidadas, momento em que todos dançam, bebem e comem. Na Figura 2, apresentamos os circuitos de festas que propiciaram a construção de uma territorialidade abrangendo o conjunto das comunidades. Na imagem, as linhas coloridas representam os circuitos, os movimentos de dar e de receber, marcados pelo convite e pela ‘caminhada do santo’, e o retribuir, que é o retorno definido pela participação na festa. Cada linha da Figura 2 possui uma cor específíca, evidenciando os circuitos de cada festa de tradição,

podendo-se verificar ainda que as linhas mais grossas representam as relações mais sólidas entre as comunidades ou que o dar, o receber e o retribuir se estabelecem há mais tempo entre estas comunidades. Quando reunimos neste esquema todas as festas de tradição realizadas pelas comunidades quilombolas de Salvaterra até o ano de 201311, verificamos que existem muitas intercessões, sendo impossível distinguir onde começam ou terminam os circuitos nas diferentes comunidades. A densidade das linhas na Figura 2 demonstra as repetições destes movimentos e a sobreposição destas representa a intensidade da circulação de coisas, de pessoas, de objetos, de homens, de mulheres, de crianças, de famílias, de dádivas, que vêm sendo dadas, recebidas e retribuídas há gerações, impulsionadas pelas festas de santo, e do quanto estes circuitos de festas contribuem para enlaçar estas comunidades por meio da partilha dos territórios e da construção de compromissos que fundamentam alianças políticas entre elas. Na Figura 2, apresentamos uma representação visual do que seria o que sugerimos chamar de ‘sistema de festas’, que há gerações movimenta as relações intra e entre comunidades quilombolas de Salvaterra. Ao interpretarmos as festas como dádivas, dádivas-festas – que são dadas, recebidas e retribuídas intra e entre comunidades –, pudemos verificar que isto tem contribuído muito significativamente para a intensificação/ampliação das socialidades entre comunidades/famílias, fazendo com que saiam do ciclo restrito de relações intracomunidade, alçando-as em um contexto mais amplo de relações12 entre comunidades.

Ano em que realizamos o último levantamento de pesquisa sobre as chamadas ‘festas de tradição’, denominação nativa para as festas que ainda eram realizadas até aquele momento em todas as comunidades quilombolas de Salvaterra. Portanto, não incluímos os eventos que existiram ao longo de anos, porém não eram mais realizados no período da pesquisa. 12 Sugerimos que as dádivas-festas promovem uma espécie de movimento centrífugo (do centro para fora) – quando lançam seus convites e visitam as outras comunidades com suas imagens peregrinas – e também um movimento centrípeto (de fora para dentro) – quando realizam as festas, já que as pessoas de várias comunidades (de fora) nestas ocasiões deslocam-se e encontram-se na comunidade que está realizando a festa. As dádivas-festas, nessa perspectiva, funcionam como uma pulsação, mandando as pessoas de dentro de cada comunidade para fora, para participar das inúmeras festas nas outras comunidades, e depois reunindo estas pessoas de fora na sua própria comunidade, para dentro, em um processo de ir e vir constante, onde as relações, ao longo do tempo e do espaço, se estabelecem. 11

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Figura 2. Mapa elaborado com base nas informações obtidas no trabalho de campo realizado em todas as comunidades quilombolas de Salvaterra, no qual foram pesquisadas as festas citadas pelos interlocutores como ‘festas de tradição’ e que ainda eram realizadas no ano de 2013 nestas comunidades. Relação entre o ‘sistema de festas’ e o território quilombola de Salvaterra cartografado pelo Projeto Nova Cartografia Social. Fonte: Lima Filho (2014, p. 161).

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Ao elaborar uma representação gráfica deste sistema (Figura 2), buscamos evidenciar a abrangência em termos territoriais das relações nele movimentadas. Neste sentido, demonstramos a abrangência do ‘sistema de festas’ em relação à circunscrição do município de Salvaterra e ao território único, identificado e cartografado pelo Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA). Os circuitos de festas das comunidades quilombolas abrangem uma área expressiva do município de Salvaterra, na ilha do Marajó. Este espaço por onde circulam as várias comunidades forma um ‘sistema de festas’, constituído pela reunião dos circuitos de cada comunidade quilombola. Tal cirucuito é, de certo modo, responsável pela intensificação e pela ampliação da circulação de dádivas, as quais se acentuam durante o período de junho a dezembro (época menos chuvosa na região), quando se instaura o ‘tempo da tradição’ – o tempo das festas. Guardadas as devidas proporções e diferenças, parece haver semelhanças entre este sistema com o do Kula, dos Trobriandeses, tal como descrito por Malinowski (1978), que se caracteriza pela circulação de braceletes e de pulseiras entre as tribos. Nas comunidades quilombolas, entretanto, circulam os convites, as imagens dos santos e as próprias festas. O ponto central, portanto, das semelhanças que sugerimos existir entre o Kula, nas ilhas Trobriand, e o ‘sistema de festas’, no município de Salvaterra, arquipélago do Marajó, é que ambos promovem a intensa circulação de dádivas entre os grupos envolvidos, contribuindo para o enlace entre os mesmos. Segundo Mauss (2003a, p. 226): [...] todo o Kula intertribal não é senão, ao nosso ver, o caso exagerado, mais solene e mais dramático, de um sistema mais geral. Ele tira a tribo inteira do círculo estreito de suas fronteiras, e mesmo de seus interesses e direitos; mas normalmente, no interior, os clãs e as aldeias estão ligados por vínculos do mesmo gênero. Só que então são apenas os grupos locais e domésticos, e seus chefes, que saem de suas casas, visitam-se, negociam e casam-se.

Considerando as palavras de Mauss (2003a), é possível afirmar que há semelhanças entre o Kula e o ‘sistema de festas’, pois este último também tira a comunidade inteira do círculo estreito de suas fronteiras e a insere em um circuito de festas que amplia a circulação das pessoas, das coisas e das dádivas para além das fronteiras de cada comunidade. Essa circulação é responsável por produzir uma territorialidade que conduz a uma intensa partilha de territórios, quando, todos os anos e há gerações, estas comunidades se visitam e compartilham os territórios umas das outras, de modo que, por meio deste sistema, ao longo do tempo, são criados simultaneamente o território de cada comunidade e outro mais amplo, que envolve o conjunto das comunidades e é partilhado por elas. Compreendemos território tal como Little (2002, p. 3), “[...] como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu ‘território’ ou homeland”. Nessa perspectiva, o território, ao contrário de ser algo fixo, está permanentemente em (re)construção, e a territorialidade que o (re)conforma está relacionada a contextos e conflitos sociais, históricos, econômicos, geopolíticos e ambientais. Dessa forma, sugerimos que estas comunidades, hoje autodefinidas como quilombolas, localizadas no município de Salvaterra, vêm, ao longo de sua história, construindo uma territorialização que originou territórios específicos de cada comunidade e, ao mesmo tempo, com decisiva influência dos circuitos de festas, construindo também um território mais amplo, enlaçando, envolvendo e conectando o conjunto destas comunidades com o passar dos anos (Almeida, 1989; Oliveira, 1998). Esse território mais amplo é permantentemente vivido e animado pela circulação de coisas, de pessoas, de dádivas entre as comunidades, porém há uma intensificação destas circulações e das relações durante a realização das festas, momento em que os encontros se intensificam. Segundo Acevedo Marin (2006), existe uma memória coletiva da festa que incorpora a memória dos territórios

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de festa. Dessa forma, a autora enfatiza a importância das festas de santo nas relações entre comunidades: Nos povoados do território quilombola de Salvaterra, durante quase todos os meses do ano, assinala-se uma data de comemorações, de festas de santos. O ciclo santoral representa a marcação temporal das festividades na dinâmica do mundo social. Esse calendário religioso e sazonal é compartilhado por todos, e o fato de que as festas continuem vivas é porque o ciclo santoral é observado com zelo. Os povoados de Mangueiras, Deus Ajude, Bacabal, Pau Furado, Caldeirão, Barro Alto realizam as festas maiores, conhecidos pela tradição da festa. Contudo, todas as comunidades se mobilizam para a festa do Santo ou Santa, visita dos esmoleiros, as procissões, que na data da celebração acompanham os rituais; o jogo de futebol, a festa dançante. [...] A festa permite perpetuar certos valores da comunidade (até garantindo sua sobrevivência) e, por outro lado, fazer a crítica da ordem social. A festa não é mera ‘válvula de escape’, desviando a atenção da realidade. A memória coletiva da festa incorpora a memória dos territórios de festa [...]. Nesse fazer coletivo da festa se elaboram memórias; os significados de um fazer festivo é também uma permanente reatualização, renovação e ampliação das redes sociais (Acevedo Marin, 2006, p. 79-80, grifo nosso).

Acevedo Marin (2006, p. 79) atribui às festas de santo um papel central na construção do que chama de “[...] o território quilombola de Salvaterra [...]”, que envolve o conjunto das comunidades quilombolas de Salvaterra13. A autora evidencia que as relações afetivas no fazer festivo elaboram memórias, e os significados desse fazer ampliam, renovam e reatualizam as redes sociais, enfatizando a relação entre isso e o referido território quilombola, que abrange o conjunto das comunidades. O “[...] território quilombola de Salvaterra [...]”, a que se refere Acevedo Marin (2006, p. 79), corresponde à visão dos quilombolas sobre esse território. Ao sobrepor tal forma de ver o território à representação gráfica do ‘sistema de festas’, composto pelas festas que são dadas, recebidas

e retribuídas há anos, intra e entre as comunidades quilombolas de Salvaterra, pode-se verificar uma íntima correspondência, na qual esse sistema encontra-se bem no centro do território cartografado pelo PNCSA, como é demonstrado na Figura 2. Assim, podemos afirmar que: O ‘sistema de festas’ de santo e os ‘circuitos de festas’ que o constituem têm contribuído decisivamente, ao longo do tempo, para a construção de uma territorialidade mais ampla, que ergue pontes, cria laços, vínculos fortes e alianças políticas entre as comunidades – o que identificamos nas relações estabelecidas, criadas e recriadas entre as mesmas a partir dos percursos e gestos realizados durante os circuitos de festas de santo [que propusemos descrever] (Lima Filho, 2014, p. 162).

Mauss (2003a, p. 226) evidencia que “[...] é preciso haver caminhos, trilhas pelo menos, mares ou lagos por onde se possa viajar em paz. É preciso alianças tribais e intertribais ou internacionais [...]”. De certa maneira, pudemos verificar que entre as comunidades quilombolas de Salvaterra o ‘sistema de festas’ vem erguendo estas pontes, construindo estes caminhos e tendo importância fundamental na construção das alianças entre os coletivos que o compõem há gerações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme pudemos evidenciar, o conhecimento sobre o direito à titulação do território quilombola, garantido pela Constituição de 1988 (Brasil, 2001), chegou às comunidades de Salvaterra por meio do trabalho do CEDENPA, da UFPA e do programa Raízes. A partir de então, tendo as mulheres como principais protagonistas, por meio dos encontros de mulheres quilombolas, a autoidentificação propagou-se intra e entre comunidades, seguindo uma rede de alianças políticas que já existia e vinha sendo construída ao longo de várias gerações.

A autora Acevedo Marin (2006) enfatiza ainda que todas as comunidades se mobilizam para a festa de santo. Ela evidencia a existência de um ciclo santoral como dinamizador do mundo e como marca temporal, e que esse calendário é compartilhado e realizado com zelo pelas comunidades. Todas estas afirmações corroboram nossa percepção, fruto da pesquisa de que existe uma espécie de sistema de festas, com papel central na construção de alianças políticas intra e entre comunidades.

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Ao analisarmos os circuitos de festas intra e entre as comunidades quilombolas de Salvaterra, evidenciamos um dos nexos responsáveis pela tessitura das relações entre os vários grupos sociais. As festas de santo são elementos significativos, que criam fortes laços coletivos pelo conjunto de relações de reciprocidade criadas, reforçadas e atualizadas nestes momentos festivos, constituindo-se, assim, em fortes alianças políticas. Elas e a própria imagem do santo padroeiro construíram cada comunidade como uma unidade política, simbólica e territorial e já vinham propiciando a partilha dos territórios ao longo de décadas, criando, ao mesmo tempo, um território específico de cada comunidade e um mais amplo, envolvendo o conjunto destas comunidades. Com a apropriação do conhecimento sobre o direito ao reconhecimento e à titulação dos territórios coletivos, as comunidades, ao se autodefinirem como quilombolas, criaram um outro marco para as alianças políticas e para o fortalecimento de cada comunidade como unidade política, simbólica e territorial. Esta autodefinição permitiu que a diversidade existente em cada comunidade fosse reunida em torno de uma mesma bandeira – a do quilombo, do reconhecimento e da luta pela titulação dos territórios coletivos, nos moldes do artigo 68 do ADCT/CF (Brasil, 2002). No passado, a eleição de um santo padroeiro por uma coletividade era uma forma de autoidentificação como uma comunidade, uma unidade política, simbólica e territorial, além da participação nos circuitos de festas. Atualmente, a autoidentificação quilombola é o marco para as alianças políticas entre estas comunidades, ao se configurar como uma identidade étnica e política, que permite reconhecer uma diversidade ainda maior no interior delas e, com isso, ampliar a sua potencialidade coletiva. Não é por acaso que este novo marco das alianças políticas gerou novas festas, as quais não existiam antes no município de Salvaterra, tais como os “Jogos quilombolas” e os “Desfiles cívicos quilombolas”, cujo protagonismo está condicionado à autoidentificação como quilombola.

Novas festas para novos marcos de alianças continuam a iluminar a ligação estreita entre festas e alianças políticas e a reforçar a concepção de que as festas não apenas reproduzem, mas estão no centro da própria criação destes coletivos. Tanto os “Desfiles cívicos quilombolas” quanto os “Jogos quilombolas” são expressões políticas da vida e da (re)existência das comunidades quilombolas de Salvaterra e sugerem novas perspectivas para interpretar as relações entre festas e alianças políticas. Isso, no entanto, ficará para um próximo artigo.

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Ciclos econômicos do extrativismo na Amazônia na visão dos viajantes naturalistas Economic cycles of extractivism in the Amazon from the perspective of traveling naturalists Carlos Valério Aguiar Gomes Universidade Federal do Pará. Belém, Pará, Brasil

Resumo: Este artigo discute alguns ciclos econômicos do extrativismo na Amazônia, a partir das observações de naturalistas viajantes ao longo dos séculos. Embora estivessem engajados na coleta de material da flora e da fauna da região, os naturalistas fizeram importantes observações sobre as transformações socioeconômicas que ocorreram na região movidas por tais atividades extrativistas. As atividades extrativistas discutidas aqui são as drogas do sertão, dando maior atenção à coleta do cacau, à exploração de tartarugas e à extração de látex para a produção de borracha. A análise é baseada em relatos específicos dos naturalistas sobre a exploração de recursos naturais que caracterizaram períodos de expansão e de declínio da economia extrativista na região. Esse recorte proporcionou agrupar os relatos que tratam de temas comuns, criando uma percepção temporal dos principais recursos explorados segundo a visão dos viajantes naturalistas. De forma geral, seus relatos raramente são mencionados por autores que discutem a economia extrativista da Amazônia atualmente. Palavras-chave: Amazônia. Viajantes naturalistas. Ciclos econômicos do extrativismo. Abstract: This essay discusses some of the extractivist economic cycles in the Amazon through observations made by traveling naturalists over the centuries. Although these naturalists were primarily engaged in the study of flora and fauna, they made important observations about the socioeconomic transformations occurring in the region, which were driven by extractivist activities. Here we discuss the extraction of the so-called drugs of the Backlands, notably the harvesting of cocoa, turtle hunting, and extracting latex for rubber production. The analysis is based on specific accounts by naturalists on the exploitation of natural resources that characterized periods of expansion and decline in the extractive economy of the region. This delineation permitted accounts dealing with common themes to be grouped together, creating a temporal perception of the main resources which were explored in the view of the traveling naturalists. Broadly speaking, their reports are rarely mentioned by scholars who discuss the extractive economy of the Amazon today. Keywords: The Amazon. Traveling naturalists. Economic cycles of extractivism.

GOMES, Carlos Valério Aguiar. Ciclos econômicos do extrativismo na Amazônia na visão dos viajantes naturalistas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 13, n. 1, p. 129-146, jan.-abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222018000100007. Autor para correspondência: Carlos Valério Aguiar Gomes. Universidade Federal do Pará. Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (INEAF). Rua Augusto Corrêa, n. 1 – Guamá. Belém, PA, Brasil. CEP 66075-110 (valeriogomes@ufpa.br). ORCID: http://orcid.org/00000001-9697-7788. Recebido em 03/04/2017 Aprovado em 03/10/2017

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Ciclos econômicos do extrativismo na Amazônia na visão dos viajantes naturalistas

INTRODUÇÃO A Amazônia é uma região de superlativos, seja pela grande diversidade biológica ou pelas características socioculturais que possui. Colonizada durante o período mais intenso de interesse europeu pelo exótico, seja do Oriente, da África ou das Américas, especialmente nos séculos XVII e XVIII, proporcionou à literatura europeia valiosas obras escritas por missionários, autoridades de Estado e naturalistas. Assim como a maioria das regiões tropicais do planeta, a história econômica da Amazônia brasileira ao longo de vários séculos tem sido moldada por ciclos de prosperidade e de recessão econômica, sempre vinculada à exploração de algum recurso natural. Integrada à economia mundial há séculos, essa região experimentou um modelo de economia de exportação essencialmente extrativista logo após a colonização portuguesa, no século XVI, variando entre produtos extraídos, intensidade, ciclos de exploração e importância econômica (Bunker, 1984). Costa (2012, p. 21) conceitua ciclos econômicos a partir da [...] noção de que a economia em geral se estrutura com base na produção de um produto fundamental, ou de um conjunto de produtos entre si relacionados, e na relação respectiva com o mercado [internacional] [...], experimenta uma fase de expansão e, depois, ou é relegado a um plano secundário, ou desaparece completamente [...]

Este conceito caracteriza substancialmente os períodos de exploração extrativista ao longo da história econômica da região, e uma de suas características é que foram marcados por momentos de intensa exploração e por subsequente declínio das atividades associadas ao recurso natural a que estavam atreladas, por uma variedade de razões, entre limitações de mão de obra, esgotamento dos recursos explorados, logística de infraestrutura e distância dos mercados, além de substituição por plantações em outras regiões (Bunker, 1984; Dean, 1989; Homma, 1993). No período colonial, a região começou a abastecer o mercado europeu com especiarias e óleos de origem animal, sendo caracterizado como o ciclo das drogas do sertão,

ocorrido na primeira metade do século XVII, o qual perdurou até o início do século XVIII. Aproximadamente no mesmo período, o ciclo do extrativismo e do plantio semidomesticado do cacau nativo (Theobroma cacao L.) foi a primeira atividade de grande importância econômica na região, tendo se mantido de forma significativa até a época da Independência do Brasil, quando foi suplantado pelos plantios da Bahia (Alden, 1974; Homma, 2014). Até 1910, a Amazônia forneceu a maior parte da borracha para automóveis e outras máquinas, o que transformou as indústrias americana e europeia (Bunker, 1984), configurando o mais emblemático período de economia extrativista, o ciclo da borracha (Weinstein, 1983), que entrou em colapso com a introdução da seringueira (Hevea brasiliensis M. Arg.) no sudeste asiático (Dean, 1989). O extrativismo ou uma economia extrativa é, no sentido mais básico, uma maneira de produzir bens na qual os recursos são retirados diretamente da sua área de ocorrência natural, sendo a coleta de produtos vegetais, a caça e a pesca os três exemplos clássicos de atividades extrativistas (Drummond, 1996). Segundo Homma (2014, p. 18), as atividades extrativas com baixa tecnologia, como no caso da Amazônia, “[...] se iniciam, passam por uma fase de expansão, de estagnação e depois declinam, no sentido do tempo e da área espacial”. Para este autor, o extrativismo enquanto ciclo econômico constitui-se de três momentos. No início, observa-se crescimento da extração, provocado pelo aumento de demanda; isto provoca um segundo momento, caracterizado pelo limite da capacidade de oferta, devido aos estoques disponíveis e ao aumento de custos para exploração de áreas mais distantes. Por último, inicia-se o declínio na produção devido ao esgotamento das áreas de extração, não sendo possível atender à demanda de mercado, o que influencia esforços para investimentos de capital e de tecnologia para domesticação e plantio dos produtos com significância econômica e demanda. O modelo de Homma (2000, 2014) tem uma base empírica relevante, porém, pouco considera que há diferença profunda entre uma empresa mercantil-capitalista explorando um recurso extrativista como seu único produto

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de exportação, buscando atender à demanda do mercado industrial internacional, e as populações extrativistas, com ‘racionalidades’ que não se guiam apenas pela lógica do lucro. Este modelo é baseado principalmente na dinâmica econômica e considera o estoque de produtos extrativistas como ‘estáticos’, por isso, quando aumenta a demanda, os produtores logo chegam à sua capacidade máxima, fazendo com que os preços continuem subindo, compensando a domesticação ou a substituição por produto sintético. Esta abordagem é apenas parcialmente apropriada, visto que hoje existe uma diversidade de tecnologias de manejo de recursos extrativistas aptas a serem aplicadas para garantir o estoque de recursos com princípios de sustentabilidade e produção de longo prazo. Assim, é importante considerar que existe uma perspectiva de melhoria tecnológica dos sistemas tradicionais de extrativismo, com inovações que podem vir tanto na forma de progresso da produtividade, através de manejo dos recursos, como na forma da descoberta de novos produtos e serviços que a floresta pode proporcionar. É preciso considerar também que as atividades da economia extrativista não acontecem em um vácuo político, e que tanto as políticas de subsídio quanto os investimentos em infraestrutura, ciência e tecnologia, formação e capacitação, marketing, entre outros, são decisões políticas, fruto das correlações de força entre os atores sociais, e não apenas reflexos ‘racionais’ dos equilíbrios entre oferta e demanda de determinado produto. As atuais estratégias de desenvolvimento para a Amazônia brasileira continuam sendo configuradas a partir da perspectiva de integração econômica da região à economia global, com o contínuo modelo de ciclos econômicos baseado na exploração e na transformação de recursos extrativistas. Isso promove os mesmos padrões de ciclos econômicos iniciados séculos atrás, com descontinuidade e invariâncias compreensíveis no quadro de uma diversidade estrutural que se forma por alternativas de superação de obstáculos à acumulação de capital (Costa, 2012), e repete ciclos extrativistas temporários, os quais intensificaram as múltiplas desigualdades no mercado de produtos extrativos (Bunker, 1984).

Porém, princípios de sustentabilidade trouxeram recentemente também para a região novos olhares, promovendo mudanças significativas nas formas de exploração de recursos naturais. Nesse contexto, novos cenários de desenvolvimento extrativista regional florescem em novas configurações, diferentes escalas e intensidades, pautados na exploração racional de recursos, na valorização de identidades e do conhecimento tradicional de populações agroextrativistas, com reconhecimento do papel destas populações para a conservação ambiental. Isto tem sido fortalecido pelo reconhecimento dos territórios destas populações, pelo emprego de novas tecnologias de exploração extrativista, aliadas à formulação de políticas públicas inovadoras para o desenvolvimento extrativista regional (Rego, 1999; Almeida, 2004; Allegretti, 2008; CGEE, 2011; Gomes et al., 2012). Assim, embora ainda perdure o modelo dominante de exploração econômica baseado em padrões de crescimento e na estagnação de ciclos extrativistas enraizados há séculos, novos padrões de desenvolvimento extrativista podem, através de diferentes arranjos econômicos e sociais, favorecer a promoção de ciclos econômicos de longo prazo, com variáveis que vão além das forças de mercados, agregando equidade de benefícios aos provedores que mantêm estes recursos naturais e sustentabilidade na exploração dos recursos extrativistas. O objetivo deste artigo é resgatar observações dos viajantes naturalistas sobre os principais ciclos econômicos do extrativismo na Amazônia ao longo dos séculos. Entretanto, não temos a pretensão de traçar uma completa historiografia da abundante literatura de viajantes na região. Não trataremos também dos relatos dos viajantes sobre questões político-econômicas, associadas a questões de poder sobre a região, assim como evitaremos as observações sobre os povos indígenas, no que diz respeito a estudos etnográficos e às relações de dominação sofridas por esses povos. Desta forma, a análise foi restrita aos relatos que abordam especificamente a exploração de recursos naturais que caracterizaram períodos de expansão e de declínio da economia extrativista na região ao longo

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dos séculos. Em seguida, os relatos foram agrupados em temas comuns, proporcionando uma visão temporal do processo, assim como a observação dos principais recursos naturais explorados na visão dos viajantes naturalistas. As principais atividades econômicas extrativistas discutidas são a coleta de drogas do sertão, a extração de cacau, a exploração de tartarugas e a extração de

látex para a produção de borracha. Reconheço que, restringindo este ensaio a tais produtos, deixamos de abordar outras atividades extrativas que tiveram alguma importância para a economia regional. A Figura 1 demostra o período de início, de evolução e de declínio das referidas atividades extrativistas a partir do século XVIII até o século XX1.

Figura 1. Amazônia: principais atividades extrativistas: A) drogas do sertão; B) cacau; C) borracha. Fontes: adaptado de Costa (2010), Santos (1980) (A e B); e de Santos (1980), Barata (1944), Homma (1993) e IBGE (2005) (C). Sobre as fontes, Costa (2010, p. 202-204) agrega e transforma em toneladas dados de Dias (1970, p. 316-360) sobre a exportação de cacau e outros produtos extrativistas, caracterizados como “drogas do sertão”, mensurados em arrobas no período de 1756 a 1777, bem como dados de Alden (1974, p. 60-62) sobre a exportação de cacau, mensurada em libras no período de 1730 a 1822. Com este procedimento metodológico, produz uma série histórica para o período de 1720 a 1822, permitindo comparação entre subperíodos. Dados da produção de cacau para o período de 1850 a 1910 foram extraídos de Santos (1980, p. 70, 182). A Figura 1C foi adaptada de dados de Santos (1980, p. 52, 66), para o período de 1830 a 1890; de Barata (1944, p. 109), para o período de 1900 a 1940; e de Santos (1980, p. 66), Homma (1993, p. 24) e IBGE (2005), para o período de 1960 a 2000. Na Figura 1, não foi possível agregar informações de exploração de tartaruga visto que os dados quantitativos são baseados em relatos pontuais e também devido à dificuldade de formular uma unidade de análise quantitativa para os vários usos da extração do produto, especialmente para a produção de óleo de iluminação e a fabricação de manteiga.

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Os viajantes naturalistas aqui reportados eram, na sua maioria, ingleses, franceses e alemães, com formação nas áreas de botânica, zoologia, biologia, geografia e medicina. Esses personagens percorreram extensas regiões do rio Amazonas e seus tributários, em um esforço de estudo e de coleta de espécimes da fauna e da flora da região. Alguns permaneceram por mais de uma década vivendo e explorando a Amazônia. Especialmente, a partir do século XVIII, e já com um forte olhar iluminista, os naturalistas, como agudos observadores da natureza, contribuíram imensamente para que os estudos científicos sobre a região tomassem corpo, acrescentando valiosa parcela ao estoque de conhecimento sobre a região. Além do interesse sobre o ambiente natural, esses viajantes também viam importância na história e nos costumes locais, fato que aguçou as suas observações acerca das características socioculturais e econômicas da região. Seus relatos oferecem extraordinárias e vívidas descrições de costumes e de uso e exploração de recursos extrativistas do local. Cada viajante transmite uma compreensão da região através de sua própria percepção do meio natural e sociocultural. Embora a maioria das incursões amazônicas aqui abordadas está situada em um tempo remoto, elas nos permitem construir perguntas, relacionando-as aos cenários atuais, tais como: Quais foram as principais causas da sobre-exploração de alguns recursos naturais? Quais sugestões são dadas a nós através da obra desses naturalistas? Qual é a vantagem de ler seus minuciosos relatos? Obviamente, responder a esses questionamentos extrapola o escopo deste artigo. Ainda assim, estas perguntas se prestam a estabelecer uma reflexão sobre os cenários atuais quanto à exploração de recursos extrativistas na região.

negociado em 1494. Espanhóis e portugueses estavam entusiasmados para explorar a Amazônia, à procura do ‘Eldorado’, uma lenda que perdurou por todo o início da história econômica do Novo Mundo. No primeiro momento, a riqueza biológica do ambiente natural da região, despertava pouco interesse desses viajantes exploradores, e seus esforços estavam voltados à procura de riquezas minerais já conhecidas, sobretudo de ouro e de prata. As suas especialidades eram relacionadas à marinha, ao exército e ao mercantilismo e os seus relatos têm em comum a descrição de imagens exóticas e fantasiosas, fato que influenciou a criação de várias lendas e mitos sobre a região. Francisco Orellana, o explorador espanhol que acompanhou Francisco Pizarro na conquista do Peru, foi, quase por acidente, o primeiro homem a liderar uma expedição descendo o rio Amazonas, em 1542. A expedição saiu de Quito, no Equador, e chegou à foz do rio Amazonas dois anos e oito meses depois. Em vez de ouro e prata, ele e seus homens encontraram fome, doenças e tiveram que lutar para sobreviver. Orellana e seus homens passaram por muitas penúrias em sua expedição no desconhecido vale amazônico, como podemos notar nas descrições de Frei Gaspar de Carvajal, editadas por Medina (1988), no livro “The discovery of the Amazon”:

OS PRIMEIROS EXPLORADORES: SÉCULOS XVI E XVII Durante os séculos XVI e XVII, os primeiros viajantes exploradores estavam ligados à Coroa Portuguesa e Espanhola, como resultado do Tratado de Tordesilhas,

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E quando os membros da força expedicionária, tendo ido até esta distância, viram a junção e compreenderam que não teriam nenhum alívio em termos de alimento, porque tinham continuado e não havia nenhum meio de achar qualquer alimento, eles tornaram-se grandemente desencorajados, porque durante muitos dias a força expedicionária inteira não tinha comido nada senão broto de palmeira e alguns caroços de fruta que eles acharam no chão e que tinham caído das árvores [...], sem qualquer outro tipo de alimento, muitos membros da força expedicionária ficaram doentes, e alguns estavam fracos, enquanto outros morreram de fome, visto não estarem em condição de ir mais longe [...] (p. 57, tradução nossa). “Daqui em diante”, diz Carvajal, “suportamos mais adversidades e mais fome […] porque o rio ia com mata fechada nas duas margens e nós não


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achamos nenhum lugar para dormir e muito menos podia qualquer peixe ser pescado, de modo que era necessário para nós manter o nosso alimento habitual, que consistia de ervas e, de vez em quando, um pouco de milho assado” (p. 100, tradução nossa). [...] aqui nós nos vimos em uma situação muito difícil, a mais difícil que havíamos caído ao longo do curso do rio e nós todos pensamos que iríamos morrer, porque de todos os lados flechas estavam sendo atiradas em cima de nós [...]. Pedimos a nosso senhor Jesus Cristo para nos ajudar e nos favorecer como tinha feito sempre nesta viagem, e [para nos proteger como] um povo que estava perdido sem saber onde estava e para onde estava indo ou o que iria acontecer conosco [...] (p. 229, tradução nossa).

As crônicas de Carvajal, ao registrarem os acontecimentos durante a viagem, são consideradas por muitos como excessivamente fantasiosas, tendo como exemplo maior a lenda das Amazonas. Contudo, em que pese os evidentes exageros, são os primeiros relatos da história escrita sobre a Amazônia. Depois da expedição de Orellana, por um período de quase cem anos, poucos exploradores engajaram-se em novas tentativas de explorar o ambiente amazônico. Posteriormente, teve início a abertura de diversas rotas na região amazônica para se alcançar riquezas. Nesse período, a prévia demarcação da linha do Tratado de Tordesilhas era continuamente contestada entre Portugueses e Espanhóis, que tentavam dominar a região. A Coroa Portuguesa, depois de sofrer invasões de espanhóis, franceses, holandeses e ingleses, procurou exercer maior influência, expandindo os seus territórios na região, na tentativa de fechar a entrada do rio Amazonas para os estrangeiros. É nesse contexto que Belém foi fundada, em 1616. O Tratado de Tordesilhas foi formalmente revogado em 1750. Até então, missionários e aventureiros moveram-se para a região e estabeleceram pequenas colônias e missões, com o objetivo de expansão territorial. Cristóbal Acuña, um jesuíta que acompanhou o português Pedro Teixeira no seu retorno de Quito a Belém, no fim da década de 1630 – durante uma viagem

de dez meses pela Amazônia, na metade do século XVII –, trouxe uma importante contribuição para a história da região. Suas descrições foram além dos relatos iniciais de luta para sobreviver a perigos extremos, incluindo os primeiros levantamentos não só da importância econômica da região, como também descrições dos recursos extrativistas, com detalhes sobre elementos aquáticos e de diversas plantas e frutas, assim como sobre os seus potenciais para a agricultura. Acuña (1994 [1641], p. 89) ressalta que “[...] há neste grande rio das Amazonas quatro coisas que, se bem cultivadas, serão sem dúvidas suficientes para enriquecer não apenas um, mas muitos reinados [...]”, referindo-se à madeira, ao cacau, ao tabaco e à cana-de-açúcar – o cultivo desta última sendo, de fato, tentado posteriormente, porém com pouco sucesso. Seu livro “Novo descobrimento do grande rio das Amazonas” (1641) relata essas potenciais riquezas através da economia extrativista: Não só esses gêneros poderiam neste novo mundo descoberto assegurar o suficiente para enriquecer todo o orbe, como muitos outros que, mesmo em menor quantidade, não deixariam de ajudar o enriquecimento da Coroa Real. Tais são o algodão, que se colhe abundantemente; o urucum, do qual se extrai um excelente corante; o açafrão, muito apreciado pelos estrangeiros; a canafístula; a salsaparrilha; os óleos, que competem com os melhores bálsamos para a cura de feridas; as gomas e resinas perfumadas; a pita, da qual se obtém uma fibra de excelente qualidade e que cresce em grande abundância; e muitos outros produtos que a cada dia a necessidade e a cobiça hão de descobrir [...] (Acuña, 1994[1641], p. 91-92).

Com o aumento do interesse por produtos extrativistas dotados de potencial valor econômico, uma diversidade de gêneros, muitos já usados pela população local, passou a ser comercializada e a sua coleta estimulou o contínuo processo de penetração nos grandes rios na Amazônia. Esses produtos coletados ficaram conhecidos como drogas do sertão, e se tornaram importantes fontes de renda, monopolizada pela metrópole portuguesa no final do século XVII.

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A vinda da Coroa Portuguesa ao Brasil, em 1808, foi um marco para o aprofundamento do conhecimento do meio natural da região, além de favorecer a expansão comercial, com a abertura dos portos da Amazônia. Viajantes naturalistas europeus foram incentivados a inventariar a riqueza natural da região, inaugurando um novo período de produção de conhecimento. As expedições lideradas por naturalistas ganharam um forte caráter científico (Gomes, 2006).

OS NATURALISTAS: SÉCULOS XVIII, XIX E XX Viajantes dos séculos XVIII e XIX, amparados por instituições científicas, buscaram aprofundar a aquisição de conhecimentos sobre o ambiente natural que havia sobre a região até a época. Charles-Marie de La Condamine, um cientista e explorador francês, representou uma grande mudança para uma era de pesquisas científicas e de descobertas na Amazônia. La Condamine desceu o rio Amazonas a partir de Quito até a sua foz, no final de 1744. La Condamine inspirou Humboldt, que, apesar de não ter conseguido permissão para entrar na Amazônia, inspirou outros importantes naturalistas a viajarem por ela, tais como Spruce, Wallace e Bates, que, conjuntamente, realizaram vasta coleta de material zoológico e botânico da região. Diversos outros naturalistas se dedicaram por anos em expedições científicas no rio Amazonas e seus tributários, especialmente no século XIX. Citando alguns, Von Martius e seu colega Spix, a partir do Pará, em 1820, navegaram juntos parte dos cursos dos rios Amazonas e Japurá. Spix seguiu adiante, subiu pelo rio Amazonas até Tabatinga no mesmo ano. Lieutenant Smyth, da Marinha britânica, desceu o Huallaga e atingiu o Ucayali e o Amazonas, em 1835. O príncipe Adalberto, da Prússia,

subiu pelo rio Xingu, em 1842, até a Volta Grande (hoje, região de Belo Monte). Em 1852, Lieutenant Herndon, da Marinha norte-americana, seguiu o caminho do capitão inglês Smyth, penetrou o Purus e desceu os rios Mamoré e Madeira. O segundo visava reportar ao Congresso americano a importância de abrir o Amazonas à navegação internacional (Gomes, 2006). Esses naturalistas viajavam por meses para atingir as mais longínquas áreas, muitas das quais hoje se pode atingir em dias. Seus esforços e sua dedicação para inventariar a riqueza natural da região contribuíram significativamente para o acúmulo de conhecimento e abriram novas linhas de pesquisas sobre o ambiente natural estudado até hoje. Embora os objetivos desses viajantes naturalistas fossem científicos, motivações econômicas estimularam a coleção de amostras de plantas e de animais. Os jardins botânicos europeus do século XIX já eram dotados de estruturas apropriadas para a propagação de germoplasma, que, subsequentemente, eram enviados para as colônias europeias. Tais coleções proporcionaram a inclusão de alguns desses naturalistas na história europeia, conhecidos primeiramente como responsáveis por coleções exóticas e com pouca notoriedade comercial e, posteriormente, como a base para um substancial empreendimento econômico.

DROGAS DO SERTÃO As chamadas drogas do sertão, expressão usada para caracterizar produtos florestais no interior da região, representaram o primeiro esforço para extrair as especiarias lucrativas da floresta no período colonial na Amazônia. As principais foram cravo, salsaparrilha (Smilax), cacau e outras menos importantes, como urucum e copaíba, como descrito por Daniel (1976, p. 61)2:

Padre João Daniel (1722-1776), um jesuíta, chegou na Amazônia em 1741, aos dezenove anos de idade, e lá viveu até 1757. Com a expulsão dos jesuítas da Amazônia, ele foi aprisionado em Lisboa pelo Marquês de Pombal, em 1757, ficando dois anos na cadeia, onde escreveu a obra “Tesouro descoberto no rio Amazonas”, publicada em português em 1976 pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, a qual aborda diversos aspectos da Amazônia, tais como flora e fauna, costumes e religiosidade dos nativos e, especialmente, aspectos da agricultura por indígenas e colonos, assim como o comércio das drogas do sertão. O ‘tesouro’ do título da sua obra certamente demonstra a visão mercantilista de buscar o enriquecimento nas colônias.

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Quando partem estas canoas as colheitas do sertão, já vão determinadas a alguma carga principal, v.g. cravo, ou salsaparrilha, ou cacao; e destes haveres fazem o principal negócio, mas depois de segurarem esta principal carga, também se aproveitam do bálsamo de copaíba, da baunilhas; e de muitos outros haveres, que ha, e encontram pelos matos. Contudo se não acham a grande, e principal carga, já se não tem por bem sucedidos por mais que façam, ou achem de outros haveres; e ordinariamente não achando aquela, ficam perdidas as canoas, porque não achando v.g. o cacao, que buscavam naquelas paragens talvez por não ser ano dele naquele rio, descoberta a falta, se vem obrigados a buscar outro rio, e largar aquela feitoria, e como estas paragens, e rios são tão distantes, gastam o tempo, e muito mais para levantarem as feitorias, com o risco de tão bem ali não achar carga;…acusando porém boas colheitas na primeira feitoria, e nas matas vizinhas, donde as vão conduzindo uns por terra, outros nas canoinhas, e as vezes em tanta abundancia, que sobeja para carga de muitas canoas; depois de ja ou não acharem mais, ou não quererem mais [...]

Drogas do sertão eram encontradas tanto nos ambientes de terra firme como nos de várzea. Com o avanço da exploração, os empreendedores viram-se forçados a alcançar áreas mais remotas para encontrar tais produtos, visto que as mais acessíveis foram rapidamente exauridas. Observações feitas por Sampaio (1825), quando viajou pelo rio Negro em 1774-1775, demonstram a expansão da economia das drogas do sertão pelos tributários do rio Amazonas: Entre os rios tributarios do Amazonas, elle dandolhe extraordinaria porção de águas, he tambem o que produz nas suas margens, e extensas matas quantidade de cacao, salsa parrilha, e oleo de cupaiva, generos, que annualmente se lhe extrahem pelas embarcações das capitanias do Pará, e Rio Negro, e em que consiste o seu principal commercio das drogas do sertão [...] (Sampaio, 1825, p. 18).

Porém, a economia das drogas do sertão enfrentou muitos problemas relacionados com a realidade socioeconômica da colônia. O comércio era severamente limitado pelas circunstâncias da produção, como por exemplo, a irregularidade das quantidades extraídas de um ano para o outro. Além disso, o comércio no Pará acontecia inteiramente em uma base de longo prazo, visto que os produtores raramente tinham grandes estoques armazenados, uma vez que eram produtos perecíveis e, como hoje, a coleta era rarefeita. Como a produção extrativista era a mais importante, ou até mesmo a única fonte de renda governamental na colônia, as instituições governamentais aumentaram os impostos e as taxas de licenciamento das expedições para a coleta das drogas do sertão. Somadas a estes fatores, as expedições coletoras eram longas, custosas e de alto risco, contribuindo para o colapso da extração e do comércio de tais produtos. Vejamos a seguir o caso específico do cacau.

CACAU Embora o cacau seja nativo da Amazônia, a origem do chocolate remonta às civilizações pré-colombianas da América Central. Este produto tornou-se a mais importante fonte de bebida que os europeus encontraram depois de sua chegada ao Novo Mundo3. Acuña (1994[1641]) durante a sua descida de Quito a Belém, pelo rio Amazonas, fez o seguinte relato sobre a fruta: O cacau, de que estão suas margens tão cheias, que, algumas vezes, as madeiras cortadas para o alojamento de toda a tropa não eram outras senão as das árvores que produzem esse fruto bastante apreciado na Nova Espanha ou em outro lugar qualquer, onde se saiba o que é o chocolate. Beneficiado, ele se torna de tanto proveito, que

Uma discussão sobre as primeiras observações dos europeus a respeito do cacau na América é fornecida por Alden (1976), segundo o qual a primeira observação europeia sobre este produto aconteceu em 1502, durante a quarta viagem de Colombo ao norte da costa de Honduras, onde ele interceptou uma canoa de índios cuja carga era composta por sementes deste fruto. Muitos especialistas continuam a debater a origem da domesticação do cacau, porém o candidato mais provável é a Amazônia. Smith (1999, p. 31) defende que o cacau é nativo da Amazônia ocidental, pois ocorre em terra firme e ao longo das várzeas de rios de água clara, como o Purus. Porém, ele especula que é difícil distinguir onde este fruto foi artificialmente introduzido ou “plantado pela natureza” no vale amazônico.

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cada cacaueiro pode render, anualmente, oito reais de prata, livres de quaisquer despesas. E bem se pode ver com quão pouco trabalho se cultivariam tais plantas neste rio, pois, sem nenhum artifício, a natureza sozinha as enche de abundantes frutos [...] (Acuña, 1994[1641], p. 89-90).

O hábito de beber chocolate, o que antecipa o gosto pelo café por mais de um século na Europa, foi sempre considerado um aparato de luxo (Smith, 1999). O crescente gosto por bebida de chocolate ocorreu na Espanha e em outros países europeus, contribuindo para a demanda do cacau da Amazônia e levando a Coroa a tentar promover o desenvolvimento de plantações deste fruto na região durante as últimas décadas do século XVII. Tais esforços incluíram o estabelecimento de plantações demonstrativas perto de Belém, para que os produtores pudessem aprender os melhores métodos de seu cultivo. Além disso, o governo liberou oficiais portugueses na colônia da costumeira proibição de sua participação no comércio, permitindo-lhes exportarem cacau em seu próprio benefício econômico. Segundo Alden (1976, p. 115, tradução nossa), “[...] em 1681, o governo português declarou a exportação de cacau isento de todas as taxas pelos seis anos seguintes e se responsabilizou pela metade dos impostos por mais quatro anos”. Apesar de tais medidas, este foi um produto de exportação significativo na Amazônia apenas no início do século XVIII. Ainda, quando foi atingida uma produção com capacidade de exportação, a grande maioria do fornecimento deste produto era feita a partir da extração de cacau nativo, conforme apontado por Daniel (1976, p. 278): Tem socedido muitas vezes serem no Amazonas tão abundantes, e copiosas as colheitas de cacao, que não sendo bastantes para o seu embarque, e transporte para a Europa os navios, e frotas anuaes, tem ficado na terra muita cópia, cujos donos se vem obrigados a esperar um ano inteiro por outra frota para o poder embarcar; e pelo decurso de todo o ano se vem precisados a andar com ele repetidas vezes aos sol para senão corromper, ou para que lhe não se salte o gorgulho, e se perca todo, como muitas vezes socede [...]

A dependência na extração do cacau nativo foi uma das características deste comércio na Amazônia durante o século XVIII. Observações feitas por Sampaio (1825, p. 20) indicam que o cacau “plantado pela natureza” era extremamente abundante no rio Purus: “[...] fica neste lugar hum extenso cacoal plantado pela natureza, que agora estava em flor, e prometia abundante colheita. A elle vem annualmente as canoas do commercio fazer as suas cargas [...]”. Um fatorchave era que o cacau nativo crescia abundantemente nas várzeas do rio principal, especialmente entre Belém e as cidades de Óbidos e de Santarém, rio acima. Podiam-se também encontrar facilmente exemplares desta espécie ao longo das margens de alguns dos tributários principais do rio Amazonas, tais como o Negro, o Trombetas e o Madeira. Em contraste, o cacau plantado levava cinco anos para atingir a maturidade, comprometendo, assim, recursos financeiros, que, de outra maneira, poderiam ser usados para o financiamento das missões de coleta. Além disso, outro fator era o costume: visto que o uso de canoa era indispensável na Amazônia, e os índios possuíram um incomparável conhecimento dos recursos da planta na região, o despacho de expedições de coleta era uma extensão óbvia de um mecanismo de comércio já existente. Finalmente, os índios não se adaptaram bem para o trabalho manual arregimentado, requerido nas plantações do cacau, e estavam sempre propensos a desertar (Alden, 1976). O cacau tornou-se o produto dominante de exportação da Amazônia durante a era colonial e permaneceu assim até a entrada do século XIX. Ele continua a crescer no médio e no baixo Amazonas até hoje, embora o seu poder no mercado de exportação tenha entrado em colapso com o crescimento da produção de cacau na Bahia, no fim do século XIX. A Bahia tornou-se um importante produtor de cacau porque, até a década de 1980, estava livre da doença chamada vassoura-de-bruxa.

TARTARUGA Como pode ser esperado em um ambiente ‘dominado’ por água, alguns recursos aquáticos, tais como as

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tartarugas, tiveram grande importância na economia e na dieta regional, especialmente durante o período colonial. A exploração em larga escala de tartarugas servia tanto aos mercados domésticos como aos de exportação. Isso porque tartarugas forneciam carne fresca e salgada, gorduras, assim como os cascos eram usados para fazer joias e pentes, além do uso de ovos para a produção de manteiga e de óleo. Este último artigo, produzido da gema do ovo, era usado para algumas funções domésticas, como cozinhar e iluminar a casa. Além disso, também representava uma indústria importante da região de várzea, quando vilas inteiras se engajavam na coleção de ovos e na produção de óleo durante certo período do ano. Sampaio (1825), que viajou pelo rio Amazonas em 1774 e 1775, apresentou uma boa imagem de como os recursos da tartaruga eram explorados para o consumo familiar e comercial na Amazônia: Fomos nestes dias seguindo a viajem pelas correntezas do nosso Amazonas, e ayistando extensas praias, que estavão cheias de gente, que tinhão vindo a ellas fabricar manteigas de ovos de tartarugas…nos mezes de outubro e novembro sahem as tartarugas a desovar e em tão grande número, que enchem huma praia, e ainda ficão muitas a borda da agua, esperando, que as outras se recolhão para ellas sahirem. Abrem uma cova na arêa, e logo que ahi largão os ovos, que costumão ser até o número de sessenta e quarto cada ninhada, os cobrem da mesma arêa, e com tal arte, que alizão a superficie, para que não possa ser conhecido o lugar. Em quinze dias sahem as tartaruguinhas, e vão direitas a água por hum singular instinto. No tempo, em que as tartarugas estão nas praias, he que se faz o maior provimento, porque se lança mão dellas, e se virão com as costas para a terra, ficando assim impossibilitadas a moverem-se, e se carregão para as embarcações. Os ovos não só servem para se comerem, mas tambem delles se fabrica o azeite, ou manteiga, que constitue hum importante ramo do commercio entre as capitanias do Pará, e Rio Negro. Este azeite se purifica ao fogo. Das banhas da tartaruga se extrahe tambem outra manteiga, que he na verdade excellente. Em fim a tartaruga he sadia, nutritiva, e de facil digestão. Os indios a preferem a todo o outro genero de comida, e os nossos europeos, costumados a ella, lhe dao a mesma preferência [...] (Sampaio, 1825, p. 86).

No início do século XVIII, a coleta de ovos de tartarugas no alto rio Amazonas atingia a quantidade de vinte e quatro milhões de ovos por ano. Por volta da metade do século XIX, estes dados foram duplicados, excedendo a extração de 48 milhões de ovos por ano (Smith, 1974). A transformação de 2.000 ovos de tartaruga em apenas um galão de óleo utilizado para a iluminação demonstra como a economia extrativista na região envolveu desde cedo certa falta de preocupações sobre os níveis de extração de recursos. Alexandre Rodrigues Ferreira, um naturalista brasileiro que estudava na Universidade de Coimbra e veio para a Amazônia a serviço do governo português, durante o período de 1783-1792, fez muitas observações sobre a magnitude da exploração de tartarugas na região: Sabem já os pescadores que nos meses de outubro a novembro até dezembro saem as tartarugas às praias, fazem covas na areia, onde desovam 100, 120 até 150 ovos. Para isso embarcam em canoas maiores, já na certeza de uma maior safra. Ficam à espera até que saiam numerosas delas às praias e quando percebem que a quantidade é suficiente, lhes assaltam repentinamente, virando-as com a barriga para cima, maneira pela qual apanham maior quantidade, privando-as de locomoção. Não consiste a colheita apenas nisso, porque depois de seguras as tartarugas, retiram-se também os ovos que foram postos nas covas, que após serem mantidos 4 a 5 dias no sol e ao se tornarem meio decompostos, é que fazem manteiga, com a qual se ilumina quase todo os Estado […]. Quando os ovos são preparados frescos colocam-nos numa canoa reservada de propósito para esse uso e amassam-nos com os pés como em Portugal se faz para as uvas. Sobre os ovos pisados lançam água, que depois de bem mexida e incorporada com eles deixa sobrenadar o óleo. Com a mesma água se dissolve muita parte da clara. O óleo sobrenadante é retirado com cuias ou conchas e lançado dentro de tachos. Vão ao fogo, sendo posteriormente esfriados em panelões à parte, e daí mudados para os potes. Dizem os práticos que onze ninhadas dão um pote de manteiga. Uma canoa provida de gente hábil, em ano que não corra mal, faz cerca de 1.000 potes e nas grandes safras, dobram essa quantidade [...] (Ferreira, 1972, p. 27).

A dieta alimentar de populações ribeirinhas era fortemente concentrada em recursos aquáticos, incluindo a

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carne de tartaruga, também apreciada na dieta dos próprios viajantes e de seus acompanhantes. Brown e Lidstone, viajando pela região em 1873, fizeram descrições sobre a captura dos animais para a sua tripulação e narraram como eram estocadas em currais, após a captura por ribeirinhos dos tributários do rio Amazonas. A ilustração de Marcoy (Figura 2), um naturalista francês que veio para a Amazônia na mesma época, retrata tais descrições: De manhã bem cedo é a hora favorita para depositar os ovos, e algumas vezes os homens desembarcavam um pouco antes da gente ancorar para interceptar as tartarugas no seu retorno para a água. Eles algumas vezes pegavam uma ou duas, mas quando a manhã chegava nós fazíamos uma gloriosa aquisição. O “Guajara” fazia a volta, e nós podíamos ver praias abertas que eram literalmente pretas com centenas delas. As cabeças de outras centenas apareciam na superfície da água na beira da praia, como muitas

cortiças flutuando na água. Neste sinal o barco era desligado e rapidamente reduzido, e vários homens corriam para capturar todas que eles podiam [...] no final de uma hora trinta tartarugas largas foram colocadas a bordo do “Guajara” – o máximo que nós podíamos carregar convenientemente – e as outras eram viradas de volta e permitidas a escapar. Um estoque de carne fresca para muitos dias foi então conseguido. Nós frequentemente víamos neste e em outros tributários, como também no rio principal pequenos currais/tanques fechados atrás das casas dos moradores com estoque de tartarugas nele; e sempre ouvíamos os moradores dizerem, como uma forma de piada meiga “o gado do Amazonas” [...] (Brown; Lidstone, 1878, p. 431-432, tradução nossa).

Bates, um entomologista inglês que viveu na Amazônia durante onze anos (1848-1859), durante a sua estada em Tefé, no alto Amazonas, fez o seguinte relato sobre o tamanho das tartarugas e sobre as viagens para capturas delas:

Figura 2. Processo de estocagem de tartarugas em currais por populações ribeirinhas. Fonte: Marcoy (1873).

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As tartarugas atingiam enormes proporções no trecho superior do rio, chegando a medir quando adulta quase um metro de comprimento por sessenta centímetros de largura e os habitantes se alimentavam de tartaruga durante a maior parte do ano e toda casa tinha um pequeno tanque no quintal para manter um estoque de tartarugas durante a estação chuvosa; e quando as águas baixavam, as pessoas que possuíam empregados indígenas enviavam-nos em viagens que chegavam a durar um mês a fim de renovar os seus estoques de tartarugas [...] (Bates, 1863, p. 212, tradução nossa).

Bates (1863, p. 212, tradução nossa) continua suas observações e diz que no intervalo de apenas onze anos começou a ver o início do declínio das tartarugas na região: “Quando eu cheguei em 1850, era possível comprar com certa facilidade uma tartaruga de tamanho médio por pouco mais de meio xelim, mas quando eu parti em 1859 já era difícil adquiri-las por oito ou nove xelins [...]”. Spruce, um inglês que durante 15 anos viveu na Amazônia (1849-1864) fazendo estudos botânicos, fez relatos na região de Santarém, em 1851, sobre a diversidade de pratos preparados com tartaruga, dando a dimensão da importância deste animal na dieta alimentar local: Santarém está localizada a pouca distância abaixo das grandes áreas de tartaruga, e quando elas aparecem isto é muito precioso. Aqui nós estamos no centro da região de tartarugas, e nós nunca sentamos para almoço ou jantar (as duas refeições diárias dos brasileiros) sem tartaruga em várias formas. Eu não sei em quantas formas é preparada, mas nós nunca tivemos menos de cinco diferentes pratos de tartarugas na mesa [...] (Spruce, 1908, p. 238-239, tradução nossa).

Alexandre Rodrigues Ferreira nota que, embora a matança de espécimes adultos fosse extensa, a coleta de ovos para a produção de óleo era muito mais destrutiva para a reprodução da espécie. De fato, Ferreira foi um dos poucos viajantes que reconheceu a necessidade de uma mínima proteção às tartarugas, décadas antes do mercado de óleo entrar em crise. Depois da metade do século XIX, a crescente escassez das tartarugas na Amazônia foi percebida, e o mercado de óleo teve o seu colapso.

Levou-se pouco menos de dois séculos de exploração intensa para quase dizimar o estoque desta espécie na região. Comparado com outros recursos aquáticos, esta foi a que sofreu os maiores impactos de exploração. O surgimento da economia da borracha na segunda metade do século XIX introduziu o querosene como opção de iluminação e o óleo vegetal na dieta alimentar regional, diminuindo consideravelmente a exploração das tartarugas para estes fins, e evitando a sua potencial extinção na região (Smith, 1974). A economia da borracha também favoreceu a preservação da espécie, visto que, em seu período mais intenso, absorveu toda a mão de obra disponível na região para a atividade de extração do látex voltado à produção de borracha.

BORRACHA La Condamine (1993, p. 69), um naturalista francês, foi um dos primeiros naturalistas na metade do século XVIII a mencionar a borracha, uma substância referida como “cahout-chou” ou “Cahuchu”. Ele observou como os índios em Esmeraldas, Equador, extraíam a borracha e produziam garrafas, botas, tigelas, ficando impressionado com as características do látex: Existem diferentes tipos de árvores que produzem látex, devido a este fator, existem diferentes tipos de látex. A resina ou leite de pau, ou denominado Cahuchu, muito apropriada esta definição para esta arvore. Não é menos vulgar nas margens do rio Maran que nas do rio Esmeraldas ao Norte de Quito. Ela se amolda na forma que a gente quer. Ë impenetrável na chuva. Entretanto o que mais chama atenção é sua grande virtude elástica, mediante a qual se confeccionam copos e garrafas não muito frágeis, botas para montarias, pelotas e bolas côncavas que se aplanam estando cumpridas [...] (La Condamine, 1993, p. 69, tradução nossa).

As descrições de La Condamine atraíram a atenção europeia para a borracha. Entretanto, somente após os anos de 1840 a manufatura de borracha se desenvolveu. Em 1839, Charles Goodyear desenvolveu o processo da vulcanização, que estabiliza a borracha, impedindo o seu

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derretimento no calor e rachaduras no frio. Tal invenção provocou inovações que lideraram uma demanda massiva por borracha natural. Acontecimentos – como a invenção do pneu de borracha com ar por Dunlop, em 1888, a novidade das bicicletas na Europa (especialmente na França) na metade do século XIX e o desenvolvimento da indústria automobilístita no início do século XX – explicam a explosiva demanda mundial por borracha. Spruce (1908) observou como o comércio deste produto, no seu estágio inicial, impactou a economia local no estado do Pará e promoveu uma corrida para a produção de borracha na região:

tronco de cada árvore de Seringa, começando na base e estendendo-se para cima aproximadamente até a altura que um homem pode alcançar, e fazendo neste espaço dois ou três voltas. Isto suporta uma caneleta estreita feita de argila, que conduz o leite quando ele flui da casca ferida e é depositada em uma tigela depositada na base da arvore. Cedo na manhã um homem entra na floresta, levando consigo um terçado e um grande vaso suspendido por um punho do cipó para dar forma a um tipo de balde, e visita em sucessão cada árvore de Seringa. Com seu terçado ele faz cortes superficiais na casca de cada árvore e retornando a mesma aproximadamente uma hora depois, encontra uma quantidade de leite na tigela que transfere a seu balde ou cuyamboca. O leite coletado é posto em bacias rasas e grandes feitas de barro, outros trabalhadores tem ao mesmo tempo enchido vasos (Caraipe) estreitos e fundos e de boca pequena com frutos de palmeira de Urucuri e iniciam um fogo rápido no vaso. A fumaça que levanta-se do Urucuri aquecido é muito densa e branca; e enquanto cada sucessiva camada é aplicada cria-se uma forma derramando o leite sobre isto - o operador prende-o na fumaça, que endurece o leite em alguns momentos [...] (Spruce, 1908, p. 182, tradução nossa).

Em todo o caminho de volta descendo o rio Negro, a fumaça era vista subindo nos recentemente abertos seringais. O preço extraordinário alcançado pela borracha no Pará em 1853 acordou as pessoas da sua letargia, e uma vez que começaram a se mover, tão grande era a impulso através do rio Amazonas e seus tributários, uma grande massa se colocou em movimento para procurar e fabricar borracha. Na província do Pará sozinha (o que engloba apenas uma pequena porção da Amazônia), foi calculado que 25.000 pessoas estavam trabalhando em ramos da indústria da borracha. Mecânicos jogaram para o lado as suas ferramentas, vendedores de açúcar abandonaram suas fábricas, índios as suas roças. Então, açúcar, rum, e até mesmo farinha não estavam sendo produzidos em quantidade suficiente para o consumo na província, sendo os dois primeiros artigos tendo que ser importados do Maranhão e Pernambuco, e o último vinha do alto rio Negro [...] (Spruce, 1908, p. 507, tradução nossa).

A crescente demanda de mercado, e sendo a seringueira endêmica da Amazônia, fez com que a região experimentasse algumas décadas de crescimento econômico. Embora capital e terra fossem disponíveis, a mão de obra para o fabrico de borracha era um recurso limitado na Amazônia. Caboclos, morando às margens dos tributários do rio Amazonas, engajaram-se no corte da seringa de forma voluntária; e populações indígenas foram coagidas, quase sempre, sob regime de escravidão. O déficit de mão de obra na Amazônia coincidiu com a severa seca no Nordeste brasileiro, entre 1877 e 1879, e produziu uma forte migração de agricultores pobres do sertão em direção à Amazônia, entusiasmados para dividir a imaginária riqueza do mercado da borracha. Neste momento, milhares de imigrantes do Nordeste brasileiro foram, então, estimulados a se dirigirem para a Amazônia e, assim, suprir a mão de obra necessária à extração do látex, ficando conhecidos como seringueiros4.

Spruce (1908) também faz excelentes anotações sobre a produção da borracha, do processo de coleta do látex das árvores de seringa até a fase final de defumação: Uma trilha tinha sido aberta a cada árvore, e também aos planos adjacentes da palmeira de Urucuri, que curiosamente são encontrados crescendo quase que invariavelmente perto da Seringueira, e cuja fruta é considerada essencial à apropriada preparação da borracha-índia. Um corte forte é feito em volta do

Ver Santos (1980), para uma vasta discussão sobre a trajetória desses imigrantes nordestinos engajados na indústria da borracha na Amazônia.

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A Amazônia ocidental se tornou a nova fronteira de expansão da economia de borracha para os migrantes nordestinos, visto que as terras mais próximas no leste da região já estavam ocupadas. Esta região oferecia aos empreendedores novas áreas para produção e, ao mesmo tempo, prometia aos migrantes a oportunidade imediata de começar a produção em áreas não exploradas. Brown e Lidstone (1878), viajando pelo rio Juruá, observaram como novas áreas estavam sendo ocupadas por seringalistas e seringueiros, devido à crescente economia da borracha, trazendo um novo padrão demográfico de ocupação para a região: Todas as tardes nós observávamos, quando estávamos navegando, a fumaça que levanta-se das margens com intervalos freqüentes. Esta indicava os lugares onde os homens engajavam-se no processo de manufatura de borracha-índia. Os patrões dos seringais ou estabelecimento de borracha-índia, como todos os outros viajantes

neste rio, residem aqui durante a estação seca, e vão para sua residência permanente nas margens do Solimões quando as águas começam a subir. Este rio é essencialmente um rio de crescimento de borracha-índia – até mesmo mais do que o Purus – e, se não fosse pela atração das árvores de seringa na sua margem, isto não teria um único habitante. Nós encontramos os homens que se ocupavam tão intensamente no corte, com nenhum pensamento além do comércio da borracha-índia. Seu tópico de conversação era sobre o número de “contos de réis” que faziam anualmente (aproximadamente, centenas das libras) [...] (Brown; Lidstone, 1878, p. 459-460, tradução nossa).

Keller[-Leuzinger] (1874), contratado pelo governo brasileiro, que viajou pelo rio Madeira, em 1867, com o objetivo de projetar a estrada de ferro ferrovia MadeiraMamoré, relatou e ilustrou (Figura 3) a crescente ocupação das margens do rio Madeira por empreendedores e migrantes nordestinos à procura de novas áreas para a produção de borracha:

Figura 3. Estabelecimento recente de um barracão para o comércio de borracha às margens do rio Madeira. Fonte: Keller[-Leuzinger] (1874).

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Nas margens do Amazonas, sua produção, é verdade, já foi diminuída pelo tratamento irracional dado as árvores. As árvores naturalmente sofrem, como naturalmente mesmo sob o melhor tratamento, da repetição da extração e remoção de sua seiva; e os seringueiros então tem que procurar novas áreas de exploração da seringa nos vales inexplorados do interior mais distante. Mas os seringais na margem do Madeira, do Purus e de outros afluentes do rio principal, continuam a fornecer-lhes quantidades extraordinárias [...] (Keller[-Leuzinger], 1874, p. 98-99, tradução nossa).

corte da seringa, como um período de grande exploração pelos patrões da borracha, tornando-os uma das classes de trabalhadores mais expropriadas ao longo da história econômica da região. Woodroffe e Smith (1913) descrevem algumas das características das condições de vida e de isolamento desses trabalhadores no interior da floresta: Eles trabalham no fundo da selva e moram no centro do perigo de animais selvagens, répteis e insetos, que tornam a vida uma aflição e grandemente aumenta os riscos e, consequentemente, os custos da extração. Os seringueiros conhecem poucos, se algum, dos benefícios da civilização, nem têm o prazer, privilégio e conforto desses que viviam em comunidade para mútua proteção ou convivência social. Ele passa o dia sozinho no meio da floresta, apenas ocasionalmente visita o barracão do seu patrão, quando é possível para ele encontrar um ou dois outros como ele, e não sabe nada do mundo lá fora, suas conversas eram por necessidade confinadas ao seu próprio ambiente limitado [...] (Woodroffe; Smith, 1913, p. 209, tradução nossa).

Para que o Brasil mantivesse a sua supremacia como produtor e exportador de borracha natural, Woodroffe e Smith (1913) fizeram relatos, sugerindo ao governo brasileiro que estimulasse a vinda de imigrantes asiáticos para a região, a fim de resolver o déficit de mão de obra na Amazônia. As suas considerações precisam ser contextualizadas ao momento crítico de explosão da economia da borracha e do estrangulamento de mão de obra: Devem-se estimular livremente corajosos imigrantes de classe de pessoas como os agricultores chineses e japoneses e pequenos comerciantes (não estes das cidades), que tenham suficientes iniciativas de negócios para ajudar o Brasil a ajudar a si próprio. Para colocar a sua casa em ordem e manter seu comando na demanda mundial pelo seu produto, o Brasil precisa ter uma população muito maior, pelo menos onde a borracha é produzida, ao longo do vale amazônico. Isto é uma questão de vida ou morte para que a indústria de borracha da Amazônia possa assegurar um amplo estoque de trabalhadores para desenvolver os seus recursos. Quem se colocar na boca do Amazonas e se recusar à admissão de japoneses e chineses para ocuparem um lugar junto com os caboclos e índios, estará cometendo um sério erro, e quando a indústria da borracha estiver enterrada sob uma desordenada luxúria dos estranguladores, a culpa cairá na cabeça desses que são estúpidos o suficiente para acreditar que os seus próprios interesses serão prejudicados pela chegada desses importantes trabalhadores vindos do outro lado do Pacífico [...] (Woodroffe; Smith, 1913, p. 309-310, tradução nossa).

As condições iniciais de estabelecimento dos seringueiros na floresta os limitavam a meros extratores de látex, sendo até mesmo impedidos de caçar, assim como de fazer roçados, com o objetivo de terem dedicação exclusiva ao corte do látex, e também como estratégia de contínuo endividamento econômico no sistema de aviamento, uma vez que todo o seu mantimento era fornecido pelos seringalistas, como relatado por Keller[Leuzinger] (1874, p. 102, tradução nossa):

A promessa de fortuna fácil da economia da borracha revelou-se para os migrantes nordestinos e para outros grupos que trabalhavam na base da cadeia produtiva, no

Há divergências na forma como os seringueiros foram percebidos na literatura sobre a economia da borracha na Amazônia. Alguns renomados autores

Para piorar as coisas, o preço miserável recebido pela venda da borracha era quase nunca pago em dinheiro vivo, mas sim em mantimentos e outros pequenos produtos negociados com valores aumentados em até três vezes, não é de se admirar que o pobre seringueiro extrator, embora trabalhe como um garimpeiro, por assim dizer, no final do ano deve mais do que ele pode pagar ao patrão; e dessa habilmente projetada escravidão ele nunca é capaz de se libertar [...]

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contemporâneos, como Furtado (1961) e Prado Junior (1960), os veem como vítimas miseráveis de um modelo extremamente desigual de expropriação, sendo obrigados a permanecer no interior da floresta. Outros autores mais recentes, a exemplo de Almeida (2004) e de Pantoja (2004), vão além, os vendo como trabalhadores explorados sim, mas que deram demonstrações de superação de sua situação de explorados, adaptando-se a diversas dificuldades no interior da floresta, buscando, desta maneira, formas de adequação e superação, resultando na construção de uma identidade defendida com dignidade e harmonia com o ambiente. Estes autores, refutando a visão de que os seringueiros foram ‘vítimas da história’, onde se enfatiza apenas a relação seringueiro versus patrão para classificá-los como ‘isolados’ e ‘solitários’, consideram que esta abordagem não leva em consideração diversas outras formas de sociabilidade na floresta. A deterioração da economia da borracha brasileira se iniciou em 1912, com o colapso do seu monopólio, advindo da competição das plantações de borracha na Malásia. Spruce fez descrições cuidadosas sobre a seringueira que ajudaram o Jardim Botânico de Kew – instituição conselheira oficial do governo britânico sobre questões botânicas – a se interessar no projeto de obter sementes de seringueira. Foram feitas dezenas de tentativas, até que em 1872 Henry A. Wickham obteve êxito. O Brasil lutou de várias formas para manter a sua supremacia no comércio internacional da borracha natural na Amazônia5, mas não foi capaz de fazer frente à expansão das plantações de seringueiras nas colônias britânicas da Ásia. Toda uma indústria, toda uma cultura e todo um futuro de produção extrativista foram transplantados da Amazônia para o sudeste da Ásia. As plantações de seringueira no sudeste da Ásia cresceram rapidamente e produziram mais do que as seringueiras naturais da Amazônia, devido aos esforços de

cultivo. Consequentemente, as seringueiras da Ásia puderam produzir borracha com melhor qualidade, mais rapidamente e mais barata, o que se tornou muito mais atrativo para as indústrias, em comparação à sua rival natural da Amazônia. Quando o acesso americano para o suprimento de borracha do sudeste da Ásia foi bloqueado durante a Segunda Guerra Mundial, os governos brasileiro e americano investiram fortemente na produção de borracha na Amazônia. Porém, depois da Guerra e com o desenvolvimento da borracha sintética, o período de alta produção para exportação na Amazônia foi mais uma vez encerrado6. Apesar de seu ‘fracasso’ para estabelecer um processo de desenvolvimento extrativista de longo prazo na região, os ciclos da borracha indubitavelmente marcaram a Amazônia e causaram substanciais alterações sociais e econômicas, que podem ser vistas e sentidas ainda hoje.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Quais foram as principais atividades econômicas com base extrativista na Amazônia desde a chegada dos europeus? Como essas atividades têm mudado ao longo dos séculos e como elas se comparam com a corrente situação de exploração extrativista da Amazônia de hoje? Este artigo trata de algumas dessas atividades com base em relatos de alguns viajantes naturalistas. A grande maioria da literatura produzida sobre a economia extrativista na Amazônia faz pouca ou nenhuma referência aos autores discutidos neste ensaio. Certamente tais autores, além de outros não mencionados, merecem mais atenção da sociedade intelectual para uma reflexão ampliada da realidade extrativista na Amazônia hoje. Muito do que vem sendo escrito sobre esta região nas últimas décadas conduz o leitor a acreditar que a exploração predatória de recursos é um fenômeno recente. De fato, isso é apenas a extensão de uma mentalidade de exploração econômica

Ver Dean (1989), para uma excelente discussão sobre os esforços e os limites do Brasil para manter o seu monopólio mundial de borracha natural. 6 Ver Martinello (2004), para uma vasta reflexão sobre os impactos e as tentativas de restabelecer a indústria da borracha na Amazônia durante a Segunda Guerra Mundial. 5

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que está enraizada há séculos. O padrão de crescimento e de estagnação observado através da história econômica deste local demonstra o modelo desigual de extração implantado na região. Muitos dos primeiros problemas com a exploração desordenada de recursos enfrentados no passado continuam atuais. Como a visão externa sobre a Amazônia tem caminhado ao longo dos séculos? Na visão de Carvajal, no século XVI, esta região foi descrita como ‘um verdadeiro inferno’, descrevendo-o de acordo com as convicções religiosas da Igreja Católica na época. Acuña, no século XVII, viu a Amazônia como local de grande potencial econômico para a produção de riquezas, uma visão compartilhada por João Daniel, nas suas descrições do “Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas”, mais de um século depois. Tais visões atraíram para a região, nos séculos XVIII e XIX, notórios naturalistas, que a perceberam como um grande laboratório natural a ser inventariado - o paraíso dos naturalistas, como pode ser percebido nas descrições de Bates, Wallace e Spruce. A partir do final do século XX, a Amazônia passa a ser vista como um hot spot de biodiversidade e adquire um papel significativo nos fóruns internacionais sobre material genético para pesquisas médicas e mudanças climáticas globais. Wallace (1853, p. 300-309, tradução nossa) apresenta uma “[...] lista dos principais produtos extrativistas com potencial econômico na Amazônia”. Mais de cento e cinquenta anos se passaram, e boa parte dos produtos enumerados por ele ainda permanecem como ‘potenciais’ na agenda de desenvolvimento extrativista de governos e, no máximo, ganhou notoriedade como ‘experiências pilotos’ bem sucedidas que precisam ser promovidas em larga escala. A intenção deste ensaio é resgatar as observações dos viajantes naturalistas sobre os principais ciclos econômicos do extrativismo na Amazônia. A riqueza de conhecimentos acumulados sobre a região na obra deles pode ajudar na interpretação de muitos dos dilemas atuais deste local, dando-lhes perspectivas diferentes ou,

pelo menos, ampliadas. Este documento faz apenas um recorte específico dos relatos de alguns naturalistas, mas pode provocar uma reflexão dos interessados na história econômica e natural da região sobre a necessidade de maior valorização dos conhecimentos produzidos pelos naturalistas, que se embrenharam nos longínquos meandros do vale amazônico ao longo dos séculos.

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Pioneiros e fazendeiros de São Paulo: a história ambiental e a obra de Pierre Monbeig Pioneers and farmers from São Paulo: the environmental history and Pierre Monbeig’s work Marcelo Lapuente Mahl Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, Minas Gerais, Brasil

Resumo: O geógrafo francês Pierre Monbeig integrou o grupo que, no início da década de 1930, chegou ao Brasil para compor um dos primeiros núcleos de docentes da Universidade de São Paulo. Este artigo apresenta uma reflexão sobre a sua obra “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo” (1984b), à luz da história ambiental, compreendendo a importância da pesquisa de Monbeig para os estudos dedicados às relações entre o homem e o meio ambiente no contexto da expansão econômica paulista, nas primeiras décadas do século XX. Mesmo após a sua volta à França, em meados da década de 1940, Pierre Monbeig continuou em contato com seus alunos e orientandos no Brasil, produzindo obras fundamentais sobre o país que nunca saiu de seu horizonte intelectual. Palavras-chave: Pierre Monbeig. História ambiental. Fontes históricas. Abstract: The French geographer Pierre Monbeig arrived in Brazil with other researchers in the early nineteen-thirties to join one of the first groups of professors at the University of São Paulo (USP). This paper presents a reflection upon his work, “Pioneers and Farmers from São Paulo” (1984b) (“Pioneiros e fazendeiros de São Paulo”), from the perspective of environmental history. The objective is to understand the importance of Monbeig’s research to studies that focus on the relationship between humans and the environment within a scenario of economic expansion in São Paulo in the first decades of the twentieth century. Even after returning to France in the mid-forties, Pierre Monbeig maintained contact with his students and advisees in Brazil, producing fundamental work about the country that never left his intellectual horizon. Keywords: Pierre Monbeig. Environmental history. Historical sources.

MAHL, Marcelo Lapuente. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo: a história ambiental e a obra de Pierre Monbeig. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 13, n. 1, p. 147-158, jan.-abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222018000100008. Autor para correspondência: Marcelo Lapuente Mahl. Universidade Federal de Uberlândia. Faculdade de História. Av. João Naves, 2121. Uberlândia, MG, Brasil. CEP 38408-100 (mlmhistor@hotmail.com). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6749-7654. Recebido em 08/06/2017 Aprovado em 19/09/2017

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PIERRE MONBEIG E SUA TRAJETÓRIA INTELECTUAL NO BRASIL Muitos dos pesquisadores da chamada ‘missão francesa’ que formaram o núcleo docente inicial da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo, a partir de 1934, lembravam-se dessa experiência profissional como um momento marcante de suas trajetórias intelectuais, estabelecendo, desde então, vínculos afetivos e profissionais duradouros com o país. Três, em especial, salientaram a importância de suas atividades no Brasil em momentos distintos de suas longevas carreiras: Pierre Monbeig, Claude Lévi Strauss e Fernand Braudel1. À época, jovens oriundos da universidade francesa, enfrentaram, a seu modo, os desafios de iniciar uma atividade profissional em terras estrangeiras, em meio às incertezas próprias de um ambiente institucional acadêmico ainda em construção. Na trajetória intelectual de Pierre Monbeig, particularmente, o Brasil foi tema sempre presente. Aqui atuou como professor e pesquisador durante onze anos, mais precisamente entre 1935 e 1946, ajudando a consolidar os pressupostos propagados na virada do século XIX por Vidal de La Blache, entre alunos como Aziz Ab’Sáber e Pasquale Petrone, que mais tarde acabaram, eles próprios, tornando-se referências no campo da geografia nacional2. Este vínculo profícuo com o país que lhe deu oportunidade, segundo o próprio Monbeig, de se aventurar quando jovem em uma verdadeira ‘viagem de exploração’, pode ser verificado em seus livros e artigos, cujos temas

principais foram o Brasil e os problemas brasileiros, como “Ensaios de geografia humana brasileira” (Monbeig, 1940), “Brasil” (Monbeig, 1969), “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo” (Monbeig, 1984b) e “O crescimento da cidade de São Paulo” (Monbeig, 2004), além de textos publicados na imprensa, principalmente no jornal “O Estado de São Paulo”3. Ao mesmo tempo, Monbeig ajudou na consolidação da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), ao lado de Caio Prado Júnior e Pierre Deffontaines, sendo um colaborador contumaz das publicações desta organização4. A situação dos estudos geográficos no Brasil, no período em que Monbeig chegou ao país, limitava-se, segundo ele próprio – recordando-se das palavras do amigo Delgado de Carvalho –, “[...] a ensinar os alunos a decorarem a lista telefônica [...]” (Mota, 1981, p. 254). Por outro lado, a primeira metade do século XX foi marcada por modificações teórico-metodológicas no pensamento geográfico, quando os pesquisadores, segundo as palavras de Moraes (1983, p. 94), buscaram “[...] caminhos metodológicos até então não trilhados [...]”, estimulados principalmente por leituras interdisciplinares, em um momento muito similar de questionamentos e de rupturas que envolveram também os historiadores reunidos ao redor dos Annales, como Marc Bloch e Lucien Febvre5. Como afirma Salgueiro (2006, p. 19), a geografia dos herdeiros de Vidal de La Blache afirma-se como “[...] uma ciência das coisas vistas no terreno, fundada na dimensão visual, temporal e humana [...]”. Essa concepção de um saber vivo,

Exemplos dos autores citados a respeito dessas lembranças sobre o Brasil podem ser encontrados em: Mota (1981), Braudel (1984), Lévi-Strauss (2011) e Lévi-Strauss e Eribon (2005). 2 Além de Pierre Monbeig, Pierre Deffontaines e Francis Ruellan também contribuíram para a forte marca francesa na formação dos nossos primeiros geógrafos acadêmicos. Sobre essa questão, ver Moreira (2008). 3 Citamos aqui somente os livros mais conhecidos, editados no Brasil. Além disso, muitas das informações aqui apresentadas sobre a trajetória de Pierre Monbeig, como suas impressões sobre o país e o ambiente cultural e intelectual observado durante o período em que atuou como professor na Universidade de São Paulo, são tributárias de dois textos bastante citados pelos que se dedicam ao estudo da obra do geógrafo francês. O primeiro é a transcrição da entrevista direcionada por Lourenço Dantas Mota e Antonio Carlos Pereira para o jornal “O Estado de São Paulo”; o segundo é um relato bastante emocional, repleto de recordações, mas não menos rigoroso do ponto de vista analítico, escrito por Ab’Sáber (1994) e publicado na revista “Estudos Avançados”. 4 Sobre os primeiros anos da AGB, ver Iumatti et al. (2008). 5 Pierre Monbeig foi muito próximo de Lucien Febvre e de Fernand Braudel, nomes que marcaram a historiografia francesa. Em verdade, tanto Febvre quanto Braudel atuaram em conjunto, em meio a disputas acirradas no campo intelectual francês, em defesa da escrita da história propagada pelos pesquisadores reunidos ao redor dos Annales. Sobre essas disputas, ver Delacroix et al. (2012). 1

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atento às transformações, tanto do mundo natural quanto das sociedades, confrontava-se com a geografia em grande parte descritiva do século XIX. Portanto, o que se buscava na primeira metade do século XX era uma geografia do movimento, aludindo às interações entre o homem e a natureza ao longo do tempo. Além disso, valorizava-se o trabalho de campo e as observações in loco, com o pesquisador imerso no espaço, o qual buscava compreender. Essa postura crítica e ativa perante o objeto de pesquisa será especialmente incorporada à prática de Monbeig, que, durante os anos que passou no Brasil, viajou pelos chamados ‘sertões’ paulistas, muitas vezes em companhia de seus alunos, característica que marcava os seus cursos na Universidade de São Paulo. Como afirma Ab’Sáber (1994), o trabalho de campo era fundamental nos estudos conduzidos pelo mestre francês: [...] Nada mais importante poderia ter marcado nosso destino, na escolha de uma ciência para ser cultivada pelo resto de nossas vidas, do que aquela primeira e predestinada excursão sobre o terreno. A iniciativa era da inteira responsabilidade de Monbeig. O itinerário escolhido envolvia a saída a partir das colinas de São Paulo e um transecto pelas serranias de Jundiaí, até atingir setores da chamada depressão periférica paulista. De São Paulo a Jundiaí e a Campinas, até Salto e Itu, com regresso pelo famoso canyon do Tiête, passando por Cabreuva, Pirapora do Bom Jesus, Sant’ana do Parnaíba e subúrbios ocidentais de São Paulo. Encantou-nos, sobretudo, a dinâmica dos caminhamentos e a acuidade das observações do mestre Pierre Monbeig [...] (Ab’Sáber, 1994, p. 225, grifo do autor).

A observação minuciosa da paisagem e dos fenômenos sociais constitui, dessa forma, uma das bases das ideias propagadas por Vidal de La Blache, estando incorporada à prática de Monbeig6. Esse olhar renovado sobre a geografia pôde ser desenvolvido de forma fértil após a sua chegada ao

Brasil, momento de atuação profissional que coincidiu com o processo de expansão econômica paulista rumo ao interior de São Paulo, que se encontrava em pleno vigor7. Foi um período de extrema circulação de capitais, pessoas e produtos, aspectos que prenderam a atenção do jovem professor. Logo, abandonou o seu plano inicial de pesquisa, idealizado ainda durante o seu período de graduação, de efetuar um estudo sobre as ilhas Baleares, na Espanha, para se debruçar sobre as profundas transformações em curso no estado. A partir da formulação desse novo problema, seguiu-se uma longa pesquisa, a qual, posteriormente, deu origem ao seu doutorado, defendido na Sorbonne, em 1949, tendo sido indicado ao prêmio de melhor tese pela Fundação Nacional de Ciências Políticas, já no ano seguinte. O trabalho foi publicado em 1952, na França, pela Editora Armand Colin, e teve a sua primeira versão brasileira, e até agora única, publicada em 1984, pela editora Hucitec-Polis, com tradução de Ary França e de Raul de Andrade e Silva, sob o título “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo” (1984b). Nesta obra, resultado de um abrangente e longo trabalho de campo, além de um sem número de entrevistas, pesquisas em arquivos públicos e privados, Monbeig utiliza as expressões franja pioneira (frange pionnière) e marcha pioneira (marche pionnière), para designar tanto os espaços quanto as movimentações populacionais e de capitais pelo interior paulista, nas primeiras décadas do século XX, impulsionadas pela ampliação do complexo cafeeiro8. Efetivamente, a obra apresentou-se como um desafio monumental, ao abarcar dezenas de cidades e populações do interior paulista, analisadas por meio de tabelas, dados econômicos, relatórios oficiais de secretarias e ministérios, estudos cartográficos, além de entrevistas, realizadas pelo próprio autor, que visitou grande parte das regiões abordadas (Figuras 1 e 2).

Sobre a formação acadêmica de Pierre Monbeig, ver Andrade (2011). Além de Vidal de La Blache, os trabalhos de Elisée Reclus, Jean Brunhes e Max Sorre também marcaram a história do pensamento geográfico na primeira metade do século XX. Sobre esses autores, ver Moreira (2008). 8 Sobre as interpretações das franjas pioneiras disponíveis nas primeiras décadas do século XX e as reflexões de Monbeig acerca desta questão, ver Nogueira (2013). 6 7

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Figura 1. Contracapa da edição de “Pionniers et planteurs de São Paulo”, na versão original, em francês. Fonte: Monbeig (1952).

Figura 2. Contracapa da edição de “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo”, na versão brasileira, em português. A demora de sua publicação no Brasil não impediu que o livro de Monbeig se tornasse uma referência fundamental nos estudos sobre o estado de São Paulo. Fonte: Monbeig (1984b).

Dividida em três partes, cada uma delas subdividida, por sua vez, em vários capítulos, “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo” (1984b) começa com uma análise das condições naturais e históricas, dialogando ativamente com o conhecimento acumulado até então sobre a geografia e a história paulista9. Geologia, clima, relevo e história são apresentados, de forma a caracterizar, com precisão, o espaço onde se dará, nos capítulos seguintes, o estudo da marcha pioneira.

É nesta primeira etapa da obra que se encontra uma argumentação com papel central nas conclusões apresentadas ao longo do livro. Intitulada “A psicologia bandeirante”, nela Monbeig (1984a) estabelece um diálogo com as representações dos bandeirantes até então preponderantes na historiografia paulista, que reforçavam a imagem destes como desbravadores do sertão, impulsionados pela ambição e também pela coragem, não deixando de salientar, entretanto, que ao lado dessa

Das várias leituras disponíveis sobre a obra “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo” (1984b), cito duas em especial: as de Andrade (2011) e de Nogueira (2013).

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história épica também se encontrava um comportamento marcado pela brutalidade e pela violência10. De todo modo, o mito bandeirante parecia ainda animar os fazendeiros e seus feitos. Segundo Monbeig (1984a, p. 212): “Quando se quer celebrar um fazendeiro, desbravador de matas, plantador de cidades, nenhum título melhor a deferir-lhe que o de bandeirante [...]”. Essa imagem exerceu, durante toda a expansão rumo aos sertões paulistas, um papel central, fazendo parte desse conjunto de forças que impulsionavam os colonizadores a seguirem sempre além, em busca de novas terras com potencial agrícola. O processo todo é caracterizado por Monbeig (1984b) como uma conquista; e o homem, sujeito dessa marcha, como um verdadeiro invasor11. O capítulo II é o que se dedica mais detalhadamente à marcha pioneira, apresentada como um desenvolvimento ainda em decurso pelas terras paulistas, marcado pela velocidade em que se deslocava, mas que, ainda assim, era passível de observação pelo pesquisador. Neste momento, emerge, de forma mais evidente, a excelência do estilo narrativo, com a construção de imagens que remetem o leitor à rapidez dessa sucessão, que se alastrava ferozmente sobre um novo território. Segundo as suas próprias palavras:

Pode-se até imaginar o geógrafo observando atentamente a agitação nas estações ferroviárias – pelas quais ele próprio transitava em seus deslocamentos para o interior –, com o rebuliço característico das pessoas em seu vai e vem pelas plataformas, na confusão de sons em meio a mercadorias em transporte. Um local de chegadas e despedidas daqueles que estavam sujeitos tanto aos sonhos de progresso, alimentados pelo mito bandeirante, quanto à desilusão do fracasso, sempre latente, em meio às regiões marcadas por conflitos e violência de toda ordem. Experiências vividas em um cenário onde “[...] tudo é alvoroço, tudo é confusão, tudo é dinamismo [...]” (Monbeig, 1984b, p. 125). Neste capítulo, em especial, o que sobressai são os homens em plena ação, interagindo entre si e com o mundo natural. Além disso, vemos a definição dos meios técnicos e das instituições, construídas para favorecer a expansão e o pleno domínio da natureza. É também o momento da apresentação dos tipos étnicos que se aventuravam nas franjas pioneiras – índios, caboclos, migrantes e imigrantes – e de sua organização social nesse espaço novo e em formação. A última parte do livro apresenta-nos a zona pioneira na década de 1940, momento final das observações realizadas pelo autor, quando, então, se torna mais evidente a relação de Monbeig com os pressupostos da geografia humana, com a qual ele dialoga tanto quanto contribui, favorecendo a sua consolidação enquanto uma área específica do conhecimento. Sua posição é a de tentar compreender não só os fenômenos na atualidade, mas a atualidade dos fenômenos. Não escapa ao olhar do geógrafo a estrutura fundiária, que ampliava as desigualdades e fortalecia a acumulação capitalista e a

Desde que tomou pé nos planaltos ocidentais, prosseguiu a vaga pioneira em sua marcha infatigável, sacudida pelas crises econômicas, acelerada às vezes pelo jogo das circunstâncias políticas mundiais. Incessantemente engrossada por elementos novos, a multidão dos plantadores e dos pioneiros não cessou de progredir, mais ou menos depressa, mas sem fatigar-se. Testemunham avanços sucessivos as cidades, que se sucedem como contas de um rosário, ao longo das ferrovias (Monbeig, 1984b, p. 23).

O mito bandeirante assumiu várias formas e funções, sendo reificado em momentos distintos da história nacional. Especialmente as elites políticas e econômicas paulistas apropriaram-se dos discursos de uma suposta superioridade do povo e da ‘raça’ paulista desde pelo menos o final do século XIX, utilizando-os como arma simbólica, que buscava garantir distinção aos seus propagadores. Sobre a questão do mito bandeirante, ver Abud (1985), Ferreira (2002) e Ferreira e Mahl (2011). 11 Uma análise específica da representação do bandeirante na obra de Monbeig (1984b) pode ser encontrada em Gonçalves (1998). Neste trabalho, o autor sugere que Monbeig teria efetuado uma leitura liberal daquele momento, que se expressaria, por exemplo, em sua visão “encantada” dos “impulsos individuais” atribuídos aos bandeirantes (Gonçalves, 1998, p. 52), aceitando, portanto, os valores ideológicos reforçados pela chamada historiografia tradicional paulista. 10

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especulação nas zonas pioneiras, beneficiando as elites formadas pelos grandes proprietários de terra, em prejuízo dos pequenos sitiantes. Surgem também as economias periféricas, tangenciais ao café, e que aos poucos ganham espaço, devido às várias crises econômicas enfrentadas no período. Além disso, Monbeig volta o seu olhar analítico à situação sanitária nas áreas de fronteira, caracterizadas pela precariedade dos modos de vida nos povoamentos, que amplia o sofrimento das populações, principalmente dos mais pobres, ao longo das franjas de ocupação. O livro termina com um estudo sobre as cidades surgidas ao longo dessa expansão, sempre atento ao dinamismo desses núcleos, formados geralmente no rastro de fazendas, de cascos e de trilhos, impulsionando as relações sistêmicas entre as zonas de povoamento que se espalhavam pelos novos territórios tomados da floresta. Essa interpretação sobre a ação pioneira, que se propagava em ondas pelo interior paulista, a partir das últimas décadas do século XIX, produzindo mudanças fundamentais no cenário econômico e social do estado, acabou tornando-se referência fundamental para uma série de estudos de historiadores e de cientistas sociais, extrapolando as fronteiras da geografia. A influência de “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo” (1984b), que Novais (2005) define como um estudo modelar, revela-se nos trabalhos sobre a produção algodoeira, de Canabrava (1984); nas pesquisas sobre a demografia e a agricultura paulista de Marcílio (2000); também se vê na obra de Costa (1998), especialmente em “Da senzala à colônia”. O historiador Matos (1990) dedica seu consagrado estudo sobre as ferrovias à Pierre Monbeig. Do mesmo modo, a influência do livro também pode ser observada em “Formação econômica do Brasil”, de Furtado (1963); e em Candido (2010), no seu “Os parceiros do Rio Bonito”. Mais recentemente, o historiador Dean (2000, 1977), autor tanto de estudos sobre a história econômica quanto sobre a história ambiental, também dialoga intensamente com a obra, principalmente em seu trabalho sobre o município de Rio Claro. Esses são alguns exemplos possíveis, entre

tantos outros que, em momentos distintos, aproximaram-se das propostas interpretativas do geógrafo francês. Podemos afirmar, portanto, que a obra “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo” (1984b) tornou-se, apesar de sua publicação tardia em língua portuguesa, um marco nos estudos sobre a história paulista, compondo, com outros trabalhos, como “Roteiro do café”, de Milliet (1946), e “De comunidade a metrópole: biografia de São Paulo”, de Morse (1954) – também realizados ao longo das décadas de 1930 e 1940 –, um conjunto que marca ainda hoje a produção intelectual sobre as amplas e complexas transformações impulsionadas pela economia cafeeira. Entre as diversas possibilidades de leitura que “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo” (1984b) oferece ao leitor contemporâneo, uma em especial interessa aos estudiosos da história ambiental, e está voltada para as reflexões sobre as interações entre o homem e o meio ambiente nesse momento de domínio dos sertões de São Paulo. Ao refletir sobre o universo pioneiro, Pierre Monbeig captou, como poucos, tanto os aspectos mais sutis quanto as grandes forças sinérgicas que agiam naquele momento, impulsionando práticas, condutas e ideias. Por fim, a obra oferece um vislumbre dos mecanismos econômicos, políticos, culturais e sociais, os quais contribuíram para a destruição ambiental que se seguiu ao avanço do homem sobre campos e florestas.

O OLHAR DA HISTÓRIA AMBIENTAL As décadas de 1960 e 1970 foram fundamentais, segundo os professores McNeill et al. (2010), para a formatação da história ambiental como uma área de pesquisa em construção, mas já com especificidades próprias. Nestas duas décadas iniciais, os historiadores, assim como intelectuais de outras áreas do saber, foram instigados a incorporar as questões ambientais em suas pesquisas, devido principalmente a dois fenômenos. Em primeiro lugar, a maior exposição e a discussão, na esfera pública, dos problemas ambientais relacionados aos impactos das sociedades sobre a natureza, cada vez mais evidentes, e não raro catastróficos; em segundo lugar, o

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desenvolvimento de novas metodologias, principalmente das ciências naturais – e em especial da ecologia –, que passaram a apresentar reflexões inovadoras sobre as relações entre o homem, a sociedade e a natureza12. No que se refere especificamente aos historiadores, a inserção da natureza como uma das variáveis a ser considerada para a compreensão dos fenômenos humanos no tempo – além da cultura, da política ou das formas de organização social, por exemplo –, foi o ponto de inflexão que passou a orientar e a dar sentido a um novo caminho, agora percorrido de forma mais precisa e delimitada. A busca por essa variável ambiental torna-se, entre os historiadores ambientais, que já ocupam espaços destacados com grupos e núcleos de pesquisa consolidados em várias universidades dentro e fora do Brasil, um dos pontos singulares dessa forma de reflexão. Como afirma McNeill (2010), em seu livro “Mosquito empires: ecology and war in the greater Caribbean, 1620-1914”, ao justificar a pertinência desse tipo de abordagem, existem momentos da história humana nos quais as relações entre homem e natureza não parecem ser tão importantes e influentes, por exemplo, nos debates intelectuais e teológicos sobre a infalibilidade papal, em meados do século XIX. Entretanto, em outros tempos e lugares, as relações entre história humana e história ecológica são evidentes, e não podem ser desprezadas, a exemplo de quando agentes patológicos específicos, como os causadores da febre amarela e da malária, estudadas pelo autor no contexto do domínio colonial europeu nas Antilhas, parecem influenciar sobremaneira no curso das ações e de decisões, principalmente políticas e militares (McNeill, 2010). Essa valorização dos fatores ecológicos, nem sempre tão evidentes, abriu aos historiadores novas áreas de exploração. Temos então trabalhos que se dedicaram a 12

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refletir sobre a criação de parques, jardins botânicos e unidades de conservação, procurando novos caminhos para uma história política e institucional; enquanto outros buscaram estudar a formação do pensamento ambientalista ao longo do século XX, em diálogo com a história cultural, atentos às ideias, aos pensamentos e às representações sociais sobre a natureza. Também se destacam os trabalhos sobre as relações entre o homem e o meio ambiente no tempo, em grande parte analisando os impactos negativos das atividades humanas, determinando as pressões exercidas pelos diferentes sistemas de produção, distribuição e consumo, em um claro diálogo com a história econômica. Estes são somente alguns exemplos possíveis, entre tantos outros, que revelam a variedade da produção dos historiadores ambientais na atualidade, os quais trazem, entretanto, como ponto de convergência, segundo afirmação do historiador Pádua (2012, p. 37), o desafio de integrar o “[...] biofísico, o social e o cultural [...]” na história. Seja qual for a abordagem ou a temática escolhida pelos pesquisadores que se vinculam à chamada história ambiental, é importante ressaltar que ela – da forma como aqui se apresenta – está ligada diretamente ao conhecimento histórico, o qual dispõe de aporte teórico amplo e já bastante consolidado, produzido há tempos no interior da disciplina. Portanto, sendo uma reflexão de historiadores, os sucessos de suas análises dependem, em larga medida, de preparo metodológico adequado, capaz de oferecer ao pesquisador ferramentas que lhe permitam tratar as fontes de forma crítica. Como afirma Prost (2008, p. 54), a história se define como um “[...] conhecimento através de vestígios [...]”, e o grande desafio do historiador é conseguir educar o seu olhar para a compreensão, a interpretação e a formulação de hipóteses, agindo, de certo modo, como um verdadeiro investigador13. Em relação aos historiadores ambientais, em

Além da história ambiental, ligada ao campo da história, outros saberes das ciências humanas, como a antropologia, a geografia e a economia, buscaram (re)incorporar o mundo natural em suas pesquisas, por exemplo a antropologia ecológica, a geografia cultural e a ecologia histórica, esta última relacionada diretamente ao materialismo dialético. Sobre as diferenças entre essas abordagens, ver Balée (1998). Para uma reflexão mais específica sobre a leitura marxista das relações entre sociedade e meio ambiente, ver também Martinez (2006). Em relação às similaridades entre o trabalho do historiador e do investigador criminal, ver Ginzburg (1991).

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especial, afirma o professor Hughes (2006), em seu livro “What is environmental history?”: Those who describe the historical method (used by all historians) always emphasize the importance of the search for sources of evidence. Among sources, as a rule, the closer to the time, place, and people being studied, the better. By and large, they are talking about written sourcer, in some cases supplemented by oral interviews when that is possible. What could be better than a primary source: for example, an original diary in which a general recorded his thoughts on the eve of a battle? Better, possibly, than a secondary account written later on by someone who had not seen the engagement. Of course an environmental historian will rightly be expected all the written sources that can possibly iluminate the question under investigation. For environmental historians, these sources will include not only all the relevant books and articles, but as the case dictates, business records, scientific reports, newspaper records, and literature revealing the attitudes of people of the times. Websites can be enormously helpful, but are inherently more ephemeral than material published in hard copy; that is, the site may not be there when the researcher tries to access it again, or the desired pages may have been erased14 (Hughes, 2006, p. 118-119).

Como se vê, a escolha das fontes de pesquisa é um dos passos decisivos do trabalho do historiador. A partir dela, surge um outro desafio (seja qual for a forma de abordagem): a avaliação crítica desses vestígios, a qual sustentará as explicações e suposições. Para os historiadores ambientais, esta formulação, por vezes bastante complexa, adquire uma singularidade: devido ao seu caráter multidisciplinar, não raro os pesquisadores têm que se apropriar de conhecimentos construídos por outras ciências, como botânica, ecologia

ou zoologia, por exemplo. Isso acrescenta um pouco mais de dificuldade, ao exigir esforço do investigador para compreender conceitos de áreas muito distantes da história. Por outro lado, ao voltar a atenção para o mundo natural, os historiadores conseguem recolher traços e significados antes negligenciados em outros estudos. Pode-se, desse modo, afirmar que a história ambiental oferece novas perspectivas sobre as fontes, mesmo sobre aquelas que já foram alvo de análises ligadas a outras vertentes do conhecimento histórico. Isto é resultado desse esforço interpretativo, que passou a considerar o mundo natural, em seus mais amplos e complexos aspectos, como parte das respostas formuladas durante a operação historiográfica. Portanto, se desde os Annales a história que se procura é a ‘história-problema’, a natureza pode ser, em determinados momentos, uma das chaves para as tentativas de compreensão e de explicação dos fenômenos que nos cercam. É sob esse olhar, proposto pelos historiadores ambientais, que o trabalho de Pierre Monbeig ganha novos significados, tanto por suas inovadoras perspectivas interpretativas, quanto pelas fontes que ele apresenta e coteja. Isso se observa, por exemplo, no modo como o autor francês analisa as relações entre o homem e o meio ambiente ao longo da obra “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo” (1984b).

O LEGADO INTELECTUAL DE “PIONEIROS E FAZENDEIROS DE SÃO PAULO” A natureza ocupa um lugar especial em “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo” (1984b), uma vez que foi contra

“Aqueles que descrevem o método histórico (usado por todos os historiadores) sempre enfatizam a importância da procura por fontes de evidência. Dentre as fontes, como uma regra, quanto maior a proximidade no tempo, lugar e pessoas a serem estudadas, melhor. Mas em grande medida, eles estão falando sobre fontes escritas, em muitos casos complementadas por entrevistas orais, quando isto é possível. O que poderia ser melhor que uma fonte primária: por exemplo, um diário original em que um General registrou seus pensamentos na véspera de uma batalha? Melhor, possivelmente, que um relato secundário de alguém que não esteve envolvido diretamente nos eventos. É claro que se espera que um historiador ambiental conheça e utilize o método histórico, e colete todas as fontes escritas que possam iluminar a questão sob investigação. Para os historiadores ambientais, estas fontes incluem não somente todos os artigos e livros relevantes, mas também, quando o caso requer, registros de negociações, artigos científicos, reportagens de jornais, e literatura que revele as atitudes das pessoas no tempo. Websites podem ser de grande valia, mas são inerentemente mais efêmeros que textos publicados em suporte material; isto é, o site pode não estar mais disponível quando o pesquisador tentar acessá-lo novamente, ou mesmo a página pode ter sido apagada” (Hughes, 2006, p. 118-119, tradução nossa).

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ela que a chamada marcha pioneira se impôs. Resultado de uma atividade econômica febril, a qual despojava a floresta em nome do progresso e do crescimento, a expansão pioneira foi entendida por Monbeig como um movimento amplo e vigoroso, envolvendo a sociedade paulista em uma espécie de faina conquistadora, renovando, de certo modo, o suposto espírito desbravador e aventureiro dos míticos bandeirantes15. O alargamento dessas franjas, que seguia em consonância com o esgotamento dos solos e a expansão das vias férreas, trazia em si a essência de uma sociedade recém-gestada, formada por migrantes e imigrantes, ansiosos pela prosperidade material, em busca de terras que assegurassem a pujança sonhada e muitas vezes prometida16. Ao lado das fazendas, povoados apareciam imersos em um frenesi econômico, mantendo em plena circulação uma vasta rede de atividades agrícolas e comerciais, que sustentavam o desenvolvimento de dezenas de cidades no interior, desbravado ao som do assovio agudo das locomotivas e do estrondo gerado pelos incêndios que iluminavam os céus noturnos, formando novas áreas de plantio. Essa marcha ruidosa e confusa, a qual incorporou um imenso território à lógica econômica nacional, classificada como “[...] infatigável [...]” por Monbeig (1984b, p. 125), deixou suas marcas avassaladoras sobre a natureza, revelando um lado pouco aprazível do avanço do capital. Ao longo de toda a obra “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo”, Monbeig (1984b) mantém o olhar atento para as contradições desse processo econômico, que gerou fortes impactos sobre o ambiente17. Segundo o autor,

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transformações deixaram na paisagem “[...] a marca dessa ofensiva contínua, nos restos de florestas que subsistem, sobre os solos talados por essa cultura devastadora” (Monbeig, 1984b, p. 125). A expressão ‘cultura devastadora’ merece aqui ser destacada. Monbeig (1984b) não deixa dúvidas quanto ao caráter destrutivo e predatório da produção cafeeira, fundamentada na queimada e no uso dos solos até o seu limite. Suas reflexões são contundentes quanto ao nível de destruição que a produção do café impôs à natureza, prioritariamente aos biomas de florestas. Dessa forma, afirma que “[...] a marcha pioneira fez-se na floresta e contra a floresta [...]”, para depois indagar: “Mas, o que resta dela hoje?” (Monbeig, 1984b, p. 86). A sua conclusão é contundente. O que restou foi pouco ou quase nada, uma vez que os métodos impediam a renovação do meio natural, devido ao “[...] traumatismo violento que é a queimada [...]” (Monbeig, 1984b, p. 89). A sua perspectiva para o futuro da produção agrícola, após essa ação predatória, passaria agora pela “[...] ação consciente e cientificamente organizada [...]” (Monbeig, 1984b, p. 92), assinalando a necessidade urgente da renovação dos métodos de cultivo, para que a atividade agrícola pudesse se manter após o inevitável esgotamento dos solos e a destruição das florestas, resultante das técnicas comumente empregadas e de difícil abandono, devido, entre outros fatores, ao atraso técnico e educacional encontrado nas zonas pioneiras (Monbeig, 1984b). Era evidente para Monbeig (1984b) que o meio natural não era mais capaz de sustentar as demandas econômicas e populacionais com o mesmo vigor de outrora, após as

Ressalta-se aqui, uma vez mais, o intenso diálogo de Monbeig com a historiografia paulista e sua visão ‘regionalista’ da história. Neste sentido, a revista “Anhembi”, de Paulo Duarte, que congregava em seus quadros nomes destacados da intelectualidade paulista, trouxe no mesmo ano de publicação do livro, na França, uma resenha bastante elogiosa, definindo “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo” (1984b) como “[...] um verdadeiro monumento à grandeza do Estado de São Paulo” (Pionniers..., 1952, p. 110). A imprensa, em especial, desempenhou papel marcante ao longo das franjas pioneiras, vendendo e propagando os sonhos de riqueza, modernidade, progresso e civilização, na medida em que jornais e revistas iam surgindo, seguindo o ritmo de crescimento das cidades do interior paulista. Sobre essa temática, ver Campos (2009) e Ferreira e Mahl (2008). A expressões ‘meio ambiente’ e ‘ambiente’, muito utilizadas nos dias atuais para definir tudo o que pode afetar os organismos vivos, não se destacam no texto de “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo”. Monbeig (1984b) prefere os substantivos ‘florestas’, ‘plantações’ e ‘pastagens’, além de ‘paisagens naturais’. Para compreender o processo de destruição das chamadas ‘riquezas naturais’, ele geralmente localizava espacialmente uma floresta (oeste, sorocabana, araraquarense), inserindo-a em um relevo (espigões, escarpas), ocupando uma determinada área (planaltos, fundos de vale). Para uma análise do vocabulário ambiental na atualidade, ver Miller Junior (2011).

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sucessivas marchas pioneiras que seguiram em direção aos planaltos ocidentais paulistas, a partir de 1870, e que se estenderam para além das fronteiras do estado, adentrando o norte do Paraná. As ‘terras roxas’ já tinham sido exploradas à exaustão, e os arenitos mais frágeis das últimas fronteiras do estado não ofereciam as mesmas facilidades do ‘velho oeste’. O que o autor chamou de “[...] invasão dos planaltos ocidentais paulistas [...]” (Monbeig, 1984b, p. 94), primeiramente pelo café e posteriormente pela pecuária, em uma referência a uma batalha que teria sido implementada contra a natureza, havia cobrado um preço alto dos recursos naturais de São Paulo, restando, já na década de 1940, a visão melancólica e bastante saudosista expressada pelos agricultores mais velhos, que recordavam um passado de fausto e grandes facilidades, supostamente vivenciados pelos primeiros desbravadores, e que parecia ter ficado definitivamente para trás (Monbeig, 1984b) (Figura 3). Ao refletir sobre as contradições do processo de expansão das franjas pioneiras, Monbeig (1984b) realizou a proposta essencial dos novos geógrafos franceses da primeira metade do século XX, que faziam uma geografia inserida no tempo, onde diversas camadas de história se entrelaçam e se confundem, atravessadas por diferentes variáveis econômicas, políticas, sociais e culturais. Nesse sentido, o mundo observado por Monbeig (1984b) foi compreendido em sua longa duração: no tempo lento, que se revela gradualmente nas interações entre um meio ambiente natural, descrito de forma minuciosa, bem como nas contradições manifestadas pelos movimentos populacionais, por demandas sociais, por mudanças políticas e por aspectos mentais e simbólicos, marcados sobremaneira pelas variações na economia internacional, na qual o país estava cada vez mais inserido, e à qual ficaria cada vez mais sujeito. Como afirma Roncayolo (2006, p. 127), Pierre Monbeig analisou as transformações do interior paulista pela ótica de uma “[...] geografia em movimento [...]”, percebendo, ao longo desse processo, as “[...] tensões [...]”, as “[...] contradições [...]” e os “[...] esgotamentos [...]”, além dos limites desse modelo de expansão.

Figura 3. Foto aérea onde se vê o mosaico formado pela abertura de novas áreas de plantio no meio das matas, revelando as manchas de civilização que avançavam pelo território paulista. Fonte: Monbeig (1952).

Para os historiadores ambientais, “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo” (1984b) apresenta-se como um texto indispensável aos que desejam estudar as transformações no mundo natural no estado de São Paulo, o que se explica a partir de dois fatores principais. Em primeiro lugar, as interpretações do autor sobre a marcha pioneira compreenderam, naquele momento, o alto preço cobrado da natureza pelos desbravadores. Em outras palavras, o desenvolvimento agrícola do interior paulista, e toda a riqueza e o crescimento material que ela proporcionou, se deu às custas da destruição de grandes e complexos biomas. Nesse sentido, se a armadilha do anacronismo nos impede de definir Pierre Monbeig como um historiador ambiental de primeira hora, não seria errado supor que a sua obra revela uma sensibilidade única para os problemas gerados nas relações entre as sociedades e a natureza, antecipando, portanto, esta questão essencial, a qual instiga muitos dos pesquisadores que, desde a década de 1970, se reconhecem como historiadores ambientais. Esse tom crítico, parte constitutiva das análises do geógrafo francês e também de muitos de seus colegas do período, vem ao encontro das reflexões elaboradas pelos historiadores ambientais na atualidade, permitindo, assim, um diálogo permanente e fecundo com a obra, mesmo após quase 65 anos de sua publicação em língua francesa.

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Em segundo lugar, o trabalho de pesquisa feito por Monbeig arrolou um conjunto documental valioso sobre o território paulista e adjacências, principalmente das primeiras décadas do século XX. Encontramos no livro tabelas, plantas, diagramas, mapas, indicadores econômicos, dados populacionais, fotografias – muitas realizadas pelo próprio autor –, além de uma bibliografia que remete a trabalhos pouco conhecidos e citados. Fontes de difícil acesso hoje e que estão disponíveis por intermédio dessa pesquisa rigorosa e abrangente. Afinal, quantos arquivos, livros ou bibliotecas precisariam ser visitados para se ter acesso, por exemplo, aos números de cafeicultores, à média de cafeeiros e à produção por plantador nas quatro macrorregiões paulistas (Alta Araraquarense, Noroeste, Alta Paulista, Alta Sorocabana), além do Norte do Paraná, no biênio 1937-1938 (Monbeig, 1984b)? Ou então à distribuição dos imigrantes, por municípios, pioneiros no início da década de 1930 (Monbeig, 1984b)? Essas são informações imprescindíveis para os que estudam as interrelações entre história e meio ambiente. Caminhos abertos por Monbeig, ainda passíveis de exploração18. De certo modo, Pierre Monbeig agiu como um verdadeiro desbravador do interior paulista, compreendendo, como poucos, as contradições e os impasses da experiência pioneira paulista do início do século XX. Seria importante que a obra voltasse a circular em uma nova edição, deixando sua inexplicável condição de raridade bibliográfica. Sem dúvida, esta seria uma bela forma de homenagear este francês que tanto se dedicou aos temas e problemas brasileiros.

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A importância das fontes primárias arroladas por Pierre Monbeig em “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo” (1984b) também foi apontada pelo resenhista da revista “Anhembi”, que afirmou: “Seria um erro julgar que o seu trabalho interessa apenas aos especialistas em geografia. Ele fornece também a mais preciosa documentação ao historiador, ao economista e ao sociólogo” (Pionniers..., 1952, p. 111).

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O incentivo à pesca comercial de Arapaima gigas (pirarucu) do rio Araguaia (Brasil central) na revista “A Informação Goyana” (1917-1935) Incentives for commercial fishing of Arapaima gigas (arapaima) on the Araguaia River (central Brazil) in the magazine A Informação Goyana (1917-1935) André Vasques VitalI, Francisco Leonardo Tejerina-GarroI, II I II

UniEvangélica Centro Universitário. Anápolis, Goiás, Brasil

Pontíficia Universidade Católica de Goiás. Anápolis, Goiás, Brasil

Resumo: Entre os anos de 1917 e 1935, a revista “A Informação Goyana” publicou, de forma esporádica, diversas fotos de espécimes de Arapaima gigas (pirarucu) capturados no rio Araguaia. O presente artigo segue as interconexões formadas pelo registro fotográfico dessa espécie e pela sua exposição na referida revista, objetivando analisar os esforços de integração do estado de Goiás ao Brasil, via desenvolvimento de uma indústria pesqueira ainda inexistente neste estado. Esse esforço coincide com a emergência de um debate, em nível nacional, sobre o incentivo à pesca e à formação de um mercado interno do pirarucu como forma de diminuir as importações do bacalhau. Essas imagens serviam para exaltar a biodiversidade de animais aquáticos que habitavam os rios de Goiás, o tamanho e o peso dos pirarucus da bacia do Araguaia e o potencial de sua pesca em larga escala para o desenvolvimento econômico do estado. Palavras-chave: Biodiversidade aquática. “A Informação Goyana”. Integração nacional. Rio Araguaia. Abstract: Between 1917 and 1935, the magazine A Informação Goyana sporadically published several photos of specimens of Arapaima gigas (arapaima) captured in the Araguaia River. This present article follows the interconnections formed by the photographic record of this species and its appearance in this magazine, in an attempt to analyze efforts to integrate the state of Goiás into Brazil through developing a fishing industry, which did not yet existent in that state. This effort coincided with the emergence of a national debate on incentives for fishing and the formation of a domestic market arapaima as a way to reduce cod imports. These images emphasized the biodiversity of the aquatic animals inhabiting the rivers in Goiás, the size and weight of arapaima from the Araguaia Basin, and the potential of large-scale fishing of this species for the economic development of the state. Keywords: Aquatic biodiversity. A Informação Goyana. National integration. Araguaia River.

VITAL, André Vasques; TEJERINA-GARRO, Francisco Leonardo. O incentivo à pesca comercial de Arapaima gigas (pirarucu) do rio Araguaia (Brasil central) na revista “A Informação Goyana” (1917-1935). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 13, n. 1, p. 159-174, jan.-abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222018000100009. Autor para correspondência: André Vasques Vital. UniEvangélica Centro Universitário. Av. Universitária, km 3,5 – Cidade Universitária. Anápolis, GO, Brasil. CEP 75083-515 (vasques_vital@tutanota.com). ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6959-3196. Recebido em 28/09/2017 Aprovado em 01/12/2017

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O incentivo à pesca comercial de Arapaima gigas (pirarucu) do rio Araguaia (Brasil central) na revista “A Informação Goyana” (1917-1935)

INTRODUÇÃO A revista “A Informação Goyana” foi o principal órgão a reivindicar, no início do século XX, a integração física e econômica do estado de Goiás ao Brasil, a partir da propaganda feita em relação aos potenciais do território para a exploração econômica. Variados estudos apontam que os seus redatores estiveram engajados na divulgação da geografia, da flora, da fauna, dos minérios, bem como em polemizar ideias com intelectuais do litoral, acusados de desconhecer a maior parte do território nacional, ou seja, o interior do país, apontado como ‘o sertão’ (Nepomuceno, 2003; Sá, 2009; Garcia, 2010; Sandes; Caixeta, 2016). A integração econômica de Goiás ao Brasil era uma questão latente nesse estado durante a Primeira República, sendo vista como uma forma de vencer o ‘atraso’ econômico da região e a sua condição política periférica no cenário nacional. Entre 1917 e 1935, a redação da revista, com sede na capital federal, publicou diversos artigos sobre o potencial da pesca comercial nas bacias hidrográficas do Tocantins-Araguaia, Paraná (alto da bacia, compreendendo o rio Paranaíba) e São Francisco. A preocupação da revista referente ao fomento à pesca em escala comercial ainda é uma característica inédita para essa historiografia. Em vários momentos, foram publicadas, nesta revista, fotografias de peixes, capturados e expostos nas margens dos rios, especialmente no rio Araguaia, como suposto ‘elemento de prova’ da abundância da pesca nos corpos de água presentes no território goiano. Neste artigo, as fotografias de peixes mortos serão analisadas do ponto de vista de suas relações com a construção da imagem de Goiás ou do ‘oeste goiano’ como uma terra de oportunidades para a pesca comercial. Nesse sentido, serão analisadas as relações materiais que essas fotos adquiriram com os planos de integração nacional pensados pelas elites goianas e com os debates em nível nacional sobre o incentivo e a regulamentação da pesca no Brasil. Para tanto, utiliza-se aqui uma metodologia inspirada nas proposições da historiadora Ewa Domanska, que vai além das noções de representação, ao entender os não humanos como agentes, a partir de suas relações, presença

e materialidade na conformação histórica (Domanska, 2006, 2013). Tal presença é pensada, nessas propagandas de caráter político, seguindo-se também a sugestão de Jane Bennett, que aponta para a necessidade da inclusão de não humanos e de eventos como partícipes na conformação de debates, de ideias e de transformações políticas (Bennett, 2010). As fotografias, assim, são uma federação de agentes humanos e não humanos que, analisados no contexto da revista “A Informação Goyana”, revelam conexões, a um só tempo, materiais e discursivas entre peixes capturados no rio Araguaia, povos indígenas, imagens fotográficas, projetos de integração nacional, pesquisas zoológicas, balança comercial brasileira e debates sobre a atividade pesqueira no Brasil. Será priorizado o caso das fotografias de espécimes capturados de Arapaima gigas (Schinz, 1822) no rio Araguaia, conhecida pelo nome comum de pirarucu, a qual foi a mais visada na propaganda feita pela revista “A Informação Goyana”. As conexões formadas por esses peixes, capturados e expostos em fotos na revista, servirão de fio condutor para a análise da inserção de Goiás nos debates sobre o incentivo e a regulamentação da pesca promovidos pelo governo federal, por meio do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), nas décadas de 1910, 1920 e 1930. Para mapear os debates em nível nacional, serão utilizados também artigos e notícias de revistas publicadas na capital federal, especialmente no “Boletim do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio”, órgão oficial do MAIC. As fotografias, bem como os periódicos aqui analisados, encontram-se na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.

O PIRARUCU E O RIO ARAGUAIA: UMA VIA DE INTEGRAÇÃO ECONÔMICA DO ESTADO DE GOIÁS O pirarucu, nome utilizado no Brasil e de origem indígena que significa ‘peixe vermelho’ – ‘pira’ = peixe e ‘urucu’ = vermelho, devido à coloração vermelha na borda da cauda (Bard; Imbiriba, 1986) –, é considerado o maior peixe ósseo de água doce (máximo comprimento = 450 cm,

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máximo peso = 200,0 kg) (Froese; Pauly, 2017). Ele pertence à família Arapaimidae (Osteoglossiformes), apresenta uma cabeça maciça, língua óssea, corpo longo e cilíndrico, recoberto por escamas largas e espessas (Reis et al., 2003), bem como respiração aérea (Sawaya, 1946). O gênero Arapaima compreende quatro espécies reconhecidas, entre elas está Arapaima gigas (Schinz, 1822) (Stewart, 2013), encontrada em vários cursos neotropicais de água, entre os quais está o rio Araguaia, na bacia hidrográfica Tocantins-Araguaia (Santos et al., 2009). Esta espécie habita preferencialmente ambientes lacustres. A estreia de fotos de espécimes capturados de A. gigas na revista “A Informação Goyana” ocorreu em janeiro de 1922. A Figura 1 aparece no meio de um artigo sobre

a agricultura no estado de Goiás, não guardando, assim, relação com esse tema. Contudo, neste mesmo número da revista, haviam também os registros fotográficos de um espécime de boto (Sotalia sp. ou Inia sp.) e de um homem coletando ovos de tartaruga (Podocnemis sp.) na ilha do Bananal, no rio Araguaia. A fotografia que compõe a Figura 1 não possui registro de autoria, nem a data e o local exatos de sua produção. Entretanto, essa mesma foto ilustrou, seis anos depois, um artigo na revista “A Informação Goyana” sobre os pirarucus do Araguaia, quando há a indicação de se tratar de uma imagem retirada de um relatório escrito por Carlos Herndl, escrito em 1921, ao então secretário de obras públicas do estado de Goiás, provavelmente no governo

Figura 1. Pirarucus (Vastres gigas) pescados pelos índios Carajás, em ilha do Bananal, Araguaia. “Há os de duas espécies, distintas pela coloração: brancos e pretos. O mais comum se caracteriza pelas grandes escamas vermelho-pretas, cabeça esverdeada, língua óssea, que depois de seca delas se servem os indígenas para ralar guaraná e outros misteres”. Fonte: A informação… (1922, p. 46).

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de Eugênio Rodrigues Jardim (1921-1923) (O Pirarucu…, 1928). Herndl teria realizado uma expedição ao Araguaia, para analisar as possibilidades de incentivo à navegação e à exploração econômica neste rio (O Araguaia…, 1925). Os espécimes de pirarucus capturados estão na parte central e inferior da fotografia, enquanto o índio Karajá (povo indígena do grupo linguístico Macro-Jê, que ocupa atualmente a ilha do Bananal e parte do município de Aruanã, Goiás) está na extrema direita da foto, segurando o que parece ser uma corda, presa aos dois peixes, como se os ‘apresentasse’. Na descrição, o índio é um personagem importante, pois é ele quem pesca o pirarucu: atividade que os Karajás executam tradicionalmente utilizando arco e flecha (Silva; Ummus, 2017) ou redes de pesca denominadas rèru, as quais são armadas na barra das lagoas (Nunes, 2012), podendo incluir outros apetrechos de pesca, como a ‘fisga’ (arpão). As árvores, o rio e a embarcação com os dois homens ao fundo emergem como cenário que coloca em primeiro plano os dois pirarucus e o índio Karajá. O ângulo de noventa graus formado pelos dois peixes em relação ao índio não é ingênuo: é uma construção imagética das dimensões dos animais, ressaltando o tamanho do pirarucu do Araguaia. A descrição do costume dos Karajá em utilizar a língua do peixe como ferramenta nada tem a ver com uma curiosidade sobre a cultura desse povo; trata-se de um apontamento sobre a possibilidade de captura do pirarucu para além dos fins de alimentação. O índio e os dois espécimes capturados da foto servem, assim, para sugerir as possíveis vantagens da exploração pesqueira no rio Araguaia pelo homem branco. Embora a foto presente na Figura 1 fosse a primeira imagem do pirarucu publicada nas páginas de “A Informação Goyana”, esse peixe já vinha sendo mencionado desde o primeiro número da revista, em 15 de agosto de 1917. Na oitava página do seu primeiro número, o periódico exaltava a singularidade da fauna e da flora do estado de

Goiás pela sua multiplicidade, graças a esta região ser o divortium aquarum (divisor de águas) entre as bacias do São Francisco, do Amazonas e do Prata. “Todas as espécies ictiológicas havidas como peculiaridades de outras regiões brasileiras são encontradas em águas goianas” (A riqueza..., 1917), alardeava o texto. Nesse sentido, o peixe dourado1 e o pirarucu2 eram alçados a exemplos de como os rios goianos reuniam espécies aquáticas de diferentes regiões do Brasil. Isso porque a primeira espécie não era encontrada em rios amazônicos, apesar de a espécie Salminus hilarii (Valenciennes, 1850) ser encontrada nos cursos da bacia Tocantins-Araguaia (Reis et al., 2003), e a segunda não era vista nas bacias do Prata e do São Francisco (A riqueza…, 1917). Para além da propaganda, a publicação da Figura 1 era uma resposta a Affonso Costa, então diretor do Serviço de Informações do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC). Costa elaborou um memorial ao então ministro da agricultura, João Gonçalves Pereira Lima, em janeiro de 1918, sobre os esforços de intensificação da pesca e do consumo de peixes oriundos dos rios que perfaziam o território nacional. O memorial não continha qualquer referência ao estado de Goiás, mas recomendava que o governo federal entrasse em acordo com o governo do estado do Amazonas, para incentivar financeiramente o aumento da pesca do A. gigas nos lagos da bacia amazônica e o incremento de uma pequena indústria para o processo de salga e de comercialização para outros estados. Esse memorial provocou forte reação, publicada na revista “A Informação Goyana”, apontando que a pesca comercial do pirarucu no Amazonas teria efeito desastroso, pela suposta diminuição das populações de A. gigas nessa região, “[...] com tendências a extinção completa [...]” (Pirarucu…, 1918, p. 71). Vale ressaltar que este alerta apenas se concretizou parcialmente 68 anos após esta publicação, isto é, em 1986, quando a espécie foi classificada como

Classificado na época como Salminus sp., corresponde atualmente à espécie S. brasiliensis (Cuvier, 1816), encontrada no rio Paraná, na bacia do Prata (Reis et al., 2003). 2 Identificado taxonomicamente na época como Sudis gigas ou Vastres arapaima, e não como Vastres gigas (Reis et al., 2003). 1

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‘vulnerável à ameaça de extinção’ (WCMC, 1996), devido à uma redução das populações naturais e do tamanho médio dos exemplares capturados (Kirsten et al., 2012) em consequência da sobrepesca (Allan et al., 2005). Somente em 1990 o pirarucu mudou de categoria, saindo de ‘vulnerável à ameaça de extinção’ para ‘dados insuficientes’ (WCMC, 1996), isto é, são necessárias mais informações sobre a população desta espécie para determinar o seu grau de ameaça de extinção (IUCN, 2012). O artigo publicado em “A Informação Goyana” em 15 de janeiro de 1918 lançava a indagação: “[...] por que o diretor do Serviço de Informações não lembrou ao ministro que em nenhuma região brasileira existe tanta quantidade de pirarucu como nos lagos do Araguaia?” (Pirarucu…, 1918, p. 71). E continuava citando as obras do naturalista Francis de la Porte (1810-1880) – conde de Castelnau – e de Couto de Magalhães (1837-1898), para comprovar que no rio Araguaia havia abundante presença de “enormes” pirarucus, que pesavam, “[...] em média, 150 kilogramas [...]”, que nunca haviam sido explorados comercialmente (Pirarucu…, 1918, p. 71). Assim, a imagem da Figura 1 servia justamente para ilustrar a suposta excepcionalidade do tamanho e do peso de A. gigas do Araguaia, reforçando que o estado de Goiás merecia maior atenção do MAIC no sentido de auxiliar a promoção da pesca. O provável autor desses artigos é o próprio redator da revista “A Informação Goyana”, o major Henrique Silva, o qual era formado na Escola Militar da Praia Vermelha, na capital federal, e durante a sua formação uniu-se a outros colegas goianos, como Olegário Pinto e Eduardo Sócrates, para pensar formas de incentivar o progresso via integração econômica do estado de Goiás ao Brasil. Henrique Silva, em 1891, fundou a revista “Brazil Central”, que teve apenas um número, fundando posteriormente, com o médico

Americano do Brasil, “A Informação Goyana”, em 1917. Americano do Brasil permaneceu apenas um ano na redação do periódico, que, depois, se manteve apenas sob a responsabilidade de Henrique Silva. Ambos os periódicos tinham como objetivo fazer propaganda das possibilidades de exploração econômica da flora, da fauna e dos minérios presentes em território goiano, de modo a incentivar a migração e chamar a atenção do governo federal e da iniciativa privada para o estado de Goiás (Nepomuceno, 2003). Henrique Silva tinha uma especial predileção por escrever sobre a ictiofauna encontrada em Goiás e a possibilidade de sua exploração econômica via introdução da pesca comercial. De acordo com uma lista de obras divulgadas na revista em 1920, como sendo de autoria de Silva, ele teria publicado até essa data pelo menos três obras sobre atividade pesqueira e fauna aquática, que eram “‘Fauna Fluviatil de Goiás, Volume 1: Bacia do Tocantins e Araguaia’ (1905), ‘Fauna Fluviatil de Goiás Volume 2: Bacia do Paranaíba’ (1906), ‘O pescador brasileiro’ (1915)” (Obras…, 1920, p. 86). Na maioria desses escritos, esteve presente a mesma noção de Goiás como divortium aquarum das bacias do Prata, do Amazonas e do São Francisco, justificando, assim, a abundância e a diversidade de espécies aquáticas na região3. A imagem de Goiás como divortium aquarum fez parte dos planos do grupo envolvido com a publicação da revista “A Informação Goyana” para incentivar a integração econômica da região. Por sua vez, os espécimes capturados de pirarucu e as suas fotos eram elos constitutivos do esforço de integração da bacia do Araguaia ao sistema produtivo nacional por meio da pesca. Todas as descrições das espécies aquáticas, incluindo as do pirarucu, na revista “A Informação Goyana”, tinham como objetivo principal chamar a atenção para as possibilidades da pesca comercial na região.

A imagem do estado de Goiás, atrelada à área de nascentes dos rios pertencentes às bacias do São Francisco, do Amazonas e do Prata, remontou ao período colonial e fomentou por décadas a esperança de intelectuais e de sucessivos governos, nos períodos Imperial e Republicano, em integrar economicamente a região ao Brasil, por meio do incentivo à navegação fluvial. A revista “A Informação Goyana” seguiu essa mesma tradição, trazendo como novidade a possibilidade de integração também via incentivo à pesca. Sobre os diferentes projetos de integração via navegação fluvial desde o período colonial, ver Chaul (1997) e Garcia (2010).

3

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Henrique Silva publicou nessa revista uma série de artigos que incluía a descrição básica de diversas espécies de peixes da região, acompanhada de duras críticas a supostos erros contidos em livros publicados no litoral sobre a ictiofauna do interior do Brasil. Segundo o autor, essas obras continham erros e desconhecimentos sobre a biologia, os costumes, os hábitos e o valor econômico das espécies, a ponto de “[...] qualquer pescador caipira aí estar à vontade para destruir todos os trabalhos dos sábios sistemáticos [...]” (Silva, 1919, p. 118). É claro que, para ele, o maior erro era ignorar que o Araguaia detinha os ‘maiores e mais pesados’ pirarucus do território nacional, sendo reforçada, uma vez mais, essa característica na descrição de A. gigas (Silva, 1919). Henrique Silva também endereçaria críticas ao médico sanitarista Arthur Neiva, que, em viagem pela capital de Goiás, esteve diante de uma coleção de peixes pertencentes à fauna dos rios Araguaia e Tocantins. Contudo, segundo Silva (1918, p. 106), [...] este excursionista de Manguinhos, que tão interessado se mostrava então pela fauna das regiões visitadas, acaba de publicar o resultado de tudo quanto por lá vira – mas sem uma palavra teve para a pisce-fauna do grande estado, nem sequer uma leve referência aquela coleção [...]

É importante destacar que esse esforço em incentivar a pesca comercial provavelmente estava em diálogo direto com um interesse maior dos Caiado-Jardim, oligarquia hegemônica no estado de Goiás, nesse período, em integrar a bacia do Araguaia ao sistema produtivo nacional. A expedição de Carlos Herndl, de 1921, por exemplo, resultou em um relatório contendo diversos dados sobre a navegabilidade e as possibilidades econômicas da bacia do rio Araguaia. Segundo um artigo publicado na revista “A Informação Goyana”, o relatório destacava que um dos maiores problemas da navegação desse rio residia no escasso número de pessoas que viviam em suas margens e na falta de atividades econômicas voltadas para a exportação. Além da pesca comercial, entre as principais atividades recomendadas por Herndl no Araguaia estavam

a extração do óleo de babaçu, a criação de gado e a captura de aves para a produção de penas e de plumas (O Araguaia…, 1925). Esse relatório foi utilizado por deputados goianos, ao longo da década de 1920, para justificar projetos na câmara federal que destinassem verbas para o incentivo a atividades econômicas na região. A pesca no rio Araguaia era realizada pelos índios Karajá e Javaé, mas também por pescadores que viviam na capital do estado e nos povoados. O naturalista Castelnau (1949), em viagem pelo rio Araguaia, entre 1843-1847, apontou a existência da pesca do pirarucu para a venda na capital da província de Goiás. A própria revista “A Informação Goyana” informou que o pescado era abundante nos mercados da cidade de Goyáz. Essa pesca, no entanto, era realizada majoritariamente por meio de dinamites lançadas em lagos, lagoas e nos córregos afluentes do rio Vermelho, visando suprir uma demanda de subsistência e de um pequeno mercado interno da capital, inexistindo uma exploração maior cujo objetivo era a comercialização com outros estados (Piscinas…, 1921). Casos de acidentes com amputação de membros, envolvendo o uso de explosivos em pescarias, eram noticiados nos jornais (Dinamite…, 1893). Além disso, o emprego de explosivos seria apontado, em 1925, como responsável pela diminuição na quantidade de peixes encontrados no rio Vermelho (A carestia…, 1925). A fotografia que compõe a Figura 2 foi publicada em janeiro de 1929. Não possui qualquer referência à autoria e a única descrição que apresenta é “Pirarucus do Araguaia: pesando, cada um, 150 quilos”. Essa imagem não ilustra qualquer artigo sobre o tema, sendo a página dedicada à seção “Notas e informações”, contendo notícias variadas sobre a política estadual e nacional. A diferença, contudo, é que o foco recai absolutamente sobre os dois pirarucus, sendo mesmo difícil identificar o local onde eles estão. O arpão enterrado na cabeça de um deles e a corda possuem algum destaque, identificando a técnica utilizada na pesca do pirarucu, a qual é de uso frequente no rio Amazonas (Bard; Imbiriba, 1986) atualmente, mas não

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Figura 2. Pirarucus do Araguaia: pesando, cada um, 150 quilos. Fonte: A Informação… (1929, p. 51).

no rio Araguaia, onde o arpão é denominado de ‘fisga’ (Kirsten et al., 2012). Assim, os personagens principais na imagem são os espécimes capturados, demonstrando uma vez mais o tamanho e o peso dos pirarucus do rio Araguaia. Em setembro de 1924, a revista “A Informação Goyana” publicava a rota de deslocamento de A. gigas na bacia, quando descia os rios Tocantins e Araguaia até a localidade de Santa Leopoldina, 300 léguas ao sul do leito do rio Amazonas. Vale ressaltar que essa descrição não corresponde ao conhecimento atual sobre os deslocamentos (migrações) dessa espécie, a qual realiza essencialmente migrações laterais rio-planície de inundação (Castello, 2008). Por outro lado, a referida revista informava que os lagos de Cambuy, Pérolas e Dumbá (entre estes e considerando o nome citado, o Dumbá parece corresponder ao atual lago Dumbá Grande, localizado nas proximidades da cidade de Cocalinho, Mato Grosso), além dos lagos da ilha do Bananal, eram classificados como os lugares com “[...] a maior reserva do famoso bacalhau da Amazônia [...]” e que, apesar de sua abundância, ninguém os capturava devido à dificuldade na sua pesca (O Pirarucu…, 1924, p. 15). Nesse artigo, fica evidente como o pirarucu emergiu exclusivamente

na condição de riqueza à espera de ser explorada, algo comum a outros artigos sobre o A. gigas dos lagos que margeiam o Araguaia, nesse momento. Outras várias espécies fluviais do Araguaia foram descritas nessa revista como se ‘esperassem’ pela exploração humana. O periódico “A Informação Goyana”, em um artigo de junho de 1925 sobre o fenômeno da piracema (nome popular dado aos deslocamentos migratórios de alguns peixes) no Araguaia, destacava um relato de Castelnau, que indicava ser possível, nesse período, ouvir “[...] à distância o rumor produzido pelos peixes debaixo d’água, especialmente à noite [...]” (Migração…, 1925, p. 87-88). A noção de abundância da vida aquática, no entanto, é constantemente generalizada para outros rios, como estes da bacia do São Francisco ou do Paraná. A Figura 2 provavelmente é uma imagem do documentário “No coração do Brasil” (1926), do cineasta mineiro Aristides Junqueira, filmado em 19254. Junqueira foi contratado para filmar a posse de Brazil Ramos Caiado (1925-1929) na presidência do estado, mas, devido à chegada da Coluna Prestes5 em Goiás, ficou brevemente impossibilitado de regressar a Minas Gerais após concluído o trabalho. Decidiu, então, ir para o Araguaia e filmar os costumes dos índios Karajá (Marques, 2007). Aristides Junqueira tinha interesse nos costumes das populações indígenas e, nessa época, já havia filmado outros povos. Contudo, as imagens dos Karajá capturando pirarucus no filme “No coração do Brasil” tiveram grande serventia para a propaganda que já estava em curso sobre o Arapaima gigas do Araguaia, no âmbito da revista “A Informação Goyana”. O filme foi exibido em várias salas de cinema na capital federal e em Minas Gerais, recebendo, inclusive, algumas críticas positivas na imprensa (Marques, 2007).

Como aponta Marques (2007, p. 167), atualmente, o documentário “No coração do Brasil” ou “Em pleno coração do Brasil” encontra-se perdido, desconhecendo-se, assim, maiores características e informações sobre esta obra. 5 A Coluna Prestes foi um movimento político ligado ao tenentismo que defendia amplas reformas políticas e sociais, contrárias às bases da República Oligárquica. Teve como um de seus líderes o capitão do exército Luis Carlos Prestes (1898-1990). O movimento, formado por tenentes do exército e simpatizantes, percorreu vários estados do interior do país, buscando derrubar os governos locais, estaduais e, principalmente, o executivo federal entre os anos de 1925 e 1927. Sobre a Coluna Prestes em Goiás, ver Campos (2003). 4

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De forma similar às demais fotografias, a Figura 3 não ilustra artigo algum sobre o tema da pesca no rio Araguaia. Mas o objetivo, semelhante aos das Figuras 1 e 2, é chamar novamente a atenção dos leitores para o tamanho e o peso do exemplar de A. gigas encontrado nos lagos das margens do rio Araguaia, comprovando a existência dessa espécie em Goiás. Observa-se que, na legenda, há a indicação de que o animal possui 2,5 m de comprimento. Na verdade, este valor é uma informação que reprisa uma declaração dada de diferentes maneiras em outros números da revista, a qual é acompanhada de uma segunda informação referente ao peso deste peixe (150 quilos). É interessante notar que estas duas informações são mencionadas diversas vezes em outros números de “A Informação Goyana”, sugerindo que não foram feitas outras medições e/ou não se dispunha de outra fonte. Esta situação parece se estender ao âmbito de artigos e de relatórios científicos, visto que uma produção de Sawaya (1946, p. 258) a respeito do tipo de respiração de A. gigas indica que “Chama logo a atenção o seu tamanho excepcional, podendo alcançar 2,5 mts de comprimento e 150 kg de peso”, ou seja, correspondem aos valores mencionados pela revista. Em ambos os casos, a fonte parece ser a mesma: a descrição das características biológicas de A. gigas feita pelo naturalista Castelnau (1855) durante a sua expedição ao rio Amazonas. A Figura 3 é também pertencente ao documentário “No coração do Brasil”, de Aristides Junqueira. A imagem, claramente tirada de contexto, e principalmente a descrição na revista ressignificam os índios como se eles apresentassem ao leitor da revista aquele que deveria ser capturado: o pirarucu. O cenário é tomado por espessa vegetação, que circunda o lago onde se deu a captura. A paisagem tomada pela vegetação, com dois índios nus carregando um grande Arapaima gigas, reforça a indicação constante nos artigos da revista “A Informação Goyana” que apontam a região do Araguaia como inexplorada, praticamente ‘à espera’ de quem pudesse empregar esforços em uma indústria pesqueira em suas margens.

A imagem que consta na Figura 4, por sua vez, foi publicada no mesmo número de “A Informação Goyana” que a Figura 3, compondo também o documentário de Aristides Junqueira. Nesse caso, os dois índios (aparentemente os mesmos da Figura 3) estão em grande destaque no centro da imagem, apontando para

Figura 3. Um Pirarucu de 2,5 m de comprimento. Fonte: A Informação… (1930b, p. 91).

Figura 4. A pesca do pirarucu no Araguaia pelos índios Carajá. “O cliché foi tomado do filme ‘No coração do Brasil’, interessante trabalho do sr. Aristides Junqueira que acaba de regressar do Araguaia. O espécime acima mede 2 metros e meio e pesava 150 quilogramas. No entanto, certo serviço de informações oficiais continua a informar os estrangeiros e a nós mesmos que o Vastres gigas existe unicamente na Amazônia [...]”. Fonte: A Informação… (1930a, p. 93).

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o personagem que realmente importa: o espécime capturado de A. gigas. Os dois índios encontram-se em um lago, habitat da espécie, como se legitimassem a informação da legenda da foto, de que o pirarucu não existia apenas no Amazonas, mas também no rio Araguaia. O periódico publicou esta foto como forma de novamente direcionar críticas ao Serviço de Informações do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, por não incluir o rio Araguaia entre os locais onde o Arapaima gigas habitava. De acordo com os artigos publicados na revista e o próprio Henrique Silva, várias obras científicas, além das informações oficiais do MAIC, indicavam que o pirarucu era uma espécie peculiar ao rio Amazonas. Essa informação era qualificada, na revista, como uma injustiça contra o estado de Goiás. Aqueles que escreviam sobre o Arapaima gigas e deixavam de citar o rio Araguaia eram acusados de ‘amazonófilos’, embora raramente esses autores fossem nominalmente citados. Para Henrique Silva, era “[...] míster libertarmos as demais regiões da superstição dos amazonófilos que pretendem o monopólio dos conhecimentos da história natural entre nós, com prejuízo da verdade científica [...]” (Migração…, 1925, p. 87-88). A ênfase na distribuição geográfica de A. gigas no rio Amazonas, e não no rio Araguaia, parece ter sua origem nas obras do naturalista Castelnau. A primeira lista de espécies de peixes marinhos e de água doce sul-americanos que inclui dados de distribuição geográfica – reconhecida, portanto, como uma lista de ‘importância faunística’ relevante – é resultado da expedição científica desse naturalista do Rio de Janeiro a Lima e de Lima ao Pará, realizada entre 1843 e 1847 (Vanzolini, 1996). Nessa lista, são explicitados os locais de captura de cada espécie e apresentadas 47 espécies de peixes presentes no rio Araguaia, mas não inclui A. gigas, para a qual havia a informação de que pertencia ao rio Amazonas e afluentes (Castelnau, 1855), apesar desse autor saber que esta espécie estava presente no rio Araguaia, visto indicar que a população da cidade de Goiás consome este peixe (Castelnau, 1949). É necessário, ainda, esclarecer que,

atualmente, considera-se que o rio Araguaia faz parte da bacia hidrográfica Tocantins-Araguaia, o qual não é um afluente, do ponto de vista hidrológico, da bacia hidrográfica amazônica (MMA, 2006). Entretanto, do ponto de vista ictiológico, os peixes que se encontram nos rios Araguaia e Tocantins fazem parte da província amazônica (Lévêque et al., 2007), não sendo, no entanto, todas as espécies exclusivas do rio Amazonas, como é o caso de A. gigas. Embora as fotografias de espécimes capturados de A. gigas claramente fossem uma propaganda das potencialidades econômicas do rio Araguaia, Henrique Silva defendia esse método como o modo mais adequado de estudar e de conhecer tanto esta, como as demais espécies aquáticas. Em uma de suas muitas críticas ao suposto desconhecimento dos cientistas brasileiros sobre os peixes dos rios de Goiás, Silva apontou que eles não faziam ideia das cores que caracterizavam cada espécie, porque os conheciam apenas “[...] empalhados, secos nos museus de história natural [...]” (Silva, 1931, p. 41-42). Acrescentou, ainda, que os cientistas “[...] em geral diminuem o tamanho dos nossos peixes, completando assim a obra do formol que os embalsamam, quando destinados aos museus [...]” (Silva, 1931, p. 41-42). Assim, implicitamente, ele buscou justificar essas imagens como forma de descrever cientificamente uma espécie e, ao mesmo tempo, destacar o seu valor comercial. Obviamente, há aqui uma retórica de autoridade do autor: as fotografias e os filmes do período eram em preto e branco. Assim, somente seria possível conhecer uma espécie estando em contato direto com ela ainda viva ou recém-capturada. Era uma maneira de reforçar a superioridade do conhecimento das populações locais e o seu próprio, por ser goiano, em relação aos trabalhos produzidos por cientistas forasteiros. Os ataques de Henrique Silva aos zoólogos na revista “A Informação Goyana”, por suposto preconceito e desconhecimento sobre a riqueza do ambiente aquático do estado de Goiás, não foram um ato isolado em relação aos cientistas e às instituições de pesquisa da capital federal. O caso mais estudado, até então, são as críticas direcionadas a “Viagem científica pelo norte da Bahia, sudoeste de

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Pernambuco, sul do Piauí e de norte a sul de Goiás” (1916), relatório sanitário escrito pelos médicos Arthur Neiva e Belisário Penna, do Instituto Oswaldo Cruz, resultado de suas viagens científicas em 1912. Esse relatório foi um dos que serviram de base para o diagnóstico do médico Miguel Pereira de que o Brasil ‘era um imenso hospital’, devido à onipresença das doenças no interior e à sua associação com a miséria, com a ausência do poder público e com o ‘atraso’6. A ideia de Goiás circunscrita a uma região marcada pelo estigma da doença, da miséria e inadequada para sediar a nova capital da República foi repudiada com veemência ao longo dos anos de existência da revista “A Informação Goyana”. As acusações que pairavam sobre os cientistas médicos era a mesma: a de desconhecerem as realidades locais e da falta de rigor científico em suas observações (Sá, 2009; Sandes; Caixeta, 2016).

O ‘BACALHAU BRASILEIRO’: O INCENTIVO À PESCA DO PIRARUCU NA PRIMEIRA REPÚBLICA Os ataques de Henrique Silva à forma como o conhecimento era produzido e divulgado por zoólogos marinhos e de água doce tinham potencial bastante reduzido de provocar qualquer desconforto nos cientistas brasileiros. A fotografia, na época, era mal vista por zoólogos marinhos nos grandes centros de pesquisa europeus, justamente por não captarem as cores e os detalhes dos corpos das espécies aquáticas, sendo preferidas estampas (como a da Figura 5), muitas vezes produzidas por pintores e aquarelistas profissionais que acompanhavam os cientistas em expedições (Shick, 2008). Associados às estampas, os aquários eram também usados para estudos científicos e educação na Europa desde fins do século XVIII, difundindo-se com a produção industrial de vidro, em meados do

século XIX (Carpine-Lancre, 1994; Kisling Jr., 2000; Brunner, 2005). O Brasil, no entanto, teria o seu primeiro aquário marinho apenas na década de 1940. As estampas, assim, tinham um valor fundamental na difusão do conhecimento. Por outro lado, as fotografias de animais empalhados ou da sua ossada poderiam ser publicadas como forma de ilustrar um texto (caso da Figura 6) ou para comprovar algum ponto de vista dentro de uma controvérsia. Esse último caso é bem representado pela Figura 7,

Figura 5. Estampa de tainha (Mugil cuv.) Fonte: Cadaval (1913, p. 103-113).

Figura 6. Pirarucu empalhado. Fonte: Costa (1918, p. 127-130).

Figura 7. Esqueleto de pirarucu mostrando em D a nadadeira dorsal e em A a anal. E entre as duas, posteriormente, a calda, espatulada. Fonte: Ribeiro (1907, p. 41).

Essa afirmação do médico Miguel Pereira, então professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, foi feita durante um encontro de médicos em homenagem ao sanitarista Carlos Chagas. Tornou-se lema do que os historiadores chamam de movimento sanitarista da Primeira República, manifestação política de caráter nacionalista, liderada por médicos que viam nas doenças e no abandono das populações do interior pelo poder público um entrave ao progresso da nação. Sobre o movimento sanitarista, ver Castro Santos (1985); Lima e Hochman (1996); Hochman (1998); Lima (1999); Britto (2006).

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a qual evidencia uma ossada de pirarucu que acompanhou artigo de Alípio de Miranda Ribeiro, um dos mais respeitados zoólogos brasileiros do início do século XX, publicado na revista “Kosmos”, em novembro de 1907. Miranda Ribeiro escreveu um artigo criticando algumas imprecisões contidas no capítulo “Indústria extrativa: reino animal”, de Benedicto Raymundo da Silva, na obra “O Brasil, suas riquezas naturais, suas indústrias” (1907), estudo encomendado pelo Ministério da Viação e Obras Públicas em dezembro de 1905. Uma das imprecisões apontadas por Miranda Ribeiro no texto de Benedicto Silva era a descrição das nadadeiras do Arapaima gigas, utilizando uma fotografia de um esqueleto dessa espécie como elemento de prova em sua crítica (Ribeiro, 1907). Se, por um lado, as fotografias de espécimes capturados de A. gigas do Araguaia tinham pouca força em um debate científico, por outro, eram consideravelmente importantes na busca por chamar a atenção do governo federal, em um período de forte debate sobre a pesca do pirarucu no Brasil. Esse debate era suscitado pelo grande volume de importação do peixe conhecido como bacalhau (principalmente os espécimes de Gadus morhua Linnaeus, 1758), prejudicando a balança comercial brasileira. Um estudo publicado em 1916 apontou que, entre os anos de 1910 e 1915, a importação brasileira de bacalhau – vindo, principalmente, da Noruega e da colônia britânica de Newfoundland – variou entre 33.000 e 49.500 toneladas ao ano, movimentando 20.000:000$ (Costa, 1916). Raros são os dados sobre a exportação do pirarucu no porto de Belém do Pará. Alípio de Miranda Ribeiro, em artigo publicado em 1907, citou que, entre 1885 e 1893, foram exportadas de 674 a 1.500 toneladas de pirarucu (Ribeiro, 1907). O memorial apresentado por Affonso Costa ao MAIC, em janeiro de 1918, e que tanto irritou o major Henrique Silva por não citar o rio Araguaia, é, contudo, bastante revelador. Segundo Costa, o preço do bacalhau vendido no Brasil variou entre 37$ e 200$, durante os anos de 1912 e 1917, apresentando maior preço durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), devido às

dificuldades impostas pelo conflito ao comércio marítimo. Por outro lado, em 1917, o pirarucu era comercializado por apenas 2$500, nos estados não produtores, e por 1$, em Manaus (Costa, 1918). Assim, a Grande Guerra e a disparada no preço do bacalhau ajudaram no fomento dos debates sobre a formação de um mercado interno para o pirarucu, tornando urgente a propaganda da revista “A Informação Goyana” sobre as potencialidades da pesca comercial de A. gigas no Araguaia. Outro fator que levou aos debates sobre a pesca do pirarucu foi a criação do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), em 1909, e da Inspetoria da Pesca, em 1912. O MAIC foi criado com a premissa de incentivar a diversificação da produção agrícola nacional, produzir conhecimentos sobre a flora e a fauna nacionais e regulamentar a sua exploração econômica (Mendonça, 2000; Bhering; Maio, 2011; Mello, 2016). A Inspetoria da Pesca foi um órgão com premissa similar, mas voltado para atividade pesqueira nas águas marítimas e fluviais. O decreto n. 9.802, de 9 de outubro de 1912, regulamentou a pesca em território nacional e o dividiu em três grandes zonas: Goiás estava na primeira, ao lado dos estados do Amazonas, do Pará, de Piauí, do Ceará, parte do Rio Grande do Norte e do Maranhão. A Inspetoria da Pesca e essa organização tiveram vida curta, sendo extintas pelo decreto n. 2.914, de 5 de janeiro de 1915 (Costa, 1916). Durante os três anos de existência da Inspetoria da Pesca, projetos foram pensados e debates sobre o fomento à indústria pesqueira ocorreram na imprensa e, especialmente, no “Boletim do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio”, órgão oficial do MAIC. O estado de Goiás ficou à margem dessas discussões, que giravam em torno, principalmente, da pesca no litoral brasileiro e, em menor medida, no rio Amazonas. Quando o tema era o incentivo à pesca comercial do pirarucu, os estados do Amazonas e do Pará monopolizavam a atenção dos autores. Estudos foram realizados sob os auspícios do MAIC na região do rio Branco (atual estado de Roraima), por exemplo, sobre a viabilidade de incentivar uma

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indústria pesqueira e a necessidade de proteção à pesca do pirarucu em 1912 (Hasemann, 1915). Em artigo sobre a importância do incentivo à pesca, publicado em 1916, Affonso Celso citou o caso do pirarucu, mencionando apenas o rio Amazonas (Costa, 1916). O mesmo ocorreu no memorial escrito por esse mesmo autor ao MAIC, onde recomendou um acordo entre o estado do Amazonas e o governo federal, para a subvenção de uma usina para ressecamento e salga de pirarucu, além de redução dos impostos sobre a importação do sal, necessário para o preparo do peixe para a exportação (Costa, 1918). A propaganda feita por Henrique Silva na capital federal a partir da revista “A Informação Goyana”, com fotografias de espécimes capturados de A. gigas, não surtiu o efeito desejado. Nenhuma política de incentivo à pesca do pirarucu no Araguaia foi pensada e colocada em prática durante os anos de publicação desta revista. Esse problema, contudo, não afetava apenas o estado de Goiás. Em 1933, a “Revista Marítima Brasileira” publicou artigo da Associação Comercial do Amazonas sobre a pesca e a indústria do pirarucu nesse estado. A queixa era a mesma: a falta de incentivo do governo federal para uma exploração intensiva e criação de um mercado interno com o objetivo de concorrer com o bacalhau importado. Ainda assim, a Associação Comercial ostentava, no texto, a venda de 1.770 toneladas de pirarucu seco para os estados do Pará, de Minas Gerais, da Bahia e do Rio Grande do Norte no ano de 1931, indicando a continuidade nas exportações, mesmo em quantidades diminutas, se comparadas à importação do bacalhau. A exportação se dava de maneira rudimentar, em pacotes com 30 quilos de pirarucu em mantas, amarrados nas extremidades com envira, uma fibra produzida na região amazônica (Pesca…, 1933). Por outro lado, o estado de Goiás permaneceu com uma atividade pesqueira completamente inexpressiva, mantendo o pirarucu do rio Araguaia no anonimato em termos de exploração comercial. Em 1933, já no período de governo de Getúlio Vargas (1930-1945), tiveram início novos debates e ações no

sentido de regulamentar e de incentivar a pesca comercial no litoral e nos rios brasileiros. Esses debates ocorreram na esteira da remodelação do Ministério da Agricultura e da criação da Divisão de Caça e Pesca, sob o comando do major Juarez Távora. Em 1942, a bióloga do Instituto Oswaldo Cruz, Helena Paes de Oliveira, publicou um estudo no “Boletim do Ministério da Agricultura”, com um balanço das atividades desenvolvidas por esse ministério no que concerne ao incentivo à pesca, acompanhado de um mapa das colônias de pescadores em território nacional naquele momento. Esse estudo apontava forte impulso no incentivo do governo federal à exploração pesqueira em nível nacional, com a criação de Centros Experimentais de Estudos Biológicos e de Piscicultura em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Contudo, a partir desse estudo, foi possível notar que o rio Araguaia e mesmo o estado de Goiás ainda permaneciam, nesse momento, fora do mapa da exploração pesqueira nacional (Oliveira, 1942). O próprio Henrique Silva forneceu alguns indícios sobre os motivos do desestímulo ao incentivo à pesca comercial, não só do pirarucu, como de outros peixes nos rios que cruzavam Goiás. Em 15 de dezembro de 1917, o redator publicou trechos de uma conferência que proferiu na Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), naquele mesmo ano, sobre os prejuízos causados pela falta de sal em Goiás. De acordo com Silva, a escassez de sal era um grande problema que, naquele momento, tanto afetava a indústria do charque quanto inviabilizava a formação de uma indústria pesqueira, devido aos altos custos de importação. Henrique Silva argumentava que o sal produzido pelas usinas de Mossoró, no Rio Grande do Norte, não servia para o preparo do pescado e do charque, sendo necessário importá-lo de Cádiz, na Espanha, cuja qualidade era superior e ideal para o preparo de conservas. Assim, ele pleiteava, junto à SNA, o apoio à isenção das taxas de importação do sal estrangeiro para os estados de Goiás, de São Paulo e de Minas Gerais, produtores de charque, assim como o estado do Rio Grande do Sul havia conseguido anos antes (Silva, 1917).

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O que o texto de Henrique Silva não revela é o fato de a falta de sal em Goiás ser um problema crônico naquela época, decorrente das dificuldades no transporte, devido, principalmente, à precária situação das estradas que ligavam esse estado às outras regiões do Brasil (Chaul, 1997; Garcia, 2010). As estradas de rodagem eram praticamente intransitáveis, construídas e exploradas por particulares, ao passo que os rios apresentavam trechos encachoeirados, que dificultavam sobremaneira a navegação fluvial (Campos, 2003). Os preços do sal, associados aos altos custos do frete, inclusive, dificultavam a principal atividade econômica da região nesse período: a pecuária (Campos, 2015). O gado em Goiás sofria com a falta de sal, elemento que contém minerais fundamentais para o organismo do animal. Não por acaso, as principais charqueadoras goianas, nesse momento, estavam instaladas na cidade de Catalão, na divisa com Minas Gerais, local de mais fácil acesso ao sal importado. A ausência de sal não afetava apenas a economia, mas também a própria população, que raramente o tinha para uso na alimentação (Chaul, 1997). Assim, a falta de integração com o país e seus portos, seja por via fluvial ou por vias terrestres, pode ser apontada como um dos principais entraves à exploração comercial de A. gigas da bacia do Tocantins-Araguaia. O estado do Amazonas, por outro lado, possuía os rios Negro, Solimões e Amazonas, francamente navegáveis até o porto de Belém do Pará, o que facilitava a importação do produto ideal para a salga e comercialização do pirarucu.

sobre a viabilidade deste projeto. O estado de Goiás estava à margem desses debates, mas a fundação da revista “A Informação Goyana” representou uma oportunidade para a propaganda do potencial pesqueiro do Brasil central. A exposição de fotografias de pirarucus capturados nas margens do rio Araguaia foi a maneira que o redator Henrique Silva encontrou para chamar atenção do governo federal a partir da imagem de pujança da então inexplorada ictiofauna goiana. As fotografias de A. gigas mortos era o cartão de visitas de uma elite ansiosa pela integração da bacia Tocantins-Araguaia, via pesca comercial. Contudo, a força que o estado do Amazonas detinha nos debates sobre a pesca do pirarucu tornou muito difícil qualquer menção ao estado de Goiás por parte do governo federal em projetos de incentivo à pesca. Essa condição se dava tanto pela supremacia da imagem que a bacia amazônica tinha como habitat do pirarucu, quanto por uma exploração que, embora rudimentar, já existia no estado do Amazonas. Apesar da centralidade deste estado nos debates sobre a pesca fluvial no Brasil, especialmente na pesca do pirarucu, isso não se traduziu em medidas concretas de incentivo por parte do governo federal no início do século XX. Se o Amazonas esteve, pelo menos, inserido em projetos de incentivo à pesca, Goiás permaneceu fora de qualquer projeto nesse sentido. Assim, os planos de integração das elites e dos intelectuais goianos do rio Araguaia ao Brasil por meio da pesca comercial do pirarucu fracassaram, assim como a propaganda realizada por meio da revista “A Informação Goyana”. A inexpressiva exploração pesqueira nesse rio, as dificuldades de comunicação, de transporte e de importação de sal estão entre as razões que podem ter contribuído para o desinteresse do Estado em relação ao suposto potencial de desenvolvimento da pesca comercial no Araguaia e mesmo em outros rios do território goiano. Desse modo, a gestão imagética de pirarucus mortos em “A Informação Goyana” permaneceu apenas como uma paradoxal estratégia de chamar atenção para a abundante vida aquática na região, sem gerar exploração econômica

CONSIDERAÇÕES FINAIS Seguindo as redes formadas pelos pirarucus capturados, fotografados e expostos na revista “A Informação Goyana”, é possível compreender como o ambiente aquático estava inserido nas preocupações do governo e dos intelectuais goianos com a integração econômica de Goiás ao Brasil no início do século XX. Desde o início da década de 1910, o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio procurou lançar as bases para a regulamentação e o incentivo à pesca comercial em território nacional, fomentando debates

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em larga escala e nem maiores perturbações na vida dessa espécie, pelo menos até o início da década de 1940.

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 13, n. 1, p. 175-185, jan.-abr. 2018

O sertão virou rio e o rio virou sertão: um cineasta alemão e o Cinema Novo brasileiro The backwoods became a river and the river became the backwoods: a German filmmaker and the Brazilian Cinema Novo Renan Nascimento Reis Universidade Federal do Piauí. Teresina, Piauí, Brasil

Resumo: O cineasta alemão Werner Herzog (1942) realizou filmagens na Amazônia durante os anos 1970 em busca de paisagens antes nunca vistas, direcionando seu foco para as ‘margens da civilização’, conforme prescrevera anos antes o diretor brasileiro Glauber Rocha, um dos ícones do Cinema Novo brasileiro. Buscaremos analisar, neste artigo, as marcas do ‘cinemanovismo’ na obra de Herzog e a forma como esse diálogo contribuiu para a construção do seu ‘olhar’, percebendo de que maneira a estética ‘glauberiana’ foi assimilada por um grupo de realizadores alemães ligados ao que ficou conhecido por Novo Cinema alemão. Palavras-chave: Werner Herzog. Glauber Rocha. Cinema Novo brasileiro. Abstract: The German filmmaker Werner Herzog (1942) filmed in the Amazon during the 1970s in search of previously unseen landscapes, directing his focus toward the ‘margins of civilization’, as he stated years before to director Glauber Rocha, one of the icons of Brazil’s Cinema Novo movement. In this article, we will analyze the signs of cinemanovismo in Herzog’s work along with how this dialog helped construct its view, understanding how the Glauberian aesthetic was assimilated by a group of German filmmakers linked to what became known as New German Cinema. Keywords: Werner Herzog. Glauber Rocha. Brazilian Cinema Novo.

REIS, Renan Nascimento. O sertão virou rio e o rio virou sertão: um cineasta alemão e o Cinema Novo brasileiro. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 13, n. 1, p. 175-185, jan.-abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222018000100010. Autor para correspondência: Renan Nascimento Reis. Universidade Federal do Piauí. Rua Bartolomeu Filho, 4881. Teresina, PI, Brasil. CEP 64049-550 (renannreis@yahoo.com.br). ORCID: http://orcid.org/0000-0002-3701-5789. Recebido em 08/08/2017 Aprovado em 09/01/2018

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Via de regra, em certa fase, o Cinema Novo explorou a região Nordeste do Brasil como cenário. Filmes como “Deus e o Diabo na terra do sol” (1964), “Vidas secas” (1963), “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969) exploraram questões ‘do Nordeste’ e acabaram construindo certa ‘identidade’ para a região. Enquanto nos anos 1960 e 1970 a experiência cinematográfica brasileira debruçou-se largamente sobre o Nordeste brasileiro (em um primeiro momento) (Figueiroa, 2004), Herzog decidiu filmar a Amazônia1. Se as imagens do Nordeste são construídas/mantidas/asseguradas em filmes, por exemplo, de Glauber Rocha e de Nelson Pereira dos Santos, o ‘Norte’ é construído e consolidado na filmografia de Herzog. “Aguirre” (1973), por exemplo, está ligado ao Novo Cinema alemão, mas é igualmente próximo aos demais ‘Novos Cinemas’, como a Nouvelle Vague e o Cinema Novo brasileiro. Herzog trouxe uma abordagem bastante física para o cinema, aproximando-se dos realismos (às vezes surrealismos) de contemporâneos, como Glauber e Trauffaut, cujas obras tiveram peso decisivo nas suas escolhas estéticas, definindo fases distintas em sua filmografia. Os anos 1970 significam uma nova etapa em sua obra, marcada por temas sul-americanos, motivados pelo contato com o ‘cinemanovismo’ e com as obras de Glauber (Nagib, 2012). Em 1960, os filmes do Cinema Novo brasileiro começaram a chegar à Europa, sendo bem recebidos na Alemanha pela nova geração de cineastas. Não é à toa que Herzog convidou o cantor Milton Nascimento para interpretar o porteiro da casa de ópera, no Teatro Amazonas. Provavelmente, Herzog deve ter se interessado pela composição musical assinada por Nascimento no filme “Os deuses e os mortos” (1970), de Ruy Guerra. Esses são apenas indícios, sinais, que nos levam à relação entre Herzog e Glauber Rocha, mas devemos ultrapassar essa superficialidade e enxergar quais foram os fatores que

atraíram os cineastas do Novo Cinema alemão em direção ao ‘cinemanovismo’. Na primeira fase do movimento, a materialidade da pobreza do nordestino do campo, castigado pela seca, deve ter gerado curiosidade entre os jovens alemães, pois esse realismo ia ao encontro da estética do cinema moderno no período estudado: Pasolini, Visconti e Godard são diretores dos anos 1960 e 1970 que seguem linguagens próximas a essa. Certamente, “Deus e o Diabo na terra do sol” (1964), de Glauber, “Vidas secas” (1963), de Pereira dos Santos, e “Os fuzis” (1964), de Ruy Guerra, são produções que estão enraizadas nessa fórmula. Herzog esteve conectado ao que ocorria no cinema brasileiro entre os anos 1960 e 1970 e o seu “O enigma de Kaspar Hauser” (1972) recebeu o subtítulo “Cada um por si e Deus contra todos” por causa do filme “Macunaíma” (1969), de Joaquim Pedro de Andrade: Eu escrevi o roteiro do filme em quatro ou cinco dias e não havia um título. Cansado de tanto escrever, resolvi sair para tomar uma cerveja e ver um filme. Acabei vendo “Macunaíma”, do Joaquim Pedro. Fiquei louco pelo Grande Otelo e mais louco ainda por uma frase que ouvi num certo ponto do filme: “Cada um por si e Deus contra todos”. Congelei na cadeira. Isto que acabei de ouvir é tão lindo que não consigo acreditar. Aí está o título do meu filme. Só que, depois, trocando ideias com várias pessoas, ninguém guardava a frase. Quando eu pedia para que a repetissem, diziam “Cada um por Deus, todos pelo Homem”. Ou “Cada Homem por Deus”. Nunca acertavam. Então acabei optando por “O enigma de Kaspar Hauser – cada um por si e Deus contra todos”. Mas, tão importante quanto o subtítulo, foi a descoberta de Grande Otelo. Que ator maravilhoso. Nove anos depois eu estava com ele na Amazônia, filmando “Fitzcarraldo”. Tomei estas duas riquezas de “Macunaíma”. Não tenho vergonha de assumir, como um pirata, esta troca (Werner Herzog in Caetano, 2011, não paginado).

E como um pirata, Herzog assimilou traços marcantes do ‘cinemanovismo’ em “Aguirre” (1973), sob influência,

É importante, contudo, citar que Glauber Rocha realizou um documentário, o primeiro do cineasta feito em cores, na Amazônia, com o sugestivo título “Amazonas, Amazonas” (1966).

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sobretudo, de Glauber. “Conheço muitos dos filmes dele e tive o prazer de conviver com ele” (Werner Herzog in Caetano, 2011, não paginado), lembra o cineasta. Ambos foram recebidos pela Pacific Film Archive, uma cinemateca importante na Califórnia. Herzog ocupou um quarto ao lado do de Glauber: Me lembro que, em 1975, quando chegou a hora de Glauber, que era bastante desorganizado, regressar ao Brasil, a saída dele impressionou a todos, pois tinham milhares de papéis que não cabiam nas malas e iam se espalhando por todos os lados. Glauber morreu jovem, mas os filmes dele são eternos (Werner Herzog in Caetano, 2011, não paginado).

É sintomático perceber as referências ao Cinema Novo brasileiro na obra de Herzog, bem como a forma elogiosa a que se refere a Glauber em algumas entrevistas. Os dois conviveram na Universidade de Berkley, em 1975, e trocavam ideias sobre o cinema, a Bahia, o sertão: “Seus filmes ficarão para sempre. Apenas um brasileiro é mais intenso do que ele: Garrincha. Mas no nível intelectual, sem dúvida é Glauber” (Werner Herzog in Tomazzoni, 2011, não paginado). Se pensarmos no distanciamento que Herzog sempre afirmou existir entre as suas obras e o cinema dito de mercado, e entre elas e o Novo Cinema alemão, intimamente ligado às grandes redes públicas de televisão e subvencionado pelo Estado (o que ele considerava pernicioso), é plausível compreendermos que ele tenha buscado uma vinculação ao cinema ‘terceiromundista’ e, de fato, percebermos uma importante convergência entre o seu cinema e a produção ‘cinemanovista’ de Glauber Rocha. Ainda sobre Glauber, afirma: Quando olho os trabalhos de Glauber Rocha, vejo uma grande poesia. Ele vivenciou, apreendeu e descreveu o Brasil como um poeta. Acho que ele fez apenas bons filmes. Naquela época, fim dos anos 1960, postulava-se um cinema pró-revolução no mundo. E isso logo se mostrou algo sem sentido. Glauber, com sua grande energia criativa, não se contagiou tanto por esse postulado político. Ele conseguiu retratar a realidade com imagens selvagens, com fantasia. Hoje em dia, em 2011,

postular filmes políticos é algo que não faz sentido, como também não fazia naquela época. Tinha a ver com nossos sonhos coletivos. Filmes não têm de ser instrumentos para a política. Microfones são os instrumentos para a política, para discursos políticos. Não o cinema (Werner Herzog in Simões, 2011, não paginado).

Esta citação leva-nos a outro elemento referente à formação intelectual de Herzog, que nos interessa particularmente, qual seja a sua proximidade ao Cinema Novo brasileiro, em especial a figuras como Glauber Rocha (Glauber e Herzog eram amigos) e Ruy Guerra (que desempenhou papel importante em “Aguirre”). A amizade entre Glauber e Herzog começou quando os dois encontraram-se nos Estados Unidos e tornaram-se, nas palavras do alemão, “muito chegados”: “gostávamos reciprocamente de nossos filmes, e através disso, na verdade, é que se estabeleceu o contato principal entre nós” (Werner Herzog in Nagib, 1991, p. 253). Os filmes “Terra em transe” (1967) e “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969) causaram impressão positiva em Herzog a respeito de Glauber: “É um homem talentosíssimo, é uma sorte para o Brasil possuir alguém como ele. Todo país do mundo poderia se orgulhar de ter alguém assim” (Werner Herzog in Nagib, 1991, p. 253). Em sentido mais amplo, o Cinema Novo brasileiro foi uma fonte de inspiração para o Novo Cinema alemão que, após a Segunda Guerra Mundial, viveu uma década de ‘hibernação’ cinematográfica, com filmes de entretenimento, enquanto os jovens cineastas do neorrealismo italiano, da nouvelle vague francesa e do Cinema Novo brasileiro, por exemplo, davam mostras da força do cinema independente e político do pós-guerra. Há um delay entre o lançamento de obras importantes, como “Rio 40 graus” (1955), de Nelson Pereira dos Santos, e as primeiras produções dos alemães contemporâneos a Herzog. Não seria exagero pensar que apenas no início dos anos 1970, época de lançamento de “Aguirre” (1973), as contribuições dos movimentos citados encontrariam ressonância entre os cineastas alemães, como Fassbinder e Wenders.

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Esse processo se iniciaria em 1963, quando o crítico Peter Schumann organizou uma mostra de filmes brasileiros em Berlim, chegando a ser apresentada também na televisão. Este fato atingiu Werner Herzog de maneira particular, pois rechaçava – com mais radicalidade do que os seus contemporâneros – a artificilidade do estúdio, a utilização de atores profissionais e de paisagens urbanas, buscando por “[...] ‘imagens nunca vistas’, [pretendendo] encontrar uma realidade mais ‘verdadeira’” (Nagib, 1994, não paginado). Isso se coaduna com as imagens – inicialmente projetadas pelos cinemanovistas – da seca e da miséria no longametragem lançado por Herzog em 1968, “Sinais de vida”, no qual se vê a “[...] reprodução de um sol cruel, que acentua a brancura seca da paisagem, com a qual estabelece um duelo de titãs” (Nagib, 1994, não paginado), trazendo semelhanças com obras brasileiras, como “Vidas secas” (1963) e “Deus e o Diabo na terra do sol” (1964). O subtítulo de “Aguirre” (1973), “A ira de Deus”, é uma referência a Glauber Rocha, que o teria especulado como o primeiro título para “Deus e o Diabo na terra do sol”. O filme de Ruy Guerra, “Os deuses e os mortos” (1970), é um dos preferidos de Herzog. Além disso, José Lewgoy, ator importante do Cinema Novo, foi convidado pelo cineasta alemão a participar de “Fitzcarraldo” (1982). Lewgoy atuou em outro filme de Herzog rodado no Brasil, “Cobra verde” (1987), longa-metragem que ‘resgataria’ a linguagem ‘glauberiana’, a exemplo da sequência na qual o protagonista, novamente Klaus Kinski, contempla uma carcaça de gado na paisagem afetada pela seca. Lúcia Nagib assim analisa essa proximidade: Se Herzog é mesmo, como afirma Gilles Deleuze, “o mais metafísico dos autores de cinema”, compreende-se que tenha se deixado fascinar pela dupla natureza dos personagens e paisagens de Glauber, cuja dimensão terrena da miséria é acrescida de uma outra, de grandeza heroica e messiânica. [...] Herzog percebeu com aguda sensibilidade o significado transcendente da ópera de Verdi tocada no “Eldorado” de “Terra em transe” (filme de Glauber de 1967), transformando-a no próprio assunto de “Fitzcarraldo” (1982), no qual o protagonista quer encenar a ópera na selva amazônica (Nagib, 1994, não paginado).

Nessa linha, o ‘cinemanovismo’ atingiu outros nomes do Novo Cinema alemão, a exemplo de Fassbinder, Schloendorff e Wenders. Fassbinder intitulou um dos seus filmes de “Rio das mortes” (1970), em referência a “Antônio das Mortes”, título recebido na Alemanha pelo filme “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969), de Glauber. Em outro filme seu, “A viagem de Niklashauser” (1970), um dos personagens imita Antônio das Mortes. O compositor Peer Raben, que trabalhou em várias oportunidades com Fassbinder, conheceu Villa-Lobos e Guerra Peixe através da obra de Glauber, sendo ambos importantes influências para as suas próprias composições. Wenders dirigiu um curta-metragem experimental lançado em 1968, “Same player shoots again” (1968), o qual, em uma única sequência (repetida diversas vezes), apresenta um homem carregando uma espingarda, cambaleando, em alusão à sequência em que o jornalista Paulo Martins, com uma metralhadora, cambaleia na cena final de “Terra em transe” (1967), ao som de Villa-Lobos. Já Schloendorff tomou o filme “Os herdeiros” (1969), de Cacá Diegues, como fonte para escrever um dos seus principais filmes, “O tambor” (1979) (Nagib, 1994). A literatura de Euclides da Cunha, acreditamos, foi mais um elemento de intersecção entre Herzog e Glauber. Os movimentos culturais de 1960 (tempo de grande transformação, como o tempo apocalíptico de Antônio Conselheiro) assimilaram a obra de Cunha, em especial “Os sertões” (1982), a exemplo do Cinema Novo brasileiro, e mais nitidamente de Glauber, “[...] que consagrou definitivamente a metáfora da natureza, ‘o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão’, apontando o projeto político nacional mais uma vez para o interior do Brasil” (Gnerre; Decca, 2002, p. 137). Foi justamente para o sertão que Glauber Rocha voltou o seu projeto revolucionário, ao lado do movimento estudantil que, na década de 1960, foi responsável pela recuperação da literatura de Cunha:

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Uma vez mais, a intelectualidade brasileira colocou para si a responsabilidade da realização do sonho político popular igualitário como um modo de expiar uma culpa que se acumulava desde os


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tempos de Euclides. Assim, o intelectual da década de 1960 deveria se colocar ao lado do povo do sertão, inaugurando uma nova etapa revolucionária, por meio de uma guerra de guerrilhas contra o sistema político vigente, assim como havia sido feito por Conselheiro. Não é por acaso que o mito revolucionário da década, o Che, tem uma representação ainda mais emblemática aqui no Brasil (Gnerre; Decca, 2002, p. 137-138).

Glauber compõe em seu cinema o símbolo de uma revolução que levaria à justiça social, algo que foi buscar também em “Os sertões”, de Euclides da Cunha. Esse olhar para a literatura, em especial aquela com conteúdos regionais, foi lançado por outros autores do Cinema Novo, como Joaquim Pedro de Andrade (em “Macunaíma”, de 1969), Nelson Pereira dos Santos (em “Vidas secas”, de 1963) e Leon Hirszman (em “São Bernardo”, de 1972). Inicialmente, Glauber estava mais interessado na apropriação popular do cangaço (Corisco), munindo-se da literatura de Jorge Amado, José Lins do Rego e Guimarães Rosa. O misticismo do cangaço pode ser percebido na caminhada executada pela personagem Manuel, ainda que sob a perspectiva de desengano para com o messianismo promovido por Sebastião, mas, por outro lado, percebendo o cangaço como arma contra a ordem estabelecida (Schvarzman, 2012). Glauber constrói o sertão através do som e da imagem, de paisagens dilaceradas e da violência, reescrevendo “Grandes sertões: veredas” (1986), que, por sua vez, é uma reescritura de “Os sertões”. A sua narrativa, à semelhança de Herzog, supera o realismo factual (Corrigan, 1986), a concretude imediata, a distinção entre o real e o fantástico. De alguma maneira, o factual tem menor espaço em relação ao irreal. Glauber utiliza o processo de condensação. Parte de realidade múltipla, retirando o material para o seu texto, com o objetivo de estabelecer imagens simultaneamente precisas e gerais, abstratas e específicas. Quando, por exemplo, vemos as personagens Antônio das Mortes, Santo Sebastião, Corisco ou Manuel, o que surge na tela extrapola a singularidade das figuras históricas, já que condensam diversos personagens de vários movimentos socioculturais no Brasil. No filme,

para exemplificar o procedimento de Glauber, Corisco é, ao mesmo tempo, um personagem histórico e representa todos os cangaceiros, além da referência imediata e significativa ao próprio Lampião. Trata-se, portanto, de metáforas históricas: alegorias do Brasil (Pereira, 2008, p. 24).

Nesse sentido, vamos estabelecendo pontos de contato entre Glauber e Herzog. Os personagens históricos (Lope de Aguirre, Fitzcarraldo, Lampião, Antônio Conselheiro etc.) são evocados por meio de metáforas, que constituem a narrativa e (re)contam a história, (re)inventam a realidade e (re)configuram personagens. Os dois cineastas, ao narrar a história do Brasil, ultrapassam a linha da realidade, de modo que os sujeitos são projetados como figuras alegóricas (o colonizador, o imperialista, o cangaceiro e o messiânico). Falando a partir das margens (Nordeste e Amazônia), contam uma outra história. Para ambos, o sertão é local de ruínas, de conflito entre culturas, de resistência à civilização, o que se dá, sobretudo, pela natureza e pelo mito, guiando-se na mesma direção de Euclides da Cunha, em “Os sertões” e em “À margem da história” (1996) (Pereira, 2008). Em nossa leitura da filmografia de Glauber e Herzog, acreditamos que Euclides da Cunha possa ser o ponto de intersecção entre eles. Como dito anteriormente, foi através da Pacific Film Archive que Herzog teve contato com cineastas independentes fora da Alemanha: “Você dificilmente pode passar um dia na Pacifc Film Archive sem tropeçar em Glauber Rocha, Dusan Makavejev, Jean-Luc Godard, Les Blank, ou algum outro cineasta” (Werner Herzog in Bundschuh et al., 2014, p. 31). Esse contato lhe possibilitou não apenas conhecer outros cineastas, mas também perceber a produção cinematográfica de seu país perante o que era feito no resto do mundo:

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Um dos problemas com o cinema alemão é seu provincianismo. Muitos cineastas alemães fazem filmes provincianos. Os filmes do Cinema Novo brasileiro, ao contrário, podem ser exibidos no mundo todo. Eles possuem uma identidade nacional, e não uma identidade provinciana (Werner Herzog in Ghali; Herzog, 2014, p. 18-23).


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Herzog optou por um cinema “que fosse fruto de um contato sensível com o meio” (Nagib, 1991, p. 136), a arte de analfabetos, como costuma dizer, colocando as teorias de lado e começando do zero, “como se não existisse a história do cinema” (Nagib, 1991, p. 136), o que o aproxima da reflexão que Glauber Rocha faz a respeito do Cinema Novo: nossa cultura, produto da incapacidade artesanal, da preguiça, do analfabetismo, da impotência política, do imobilismo social é uma ‘cultura ano zero’. Fogo nas biliotecas, pois! Do zero, como Lumière, o Cinema Novo recomeça a cada filme, balbuciando um alfabeto brutal que significa tragicamente ‘civilização subdesenvolvida’ (Rocha, 1981, p. 101).

Aqui, Glauber possivelmente faz referência ao filme “Alemanha: ano zero” (1948), clássico do neorrealismo italiano, dirigido por Roberto Rossellini. Segundo as palavras de Herzog (2009, não paginado): Mas eu era bem próximo de Glauber Rocha, Carlos Diegues, Grande Otelo e José Lewgoy. A gente via os filmes uns dos outros, toda vez que eu estava no Rio, eu ficava na casa do Ruy Guerra. [...] Eu o conheci [Glauber] em Berkeley (EUA), quando ele morava na casa de Tom Luddy [organizador do Telluride Film Festival]. Sempre que eu ia para a região de São Francisco, ficava na casa de Luddy [em meados dos anos 70]. E, no quarto ao lado do meu, estava Glauber, sempre caótico [risos]. Era maravilhoso conversar com ele. Às vezes, às 3h da manhã, ele vinha bater na minha porta com uma ideia maluca. E eu, ainda meio sonolento, ficava ouvindo. Conversávamos sobre cinema, mulheres, sobre a vida. [...] Carlos Diegues sempre me dizia: “Venha pro Brasil, as mulheres são maravilhosas”, e nós nos abraçávamos, suados. No Brasil, é tudo tátil, pele e, então, de repente, os brasileiros pareciam apaixonados pelo filme mais calmo e profundo que eu já fiz. O Brasil é sempre uma surpresa para mim.

Em 1969, Glauber Rocha apresentou o seu filme “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” no Festival de Cannes, rendendo-lhe o prêmio de melhor diretor, o que certamente garantiu ao cineasta certa

notoriedade internacional, de modo que referências à personagem Antônio das Mortes começaram a surgir no cinema alemão da década seguinte. Podemos citar o filme “A viagem de Niklashauser” (1970), de Fassibinder, no qual um personagem chamado Antônio ostenta um chapéu similar ao usado pela personagem de Glauber. Nesta obra, o cineasta traduz para o Novo Cinema alemão temáticas tratadas no filme de Glauber, como o misticismo camponês e o messianismo revolucionário. Outras obras de cineastas alemães seguiram essa mesma linha: “Der plötzliche Reichtum der armen Leute von Kombach” (Volker Schlondotff, 1970), “Mathias Kneissl” (Reinhard Hauff, 1970), “Jaider, der einsame Jäger” (Volker Vogeler, 1970), “Servus Bayern” (Herbert Achternbusch, 1977) e “Coração de cristal” (Werner Herzog, 1976). Essa assimilação do filme “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969) pelos cineastas alemães pode ser explicada pelo contexto político vivenciado na Alemanha, particularmente pelo surgimento do movimento guerrilheiro Facção do Exército Vermelho (RAF), o qual guardaria semelhanças com o enredo filmado por Glauber. De todo modo, esse cruzamento salta aos olhos, se pensarmos na narrativa construída por Herzog em “Coração de cristal” (1976), no qual são sublinhados temas como relações de poder, messianismo e transe. Chama a atenção a semelhança da personagem Hias com Antônio das Mortes (Figura 1), ou mesmo com Sebastião, de “Deus e o diabo na terra do sol” (1964): ambos estão na fronteira entre as classes dominantes e dominadas, externalizando as suas profecias. Há ainda a repetição do mesmo discurso religioso já presente nos filmes de Glauber, bem como a presença marcante de um tirano que domina a população (Nagib, 2012). Interessante notar que, semelhantemente ao cântico feminino utilizado por Glauber na abertura de “Terra em transe” (1967), Herzog se utiliza de uma procissão de vozes femininas em “Fata Morgana” (1971) e em “Os anões também começaram pequenos” (1970). A sensação de transe é uma ferramenta comum aos dois cineastas:

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Figura 1. À esquerda, a personagem Hias, em “Coração de cristal” (1976), de Werner Herzog; à direita, Antônio das Mortes, em “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969), de Glauber Rocha.

os cantos repetidos, enlouquecedores e insistentes em “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969), o movimento circular da câmera, a cultura popular, a obsessão pelo poder, o teor documental, o silêncio, enfim, tudo se repete em “Coração de cristal” (1976) ou mesmo em “Aguirre” (1973). No entanto, o transe igualmente separa os dois autores. Se para Rocha a apresentação dos impulsos irracionais religiosos possui um viés notadamente político, para Herzog o que interessa são os fenômenos inexplicáveis, o irracional em si mesmo. Glauber está preocupado com o realismo, o que resulta em uma postura política. Já a Herzog interessa transformar ficção em realidade, opondo-se ao realismo, o que pode ser pensado como o além do transe da realidade encontrada no Cinema Novo. Seis anos após o lançamento de “Terra em transe” (1967), Herzog retoma a temática do eldorado, anteriormente empregada por Glauber, e utiliza uma cena de abertura similar à adotada pelo brasileiro: a panorâmica sob a selva amazônica, com fundo musical hipnótico em “Aguirre” (1973), encontra paralelo na sequência inicial de “Terra em transe” (1967), com visão aérea do mar, acompanhada de um canto em transe. Nas duas filmagens, os personagens são criaturas minúsculas diante da paisagem esmagadora. Se Glauber lança mão de Carlos Gomes (“O Guarani”), Herzog opta por Verdi.

Se Glauber encena o colonialismo português tendo como paisagem a praia, Herzog teatraliza o colonialismo espanhol tendo como paisagem o rio. Se Glauber coroa Porfírio Diaz, Herzog coroa Don Fernando de Guzman. Bem como padre Soares, para o primeiro, e monge Carvajal, para o segundo, reforçam críticas à igreja e evidenciam a sua relação com a política (Nagib, 2012). Encontraremos ainda mais cruzamentos, se voltarmos nosso olhar para “Cobra verde” (1987), longa-metragem filmado na Bahia, que completa a tríade ‘herzoguiana’ sobre o Brasil. De início ao fim, são muitas as referências ao Cinema Novo. De “Deus e o Diabo na terra do sol” (1964), toma emprestado o cantor de cordel cego, a personagem Cobra Verde, novamente interpretada por Kinski, é a própria personificação do diabo, bem como o cangaceiro Corisco, o deserto cheio de carcaça de animais, as cidades de estilo ibérico em torno de um a igreja católica etc. (Nagib, 2012). Além de Glauber, Ruy Guerra foi o realizador do Cinema Novo brasileiro com o qual Herzog mais guarda afinidades. Não é incomum que alguns diretores convidem outros cineastas a participarem de suas obras, provavelmente como forma de homenagem. Dessa maneira, Jean-Pierre Melville aparece nos filmes de Godard; Nicholas Ray marca presença na obra de Win Wenders; Victor Sjöström aparece em filme de Bergman; Marco Ferreri em Pasolini; e, como já falamos

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O sertão virou rio e o rio virou sertão: um cineasta alemão e o Cinema Novo brasileiro

anteriormente, Ruy Guerra interpreta o conquistador Don Pedro de Ursua, no longa-metragem “Aguirre, a cólera dos deuses” (1973). Acreditamos que, neste último caso, mais do que um tributo feito por Herzog, ocorre um indício de aproximações ideológicas e estéticas entre os cineastas, e de Herzog com o Cinema Novo. Em “Os fuzis” (1964), Ruy Guerra volta-se para o sol, para o brilho extremo e agressivo, em filmagens preferencialmente diurnas, como acontece em “Vidas secas” (1963) e “Deus e o Diabo na terra do sol” (1964), característica, pois, do Cinema Novo. Em 1968, Herzog apresenta “Sinais de vida”, no qual o sol é um dos protagonistas, a partir do qual a luz penetra todos os demais elementos, sendo um dos inimigos do soldado Stroszek. A agressividade com que a luz é construída pelo diretor achata a personagem, que resiste a essa violência, através de atos igualmente violentos, direcionados aos seus pares e ao céu, ou melhor dizendo, contra o sol, declarando guerra a ele, munindo-se de fogos de artifícios, o que nos remonta à sequência final de “Os fuzis” (1964) e à cena de Norma Bengell na praia de “Os cafajestes”, ambos de Ruy Guerra, tendo este último estreado em junho de 1962 no Festival Internacional de Cinema de Berlim. A temática da circularidade em “Os cafajestes” (Elduque, 2015), como a câmera circular sobre a personagem de Norma Bengell, será utilizada por Herzog em alguns de seus filmes: a câmera que circula Aguirre sob a embarcação; o carro que gira desgovernado em “Os anões também começaram pequenos” (1970); e mesmo em “Stroszek” (1977). Os anos 1970 representam, na carreira de Herzog, uma importante mudança, a qual pode ser notada pela substituição de personagens anti-humanos por aspirantes a super-humanos, em outros termos, rebeldes de pequena escala vistos em “Stroszek” (1977) e em “Os anões também começaram pequenos” (1970) são postos de lado, para o surgimento de conquistadores e heróis românticos, como Aguirre e Kaspar Hauser, ou ainda pela preferência por atores profissionais, a exemplo de Klaus

Kinski, a amadores, como Bruno S. É natural que tenha ocorrido um amadurecimento por parte do cineasta, o qual pode ser percebido tanto na direção quanto na narratividade de suas obras e, principalmente, para o direcionamento para temas sul-americanos. Essa nova orientação está relacionada ao contato com produções do Cinema Novo brasileiro, o que implica a substituição da ética do realismo pelo etos do poder. Como sabemos, desde o início dos anos 1960, os filmes do Cinema Novo foram recepcionados na Europa, em festivais da Itália, onde foram bem aceitos por cineastas importantes, como Paolo Pasolini e Bernardo Bertolucci. Com o curta metragem “Couro de gato” (1960), Joaquim Pedro de Andrada foi premiado em 1961 no Festival de Cinema de Oberhausen, mesmo local em que, um ano depois, seria lançado o manifesto de fundação do Novo Cinema alemão. O primeiro longa-metragem de Glauber, “Barravento” (1962), foi premiado no Festival Internacional de Cinema Karlovy Vary, fórum importante de cinema político naquele período. Poderíamos citar, ainda, a aclamação recebida em Cannes por “Deus e o Diabo na terra do sol” (1964) e por “Vidas secas” (1963), ensejando admiração de cineastas relevantes, como Godard, que, anos depois, convidou Glauber para interpretar um profeta do cinema político, no filme “Le vent d’est” (1969). Mas foi na Alemanha que o Cinema Novo foi mais bem recebido pela nova geração de cineastas, o que pode estar relacionado com a apresentação do movimento no Festival de Berlim (1966), por Peter B. Schumann, ou ainda com a presença crescente em festivais, cineclubes e, sobretudo, na televisão: a partir de 1967, os filmes brasileiros foram repetidamente apresentados na maior parte das emissoras públicas, cobrindo quase toda a produção do Cinema Novo em suas várias fases (Nagib, 2011). O resultado disso tudo foi o impacto causado pelo Cinema Novo brasileiro sobre o cinema alemão dos anos 1960. Podemos citar a influência recebida por Peer Raaben (compositor de filmes de Fassbinder) em relação a músicos brasileiros, como Villa-Lobos e Marlos Nobre,

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graças às obras “Deus e o Diabo na terra do sol” (1964) e “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969) (Antônio das Mortes), respectivamente. O interesse por temas latino-americanos levou alguns cineastas alemães à região para produzir seus filmes, a exemplo de Peter Lilienthal, Werner Schroeter, Peter Fleischmann e Werner Herzog (Nagib, 2011). Herzog, entre os cineastas alemães de sua geração, é o que mais se aproximou do Cinema Novo, e o seu “Coração de cristal” (1976) mostra o quanto o cineasta estava impressionado com Glauber Rocha, adaptando a estética ‘glauberiana’ ao contexto do Novo Cinema alemão, o que é também percebido notadamente em “Aguirre” (1973) e em “Fitzcarraldo” (1982). Talvez isso seja mais forte no primeiro, por conta da proximidade temporal. Herzog volta-se para questões de poder, messianismo e transe – com personagens ou com paisagens (selva). Se pensarmos em Hias, personagem principal de “Coração de cristal” (1976), uma figura lendária, um profeta apocalíptico errante, cujo pai demente tenta, de qualquer maneira, recuperar o poder, lembraremos certamente de Antônio das Mortes. Ou, ainda, de outros personagens de Glauber, como o pregador Sebastião e seu discurso religioso. Ou mesmo do Coronel Horácio, mentalmente afetado (os atores Wilhelm Friedrich e Joffre Soares também guardam lá suas semelhanças físicas). Em Herzog, um tirano louco induz ao transe toda uma comunidade (Nagib, 2011). As sequências introdutórias de “Aguirre” (1973) e de “Fitzcarraldo” (1982) seguem esse mesmo rumo. Uma paisagem enevoada e opressora, com uma música cósmica ao fundo, e a selva hostil compõem a sensação de transe. Os conquistadores europeus que deliram de febre, ou sob efeito de bebidas alucinógenas, são vistos como deuses pelos indígenas e, ao final, sempre solitários, constatam a sua separação irremediável com a natureza, destruindo qualquer idealização edênica. O retrato do sertão amazônico em Herzog é franco e cru. As imagens de colonizadores vestidos com pesados trajes ocidentais em embarcações frágeis, ou trajando um improvável terno

branco, sob um navio a vapor, travando uma luta inútil contra o rio Amazonas, trouxeram uma nova abordagem sobre a região. Herzog repete o que, alguns anos antes, o Cinema Novo brasileiro fez para a região nordestina, apresentando, pela primeira vez, imagens realistas dos flagelos da seca, cujos personagens, assim como Aguirre e Fitzcarraldo são heróis dilacerados pelo meio (Nagib, 1991). A Amazônia constitui-se como o sertão ‘herzoguiano’. O conflito entre o homem e o mundo natural foi uma importante preocupação na filmografia de Herzog, ao lado de outros temas. Assim, em 1987, lança “Cobra verde”, outro filme rodado no Brasil (Bahia e Pará), no qual Klaus Kinski e José Lewgoy novamente são convocados para compor o elenco, cujo enredo traz muitas referências ‘glauberianas’. Ao lado de “Aguirre” (1973) e “Fitzcarraldo” (1982), o longa completa a trilogia sobre os trópicos, narrando a trajetória do latifundiário Francisco Manoel da Silva, que se volta para o banditismo após ser expulso de sua terra, por conta da seca e da fome. O protagonista segue suas andanças pelo sertão nordestino do século XIX até ser contratado como capanga por um decadente latifundiário, interpretado por Lewgoy, ganhando a alcunha de ‘Cobra verde’, o bandido mais temido do sertão. Há, no enredo, novamente crítica à violência do colonialismo europeu e a seu ímpeto civilizador. Neste artigo, discorremos sobre o entrecruzamento entre as obras dos cineastas Werner Herzog e Glauber Rocha. Do semiárido baiano para a floresta úmida. De um extremo ao outro do país. Do sertanejo nordestino ao seringueiro da Amazônia. Do coronel ao barão da borracha. O sertão virou rio e o rio virou sertão. Podemos perceber nas páginas apresentadas as marcas do ‘cinemanovismo’ na obra de Herzog e como esse diálogo contribuiu para a construção do seu olhar sobre o espaço amazônico. Futuros trabalhos podem evidentemente preencher algumas lacunas deixadas nesta breve discussão, até porque muitas outras pesquisas merecem (e precisam) ser feitas sobre a história da Amazônia vista no cinema. Acreditamos que nosso trabalho faça parte desse esforço historiográfico.

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O sertão virou rio e o rio virou sertão: um cineasta alemão e o Cinema Novo brasileiro

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SAME player shoots again. Direção: Wim Wenders. Alemanha: Wim Wenders Stiftung, 1968. Película (12 min), son., preto e branco, 16 mm. SÃO BERNARDO. Direção: Leon Hirszman. Rio de Janeiro: Embrafilme/Mapa Filmes/Saga Filmes, 1972. Película (113 min), son., color., 35 mm.

O TAMBOR. Direção: Volker Schlöndorff. Alemanha/France/ Poland/Yugoslavia: Franz Seitz Filmproduktion (as Franz Seitz Film)/ Bioskop Film/Artemis Film/Hallelujah Films/GGB-14/Argos Films/ Jadran Film (co-production)/Film Polski (co-production), 1979. Película (142 min), son., preto e branco, 35 mm.

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OS ANÕES também começaram pequenos. Direção e roteiro: Werner Herzog. Alemanha: Werner Herzog Filmproduktion, 1970. Película (96 min), son., preto e branco, 35 mm.

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OS CAFAJESTES. Direção: Ruy Guerra. Rio de Janeiro: Magnus Filmes, 1962. Película (100 min), son., preto e branco, 35 mm. OS DEUSES e os mortos. Direção: Ruy Guerra. Produção: J. Fredy Rosenberg, K. M. Eckstein. Rio de Janeiro: Companhia Cinematográfica Vera Cruz/ Companhia Cinematográfica de Filmes Brasileiros (CCFB)/ Daga Films/ Grupo Filmes, 1970. Película (97 min), son., color., 35 mm.

SERVUS Bayern. Direção: Herbert Achternbusch. Alemanha, 1977. Película (84 min), son., color., 35 mm.

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OS FUZIS. Direção: Ruy Guerra. Produção: Jarbas Barbosa. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 1964. Película (110 min), son., color., 35 mm.

TERRA em transe. Direção: Glauber Rocha. Produção: Agnaldo Azevedo. Rio de Janeiro: Mapa Produções Cinematográficas Ltda., 1967. Película (105 min 37 seg), son., color., 35 mm.

OS HERDEIROS. Direção e roteiro: Carlos Diegues. Produção: Carlos Diegues, Jarbas Barbosa e Luis Carlos Barreto. Rio de Janeiro: Carlos Diegues Produções Cinematográficas/Instituto Nacional de Cinema (INC)/J.B. Produções Cinematográficas Ltd./ Luiz Carlos Barreto Produções Cinematográficas/Novocine, 1969. Película (103 min), son., color., 35 mm.

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VIDAS secas. Direção e roteiro: Nelson Pereira dos Santos. Produção: Cin L. C. Barreto, Herbert Richers, Nelson Pereira dos Santos. Rio de Janeiro: Herbert Richers, 1963. Película (103 min), son., preto e branco, 35 mm.

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First grammatical encoding of Japanese Politeness (17th century) A primeira codificação gramatical da Cortesia do japonês (século XVII) Gonçalo FernandesI, Carlos AssunçãoI I

Universidade de Tras-os-Montes e Alto Douro. Vila Real, Portugal

Abstract: We analyze the description of the polite language in the early 17th century Japanese grammars, mainly the ‘large’ grammar (1604–1608) by the missionaries João Rodrigues ‘Tçuzu’ [the interpreter], S.J. (1562–1633), and the Japanese grammar (1632) by Diego Collado, O.P. (late 16th century–1638). Over 350 years of the Pragmatics established as a linguistic domain, one of the first Japanese dictionaries (1603–1604) introduced the designation of honorific particles and honored verbs. Rodrigues developed this terminology considerably, having analyzed accurately social and linguistic relationships and ways of Japanese reverence and politeness. He proposed an innovative linguistic terminology, inexistent in former European grammars and dictionaries, of which a part was followed by Collado: honorific and humble or humiliative particles, honored and humble verbs, honorable or honorific and low pronouns. Rodrigues also paid special attention to the women’s specific forms of address, describing their own ‘particles’. To sum up, the earlier 17th century Japanese grammars described pioneeringly what nowadays has been called as the Politeness Principle of Japanese or the honorific language of Japanese, termed as Keigo (respect language) or, academically, Taigū Hyōgen (treatment expressions). Keywords: History of linguistics. Missionary linguistics. Politeness principle. Japanese. Keigo. Taigū Hyōgen. Resumo: Neste artigo, analisamos a descrição da linguagem cortês nas gramáticas japonesas do início do século XVII, principalmente a gramática ‘grande’ (1604-1608), do jesuíta João Rodrigues ‘Tçuzu’ [o intérprete] (1562–1633), e a gramática japonesa (1632) do dominicano Diego Collado (final do século XVI–1638). Mais de 350 anos depois de a Pragmática ser instituída como disciplina linguística, um dos primeiros dicionários japoneses (1603–1604) introduziu a designação de partículas honoríficas e de verbos honrados. Rodrigues desenvolveu consideravelmente essa terminologia, analisando com acuidade as relações sociais e linguísticas, as formas de tratamento e a cortesia japonesa. Rodrigues propôs uma terminologia linguística inovadora, inexistente nas gramáticas e nos dicionários europeus da época, que foi utilizada, em parte, por Collado: partículas honoríficas e humiliativas, verbos honrados e humiliativos, pronomes honoríficos e de gente baixa. Rodrigues prestou também especial atenção às formas específicas de tratamento do gênero feminino, descrevendo as ‘partículas’ usadas pelas mulheres japonesas. Em síntese, as primeiras gramáticas do japonês do século XVII descreveram pioneiramente o que hoje se chama Princípio da Cortesia do japonês ou a linguagem honorífica do japonês, denominada keigo (linguagem respeitosa) ou, academicamente, taigū hyōgen (formas de tratamento). Palavras-chave: Historiografia linguística. Linguística missionária. Princípio da Cortesia. Japonês. Keigo. Taigū hyōgen.

FERNANDES, Gonçalo; ASSUNÇÃO, Carlos. First gramatical encoding of Japanese Politeness (17th century). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 13, n. 1, p. 187-203, jan.-abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222018000100011. Autor para correspondência: Gonçalo Fernandes. Universidade de Tras-os-Montes e Alto Douro. Quinta de Prados, Vila Real, Portugal. CEP 5001-801 (gf@utad.pt). ORCID: http://orcid.org/0000-0001-5312-6385. Recebido em 03/04/2017 Aprovado em 05/09/2017

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First grammatical encoding of Japanese Politeness (17th century)

INTRODUCTION Since the foundational studies on Politeness Theory by Robin Tolmach Lakoff (b. 1942), Geoffrey Neil Leech (1936–2014), Penelope Brown (b. 1944), and Stephen Curtis Levinson (b. 1947)1, nowadays linguists analyze the relationship between language and the social behavior of speakers and hearers, not only in oral speeches but also in written (formal and informal) texts. The use of certain honorifics and address terms exemplifies, for instance, the social position of the interlocutors, the degree of formality of speech, their intimacy, age, gender, etc., and can be studied, for instance, through the fields of pragmatics, sociology, and sociolinguistics. That is the reason why Leech (2014, p. 13-18), for example, proposed the division of two facets of pragmatics into pragmalinguistics and sociopragmatics. Like Brown and Levinson (1978, p. 281; 1987, p. 276), we use the term “honorifics” in a comprehensive sense, meaning the “[…] direct grammatical encodings of relative social status between participants, or between participants and persons or things referred to in the communicative event”, or, as it was defined by Ide (1982, p. 382), “Honorifics are morphologically well-defined language forms that are used to make speech polite”. The analyses of honorifics are particularly relevant in Asian languages2, mainly in recent years studies. Locher (2013, p. 4458-4459), for instance, says: Especially researchers on Asian languages and cultures argued early on that the notion of face captured predominantly Western values (involvement and distance) and was not applicable to their cultures to the same extent. This criticism has resulted in a very active research tradition on politeness in Asian languages, and especially on politeness forms of respect and deference in the form of honorifics.

Concerning explicitly Japanese politeness3, Ide (1982, p. 357), for instance, says that: The most interesting but recalcitrant issue in Japanese sociolinguistics is perhaps honorifics. In Japanese, honorifics are a morphologically well-defined system which is used to express politeness. There are various devices to express politeness in language, but honorifics are the core of Japanese polite expressions.

And Leech (2014, p. 108, author’s italics) states that: Honorifics are found widely among human languages, but languages such as Japanese […] have particularly rich and complex honorific systems. Honorifics in modern societies concern relations between S [speaker] and O [others], and how these are grammatically encoded taking account of the relative deference or familiarity appropriate to these relations.

On the other hand, it is essential for communicative success in Japanese to focus on the correct use of the forms of address and honorifics. Mogi (2002, p. 14) states that: Japanese people seem to avoid employing pronouns as address forms, employing other nouns instead. Family terms, place names, occupations, company names, shop names are popularly used as forms of address in everyday life. An important factor in choosing an appropriate form of address is the relationship between interlocutors. Thus, address forms can represent a referent’s position in their society. The grammatical category of person is not exactly the same as its practical use.

See mainly Lakoff (1973), Brown and Levinson (1978, 1987) and Leech (1983, 2014). For the comparison between the use of honorifics in western and eastern cultures, see, for example, Ide (2005). 3 See Ide (1982), Ide and Ueno (2011), Haugh and Obana (2011), and Liu and Allen (2014). 1

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So, it is essential to have first the cultural and sociologic background knowledge in order to use the appropriate keigo, “[…] the honorific language of the Japanese language” (Suzuki, 1973, p. 164 apud Mogi, 2002, p. 20) or “[…] less commonly taigū hyōgen […] (lit. ‘treatment expressions’) […]” (Haugh; Obana, 2011, p. 149). Mogi (2002, p. 14) also says that “Even Japanese people often find it difficult to find appropriate forms to address strangers”. Clarke (2009), for instance, believes that the new generation of Japanese, in spite of considering keigo as a feudal anachronism, still continues using it, adding however new values and functions. For him, the keigo system works today at two levels, the politeness and respect: Every Japanese sentence carries information about both categories. Politeness is directed towards the addressee, while respect is shown to the subject (subject honorifics), or direct or indirect object (object honorifics), of the verb. As the subject of object honorific sentences is invariably the first person, ‘I’, or someone closely associated with the speaker, traditionally the object honorifics were referred to as ‘humble’ or ‘deferential language’. The older terms are still in general use, but specialists prefer ‘object honorifics’ as these forms show respect to a socially designated superior and carry no connotations of self denigration on the part of the speaker (Clarke, 2009, p. 60-61).

Nevertheless, as it was recognized by Liu and Allen (2014, p. 662) for example, “[…] none of the existing theories alone can explicate Japanese linguistic politeness, as linguistic politeness is a very complicated issue influenced by multiple factors […]”. In effect, in this research our main objective is only to analyze the first linguistic codifications of the polite language in the early 17th century Japanese grammars by European missionaries, mainly the “large” grammar (1604–1608) by João Rodrigues ‘Tçuzu’ [the interpreter], S.J. (1562–1633), and the Japanese grammar (1632) by Diego Collado, O.P. (late 16th century–1638).

HISTORICAL REMARKS The first Jesuits arrived in Japan from Portugal in 1549, led by Francisco de Javier (‘Xavier’ in Portuguese), S.J. (1506–1552). The first printing press with movable types was installed in the Jesuit college at Kazusa in 1590, before being moved to Amakusa at the end of 1591 and to Todos os Santos [All Saints]4 College, near Nagasaki, in the autumn of 1597, after Amakusa College had been suppressed (Laures, 1940, p. 326). In November 1614, the shogun Tokugawa Ieyasu (1543–1616) started persecuting the Christians in Japan; therefore, the missionaries from the Portuguese Patronage were expelled and the Japanese Province of the Society of Jesus had to leave in exile to the Chinese Vice-Province, settled in Madre de Deus [Mother of God] College, in Macau (Tronu, 2015). This conflict between the Japanese and the Portuguese ended only almost 250 years later, with the signature of the Treaty of Peace, Friendship, and Commerce between Portugal and Japan, signed on August 3, 1860, at Yeddo (former name of Tokyo), by the emissaries of King Pedro V (1837–1861) and the Emperor Kōmei (1831–1867) (Tratado…, 1863). There were, at least, three Japanese elementary grammars written in the second half of the 16th century that were circulated as manuscripts amongst the Jesuits, but, unfortunately, no known copies have survived (Boxer, 1950, p. 348; Cooper, 1974, p. 225; Verdelho, 1998, p. 953; Frellesvig, 2010, p. 302): the “Arte da Lingoa Japonesa” [Art (of Grammar) of Japanese Language] (ca. 1552) by the Portuguese brother Duarte Silva, S.J. (fl. 1552–1564), the “Grammatica da Lingoa Japonesa” [Grammar of Japanese Language] (ca. 1564) by the Spanish priest Juan Hernández, S.J. (d. 1567) and the “Arte da Lingoa de Iapão” [Art (of Grammar) of the Japanese Language] (1581) by the Italian priest We did all translations into English, except Collado’s grammar, which we have used the edition of Richard L. Spear (Collado, 1975).

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Antonio Prenestino, S.J. (1542–1589). There is also a reference to a first Japanese vocabulary, which was written by Silva, Hernández and Gaspar Vilela, S.J. (d. 1571), and Luís Fróis, S.J. (1532–1597) had also started writing a Japanese dictionary in 1563 (Verdelho, 1998, p. 953). The first metalinguistic text published in Japan was an abridged version of the Manuel Álvares’, S.J. (1526–1583), grammar book named “De institutione grammatica libri tres”, printed in the Jesuit college of Amakusa (Álvares, 1594). This grammar is the Japanese translation of Álvares’ ars minor (Álvares, 1573), published a year later than the editio princeps of his ars maior (Álvares, 1572). “The Amakusa edition (1594) merits special attention not only for being the first grammatical treatise to mention Japanese verbal paradigms in print, but for being the first adaptation of the Jesuit grammar outside of Europe, having been created in a well defined missionary context” (Assunção; Toyoshima, 2012, p. 26). The main objective of this publication was clearly to teach Latin to the Japanese students, but it has several metalinguistic innovations (Assunção; Toyoshima, 2012, p. 36-38). However, none of these innovations was related to the description of Japanese honorifics and forms of address. In 1595, the Jesuits settled at Amakusa College published the “Dictionarium latino-lusitanicum ac japonicum” [Latin-Portuguese-Japanese Dictionary] (Jesuits, 1595). It was […] clearly based on the dictionary compiled by Ambrogio Calepino [ca. 1440–1510], but it omits the entries for proper nouns and unusual words and includes all meanings of words along with elegant examples of usage, so that it may serve as a guide for young Japanese people studying the Latin language and for Europeans who wished to study Japanese further (Kishimoto, 2010, p. 1020).

It is smaller than the European editions, the number of entries is considerably reduced, and its main objective was to teach Latin to Japanese students and Japanese to European missionaries (Kishimoto, 2005, p. 215, 2014, p. 252). There is another printed Japanese dictionary called “Racuyoxu” (Rakuyōshū) [Collection of fallen leaves] (Jesuits, 1598) edited in kanji (Chinese) characters and hiragana syllabary. According to Zwartjes (2011, p. 109), it can be considered as a dictionary of characters and not properly as a dictionary of words: “It is a tool for learning the equivalences between Chinese characters and spoken words rather than for learning the meaning of words”. The Rakuyōshū is divided in three books: 1) a list of Sino-Japanese characters and their compounds in terms of their pronunciation, the Rakuyōshū proper (62 folios); 2) a list of their syllabic transcription, the Irohajishū (27 folios); and 3) a list of kanji ‘radicals’, the Shōgyokuhen (Zwartjes, 2011, p. 109; Bailey, 1960-1961, p. 291; Chan, 2002, p. 257-258)5. A few years later, in 1603, the Jesuits started publishing a collective dictionary of Japanese with translation into Portuguese, the “Vocabulario da lingoa de Iapam com a declaração em Portugues, feito por alguns padres e irmãos da Companhia de Iesu” [Vocabulary of the language of Japan, with definitions in Portuguese, produced by some fathers and brothers of the Society of Jesus] (Jesuits, 1603–1604). It was finished a year later, in 1604, with the publication of a supplement. It is an anonymous dictionary, but the priest João Rodrigues ’Tçuzu’ S.J., has been considered one of its contributors6, despite the fact that Doi (1900–1995) (1932, p. 67-112) had shown that it is improbable that Rodrigues could be so. Nevertheless, recently Kishimoto (2014, p. 253) states that “[…] we do not have clear evidence that he

Unfortunately, we did not find any expression related to the Japanese honorifics or address forms neither in the Dictionarium nor in the Rakuyōshū. See also Bailey (1962). 6 See, v.g., Verdelho (1998, p. 953). 5

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was one of the authors of either Dictionarium or Vocabulario; we cannot completely deny the possibility that he could be one of the authors of the Dictionarium […]”.

JOÃO RODRIGUES ‘TÇUZU’, S.J., AND DIEGO COLLADO, O.P. Father João Rodrigues, S.J. was born in the north of Portugal (parish of Sernancelhe, diocese of Lamego, and district of Viseu), and he dedicated almost all his life to evangelization in Japan. According to Boxer (1950, p. 339), “He entered the service of the celebrated Daimyo or feudal lord of Bungo, Otomo Yoshishige (Sorin) [1530–1587], who had been strongly attracted to Christianity ever since his first meeting with Saint Francisco Xavier […]”. During his 37-year stay in Japan, he won the friendship of the rulers Toyotomi Hideyoshi (1537–1598) and Tokugawa Ieyasu (1542–1616) (Cooper, 1974, p. 9; Zwartjes, 2011, p. 95), and he was the interpreter of the Italian Jesuit Visitor, Alessandro Valignano, S.J. (1539–1606), during his first stay in Japan (1579–1582) and when he visited the kwambaku Hideyoshi in 1591 (Barron; Maruyama, 1999, p. 2). Rodrigues earned the nickname ‘Tçuzu’ (Tçûzzu or Tsuji), which means “the translator” or “the interpreter” (Zwartjes, 2011, p. 94) because of his skills in speaking Japanese and “[…] to distinguish him from his contemporary namesake, Padre João Rodriguez Giram7, who had come to Japan in 1586, and who likewise attained a good knowledge of the language […]” (Boxer, 1950, p. 340-341). After 1614, like the other Jesuits from the Japan Province, Rodrigues started living in Madre de Deus [Mother of God] College in Macau, which was the center of his missionary activity during the last 19 years of his life (Zwartjes, 2011, p. 95). Rodrigues published two Japanese grammars, the “Arte da lingoa de Iapam” [Art (of Grammar) of the Japanese Language] (Nagasaki 1604–1608) (henceforth “large grammar”) and an abridged version, the “Arte Breve da Lingoa Iapoa tirada da arte grande da mesma lingoa, pera os que começam a aprender os primeiros principios della” [Short Art (of Grammar) of the Japanese Language taken from the large grammar of the same language, for those who start learning the first principles from her] published in Macau in 1620 (henceforth ‘short grammar’). The large grammar “[…] was too long, containing too much material which was not relevant for the practical teaching of the Japanese language” (Zwartjes, 2011, p. 97). The shorter version had already been finished and printed in Macau, and his “[…] main purpose was to publish a more accessible textbook for beginners […]” (Zwartjes, 2011, p. 97). However, Barron and Maruyama (1999, p. 6) believe that “[…] this is not just a compendium of the Arte (Grande) of 1604–08, but a thoroughly refined or elaborated version”. It is agreed upon by scholars that the Father João Rodrigues, S.J., deserves, as Zwartjes (2011, p. 141) says, to “[…] be classified among the five best Jesuit grammarians from the colonial period”, among Joseph de Anchieta (1534–1597), Ludovico Bertonio (1557–1625), Diego González Holguín (1552–1618), and Horacio Carochi (1579– 1662). Charles Ralph Boxer (1904–2000) termed Rodrigues as “the Father of Japanese Language Studies” (Boxer, 1950, p. 363). Spear (1975, p. 2) believed that his large grammar “[…] is by any standards the greatest grammatical study of Japanese made during the Christian Century”. Bésineau (1998, p. 190, our translation) mentions that “[…] l’oeuvre de Rodrigues force l’admiration et, pour tout dire, la reconnaissance. Tout ce qui a été fait après lui n’aurait pu être sans lui [Rodrigues’s work forces admiration and, to tell the truth, gratitude. All that was done after him could not have been without him]”. For the biography of the priest João Rodrigues Girão, S.J. (1558–1629), see, e.g., Schurhammer (1932, p. 25 , 1963, p. 607), and Schütte (1975, p. 1285).

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Father Diego Collado, O.P., is the author of the third Japanese grammar — immediately after both Rodrigues’ grammars —, the “Ars grammaticæ Iaponicæ linguæ” [Art of grammar of the Japanese Language] and the “Dictionarium sive Thesauri Linguæ Iaponicæ Compendium” [Dictionary or Compendium of Japanese Language Thesaurus] (Rome 1632) by Propaganda Fide. Diego Collado was born at Miajadas, in the province of Cáceres, Extremadura, Spain, in the late 16th century8. He entered the Dominican Order approximately in 1600, went to Philippines and to Japan in 1611 and 1619, respectively, where he stayed until 1622. In this year he went to Rome and increased the controversy with the Jesuits9. He returned to Philippines and he died in 1638, victim of a shipwreck (Takizawa, 1993, p. 4). Collado’s grammar is an ars minor of Japanese language written in Latin and has just 74 pages10. According to the conclusions of Takizawa (1993, p. 261-262), the main sources of Collado were firstly João Rodrigues (in a few aspects but not in all areas) and indirectly Manuel Álvares, S.J. (1526–1583), mainly his Amacusa edition (Álvares, 1594; Assunção; Toyoshima, 2012). Takizawa (1993, p. 261) shows also that the influence of Nebrija is not so clear, despite Collado’s preliminary words.

HONORIFICS AND FORMS OF ADDRESS IN 17TH CENTURY JAPANESE GRAMMARS Ide (1982, p. 358) says that currently Japanese polite expressions involve two kinds of honorifics, one expressed by means of changing the shape of nominal elements, and the other by predicative elements. The former type is analogous to the polite expressions which occur in the category of address forms. The latter, on the other hand, is a rather more complex system in which not only the sociological nature of the nominal referent, but also the grammatical relation of such an element needs to be taken into consideration. In addition, the status of the adressee plays an important role in this latter system.

Already in 1603-1604 the “Vocabvlario da Lingoa de Iapam” had described expressions that revealed interest with Japanese politeness11. We found four times the expression “particula de honra” [honorific particle] and two times, “verbo honrado” [honored verb]: Fucu. Vestido: posto que se não usa assi se não com algũa particula de honra, ou composição. [Fucu: Dress: given that it does not use like this if not with some particle of honor, or composition] (Jesuits, 1603-1604, p. 105v, our translation). Go, id est, guio, id est, Von. He particula de honra. [Go, i.e, guio, i.e, Von: is an honorific particle] (Jesuits, 1603–1604, p. 119v, our translation). Mi, id est, Vo. Particula de honra. [Mi, i.e., Vo: honorific particle] (Jesuits, 1603–1604, p. 157v, our translation). Vo. Particula de honra. [Vo: honorific particle] (Jesuits, 1603–1604, p. 274v, our translation). Mesare, uru, eta. He verbo honrado. [Mesare, uru, eta: is honored verb] (Jesuits, 1603–1604, p. 157r, our translation). Vomoi, ô. He verbo honrado, & ainda fica mais honrado com, rare. [Vomoi, ô: is an honored verb, and it still gets more honored with rare] (Jesuits, 1603–1604, p. 275r, our translation).

Bae (2004, p. 164) has absolutely no reason to give 1522 as his year of birth. Concerning the rivalry between the Jesuits and Dominicans, see Tronu (2015). 10 For other details, see Osterkamp (2012), Takizawa (1993) and Tronu (2012). 11 It is impossible to know if these designations were authored by João Rodrigues or other Jesuit contributors, as if any lost earlier Japanese manuscript grammars or dictionaries had similar classifications, such as the works by Duarte Silva, Juan Hernández, Antonio Prenestino, Gaspar Vilela and Luís Fróis. 8 9

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Rodrigues, mainly in the large grammar, developed considerably this terminology and paid special attention to the social relationships amongst Japanese people in oral and written speech, deserving a special reference. He speaks explicitly of the Japanese “cortesia” [politeness] and of the ways of speaking with “honra” [honor]: […] no que esta lingoa se assinala, & he diuersa de quantas temos noticia, he na maneira de respeitos, & cortesias que inclue nos modos de falar quasi uniuersalmente: por que tem verbos acõmodados pera falar de pessoas, & com pessoas baixas, & altas, & tẽ varias particulas que se ajuntão aos verbos, & nomes, respeitando sempre à pessoa cõ quẽ, de quẽ, & de q̃ cousas fala, pera usar das taes particulas, & verbos conforme a calidade de cada hũ; de modo que se não pode aprender sem juntamente se aprender a falar com honra, & cortesia. [in what this language is noted, and it is different from those we know, it is in the way of reverence and politeness, which includes the ways of speaking almost universally; because it has verbs accommodated to speak of people, and with low and high persons, and it has various particles that join to verbs and nouns, always respecting the person with whom, of whom, and of which things speaks, to use such particles, and verbs according to the quality of each one; therefore one can not learn without learning to speak together with honor and politeness] (Rodrigues, 1604-1608, p. [ix], our translation).

Diego Collado had also concerns with Japanese politeness and the correct use of honorifics. He — or his Latin translator — uses the noun “urbanitas” [politeness], and the adjective “urbanus” [polite]. He states, for example, about the imperative of the first conjugation “[…] est honoratior modus loquendi & vrbanior ad imperandum in omni coniugatione, quam per imperatiuum absolutum” (Collado, 1632, p. 21). [“This is a more elegant and polite way of speaking than giving a command with the regular imperative” (Collado, 1975, p. 125)]. Although Rodrigues had following the Latin grammar of other Portuguese Jesuit, Manuel Álvares, S.J. (1526–1583), mainly his ars minor (Álvares, 1573), through the Amakusa edition (Álvares, 1594), “[…] the subject matter of Part III of the Arte is entirely original and can perhaps best be described as rhetoric” (Cooper, 1974, p. 227). Here Rodrigues is completely original, based on the language of Miyako (the former name of Kyoto), the Japanese literature and the earlier Jesuit dictionaries. He describes, for example, how to speak correctly, the most common phonetic errors made by foreigners, literary styles, rules of politeness and how to write formal letters to the king, nobles, lesser noble people, superiors, inferiors, religious (priests and nuns), etc. “The Arte has inevitably come in for a certain amount of criticism on account of its unwieldy length, lack of method, and irrelevant material” (Cooper, 1974, p. 233), but it is an important historical document with relevant linguistic subjects for the study of the beginning 17th century Japanese language and culture. According to Takizawa (1993, p. 1), Rodrigues’ grammar is “[…] the first extant Japanese grammar, to which Collado also owes a lot”.

HONORIFIC AND HUMBLE PARTICLES Rodrigues breaks down the traditional classification of Latin grammar, distinguishing, for example, honorific and humble or humiliative particles. He does not distinguish these particles amongst the (current designations of) prefixes and suffixes. For Rodrigues, they were postponed to the radicals or roots of the nouns or verbs. For instance, the four most frequent Japanese prefixes for Rodrigues were “nite-”, “ni-”, “de-” and “goza-”: […] em quanto particula se pospoem às rayzes de todas as particulas que se ajuntão a os verbos, assi honorativas, como humiliativas, como tambem às que signifycão fazer, sem alterar nada sua significação. Vt, Naravaresoro, Yumi mŏxisoro, Ague mairaxesoro, Cacaxeraresoro […]. As particulas com que propriamente se compoẽm quanto verbo são quatro conuem a saber. Nite, Ni, De, Goza, Vt Nitesoro, Nisoro, Desoro, Gozasoro […]. As for particles, they postpone the radicals of all particles, which they connect to verbs. This is so for honorifics as well as humiliatives, which signify to do without changing its meaning, as in naravaresoro, yumi mŏxisoro, ague mairaxesoro, cacaxeraresoro […].

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Among particles, which properly compose the verbs, there are four, which we ought to know: Nite, Ni, De, and Goza, as in Nitesoro, Nisoro, Desoro, Gozasoro] (Rodrigues, 1604-1608, p. 52v, our translation).

On the other hand, Collado says also that there were four honorific prefixes, but, unlike Rodrigues, for Collado, they were “vo-”, “von-”, “go-” and “mi-”: Particulæ honoris sunt quatuor, vo, von, go, mi, duæ primæ iunguntur vocabulis, iomi, vltimæ vero iunguntur vocabulis, coie, siue chinensibus. vltima est honoratior & illa vtimur ad loquendum de rebus diuinis: v.g. midexi tachi, discipuli Christi Domini, goichi nin vocoite cudasarei, mittatis obsecro vnum ex dominis (Collado, 1632, p. 73). [The honorific particles are four: vo, von, go, and mi. The first two are joined to iomi vocables. The last two are joined to coie, or Chinese vocables. The last is the most honorific and is used when speaking of things divine; e.g., midexi tachi ‘disciples of Christ the Lord,’ goichinin vocoite cudasarei ‘please send one from among the Lords’] (Collado, 1975, p. 182).

Rodrigues analyzes likewise the most common address forms used amongst the Japanese people, in different writing styles, such as in naiden (religious) and gueden (secular) texts. For example, Rodrigues says that the suffix “-sama” was the most common ‘particle’ for the names: Sama, id est, Yŏna, id est, semelhante, assim como, modo, et cetera. Esta particula antigamente nam tinha grao de honra, mas agora he a mais comum, e vsada de quantas ha, e soomente se pospoem a pessoas, e nam a outras cousas, ut Vyesama, id est, Vyeno Yŏna, id est, O Senhor da Tença. Yacatasama, Tono sama, Padre Sama, et cetera. Podemos dizer que no vso em que agora anda tem sentido, de Senhor, Senhoria, Alteza, Merce, Reuerencia, et cetera, conforme a pessoa a que se pospoem. [Sama, i.e., Yŏna, i.e., identical, as well as manner, etc. This particle formerly did not have a grade of honor. Now it is the most common and the most commonly used, and it is only used for persons and not things, as in Vyesama, Vyeno Yŏna, The Lord of the bership, Yacatasama, Tono sama, Padre Sama, etc. We can say that, in the use that now is common, it means Lord, Lordship, Your Highness, Mercy, Reverence, etc., according to the person to whose name it is joined] (Rodrigues, 1604-1608, p. 159v, our translation).

Collado also mentions that the suffix “-sama” should be used compulsory when one speaks with high-ranking people, although he mentions that “-sama” serves a pronoun (see the following chapter): Si autem loquamur cum personis in dignitatibus constitutis, nomen dignitatis, si illi super addatur particula, sama, supplet vicem pronominis: v.g. Padre samã gozare, veniat vestra paternitas (Collado, 1632, p. 14). [When speaking to persons of high rank, if we place the name of their office before sama, it serves as a pronoun; e.g., Padresama gozare ‘will the Father come’] (Collado, 1975, p. 119).

Mogi (2002, p. 17) says that nowadays the suffix “-sama” is “[…] the most formal one amongst four and is mainly employed in public relation”. The other three common suffix address forms are –joshi, -shi and –san (the most common): When it is used in social relation, the term addresses for both gender and a speaker is higher in hierarchy than a referent. –joshi is a term for only females who have high social status and is a well-known person. Yet, nowadays, –joshi is less often used than -shi even though the referent is a female. When –san is used in public, social and personal relationships and the term indicates certain degree of respect. This is the most common term in everyday life (Mogi, 2002, p. 17).

Coelho and Hida (2010 [1997], p. 175, 1023, 1024) present “-samá” as synonym of “-dóno” and “-san”, meaning “Sir”, “Excellency” or “Madam”. However, “-dóno” and “-san” are less formal.

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In early 17th century Japan, according to Rodrigues, the most common address forms or particles of honorific degree were the suffixes “-dono,” “-tono,” and “-cŏ”, and “-quiŏ” (used only between the nobles who lived in the king’s palace at Kyoto): Dono, Tono. He hũa voz que parece significar como entre nos, senhor, ou fidalgo, e se pospoem aos nomes proprios de pessoas, quando se nomeam, assi nas cartas, como no falar ordinario mormente em presença, ou diante de seus criados, e pessoas de obrigaçam. [Dono, Tono. It is a word that signifies a lord or gentleman, and they postpone it to the first names of the persons when they nominate as in the letters in ordinary speech, especially in the presence of or in front of their servants and duty persons] (Rodrigues, 1604–1608, p. 160r, our translation). Cŏ, Quiŏ id est Quimi. Estas duas vozes significam propriamente Senhor, Dominus. Cŏ, se pospoem aos nomes de pessoas nobres commummente nas cartas […] Quiŏ, serue soomente entre Cugues. [Cŏ, Quiŏ, i.e., Quimi. These two expressions signify Sir, Dominus. Cŏ postpones to noble people’s names, especially in the letters […] Quiŏ serves only amongst the Cugues12] (Rodrigues, 1604-1608, p. 160r, our translation).

Nevertheless, the most important address form, used only to address the king, was the prefix “yei-”: Yei, id est, Chocu. Estas particulas seruem soomente pera el rey, e significam o mesmo rey. id est. Vŏ, e se antepoem aos nomes do Coye. Vt, Yeiran, id est, Vio el Rey, Yeican, id est, Guiocan, Lolucu El Rey, Yeirio, id est, Yeixin, id est, Micocoro, o coraçam del Rey […]. [Yei, i.e., Chocu. These particles serve only for the king and mean the king himself, i.e., Vŏ, and they are placed before the names of the Coye, as in Yeiran and Vio, the King, Yeican, Guiocan, and Lolucu, the King, Yeirio, Yeixin, and Micocoro, the king’s heart] (Rodrigues, 1604–1608, p. 160v, our translation).

Of particular interest is Rodrigues’s specific analysis of the address forms used by women. The last research carried out by Ide (2005, p. 61) notes, for instance, that women still continue using polite expressions and women with a higher status use them more than the female of a lower status: “[…] female executives use more elaborate honorific forms than do women of lower status in the same corporation. […] The findings show that women of higher status signify their dignity or elegance by using more elaborate, higher honorific forms than those used by lower status women”. Clarke (2009, p. 61) adds, otherwise, that the young generation uses fewer forms of address than in the old days, and they are speaking increasingly similar to men, and they overuse the prefix -o13: […] this remains true in spite of the protestations of older Japanese that young women these days speak more like men and young males are speaking more like women. The differences between men’s and women’s language are less apparent in the polite conversational style, though, even here, women tend to use more honorific expressions than men and many overuse the elegant noun prefix o-.

However, at the beginning of the 17th century, João Rodrigues had described already, for instance, that the suffix or the (postponed) particle “-vye” was used only with women’s names and meant the ‘highest superior’: The Cugues were the noble families who lived and served in the palace of the king at Miyako, the “capital” (Kyoto) see, e.g., Jesuits (1603–1604, p. 63v, 70r), who spoke the purest and the most elegant language (Rodrigues, 1993 [1620], p. 59v, 474). 13 Coelho and Hida (2010 [1997], p. 894) say that the prefix –o indicates admiration, respect, veneration, and delicacy, and is also used as prefix of some female proper names. 12

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Vye. Esta particula significa superior supremo, et cetera. Como quando dizemos Vye, id est, Vye sama. […] He vsada por particula de honra falando de molheres, e se pospoem aos nomes das pessoas que honra. Vt, Fauavye, A Senhora mãy. Vovye, a senhora da casa, ou mulher do Tono. [Vye: This particle means supreme superior, etc., as when we say Vye, Vye sama […] It is used as an honorific particle for speaking of women, and they postpone it to people names, which they honor, as in Fauavye, Mother Lady, Vovye, the Lady of the House, and Tono’s wife] (Rodrigues, 1604-1608, p. 159v, our translation).

Likewise, the suffix “-goien” was used only between women, showing reverence to their noble family. “-Goien” can be considered as equivalent of the masculine “-sama”: Goien, Go. A primeira particula destas duas serue soomente pera molheres, e as honra a modo de, Sama. por respeito das pessoas nobres a quem pertencem as taes molheres.Vt Fauagoien, Foioquegoienm Toquinagoien. Go, serue pera homens, e molheres. [Goien, Go. The first particle of these two is used only for women and to honor them, in the manner of Sama and out of respect for noble people who own such women, as in Fauagoien, Foioquegoienm Toquinagoien] (Rodrigues, 1604–1608, p. 160v, our translation).

Unfortunately, Rodrigues describes female particles used only by the lower to the higher status women and not by the opposite, as Ide does, and he has not the perspicacity of how spoke the 17th-century young generation, as Clark describes for the contemporary time. In effect, they are discussing different phenomena of women’s language, but it is remarkable that a Jesuit missionary at the beginning of the 17th century has a real concern with the women’s language and how to use the correct address form or particle, in his designation, when speaking with women.

HONORIFIC PRONOUNS According to Mogi, Japanese linguists at the beginning of the Meiji era (1868–1912)14 adopted European grammatical categories and various nouns were categorized as personal pronouns, and nowadays they are essential linguistic elements to indicate the politeness of speech: […] the pronoun system in the Japanese language is not well developed and the system is used in a limited way. Consequently, the system also functions in different ways if it is compared to English. One of possible explanation for this is that at the beginning of the Meiji era, Japanese scholars tried to analyze the grammar of the Japanese language according to European grammatical categories. […] Therefore, some nouns were categorized into personal pronouns in the Japanese language but they in fact, show small correlation to their European language counterparts. As a result, there are many PERSONAL PRONOUNs in the Japanese language (Mogi, 2002, p. 15).

Japanese people do not like to be the center of the attentions, and they prefer introducing themselves not by the personal pronoun, but by their name, professional title or job, for instance. The Japanese language has, in fact, personal pronouns, but many common nouns were also classified as pronouns, following the grammatical categories of the Western languages. Those ‘personal pronouns’ are, indeed, synonyms and they are used according to the level of politeness, the gender of the speaker and/or the hearer, their age, the formality of the speech, etc. However, this classification as personal pronoun did not start “at the beginning of the Meiji era”, as Mogi stated. In effect, it began, at For a comparative analysis between the Japanese eras and the Western Christian dates since the Taika (645-650) and Heisei (1989–), see Coelho and Hida (2010 [1997], p. 1459).

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least, 260 years earlier than the Meiji era, by João Rodrigues, who followed, undoubtedly, the traditional classification of the parts of speech. In effect, Rodrigues describes a complex system of personal pronouns according to the social importance of the speaker. The first person singular (“I” or “me”) is necessarily “translated”, at least, by 18 different Japanese synonyms. It can be “chinga” or “maru” (only for the king), “vare,” “valera,” “vatacuxi,” and “soregaxi” (for men, with humility), “miga” and “midomo” (for men with some superiority), “midomoga” and “midomoraga” (for men with low social importance), “conofŏ,” “conata,” and “cochi” (the most frequent “pronoun,” for many contexts), “vraga,” and “vraraga” (for low people), and “vagami,” “midzucara,” and “varaua” (for women): Chinga, id est, Maru } Eu el Rey, soomente pera o Rey. Vare. Valera, id est Vareraga. Vatacuxi. Soregaxi. } Eu, estas vozes são corteses e falamos por ellas com respeyto, e humildade, commumente seruem pera homens, as duas primeyras pera pratica, e escritura: as duas segundas pera pratica soomente. Vatacuxi, algũas vezes tem sentido de proprio, ou como de si, ou particular. Vt, Vatacuxino coto. He cousa propria, ou sua particular, ou delle, et cetera. Mi. id est Miga. Midomo. Midomoga. Midomoraga. } Eu, pera homens com algũa superioridade, mayormente os dous primeyros: por que dos outros usam tambem gente bayxa entre si. Conofŏ. Conata. Cochi. } Eu, corrente e indifferente pera altos, e bayxos, e cortès, principalmente os dous primeyros. Xessu. Xexxa. Xeppu. Guxer. Gurŏ. Gusŏ. } Eu, pera escritura, raro pera pratica. Gurŏ, pera velhos, e rapados. Gusŏ, pera Religiosos, e rapados. Vraga. Vraraga. } Eu, de que usa gente bayxa, et cetera. Vagami. Midzucara. Varaua } Eu pera molheres. [Chinga, i.e. Maru } “I, the King”, only for the King. Vare, Valera, i.e. Vareraga, Vatacuxi, Soregaxi } “I”. These words are courteous and we talk using them to show respect and modesty; they usually are used by men. The first two relate to (religious) practice and to writing, and the second two relate only to (religious) practice. Vatacuxi sometimes means “self,” “own”, or in “particular,” as in Vatacuxino coto, “it is my thing, or mine own, or from me,” etc. Mi, i.e., Miga, Midomo; Midomoga, Midomoraga } “I,” for men with some superiority, mainly the first two ranks, because the low ranking people also use the other terms among themselves. Conofŏ; Conata; Cochi } “I,” common, indifferent to high and low people, and courteous, mainly the first two. Xessu. Xexxa. Xeppu. Guxer. Gurŏ. Gusŏ } “I,” for writing, rare for (religious) practice; Gurŏ for old and shaved (men). Gusŏ, for religious and shaved (men). Vraga, Vraraga } “I,” used for low ranking people, etc. Vagami, Midzucara, Varava } “I,” for women] (Rodrigues, 1604–1608, p. 67v–68r, our translation).

Collado’s description is also very interesting. Despite classifying them as particles, he distinguishes them according to the speaker and his/her perception of the hearer’s social status and includes also the women. Collado mentions four ‘particles’ from superiors to inferiors (“vatacuxi”, “soregaxi”, “vare” and “mi”), four from inferiors to superiors (“varera”, “midomo”, “midomora” and “vare”), three used specifically by women (“mizzucara”, “varava” and “vagami”), three by priests (“vara”, “vorara” and “guso” between themselves), and two by the king (“chin” or “maru”): Octo sunt particulæ significantes idem quod Ego, mei, mihi, &c. vátacuxi, sòrẽgaxi, váre, mi, várerá, mìdòmo, midòmorá, váre. Quatuor primæ denotant aliquam superioritatem in eo qui illis utitur, reliquæ uero sunt humiliores. Mulieres utuntur tribus aliis particulis aliquando quæ sunt, mĩzzu cára, vãrauá vãgami, & his non utuntur uiri: rustici solent uti duabus uidelicet, vára vòrará, religiosus uero quando de se loquitur solet dicere, gusô, ac si diceret: ego uilis religiosus; senex uero de se loquens: dicit, gurŏ, ego uilis & despectibilis senex. Rex uero, dicet, chin, uel, máru, quod significat: ego Rex (Collado, 1632, p. 13). [There are eight particles that signify ‘I, mine, to me, etc.’ They are vatacuxi, soregaxi, vare, mi, varera, midomo, midomora, vare. The first four indicate a degree of superiority on the part of those who use them. The others are humbler. Women use three other particles mizzucara, varava, and vagami, which are not used by men. The people in the countryside use two others, vara [vora] and vorara, while priests when speaking of themselves use guso, that is to say ‘I, a worthless man of the cloth’ and old men when speaking of themselves use guro, ‘I, a worthless and despicable old man’. The king (rex) says chin or maru which means ‘I, the King’] (Collado, 1975, p. 118–119).

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For the second and third person, there is the same obligation to use different (primitive or derivative) pronouns, showing the hierarchical relationships between the hearer and the speaker. It is curious that Rodrigues distinguishes the pronouns that serve only for honorable people, equals and low people, and when the speaker wants to despise his interlocutor: Pera segundas, e terceyras pessoas honradas, e igoaes, e algũas bayxas seruem tambem as particulas de honra, Von, vo, go, mi, guio. Vt, Goxisocu, Vosso filho; Mioxi, mice, Seus pes, suas mãos; Von cuni, Vosso, ou seu reyno, et cetera. […] O Pronome assi deriuatiuo como primitiuo, ou he de si honrado, ou bayxo: honrado he aquelle que soo pertence a pessoas altas, e meãs bayxo aquelle, que sò pertence a infimos, ou de que vsamos por causa de desprezar a outro. [For second and third person used for honorable people, equals, and some low ranking people, the honorific particles von, vio, go, mi, and guio are likewise used, as in Goxisocu, “your son”; Mioxi, mice, “your feet,” “your hands”; Von cuni, “your kingdom,” etc. […] The derivative or the primitive pronoun is itself honorable or low; it is honorable when it is used for high and middle ranked people, and it is low [is] when it refers to the lowest ranking people, for whom we use it because we despise them] (Rodrigues, 1604–1608, p. 67v, our translation).

Interestingly, Rodrigues did not speak of ‘higher’ personal pronouns of the second or the third person. Maybe he realized that, like today, […] the fundamental rule in Japanese is that a speaker cannot use a PERSONAL PRONOUN to refer to a person who is older or superior than the speaker. On the other hand, when the referent is younger or inferior than the speaker, a PERSONAL PRONOUN can be used (Mogi, 2002, p. 16).

The solution presented by Collado is mutatis mutandis the same, but he includes the suffix “-sama” as an equivalent to the pronoun, as referred earlier: Multæ sunt particulæ, quæ constituunt pronomen secundæ personæ secundum differentiam personarum, quæ vel nullum vel aliqualem, aut mediocrem, magnum, aut maximum merentur honorem & reuerentiam: ad loquendum enim cum inferiori, sunt tres particulæ quæ faciunt pronomen tu: scilicet, váre, vonòre, sòchi, si autem illis superaddatur, me, vel,_mẽgá, & dicatur, váremè, vel, váremẽgá, personam cum qua, loquimur amplius deiicimus. Si autem loquamur cum æqualibus vel aliquantulum inferioribus, vtemur vna ex tribus particulis videlicet, sònata, sòno fò, váre sama. Si vero sit persona superior vel omnino æqualis cum qua vrbane debemus loqui vtemur vna ex septem particulis scilicet, cònatá, qixò, qifó, gòfen, qĩden, cònatá sama, sònata sáma. Si autem loquamur cum personis in dignitatibus constitutis, nomen dignitatis, si illi super addatur particula, sama, supplet vicem pronominis: v.g. Padre samã gozare, veniat vestra paternitas (Collado, 1632, p. 14). [There are many particles that form the second person pronoun. They are differentiated to indicate those persons deserving no honor and respect, deserving some, moderate, great, or maximal honor and respect. In speaking to inferiors there are three particles used for ‘you’; vare, vonore, and sochi. If me or mega is added as in vareme or varemega, it means we very much despise the person being spoken to. If we speak to people who are on our own level, or just a little inferior, we use one of the three particles sonata, sonofo, or varesama. If we speak to a superior person, or someone on an equal level but with whom we must speak elegantly, we use one of the seven particles conata, qixo, qifo, gofen, qiden, conatasama, and sonatasama. When speaking to persons of high rank, if we place the name of their office before sama, it serves as a pronoun; e.g., Padresama gozare ‘will the Father come] (Collado, 1975, p. 119).

HONORIFIC AND HUMBLE VERBS Rodrigues also presents some honorific and humble verbs, according to their specific meaning without the addition of any suffix or particle: De alguns verbos honrados de sua natureza sem particula, e de outros humildes. Tem esta lingoa alguns verbos que de sua natureza encluem em si certo grao de honra sem particula honoratiua, os quais seruem soomente pera segundas, e terceiras pessoas honradas.

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Outros verbos ha que tem certo grao de cortesia, e humildade dos quais usam inferiores respeito de superiores, estes honram a pessoa com quem, ou dis-se de quem se fala por elles, e humilham a pessoa sobre quem cayem os tais verbos, ou que delles usa. [Of some honorific verbs, their nature without particle and other humble verbs. This language has some verbs that, by their nature, include in themselves a certain degree of honor without an honorific particle. They serve only for the second and third person forms for honorable persons. There are other verbs that have a certain degree of politeness and humility with which inferiors demonstrate respect to their superiors. These (verbs) honor the person with whom one talks, and humbles the person who uses them] (Rodrigues, 1604-1608, p. 164v, our translation).

Collado says explicitly that the speaker had to choose carefully the correct verb according to the honor and importance of the hearer: […] unde ad hoc debemus aduertere quando loquimur, ut notemus de quo loquimur, & coram quibus, ut cui honorem, honorem debitum in modo loquendi tribuamus (Collado, 1632, p. 20). [Therefore when speaking one must be careful about what one says, or in front of whom one speaks, so as to give each person the honor he deserves] (Collado, 1975, p. 125).

As it was demonstrated by Takizawa (1993, p. 175), “Japanese has verbs of respect and humbleness. Both Rodriguez and Collado devote a section to these, but we find only lists and simple explanations of those verbs in those sections”. Collado also shows that various auxiliary verbs are fundamentals to show the politeness and the humbleness of the speaker15: Radices omnium verborum cuiuscumque sint coniugationis, possunt adhuc extrahi & deduci ad alias coniugationes si illis superaddantur particulæ honoris, secundum literas, in quibus praedictæ particulæ honoris finiuntur, particulæ vero sunt maraxi, uru, ari, u, saxerare uru, xerare uru, nasare uru, saxemaxi u, tamai ó, rare, re (Collado, 1632, p. 39). [The root of any verb of whatever conjugation can be taken from its conjugation and changed to another conjugation by adding one of the particles of honor (honor). The resulting form will belong to the conjugation determined by the final letter of the particle. These particles are: maraxi, uru, ari, u, saxerare, uru, xerare, uru, nasare, uru, saxemaxi, u, tamai, ó, rare and re] (Collado, 1975, p. 145).

Takizawa (1993, p. 175) concludes that “[…] it is obvious that Collado regards an auxiliary verb with its own conjugations as a particle. (This is also true of Rodriguez). The form used before these ‘particles’ is the root in Collado’s analysis”.

CONCLUSION The first metalinguistic text published in Japan was the abridged version of the Latin grammar book (Amakusa 1594) of Manuel Álvares S.J. Despite presenting several linguistic innovations compared with the editio princeps of its ars minor (Lisbon 1573), none is related to the description of Japanese honorifics and forms of address. In the following years, the Jesuits published three collective dictionaries: a Latin-Portuguese-Japanese dictionary (Jesuits, 1595), a Chinese-Japanese dictionary (Jesuits, 1598) and a Portuguese-Japanese dictionary (Jesuits, 1603-1604). In both first, we did not find any particular expression related to the honorifics or forms of address. The last one has, for the first time, expressions such as ‘particula de honra’ [honorific particle] and ‘verbo honrado’ [honored verb], although, there are only a few. However, 15

For the analysis of the auxiliary verbs which express respect, humbleness, and politeness in Collado’s grammar, see Takizawa (1993, p. 175-177, 247-248).

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the truly pioneering works are three published Japanese grammars, the large grammar (Nagasaki 1604-1608) and its abridged version (Macau 1620) by João Rodrigues Tçuzu, S.J., and by Diego Collado, O.P. (Rome 1632). The João Rodrigues’s large grammar is a great source for the study of almost all aspects of Japanese language and culture during the end of the 16th century and the early 17th century, being considered the greatest grammatical study of Japanese made during the Christian Century. During the 17th century there was only one other Japanese grammar, the “Ars Grammaticæ Iaponicæ Linguæ” (Rome 1632), written by Diego Collado, O.P., and printed by the Sacra Congregatio de Propaganda Fide, which follows closely Rodrigues’ grammars. Summing up, Rodrigues was one of the most original grammarians and deserves to be classified as the Father of the Japanese linguistics studies, as Boxer (1950) did, and one of the five best Jesuit grammarians from whole colonial period, as Zwartjes (2011) stated. He presented many linguistic innovations and created a new metalanguage derived from his knowledge of Japanese society, mainly from Kyoto, and classical Japanese literature, paying special attention to how social relationships between the interlocutors worked in oral and written speech. He described many honorific and humble particles, pronouns, verbs and other forms of address, ways of reverence or courtesy, and politeness titles, not only in oral language but also in different writing styles, among men and also between women, such as, for instance, the ‘particle’ (suffix) “-goien”, which was the equivalent of the men’s ‘particle’ (suffix) “-sama”. In spite of having some considerable differences, Collado showed also concerns with the pragmatic working of Japanese ‘urbanitas’ [politeness] and many honorific particles. Besides other important linguistic contributions, Rodrigues and Collado described what nowadays has been called as pragmatics or, in Geoffrey Leech designation, pragmalinguistics of Japanese. Rodrigues was indeed the first to analyze deeply how the Politeness Principle of Japanese worked and what is designated currently by Keigo, the honorific language of Japanese, or, in academic terms, Taigū Hyōgen, the treatment expressions.

ACKNOWLEDGEMENTS We would like to dedicate this research to Father Jaime Nuno Cepeda Coelho, S.J. (b. 1936), for his contrastive linguistic studies of Japanese and Portuguese and his notable Japanese-Portuguese dictionary. We also would like to acknowledge the two anonymous referees whose valuable remarks we have tried to implement in the final version of this paper. Research project funded by the Portuguese Foundation for Science and Technology (FCT), under the Center for the Studies in Letters (CEL), with the reference nr. UID/LIN/00707/2016. REFERENCES ÁLVARES, Manuel. De institutione grammatica libri tres. Coniugationibus accessit interpretatio Iapponica. Amakusa: Collegio Amacusensis Societatis Iesu, 1594. ÁLVARES, Manuel. De institutione grammatica libri tres. Lisbon: Ioannes Barrerius, 1573. ÁLVARES, Manuel. De institutione grammatica libri tres. Lisbon: Ioannes Barrerius, 1572. ASSUNÇÃO, Carlos; TOYOSHIMA, Masayuki. Introduction. In: ASSUNÇÃO, Carlos; TOYOSHIMA, Masayuki (Ed.). Emmanuelis Aluari e Societate Iesu de Institutione Grammatica Libri Tres. Coniugationibus accessit interpretatio Iapponica. In collegio Amacusensi Societatis Iesu cum facultate superiorum. Anno MDXCIIII. Tokio: Yagi Bookstore, 2012. p. 1-46. BAE, Eun Mi. La categoría de los ‘adverbios pronominales’ en el arte de la lengua japona (1738) de Melchor Oyanguren de Santa Inés. In: ZWARTJES, Otto; HOVDHAUGEN, Even (Ed.). Missionary linguistics/Lingüística misionera: selected papers from the first International Conference on Missionary Linguistics, Oslo, 13-16 March 2003. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 2004. p. 161-177. (Studies in the History of the Language Sciences, 106).

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Nota de pesquisa



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Resultados preliminares da pesquisa no sambaqui sob rocha Casa de Pedra, São Francisco do Sul, Santa Catarina, Brasil Preliminary report on research of the Casa de Pedra shell mound, São Francisco do Sul, Santa Catarina, Brazil Dione da Rocha BandeiraI, Maria Cristina AlvesI, Graciele Tules de AlmeidaI, Júlio Cesar de SáI, Jéssica FerreiraI, Celso Voos VieiraI, Vitor Marilone Cidral da Costa do AmaralI, Magda Carrion BartzI, João Carlos Ferreira de Melo Jr.I I

Universidade da Região de Joinville. Joinville, Santa Catarina, Brasil

Resumo: A baía da Babitonga possui um patrimônio arqueológico riquíssimo, constituído por um conjunto numeroso de sambaquis, relacionados a pescadores-caçadores-coletores pré-coloniais. O projeto em desenvolvimento volta-se para um sambaqui localizado sob uma gruta no litoral leste de São Francisco do Sul, Santa Catarina, Brasil: o sambaqui sob rocha Casa de Pedra. O sítio apresenta camada arqueológica de 38 cm de espessura e área de 27 m², e vem sendo escavado desde 2015, com rebaixamento em níveis artificiais de 5 cm de profundidade, em 30 setores de 1 x 1 m. A matriz é composta predominantemente por fragmentos ósseos de ictiofauna e por material conquiológico. Foram encontrados ossos humanos esparsos, alguns queimados, nas primeiras camadas. Osso humano e conchas a 3 cm e 20-25 cm de profundidade apresentaram datação de 4.460 ± 30 e 5.470 ± 30 anos AP, respectivamente. Porém, datações do sedimento da base do sítio apresentaram 4.330 ± 700 e 5.670 ± 850 anos AP, levando-nos a questionar a origem da matriz arqueológica e a sua posição em contexto temporal. Nas paredes internas da gruta, verificaram-se pinturas rupestres, que, após resultados mais concretos, poderão ser o primeiro registro no estado deste tipo de manifestação associada a sambaquis. Palavras-chave: Patrimônio cultural. Sambaqui sob rocha. Baía da Babitonga. Abstract: Babitonga Bay has a rich archaeological heritage, with a large number of sambaquis (shell mounds) related to pre-colonial fishermen-hunter-gatherers (±160 sites). The current project focuses on a sambaqui located in a cave on the east coast of São Francisco do Sul in the state of Santa Catarina known as the ‘Casa de Pedra’ mound. The site contains an archaeological matrix 38 cm thick and​​27 m² in area; excavation has been underway since 2015, in 5 cm deep levels over 30 1 x 1 m sectors to obtain samples for archaeological analysis. The matrix is predominantly composed of fish bone fragments and shells. Some calcined human bones were found scattered in the upper layers. Shells and human bones found at 3 cm and 20-25 cm depth were dated at approximately 4.460 ± 30 and 5.470 ± 30 years BP. However, sediment dating below the site indicated 4.330 ± 700 and 5.670 ± 850 years BP, leading us to question the origin of the archaeological matrix and its position in the temporal context. Some paintings were seen on the walls of the cave, which after further study may prove to be the first paintings of this type in the state and perhaps the first in Brazil associated with sambaquis. Keywords: Cultural heritage. Shell mound sheltered by rock. Babitonga Bay.

BANDEIRA, Dione da Rocha; ALVES, Maria Cristina; ALMEIDA, Graciele Tules de; SÁ, Júlio Cesar de; FERREIRA, Jéssica; VIEIRA, Celso Voos; COSTA DO AMARAL, Vitor Marilone Cidral da; BARTZ, Magda Carrion; MELO JR., João Carlos Ferreira de. Resultados preliminares da pesquisa no sambaqui sob rocha Casa de Pedra, São Francisco do Sul, Santa Catarina, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 13, n. 1, p. 207-225, jan.-abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222018000100012. Autora para correspondência: Dione da Rocha Bandeira. Universidade da Região de Joinville. Rua Paulo Malschitzki, 10. Joinville, SC, Brasil. CEP 89204-020 (dione.rbandeira@gmail.com). ORCID: http://orcid.org/0000-0002-5878-769X. Recebido em 03/08/2017 Aprovado em 31/10/2017

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Resultados preliminares da pesquisa no sambaqui sob rocha Casa de Pedra, São Francisco do Sul, Santa Catarina, Brasil

O CONTEXTO ARQUEOLÓGICO NA BAÍA DA BABITONGA A baía da Babitonga está localizada ao norte da planície costeira de Santa Catarina, possuindo como limite, na porção noroeste, a unidade geomorfológica Serra do Mar e, a sudeste, a ilha de São Francisco do Sul, formando um complexo estuarino, dividido em três grandes segmentos: o canal do Linguado, ao sul; o rio Palmital, ao norte; e o corpo da baía, ao centro do complexo. Compreendendo uma área de, aproximadamente, 160 km², o estuário é coberto pelas florestas de terras baixas, por restinga e pela última grande formação de manguezal do hemisfério sul (Kilca et al., 2011). Tais características resultam na sua rica diversidade biológica, sendo considerado um dos ecossistemas mais importantes, em razão das funções ecológicas e econômicas que desempenha e das inúmeras espécies que abriga (Cremer, 2006; Fava, 2016). Provavelmente, devido a estes recursos ambientais, tem-se registro de populações humanas na região desde 6.000 anos AP (Sá, 2017). Há mais 170 sítios arqueológicos pré-coloniais na baía da Babitonga, distribuídos desde a planície litorânea até a encosta da serra do Mar, entre os quais se compreendem sítios de pontas, oficinas líticas de polimento, sambaquis com cerâmica, sambaqui fluvial, sítio Guarani, sítios Jê, estruturas subterrâneas, sambaquis a céu aberto e um único sambaqui sob rocha. Desse conjunto, predominam os sambaquis, cujos sítios são bem conhecidos desde o século XIX tanto pelos moradores locais, que os utilizavam para produção de cal e também como material para aterros, como por pesquisadores, empenhados na discussão sobre a forma e a origem de sua construção, alimentação, etnicidade, além de suas relações com o paleoambiente (Steinen, 1894; Neves, 1988; Figuti; Klökler, 1996; Bandeira, 2000; Wesolowski, 2000; MASJ, 2010; Maciel; Bandeira, 2015; Sá, 2017). Entretanto, somente para cerca de 10% dos sambaquis conhecidos na baía da Babitonga há alguma informação oriunda de pesquisas com escavação cujo enfoque está centrado em bioarqueologia e zooarqueologia. Há poucos estudos voltados para o

meio ambiente e para o entorno dos sítios que apontem questões relacionadas ao contexto simbólico e social deles. No que se refere a publicações, Bandeira (2000) compilou mais de 60 títulos. Em 2016, passados 16 anos desta pesquisa, é provável que este número tenha duplicado. Infelizmente, aproximadamente 50% dos sambaquis da baía da Babitonga já se encontram parcialmente destruídos, dificultando a realização de pesquisas sobre eles.

OS SAMBAQUIS DA BAÍA DA BABITONGA: COM E SEM CERÂMICA JÊ O litoral norte de Santa Catarina sofreu diferentes ocupações espaço-temporais. Um dos primeiros grupos humanos a viver na baía da Babitonga foi de pescadores-coletorescaçadores, conhecidos por sambaquianos, que tinham como hábito construir montes, alguns monumentais, constituídos predominantemente de conchas e areia, sendo que a intencionalidade para a sua estruturação é incerta, podendo estar relacionada à drenagem – plataformas em áreas alagáveis – e ao controle visual do território (ScheelYbert et al., 2009; Angulo et al., 2006). Considerando-se, entretanto, o fato de haver acumulações de tamanhos muito variados em locais elevados ou secos, bem como os vestígios encontrados neles, as construções não deveriam ter somente um sentido funcional, mas também simbólico, possivelmente ligado à identidade destes grupos, à demonstração de status ou de poder (Gaspar, 2000), ou, ainda, poderiam servir como locais de cerimônias fúnebres (Klökler, 2016; Villagran, 2013). Segundo Barbosa (1999, p. 205), assim como o local para assentamento, a construção do espaço é uma escolha cultural, ou seja, “[...] estes grupos tinham sua própria maneira (culturalmente determinada) de pensar e ordenar o espaço tanto na escala micro (espaço residencial) quanto na escala macroespacial (implantação deste espaço residencial no ambiente)”. Tais povos possuíam uma cultura rica em conhecimentos tecnológicos para o trabalho com rocha, concha e osso, além de um vasto conhecimento sobre os ambientes da planície costeira e os seus recursos, permitindo, em muitos casos,

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um estabelecimento sedentário (Tiburtius, 1996; Neves, 1988; Afonso; De Blasis, 1994; Oliveira, 2000; Wesolowski, 2000; Bandeira, 2004). Estudos reunidos por Villagran (2013) indicam que a presença dos sambaquianos na região se deu por via exclusivamente litorânea, partindo de São Paulo. Porém, os vestígios que viriam a contribuir com as hipóteses propostas pela autora estariam, hoje, submersos, devido às variações do Nível Relativo do Mar (NRM) durante o final do Pleistoceno. No entanto, as investigações paleogenéticas de Neves (1988) e de Okumura (2007), que indicaram proximidade entre populações da baía da Babitonga e do litoral sul do Paraná e ausência de relações entre os sambaquianos e os povos do planalto, apresentam evidências que favorecem a hipótese proposta por Villagran. Além disso, as diferenças culturais entre os grupos ceramistas do planalto versus os caçadorescoletores-pescadores do litoral também reforçam as reflexões propostas por esta autora (Tenório, 2004). Pesquisas zooarqueológicas realizadas em sítios como Enseada I (Bandeira, 1992) e Espinheiros II (Figuti; Klökler, 1996) indicaram que a pesca foi o principal recurso de subsistência desde as primeiras ocupações (Scheel-Ybert et al., 2009; De Masi, 2001; Kipnis; Scheel-Ybert, 2005; Bandeira, 1992). Entretanto, estudos a respeito dos restos ictiológicos apontam uma variação nas espécies de peixes mais capturadas em alguns sítios pesquisados (Fossile, 2013; Bandeira, 1992). Sambaquis junto ao mar aberto (dos sítios Enseada I e Bupeva II) apresentam maior frequência de peixe-espada (Trichiurus lepturus) e de roncador (Conodon nobilis) (Bandeira, 1992, 2004); em sítios no fundo da baía, em meio ao manguezal (sambaqui Espinheiros II), predominam a corvina (Micropogonias furnieri), o canguá/ cangoá (Stellifer spp.) e a pescada-branca (Cynoscion leiarchus) (Figuti; Klökler, 1996); enquanto na foz do rio Cubatão (sambaqui Cubatão I), na porção norte da baía da Babitonga, predominam, nas camadas superficiais, o bagre (Genidens barbus), o baiacu (Lagocephalus laevigatus) e a corvina (Fossile, 2013).

A causa do desaparecimento dos sambaquianos, por volta de 1.000 AP, é um dos problemas não resolvidos (De Blasis; Gaspar, 2008-2009). De acordo com Toi (2012, p. 15), “[...] a partir de 2.000 AP a atividade construtiva desses sítios começou a diminuir até cessar, modificando seu perfil predominante de moluscos para peixes e restos de crustáceos”. Lima (1999-2000), Souza et al. (2010) e Lopes et al. (2016) propõem que o motivo que levou ao declínio da coleta da fauna marinha pode estar ligado ao esgotamento destes organismos, devido à sobre-exploração pesqueira. Entretanto, Scheel-Ybert et al. (2009 apud Toi, 2012, p. 15) apresentam uma outra possibilidade relacionada às questões paleoambientais: No Brasil foram registradas oscilações climáticas consideráveis nos últimos 10.000 anos, passando por temperaturas elevadas [a] baixas [com] intervalos de condições secas e úmidas (Suguio, 2008 apud Toi, 2012, p. 15). [...] Essas mudanças climáticas e fluviais do Brasil podem ter alterado consideravelmente a distribuição das espécies de moluscos menos tolerantes ao longo do Holoceno, face à criação e destruição de habitats provocada por esses eventos.

Segundo De Blasis e Gaspar (2008-2009), o seu desaparecimento pode ter ocorrido com a chegada dos povos ceramistas: em alguns sambaquis da região há registros de cerâmica pré-colonial nas camadas superficiais. Ainda, as análises paleogenéticas, em alguns sepultamentos presentes nestes sítios da baía da Babitonga, apontaram uma ocupação associada a ancestrais de grupos indígenas de língua Jê, denominados Tradição Taquara-Itararé (Neves, 1988). A partir da análise de isótopos de estrôncio, ressalta-se a presença de indivíduos que tinham a sua origem no interior do estado de Santa Catarina (Bastos, 2009). Outro indício de contato com o interior é a presença de amido de pinhão em cálculos dentários de indivíduos pertencentes a alguns sambaquis da baía da Babitonga (Wesolowski, 2007). Estes povos ceramistas que ocuparam a baía da Babitonga e tiveram contato com os sambaquianos reúnem

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Resultados preliminares da pesquisa no sambaqui sob rocha Casa de Pedra, São Francisco do Sul, Santa Catarina, Brasil

as três antigas tradições Taquara (Rio Grande do Sul), Itararé (São Paulo e Paraná) e Casa de Pedra (Paraná e Santa Catarina), comumente encontradas no planalto, em sítios rasos (nos quais se identifica cerâmica típica), estruturas subterrâneas, abrigos-sob-rocha, sítios de estruturas circulares em alto relevo, sítios líticos, montículos funerários e muros de terra (Corteletti, 2012; Copé, 2015). O território onde se encontram os sítios vinculados a esses grupos abrangem áreas que vão desde o litoral atlântico, incluindo os ambientes da planície litorânea e áreas de restinga, como também vales e a encosta da serra, o planalto e o campo de araucárias, alcançando os vales da floresta subtropical até o rio Paraná (o que inclui, no Brasil, os estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e, na Argentina, a região de Misiones) (Noelli, 2004; Corteletti, 2012). Ao considerar a distribuição espacial, as datações dos sítios na baía da Babitonga e as informações sobre estas sociedades, motiva-nos a ideia de que não existiam grupos vivendo em áreas isoladas que foram sucedidos por outros ao longo do tempo. A realidade é mais complexa: grupos relacionavam-se de forma amistosa ou hostil; alianças eram criadas; havia disputas por poder, territórios, recursos; e ocorriam constantemente deslocamentos dos grupos no território, mostrando grande interferência cultural entre eles (Neves, 1988; Oliveira, 2000; Wesolowski, 2000; Bandeira, 2004). Buscando, portanto, propor um modelo interpretativo sobre a identidade destes grupos, o modo como eles se instalaram na região e as relações que estabeleceram entre si e com o ambiente, está em andamento o projeto “Cultura material e patrimônio arqueológico pré-colonial da costa leste da ilha de São Francisco do Sul – SC – contribuição para uma arqueologia da paisagem costeira e estudos de etnicidade (costa leste)”1, sob coordenação de Dione R. Bandeira, o qual

compreende 30 km desta costa e vem realizando sondagens em um conjunto de 32 sambaquis, localizados em ambientes de dunas e antedunas, com vegetação de restinga, relevo ondulado e solo extremamente arenoso, bem como em floresta entremeada por banhados e bordas de manguezal. As datações já realizadas antes deste projeto indicavam o início da ocupação dessa área por volta 4.000 anos AP. Porém, datações realizadas pelo projeto indicam que a ocupação pré-colonial no litoral leste da baía da Babitonga iniciou por volta de 6.000 AP, conforme é possível verificar no Apêndice. Entre os sambaquis mais antigos, destaca-se o Casa de Pedra, que, por ser o único sob rocha na baía da Babitonga, foi escolhido para escavação, tendo em vista a obtenção de mais informações sobre este tipo de sítio e a sua relação com os demais.

SAMBAQUIS SOB ROCHA NO BRASIL E NO MUNDO Com base em um levantamento de sítios arqueológicos do tipo sambaqui em abrigos no litoral brasileiro que pudessem ser similares ao sambaqui sob rocha Casa de Pedra, constatou-que há apenas dois sítios registrados até o momento: um deles foi identificado por Souza (1977), no Rio de Janeiro, e o outro por Bendazzoli et al. (2009), em Ilhabela, São Paulo. Este último, que apresentou maiores semelhanças em relação ao sítio Casa de Pedra justamente por estar localizado em uma ilha, revelou a presença de um pequeno sambaqui, com ampla camada conchífera e fragmentos de ossos faunísticos na parte interna do abrigo, sobreposta por uma camada arqueológica contendo vários fragmentos cerâmicos e artefatos líticos polidos, que se estendia até a área externa do abrigo. Sobre as prospecções no sambaqui, Bendazzoli et al. (2009) discorrem que não foram encontradas estruturas de combustão, carvões,

O projeto possui autorização de pesquisa fornecida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) (portaria 52/2014) e pela Fundação do Meio Ambiente (FATMA), sendo financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Santa Catarina (FAPESC) e pelo Fundo de Apoio à Pesquisa da Universidade da Região de Joinville (FAP/UNIVILLE).

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A presença de abrigos sob rocha com conchas pode ser rara no Brasil, especialmente quando se trata dos sambaquianos. Esta característica é, contudo, comum em outras culturas no exterior desde, aproximadamente, 100 mil anos.

artefatos ou qualquer evidência de ocupação por longos períodos. Mas, na extremidade oeste do abrigo, essas autoras registraram a presença de um sepultamento primário simples, próximo à superfície, posicionado em decúbito lateral direito. Elas sugerem duas ocupações para o abrigo: uma mais antiga, relacionada à ocupação sambaquiana, por volta de 1920 ± 40 AP, e outra mais recente (460 ± 80 AP), marcada pela presença da cerâmica. A presença de sambaquis sob rocha não é algo restrito ao Brasil, sendo possível destacar, entre outros, os registros de shell-middens em rock-shelters, no monte Jaizkibel (Gipuzkoa, Espanha), onde pesquisadores encontraram um grande depósito funerário sob numeroso material conchífero, com vários restos de crustáceos e de peixes (Arrizabalaga et al., 2015); e outros 35 abrigos sob rocha com presença de conchas localizados na porção norte deste país, conforme levantamentos feitos por Ortiz et al. (2009). Nos EUA, há registros de shell-middens em cavernas datadas por volta de 10.000 e 8.000 anos AP, ao longo do litoral da Califórnia (Erlandson et al., 2008). Na Oceania, destaca-se a caverna Ling Bua, leste da Indonésia, onde é registrada a presença de conchas na camada superficial do sítio (datado por volta de 17.000 anos AP), associada à espécie Homo sapiens, visto que nas camadas mais profundas, datadas em aproximadamente 95.000 anos AP, caracterizadas pela presença da espécie H. flouesiensis, não há ocorrência de moluscos (Szabó; Amesbury, 2011). No litoral norte do continente africano, há registro de sítio arqueológico com camada conchífera em abrigo sob rocha localizado no estreito de Gibraltar (Ramos et al., 2011). Em destaque, no entanto, tem-se, ao sul deste continente, o abrigo sob rocha com conchas mais antigo já registrado: a caverna de Blombos, com datação de 75.000 anos AP, caracterizada por uma cultura com habilidade na produção artefatual em rocha, concha e osso (Langejans et al., 2011; Henshilwood et al., 2011). Ressalta-se que, na África, entre os períodos marcados pelo Late Stone Age a Middle Stone Age, a ocupação em abrigos sob rocha era comum (Ki-Zerbo, 2010), entretanto há poucos registros da presença de um ‘tapete’ de conchas neles.

O SÍTIO ARQUEOLÓGICO CASA DE PEDRA O sítio Casa de Pedra foi cadastrado por Alves (2003), sendo o único sambaqui sob rocha registrado em Santa Catarina. O abrigo (Datum Sirgas 2000, UTM: 742954(e)-7084559(n)), situado na localidade Praia Grande, nas mediações do Parque Estadual do Acaraí, a leste da ilha de São Francisco do Sul, está, na atualidade e aproximadamente, a 600 metros da linha de praia, a leste, e a 2.000 m do rio Acaraí, a oeste. Localizada na base de uma elevação que faz parte do embasamento cristalino da ilha, a gruta é fruto da formação de rochas (gnaisse) em processo de acomodação, resultantes do contínuo intemperismo. O sítio arqueológico Casa de Pedra, erguido sobre uma base arenosa de depósitos marinhos holocênicos (Figura 1) (Possamai et al., 2010; Sá, 2017), apresenta camada arqueológica com 27 m² de área e 38 cm de espessura, constituída predominantemente por conchas de moluscos bivalves, que ocupa todo o interior da gruta (Sá, 2017). O sambaqui está situado em solo extremamente ácido, com caráter pouco oligotrófico e porte hídrico satisfatório, fator-chave para a composição florística no entorno do sítio arqueológico – transição entre ambiente de floresta ombrófila e restinga (Melo Jr.; Boeger, 2015). Conforme a classificação climática de Köppen, Santa Catarina enquadra-se no clima do grupo C, chamado de mesotérmico, uma vez que as temperaturas do mês mais frio estão entre 18 e 3 °C, evidenciando as quatro estações do ano (Pandolfo et al., 2002). Os meses mais secos do ano são agosto e junho, com precipitações de, respectivamente, 92,2 e 96,4 mm, e os mais úmidos são fevereiro e janeiro, com precipitação de, respectivamente, 281 e 248,1 mm (EPAGRI; CLIMERH, 2000).

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Resultados preliminares da pesquisa no sambaqui sob rocha Casa de Pedra, São Francisco do Sul, Santa Catarina, Brasil

Figura 1. Mapa com a localização dos sítios na faixa leste da ilha de São Francisco. Fonte: Sá (2017).

Devido ao relevo, à posição da gruta e à sua localização em meio à vegetação densa, a sua área interna não possui boa iluminação natural durante grande parte do dia, sofrendo variações ao longo do ano, sendo que, em razão de a entrada principal estar voltada para leste, a iluminação natural é favorecida ao amanhecer e nos períodos de solstícios. À frente do abrigo, atualmente, há um curso hídrico temporário que, em períodos de chuva (verão),

alcança a entrada do sítio, mas não inunda o seu interior, devido à elevação interna da matriz arqueológica (Figura 2). Embora esteja em bom estado de conservação, a camada superficial do sítio apresenta indícios da perturbação humana recente, tais como fogueiras na superfície, cacos de vidros, alguns fragmentos de plásticos, resultantes de acampamentos temporários por caçadores e/ou pescadores locais que frequentam a região.

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Figura 2. Imagem ilustrativa apresentando o levantamento topográfico hipsométrico do sambaqui sob rocha Casa de Pedra. Quadros em vermelho representam a delimitação dos setores escavados na 1ª etapa de escavação do sambaqui. Fonte: Sá (2017).

O sítio Casa de Pedra vem sendo escavado desde 2015, com rebaixamento em níveis artificiais de 5 cm de profundidade em 30 setores, com 1 x 1 m (Figura 3), considerando-se a metodologia de amostragens adaptada de Scheel-Ybert et al. (2005-2006, 2009) e de Gaspar e Souza (2013), com peneiramento a seco (em peneira com malha 0,2 cm). Esta etapa é seguida de peneiramento molhado (em peneira com malha 0,05 cm), além de flotação de 10 litros do material coletado no quadrante nordeste de cada setor e camada do sítio para análises zooarqueológicas e antracológicas.

Dois quadrantes selecionados foram prospectados até a base, objetivando o reconhecimento da estratigrafia, da granulometria e da idade do material arqueológico em radiocarbono convencional2 AMS e do substrato geológico, com a coleta de sedimentos sotoposta à matriz arqueológica pelo método da Luminescência Oticamente Estimulada (LOE), utilizando o protocolo Single-Aliquot Regenerative-Dose (SAR) (Murray; Wintle, 2000; Wintle; Murray, 2006), com dez alíquotas3 que, segundo Guedes et al. (2011), mostram-se como o mais adequado para análise, no Brasil, de areias do Quaternário.

Amostras encaminhadas para o Laboratório Beta Analytic, sediado em Miami, Flórida (EUA). Amostras encaminhadas para o Laboratório Datação: Datação, Comércio e Prestação de Serviços LTDA, sediado em São Paulo, Brasil.

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Figura 3. Imagem ilustrativa apresentando a superfície do sambaqui sob rocha Casa de Pedra, com demarcação dos setores. Os quadros em azul apresentam a localização dos quadrantes escavados até a base. Foto: Maria Cristina Alves (2016).

Outro aspecto que tornou este sítio peculiar foi a presença de pinturas rupestres nas paredes interiores do afloramento rochoso, feitas com algum corante de tonalidade vermelha, registradas durante as intervenções arqueológicas no sítio (Figuras 4A a 4C). No entanto, não vamos nos ocupar aqui deste tema, devido à insuficiência de dados. Há um projeto específico já em andamento sobre este assunto. Visando aproveitar o máximo de informações possíveis durante as escavações do sítio Casa de Pedra, visto a sua peculiaridade e por estar sendo totalmente decapado, durante estes três anos já foram rebaixados 15 cm de profundidade. O sítio apresentou fragmentos

ósseos humanos dispersos e queimados desde a superfície do sambaqui, juntamente com presença abundante de carvão. No entanto, não houve presença de sepultamento. Apresentou também composição abundante de fragmentos ósseos de ictiofauna, quelas de crustáceos e material conquiológico, no qual predominam os moluscos bivalves berbigão (Anomalocardia flexuosa), lambreta (Phacoides pectinatus) e ostras (representantes da família Ostreidae). Estas espécies não estão igualmente distribuídas na extensão do sítio, variando em diversidade, conforme a sua localização na matriz arqueológica. Das análises zooarqueológicas preliminares, o quadrante D4-NE, localizado próximo à entrada do sítio,

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Figura 4. Pinturas rupestres no sambaqui Casa de Pedra: A) pintura situada na parede interna, com coloração vermelha e amarelada; B) pintura rupestre em linhas cruzadas; C) pintura rupestre em linhas paralelas. Fotos: acervo do Projeto Costa Leste (2016).

foi prospectado até a base, e apresentou, em relação à composição malacológica, abundância considerável de A. flexuosa e de representantes da família Ostreidae em todas as suas camadas, enquanto que P. pectinatus foi encontrado a partir de 20 cm de profundidade, juntamente com raros indivíduos de Aruá-do-mangue (Neritina virginea) e outros gastrópodes marinhos (Cerithium atratum, Bulla striata, Phrontis vibex e Siratus senegalensis). Em relação à ictiofauna presente, foram identificadas, a partir dos fragmentos ósseos e/ou otólitos, as espécies baiacu (Sphoeroides spp. - Tetraodontidae), bagre (Genidens spp. - Ariidae), pescada (Cynoscion spp. Sciaenidae) e miraguaia (Pogonias spp. - Scianidae). Foram identificadas também quelas de crustáceos decápodes

da ordem Branchyura e dentes de mamíferos da ordem Rodentia. A maioria do material osteológico analisado encontrava-se queimada. No entanto, os dados ainda são insuficientes para apresentar considerações acerca da dieta destes povos, assim como as suas relações com o ambiente e a sustentabilidade. É possível, todavia, afirmar que a matriz arqueológica é predominantemente composta por uma diversidade faunística proveniente dos ambientes marinho e estuarino. Para as datações de radiocarbono convencionais, foram selecionados um fragmento ósseo da mão de um humano, encontrado na superfície do sítio por volta de 3 cm de profundidade, e material conquiológico, presente a 25 cm abaixo da superfície, resultando,

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respectivamente, em 4.460 ± 30 e 5.470 ± 30 anos AP. Porém, sedimentos coletados a 20 cm (amostra 4551) e a 50 cm (amostra 4552) abaixo da base do sambaqui foram datados, respectivamente, em 4.330 ± 700 e 5.670 ± 850 anos AP. Conforme descrito por Vieira (2015), a análise da dispersão das doses acumuladas pode auxiliar na interpretação das idades, com a indicação de períodos de retrabalhamento dos sedimentos, seguido de ciclos de estabilização e de reativação. Conforme observado na Figura 5, a amostra mais superficial (4551) possui maior desvio-padrão quando comparada à amostra mais profunda (4552). Essa tendência remete a processos de retrabalhamento dos sedimentos superficiais provavelmente eólico, conforme apontado por Vieira (2015), no norte na ilha de São Francisco do Sul. Ressalte-se que demais autores (Zular, 2011; Vieira, 2015) realizaram igualmente datações por LOE em depósitos marinhos e eólicos, tanto do Holoceno quanto do Pleistoceno, com a utilização do protocolo SAR, e identificaram resultados e variações compatíveis com a presente pesquisa. Diante do exposto, entende-se que o substrato geológico onde o sítio se encontra inserido é caracterizado por depósitos marinhos formados durante o Holoceno, com início durante a máxima transgressão deste período, com nível relativo do mar em torno de 3,5 m acima do atual a 5.400 anos AP (Angulo et al., 2006). Após isso, ocorreu o período de declínio do nível relativo do mar e a instalação de processos eólicos, que ocasionaram o retrabalhamento dos sedimentos marinhos superficiais previamente depositados. Nesse sentido, a idade de 5.670 ± 850 anos AP da amostra 4552 é compatível com as idades marinhas identificadas por Zular (2011), na porção norte da Praia Grande. A amostra 4551 representa o retrabalhamento por agentes eólicos quando da inexistência de vegetação na região do sítio arqueológico. Estas datações indicam duas possibilidades: a) o sítio foi construído praticamente logo após a formação do solo

Figura 5. Dispersão das doses acumuladas. Imagem desenvolvida por meio do software Past 3 e elaborada por Celso Voos Vieira.

ou b) o material de um sítio mais antigo foi deslocado pelos construtores, para formar o sambaqui Casa de Pedra (Figuras 6A e 6B). Com base na datação do sítio Casa de Pedra e nos demais sítios da costa leste da ilha de São Francisco do Sul (data mais antiga de 5.950 ± 30 no sambaqui Praia Grande - Sambaqui 2 e a mais recente de 1.440 ± 30 no sambaqui Bupeva I) e também nas variações ocorridas no NRM (Angulo et al., 2006, p. 500), por volta de 6.000 anos AP os sítios (entre eles o Casa de Pedra) foram estabelecidos na parte central da face leste da ilha, conhecida como Morretes, em locais abrigados, cujo acesso foi facilitado pela lagoa do Acaraí e também pela proximidade com o mar, por onde os primeiros povos devem ter chegado (Sá, 2017), contribuindo com as hipóteses levantadas por Villagran (2013).

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Figura 6. Mapas comparativos referentes às variações do Nível Relativo do Mar (NRM) (Angulo et al., 2006), na costa leste (2016): A) variação máxima de 3,20 m a 5.500 anos AP; B) variação máxima de 3,70 m (+/- 0,50 m) a 5.500 anos AP. Fonte: Sá (2017).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Os estudos que estão sendo realizados no sambaqui sob rocha Casa de Pedra vêm trazendo novas informações a respeito da ocupação pré-colonial estabelecida na baía da Babitonga, principalmente na costa leste da ilha de São Francisco do Sul, que, até então, tinha sido alvo de poucas pesquisas arqueológicas. Este estudo apresenta um conceito de ocupação sambaquiana ainda desconhecido para a baía da Babitonga: a construção de um sambaqui dentro de uma gruta. Devido à singularidade deste sítio, novas questões foram levantadas a partir dos achados arqueológicos e das datações realizadas até o momento: a matriz arqueológica do sítio Casa de Pedra foi produzida no local ou é proveniente de outro sambaqui? Se é decorrente de uma ocupação no local, esta foi permanente ou temporária? Foi um lugar cerimonial ou de atividades cotidianas? Como se dava a organização do espaço dentro dele? A presença da pintura rupestre na gruta foi realizada pelos sambaquianos que se estabeleceram no sítio? Ou pode ter sido realizada pelos ancestrais Jê, que tinham por hábito ocupar abrigos sob rocha no planalto, já que sítios deste grupo estão presentes nas extremidades da área de pesquisa? Seria possível a ocorrência de uma cultura não identificada na baía da Babitonga, responsável pela ocupação do abrigo e pelas inscrições rupestres deixadas nas paredes da gruta? Para tentar responder estas questões, a matriz arqueológica está sendo analisada (granulometria, tafonomia, análise de fitólitos e de pólens, entre outros), bem como a coleção gerada, constituída predominantemente de remanescentes faunísticos, e a estratigrafia do sítio. Também serão realizadas novas datações de ossos humanos, de carvões e de vestígios faunísticos. Tais estudos contribuirão para compreender o paleoambiente, bem como as atividades ali realizadas pelos grupos que ocuparam a gruta, além do processo construtivo deste sítio. A continuidade da escavação deverá permitir uma visão dos diferentes espaços e de suas funções dentro do abrigo. Os dados que obtivemos indicam um local em que os caçadores-pescadores-coletores estiveram presentes,

com uma cronologia e o acúmulo de conchas que apontam o padrão sambaquiano, mas também com traços que podem remeter a outros povos que tinham como costume a ocupação de grutas e a realização de pinturas rupestres, visto que, até o momento, não se tem registro de pinturas rupestres realizadas por sambaquianos e há poucas grutas com conchas no Brasil. Não obstante estas dúvidas, o sítio Casa de Pedra está relacionado a uma das ocupações mais antigas da baía da Babitonga, e a sua localização leva-nos a pensar que a origem destes povos deve ter sido pelo leste. O sambaqui sob rocha Casa de Pedra é, sem dúvida, uma das maiores riquezas do patrimônio arqueológico regional. Seja como local de rituais, de moradia permanente ou temporária, a pesquisa neste sítio provocou novo direcionamento para a pré-história da baía da Babitonga. Estabelecer a relação dele com o conjunto de sítios da costa leste de São Francisco do Sul e da baía da Babitonga é o objetivo da pesquisa, que está ainda em fase inicial. A baía da Babitonga apresenta expressivo conjunto de sambaquis, pouco estudado, cujas idades, formas e locais de assentamentos variam muito, o que tem dificultado a compreensão dos processos de ocupação da região como um todo na pré-história. O objetivo maior do projeto é compreender a ocupação da baía da Babitonga a partir dos dados já disponíveis e dos que estamos produzindo. Deste modo, a continuidade das pesquisas faz-se necessária e deve se dar com a sequência da escavação do sítio Casa de Pedra até a sua base, com o estudo dos materiais e das amostras coletadas, bem como das pinturas.

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SCHEEL-YBERT, Rita; KLÖKLER, Daniela; GASPAR, Maria Dulce; FIGUTI, Levy. Proposta de amostragem padronizada para macrovestígios bioarqueológicos: antracologia, arqueobotânica, zooarqueologia. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, n. 15-16, p. 139-163, sem. 2005-2006. DOI: http://dx.doi. org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2006.89713. SOUZA, A. A. C. M. Pré-história de Parati. Nheengatu: Cadernos Brasileiros de Arqueologia e Indigenismo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 47-90, mar.-abr. 1977. SOUZA, Rosa C. C. L.; TRINDADE, Denise C.; DECCO, Juber de; LIMA, Tânia A.; SILVA, Edson P. Archaeozoology of marine mollusks from Sambaqui da Tarioba, Rio das Ostras, Rio de Janeiro, Brazil. Zoologia, Curitiba, v. 27, n. 3, p. 363-371, jun. 2010. DOI: http:// dx.doi.org/10.1590/S1984-46702010000300007. STEINEN, K. von den. Unter den naturvölkern Zentral-Brasiliens: Reiseschilderung und Ergebnisse der Zweiten Schingú-Expedition. Dietrich Reimer: Berlin, 1894. SUGUIO, Kenitiro. Mudanças ambientais da terra. São Paulo: Instituto Geológico, 2008. 336 p. SZABÓ, Katherine A.; AMESBURY, Judith R. Molluscs in a word of islands: the use of shellfish as food resource in the tropical island AsiaPacific Region. Quartenary International, Amsterdam, v. 239, n. 1-2, p. 8-18, July 2011. DOI: https://doi.org/10.1016/j.quaint.2011.02.033. TENÓRIO, Maria Cristina. Identidade cultural e origem dos sambaquis. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, n. 14, p. 169-178, sem. 2004. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/ issn.2448-1750.revmae.2004.89665. TIBURTIUS, G. A. E. Sambaqui de enseada. In: TIBURTIUS, G. A. E. Arquivos de Guilherme Tiburtius I. Tradução Maria Tereza Böbel. Joinville: Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville, 1996. p. 29-70.

VIEIRA, Celso Voos. Evolução paleogeográfica da planície costeira do extremo norte da ilha de São Francisco do Sul, Santa Catarina, Brasil. 2015. 322 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015. VILLAGRAN, Ximena S. O que sabemos dos grupos construtores de sambaquis? Breve revisão da arqueologia da costa sudeste do Brasil, dos primeiros sambaquis até a chegada da cerâmica Jê. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, n. 23, p. 139154, sem. 2013. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2448-1750. revmae.2013.107182. WESOLOWSKI, Veronica. Cáries, desgaste, cálculos dentários e micro-resíduos da dieta entre grupos pré-históricos do litoral norte de Santa Catarina: é possível comer amido e não ter cárie? 2007. 193 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2007. WESOLOWSKI, Veronica. A prática da horticultura entre os construtores de sambaquis e acampamentos litorâneos da baía de São Francisco, Santa Catarina: uma abordagem bio-antropológica. 2000. 156 f. Dissertação (Mestrado em Arqueologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. WINTLE, Ann G.; MURRAY, Andrew Sean. A review of quartz optically stimulated luminescence characteristics and their relevance in single-aliquot regeneration dating protocols. Radiation Measurements, Amsterdam, v. 41, n. 4, p. 369-391, Apr. 2006. DOI: https://doi.org/10.1016/j.radmeas.2005.11.001. ZULAR, André. Sedimentologia e cronologia por luminescência da Ilha de São Francisco do Sul (SC): considerações sobre a evolução holocênica de barreiras arenosas da costa sul e sudeste do Brasil. 2011. 95 f. Dissertação (Mestrado em Geoquímica e Geotectônica) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

TOI, Mayla Steiner. Análise conquiológica do Sambaqui da Rua 13: Balneário de Bombas, Bombinhas – Santa Catarina, Brasil. 2012. 62 f. Monografia (Bacharelado em Ciências Biológicas) – Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2012.

221


Resultados preliminares da pesquisa no sambaqui sob rocha Casa de Pedra, São Francisco do Sul, Santa Catarina, Brasil

Apêndice. Sambaquis estudados pelo projeto “Cultura material e patrimônio arqueológico pré-colonial da costa leste da ilha de São Francisco do Sul – SC – contribuição para uma arqueologia da paisagem costeira e estudos de etnicidade (costa leste)”, datados por radiocarbono 14 (Continua) C (Radiometric Plus e Accelerator Mass Spectrometry - AMS), pela empresa Beta Analytic Radiocarbon Dating. Sambaquis da costa leste da ilha de São Francisco

Sítio

BU VIII

Datum WGS84 – Fuso 22 sul

Material/ Laboratório Contexto/Data da Coordenada Coordenada análise E S

Análise

Datação por radiocarbono convencional

Resultados calibrados em anos AC (95%)

Resultados calibrados em anos AP (95%)

738807

7073348

Beta N. 452919

Conchas de A. flexuosa/base

Radiometric Plus

3.450 ± 30 AP

1.440-1.210 BC

3.390-3.160 AP

738813

7073353

Beta N. 452916

Conchas de A. flexuosa/topo

Radiometric Plus

3.570 ± 30 AP

1.595-1.375 BC

3.545-3.325 AP

5.470 ± 30 AP

3.960-3.745 BC

5.910-5.695 AP

Setor D4

Setor D4

Beta N. 418377

Conchas de A. flexuosa/base, Radiometric entre 20-25 cm de Plus profundidade/abr. 2015

Setor D5

Setor D5NW

Beta N. 418378

Osso humano/ topo, em 3 cm de profundidade/abr. 2015

AMS

4.460 ± 30 AP

3.265-3.240 BC; 3.1003.360 BC

5.215-5.190 AP; 5.0504.870 AP

Radiometric Plus

2.350 ± 30 AP

100 BC-135 AD

2.050-1.815 AP

CP

LA I

744964

7089942

Beta N. 446685

Conchas de ostreídeos/base, lateral oeste, 3 m, entre 50-120 cm de profundidade/ out. 2016

LA V

745510

7090820

Beta N. 446689

Conchas de A. flexuosa/base/out. 2016

Radiometric Plus

3.540 ± 30 AP

1.550-1.350 BC

3.500-3.300 AP

Beta N. 418382

Conchas de A. flexuosa/topo (atual), entre 50-70 cm de profundidade/abr. 2015

Radiometric Plus

3.500 ± 30 AP

1.495-1.275 BC

3.445-3.225 AP

Beta N. 418383

Conchas de A. flexuosa/base, entre 310-330 cm de profundidade/ abr. 2015

Radiometric Plus

3.470 ± 30 AP

1.475-1.240 BC

3.425-3.190 AP

Beta N. 452918

Conchas de A. flexuosa/base, a 68 cm de profundidade/dez. 2016

Radiometric Plus

3.390 ± 30 AP

1.390-1.120 BC

3.340-3.070 AP

745604

LA S10

745604

745608

7091027

7091027

7091072

222


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 13, n. 1, p. 207-225, jan.-abr. 2018

Apêndice.

(Continua) Sambaquis da costa leste da ilha de São Francisco

Sítio

LA S12

LA S13

PE I

Datum WGS84 – Fuso 22 sul

Análise

Datação por radiocarbono convencional

Resultados calibrados em anos AC (95%)

Resultados calibrados em anos AP (95%)

Beta N. 446686

Conchas de Anomalocardia sp./base, entre 0-50 cm de profundidade/out. 2016

Radiometric Plus

4.240 ± 30 AP

2.465-2.195 BC

4.415-4.145 AP

Beta N. 446688

Conchas de A. flexuosa/base, entre 130-143 cm de profundidade/ out. 2016

Radiometric Plus

3.290 ± 30 AP

1.260-990 BC

3.210-2.940 AP

Beta N. 446691

Conchas de A. flexuosa/base, Radiometric entre 10-47 cm de Plus profundidade/out. 2016

3.080 ± 30 AP

975-780 BC

2.925-2.730 AP

7076876

Beta N. 452914

Conchas de A. flexuosa/topo, entre 50 a 65 cm de profundidade/ dez. 2016

Radiometric Plus

3.640 ± 30 AP

1.670-1.430 BC

3.620-3.380 AP

7076885

Beta N. 452920

Conchas de A. flexuosa/base, entre Radiometric 30 a 60 cm de Plus profundidade/dez. 2016

3.650 ± 30 AP

1.680-1.440 BC

3.630-3.390 AP

Radiometric Plus

5.950 ± 30 AP

4.475-4.305 BC

6.425-6.255 AP

Radiometric Plus

4.760 ± 30 AP

3.165-2.885 BC

5.115-4.835 AP

Radiometric Plus

4.700 ± 30 AP

3.070-2.855 BC

5.020-4.805 AP

Radiometric Plus

3.870 ± 30 AP

1.965-1.715 BC

3.915-3.665 AP

Material/ Laboratório Contexto/Data da Coordenada Coordenada análise E S

745363

745366

739639

739574

7090600

7090411

7076150

PG I 739587

PG S2

741599

7080623

Beta N. 452910

PGII/ PGIII

742197

7081470

Beta N. 452909

PG II

742166

7081441

Beta N. 452915

PG III

742248

7081502

Beta N. 452912

Conchas de A. flexuosa/base, em superfície atual/ dez. 2016 Conchas de A. flexuosa/base, entre 40 a 70 cm de profundidade/ dez. 2016 Conchas de A. flexuosa/topo, entre 50 a 70 cm de profundidade/ dez. 2016 Conchas de A. flexuosa/topo, entre 50 a 80 cm de profundidade/ dez. 2016

223


Resultados preliminares da pesquisa no sambaqui sob rocha Casa de Pedra, São Francisco do Sul, Santa Catarina, Brasil

Apêndice.

(Continua) Sambaquis da costa leste da ilha de São Francisco

Sítio

Datum WGS84 – Fuso 22 sul

Material/ Laboratório Contexto/Data da Coordenada Coordenada análise E S 743365

PG V

743023

743257

PG VI

743257

743256

743531

PG VIII

743343

Resultados calibrados em anos AP (95%)

Conchas de A. flexuosa/base, lateral/out. 2016

Radiometric Plus

3.980 ± 30 AP

2.125-1.865 BC

4.075-3.815 AP

7085264

Beta N. 453208

Conchas de A. flexuosa/topo, em 50 cm de profundidade/dez. 2016

Radiometric Plus

3.920 ± 30 AP

2.025-1.765 BC

3.975-3.715 AP

7083598

Beta N. 418381

Conchas de A. flexuosa/base, entre 30-40 cm de profundidade/ abr. 2015

Radiometric Plus

4.670 ± 30 AP

3.015-2.835 BC

4.965-4.785 AP

Beta N. 418379

Osso humano (tíbia?)/topo, entre 30-40 cm de profundidade/ abr. 2015

AMS

4.690 ± 30 AP

3.515-3.395 BC; 3.3853.360 BC

5.465-5.345 AP; 5.3355.310 AP

7085407

Beta N. 418380

Conchas de A. flexuosa/meio, em 80 a 110 cm de profundidade/abr. 2015

Radiometric Plus

5.270 ± 30 AP

3.745-3.560 BC

5.695-5.510 AP

7085408

Beta N. 452917

Conchas de A. flexuosa/base em 180 a 210 cm de profundidade/dez. 2016

Radiometric Plus

5.480 ± 30 AP

3.965-3.755 BC

5.915-5.705 AP

Beta N. 452913

Conchas de A. flexuosa/topo, a 50 cm de profundidade/dez. 2016

Radiometric Plus

3.350 ± 30 AP

1.360-1.070 BC

3.310-3.020 AP

Beta N. 452911

Conchas de A. flexuosa/base, a 40 cm de profundidade/dez. 2016

Radiometric Plus

3.330 ± 30 AP

1.310-1.040 BC

3.260-2.990 AP

Beta N. 446683

Conchas de A. flexuosa/base, entre 85 a 100 cm de profundidade/ out. 2016

Radiometric Plus

3.090 ± 30 AP

990-785 BC

2.940-2.735 AP

7085407

7087221

PG VII 743552

Resultados calibrados em anos AC (95%)

Beta N. 446684

7085072

PG IV 743424

Análise

Datação por radiocarbono convencional

7087238

7086825

224


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 13, n. 1, p. 207-225, jan.-abr. 2018

Apêndice.

(Conclusão) Sambaquis da costa leste da ilha de São Francisco

Sítio

PG IX

PPG

Datum WGS84 – Fuso 22 sul

Análise

Datação por radiocarbono convencional

Resultados calibrados em anos AC (95%)

Resultados calibrados em anos AP (95%)

Beta N. 446690

Conchas de P. pectinatus/base, entre 10 a 21 cm de profundidade/ out. 2016

Radiometric Plus

5.470 ± 30 AP

3.960-3.745 BC

5.910-5.695 AP

Beta N. 446687

Conchas de A. flexuosa/ base, entre 255 a 280 cm de profundidade/out. 2016

Radiometric Plus

2.940 ± 30 AP

805-620 BC

2.755-2.570 AP

Material/ Laboratório Contexto/Data da Coordenada Coordenada análise E S

743743

738741

7086425

7077417

225



Teses e Dissertações



Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 13, n. 1, p. 229, jan.-abr. 2018

Preservação do patrimônio cultural científico e tecnológico brasileiro: identificação, análise, avaliação e estudo de bens tombados

Preservation of Brazilian cultural heritage in science and technology: identification, analysis, evaluation, and study of protected heritage

Pedro Louvain

Pedro Louvain

pedrolouvain@gmail.com Dissertação de Mestrado Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/Museu de Astronomia e Ciências Afins Rio de Janeiro (RJ) 2015

pedrolouvain@gmail.com Master Dissertation Postgraduate Program in Museology and Heritage Federal University of the State of Rio de Janeiro/Museum of Astronomy and Related Sciences Rio de Janeiro (RJ) – Brazil, 2015

Esta dissertação analisa os processos de tombamento de bens culturais, móveis e imóveis, relacionados com a história da ciência e da tecnologia (C&T). A relevância de tais bens, no geral, repousa no fato de se constituírem como importantes testemunhos materiais do desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro. O recorte de análise da dissertação abrange o âmbito federal, analisando os processos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e os institutos estaduais de proteção do patrimônio da região Sudeste do Brasil. O objetivo foi mapear quais bens estão tombados, se foram protegidos pelo valor cultural de C&T ou se foram tombados devido a outros valores. Igualmente, é de interesse da pesquisa estudar quem ou que situação motivou o tombamento. As principais fontes foram os processos de tombamento e as listas de bens tombados existentes nos institutos de proteção citados. Após seleção dos bens que mais se aproximam com a tipologia em estudo, foram analisados os processos que originaram o seu tombamento, buscando entender as suas motivações e instruções. Verificou-se que raramente um bem cultural é tombado devido ao seu valor científico e tecnológico e, na maioria dos casos, outros valores são levados em consideração, como histórico artístico e arquitetônico.

This dissertation analyzes the processes of registering and protecting movable and immovable cultural assets related to the history of science and technology (S&T). The importance of these assets generally stems from the fact that they are important material witnesses to Brazilian scientific and technological development. The study addresses the federal arena, analyzing processes within the National Historical and Artistic Heritage Institute (IPHAN), as well as the state heritage protection institutes in the southeastern region of Brazil. The purpose is to map which assets are listed and whether they were protected because of their cultural value with regards to S&T or for other reasons. The study also investigates who or what situation led to the protected classification. The main research sources were the documents from registration processes themselves and the inventory lists maintained within the aforementioned protection institutes. After selecting the assets that most closely resemble the focus of this study, the processes that led to officially protected status were analyzed to understand motivations and instructions. We found that cultural assets are only rarely registered because of their scientific and technological value, and in most cases other values (historical, artistic, and architectural) were considered.

LOUVAIN, Pedro. Preservação do patrimônio cultural científico e tecnológico brasileiro: identificação, análise, avaliação e estudo de bens tombados. Resumo de Dissertação de Mestrado. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 13, n. 1, p. 229, jan.-abr. 2018.

229



Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 13, n. 1, p. 231, jan.-abr. 2018

ERRATA No artigo “O muiraquitã da estearia da Boca do Rio, Santa Helena, Maranhão: estudo arqueológico, mineralógico e simbólico”, com número de DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222017000300012, publicado no periódico Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 12(3):869-894, na página 891: Onde se lia: DOI: https://doi.org/10.1017/S0959774316000548 Leia-se: DOI: https://doi.org/10.1017/S0959774316000627

Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 13, n. 1, p. 231, jan.-abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/ 1981.81222018000100014.

231



BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS INSTRUÇÕES AOS AUTORES

Objetivos e política editorial O Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas tem como missão publicar trabalhos originais em arqueologia, história, antropologia, linguística indígena e disciplinas correlatas. A revista aceita colaborações em português, espanhol, inglês e francês para as seguintes seções: Artigos Científicos – textos analíticos originais, resultantes de pesquisas com contribuição efetiva para o avanço do conhecimento. De 15 até 30 laudas. Artigos de Revisão – textos analíticos ou ensaísticos originais, com revisão bibliográfica ou teórica de determinado assunto ou tema. De 15 até 30 laudas. Notas de Pesquisa – relato preliminar mais curto que um artigo, sobre observações de campo, dificuldades e progressos de pesquisa em andamento, enfatizando hipóteses, comentando fontes, resultados parciais, métodos e técnicas utilizados. Até 15 laudas. Memória – seção que se destina à divulgação de acervos ou seus componentes que tenham relevância para a pesquisa científica; de documentos transcritos parcial ou integralmente, acompanhados de texto introdutório; e de ensaios biográficos, incluindo obituário ou memórias pessoais. Até 20 laudas. Debate – ensaios críticos sobre temas da atualidade. Até 15 laudas. Resenhas Bibliográficas – texto descritivo e/ou crítico de obras publicadas na forma impressa ou eletrônica. Até cinco laudas. Teses e Dissertações – descrição sucinta, sem bibliografia, de dissertações de mestrado, teses de doutorado e livre-docência. Uma lauda. O Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas publica resumos de teses e dissertações, mas não publica capítulos de teses ou de dissertações. Entendida a necessidade e o interesse acadêmico na divulgação de resultados oriundos da formação em nível de pós-graduação, recomenda-se, para esses casos, a produção de artigo científico com texto distinto do original, dando ênfase ao que se destaca na pesquisa da tese ou dissertação e com uso de citação direta onde adequado.

Apresentação de artigos O Boletim recebe contribuições somente em formato digital. Os arquivos digitais dos artigos devem ser submetidos online na plataforma ScholarOne via o site da revista <http://www.museu-goeldi.br/editora/humanas/index.html> ou diretamente via o link <https://mc04. manuscriptcentral.com/bgoeldi-scielo>, fornecendo obrigatoriamente as informações solicitadas pela plataforma.

Cadastramento O(s) autor(es) deve(m) realizar o cadastro (Login/Senha), criando uma conta pessoal na plataforma online, na seção “CREATE AN ACCOUNT” ou “NEW USER”, e preencher corretamente o perfil. O cadastramento/criação de uma conta precisa ser feito somente uma vez. Após isso, a conta deve ser usada para todas as submissões de trabalhos, revisões e pareceres. A partir janeiro de 2018, ao submeter seu artigo, é necessário realizar cadastro na base de identificação acadêmica internacional ORCID, disponível em http://orcid.org/


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Preparação de originais Todas as submissões devem ser enviadas por meio da plataforma de submissão online ScholarOne. Os originais devem ser enviados 1.

Em Word, com fonte Times New Roman, tamanho 12, entrelinha 1,5, em laudas sequencialmente numeradas. Os trabalhos de linguística indígena devem utilizar fonte compatível com o padrão Unicode, como Arial, Calibri, Cambria, Déjà Vu, Tahoma e outras que incluam todos os símbolos fonéticos da IPA. Times New Roman é preferível, mas inclui IPA em Unicode somente a partir

2.

das últimas edições de Windows. Nunca improvisar símbolos do IPA usando letras comuns com tachamento (imitando ɨ, ʉ etc.).

Da primeira página, devem constar:

a. título (no idioma do texto e em inglês); b. resumo; c. abstract; d. palavras-chave e keywords.

3.

Os originais não podem incluir o(s) nome(s) do(s) autor(es) e nem agradecimentos.

4.

Deve-se destacar termos ou expressões por meio de aspas simples.

5.

Apenas termos científicos latinizados e palavras em língua estrangeira devem constar em itálico.

6.

Os artigos deverão seguir as recomendações da ABNT para uso e apresentação dos elementos bibliográficos: resumos, NBR 6028; citações em documentos, NBR 10520; referências, NBR 6023.

7.

Tabelas devem ser digitadas em Word, sequencialmente numeradas, com legendas claras.

8.

Todas as figuras (ilustrações, gráficos, imagens, diagramas etc) devem ser apresentadas em páginas separadas e numeradas, com as respectivas legendas, e submetidas na plataforma online em arquivos à parte. Devem ter resolução mínima de 300 dpi e tamanho mínimo de 1.500 pixels, em formato JPEG ou TIFF. Obedecendo, se possível, as proporções do formato de página do Boletim, nos limites de 16,5 cm de largura e 20 cm de altura (para uso em duas colunas) ou 8 cm de largura e 20 cm de altura (para uso em uma coluna). As informações de texto presentes nas figuras, caso possuam, devem estar em fonte Arial, com tamanho entre 7 e 10 pts .

9.

Figuras feitas em programas vetoriais podem ser enviadas, preferencialmente, em formato aberto, na extensão .cdr (X5 ou inferior), .eps ou .ai (CS5 ou inferior).

10. O texto do artigo deve, obrigatoriamente, fazer referência a todas as tabelas, gráficos e ilustrações. 11. Seções e subseções no texto não podem ser numerados. 12. Somente numeração de páginas e notas de rodapé devem ser automáticas. Textos contendo numeração automatizada de seções, parágrafos, figuras, exemplos, ou outros processos automatizados, como referenciação e compilação de lista de referências, não serão aceitos. 13. Observar cuidadosamente as regras de nomenclatura científica, assim como abreviaturas e convenções adotadas em disciplinas especializadas.


14. Notas de rodapé devem ser numeradas em algarismos arábicos e utilizadas apenas quando imprescindíveis, nunca como referências. 15. Referências a manuscritos, documentos de arquivo ou textos não publicados (relatórios, cartas etc.) devem ser feitas em notas de rodapé. 16. Citações e referências a autores no decorrer do texto devem subordinar-se à seguinte forma: sobrenome do autor (não em caixa alta), ano, página(s). Exemplos: (Goeldi, 1897, p. 10); Goeldi (1897, p. 10). 17. Todas as obras citadas ao longo do texto devem estar corretamente referenciadas ao final do artigo, e todas as referências no final do artigo devem ser citadas no texto. 18. Citações de obras como “apud” também devem estar corretamente referenciadas ao final do artigo. Os nomes de múltiplos autores ou organizadores citados como “et al.” devem todos aparecer nas referências no final do artigo.

Estrutura básica dos trabalhos 1.

Título – No idioma do texto e em inglês (quando este não for o idioma do texto). Deve ser escrito em caixa baixa, em negrito, centralizado na página.

2. Resumo e Abstract – Texto em um único parágrafo, verbo na voz ativa e terceira pessoa do singular, ressaltando os objetivos, método, resultados e conclusões do trabalho, com no mínimo 100 palavras e, no máximo, 200, no idioma do texto (Resumo) e em inglês (Abstract). A versão para o inglês deverá ser feita ou corrigida por um falante nativo (preferivelmente um colega da área), o que é de responsabilidade do(s) autor(es). 3. Palavras-chave e Keywords – Três a seis palavras que identifiquem os temas do trabalho, para fins de indexação em bases de dados. 4. Texto – Deve ser composto de seções NÃO numeradas e, sempre que possível, com introdução, marco teórico, desenvolvimento, conclusão e referências . Evitar parágrafos e frases muito longos. Optar pela voz passiva, evitando o uso da primeira pessoa do singular e do plural ao longo do texto. Siglas devem inicialmente ser escritas por extenso. Exemplo: “A Universidade Federal do Pará (UFPA) prepara novo vestibular”. Citações de até três linhas devem estar dentro do parágrafo e entre aspas duplas (“); citações com mais de três linhas devem ser destacadas do texto, com recuo de 4 cm da margem esquerda, com fonte menor e, conforme o exemplo a seguir: Com efeito, a habitação em cidades é essencialmente antinatural, associa-se a manifestações do espírito e da vontade, na medida em que se opõem à natureza. Para muitas nações conquistadoras, a construção de cidades foi o mais decisivo instrumento de dominação que conheceram. Max Weber mostra admiravelmente como a fundação de cidades representou para o Oriente Próximo e particularmente para o mundo helenístico e para a Roma imperial, o meio específico de criação de órgãos locais de poder, acrescentando que o mesmo fenômeno se encontra na China, onde ainda durante o século passado, a subjugação das tribos Miaotse pode ser identificada à urbanização das suas terras (Buarque de Holanda, 1978, p. 61). 5. Agradecimentos – Devem ser sucintos: créditos de financiamento; vinculação a programas de pós-graduação e/ou projetos de pesquisa; agradecimentos pessoais e institucionais. Nomes de pessoas e instituições devem ser escritos por extenso, explicando o motivo do agradecimento. Note que a primeira versão submetida é para avaliação anônima e deve estar sem agradecimentos. 6. Referências – Devem ser listadas ao final do trabalho, em ordem alfabética, de acordo com o sobrenome do primeiro autor. No caso de mais de uma referência de um mesmo autor, usar ordem cronológica, do trabalho mais recente ao mais antigo. Todas as referências devem seguir as recomendações da NBR 6023 da ABNT. Deve-se evitar o uso indevido de letras


maiúsculas nos títulos de artigos ou de livros. Somente nomes próprios, substantivos alemães e as palavras de conteúdo de títulos de revistas e de séries devem começar por uma letra maiúscula. Obs: A utilização correta das normas da ABNT referentes à elaboração de referências (NBR 6023/2002) e o uso adequado das novas regras de ortografia da Língua Portuguesa nos artigos e demais documentos encaminhados à revista são de responsabilidade dos autores. A seguinte lista mostra vários exemplos de referências nas suas categorias diferentes: Livro: VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1906. Livro: WIECZOREK, Alfred; ROSENDAHL, Wilfried; SCHLOTHAUER, Andreas (Org.). Der Kult um Kopf und Schädel. Heidelberg: Verlag Regionalkultur, 2012. Série/Coleção: GOELDI, Emílio. Escavações arqueológicas em 1895: executadas pelo Museu Paraense no Litoral da Guiana Brasileira entre Oiapoque e Amazonas. Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, 1900. (Memórias do Museu Goeldi, n. 1). Capítulo de livro: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Política indigenista no século XIX. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 133-154. Capítulo de livro e Série/Coleção: VUILLERMET, Marine. Two types of incorporation in Esse Eja (Takanan). In: DANIELSEN, Swintha; HANNSS, Katja; ZÚÑIGA, Fernando (Org.). Word formation in South American languages. Amsterdam: John Benjamins, 2014. p. 113-142. (Studies in Language Companion Series, n. 163). Artigo de periódico: GURGEL, C. Reforma do Estado e segurança pública. Política e Administração, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 15-21, set. 1997. Artigo de periódico: TERSIS, Nicole; CARTER-THOMAS, Shirley. Investigating syntax and pragmatics: word order and transitivity in Tunumiisut. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 4, p. 473-500, out. 2005. Artigo de periódico em meio eletrônico: VELTHEM, L. H. V. O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 7, n. 1, p. 51-66, jan./abr. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-81222012000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 06 mar. 2015. Artigo e/ou matéria de jornal: NAVES, P. Lagos andinos dão banho de beleza. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 jun. 1999. Folha Turismo, Caderno 8, p. 13. Artigo e/ou matéria de jornal em meio eletrônico: SILVA, Ives Gandra da. Pena de morte para o nascituro. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 set. 1998. Disponível em: <http://www.providafamilia.org/pena_morte_nascituro.htm>. Acesso em: 19 set. 1998.


Trabalho apresentado em evento: BRAYNER, A. R. A.; MEDEIROS, C. B. Incorporação do tempo em SGBD orientado a objetos. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE BANCO DE DADOS, 9., 1994, São Paulo. Anais... São Paulo: USP, 1994. p. 16-29. Trabalho apresentado em evento em meio eletrônico: SILVA, R. N.; OLIVEIRA, O. Os limites pedagógicos do paradigma da qualidade total na educação. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPe, 4., 1996, Recife. Anais eletrônicos... Recife: UFPe, 1996. Disponível em: <http://www.propesq.ufpe.br/anais/anais.htm>. Acesso em: 21 jan. 1997. Documento eletrônico: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010. 2011. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Acesso em: 23 jan. 2012. Documento jurídico: SÃO PAULO (Estado). Decreto nº 42.822, de 20 de janeiro de 1998. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo, v. 62, n. 3, p. 217-220, 1998. Documento jurídico: BRASIL. Congresso. Senado. Resolução nº 17, de 1991. Coleção de Leis da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v. 183, p. 1156-1157, maio/jun. 1991. Documento jurídico: BRASIL. Medida Provisória nº 1.569-9, de 11 de dezembro de 1997. Estabelece multa em operações de importação, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 14 dez. 1997. Seção 1, p. 29514. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): MORGADO, M. L. C. Reimplante dentário. 1990. 51 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Odontologia), Universidade Camilo Castelo Branco, São Paulo, 1990. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): ARAUJO, U. A. M. Máscaras inteiriças Tukúna: possibilidades de estudo de artefatos de museu para o conhecimento do universo indígena. 1985. 102 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, 1986. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): BENCHIMOL, Alegria. Resgate e ressignificação da pesquisa no Museu Paraense Emílio Goeldi: presença e permanência de cientistas estrangeiros (1894-1914) na produção científica de autores atuais (1991-2010). 2015. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): MOORE, Denny. Syntax of the language of the Gavião Indians of Rondônia (Brazil). 1984. 200 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – University of New York, Nova York, 1984.

Avaliação inicial Será feita uma avaliação inicial da submissão pela administração editorial, seguindo um checklist de critérios básicos. Caso a submissão esteja incompleta ou as imagens não estejam conforme as especificações ora informadas, o artigo será devolvido via plataforma online como “UNSUBMITTED”. Isso significa que ele volta para a fase de não submetido. O autor de correspondência receberá, nesse caso, um


comunicado com informações sobre as pendências apresentadas pelo artigo. Após a resolução dos problemas apontados, o autor pode ressubmeter o trabalho, escolhendo a opção “RESUBMIT”.

Revisão de artigos Após receber os pareceres anônimos, o Editor decide quanto à aceitação do artigo para publicação. Se aceito, o autor é convidado a revisar o artigo com base nos pareceres e nas observações do Editor. O autor deve explicar como a revisão foi realizada, dar justificativa em caso de não acatar sugestão dos pareceres, devendo obrigatoriamente usar a ferramenta e, obrigatoriamente, usar a ferramenta “Controle de alterações” do Word para realizar as alterações no texto. O artigo revisado deve ser enviado através da plataforma online, por meio do link de revisão disponível em “AUTHOR RESOURCES”, clicando em “CREATE REVISION”.

Provas Os trabalhos, depois de formatados, são encaminhados através do sistema de e-mail do ScholarOne, em PDF, para a revisão final dos autores, que devem devolvê-los com a maior brevidade possível. Os pedidos de alterações ou ajustes no texto devem ser feitos por comentários no PDF. Nessa etapa, não serão aceitas modificações no conteúdo do trabalho ou que impliquem alteração na paginação. Caso o autor não responda ao prazo, a versão formatada será considerada aprovada. Os artigos são divulgados integralmente no formato PDF no sítio, no Issuu, no DOAJ e na SciELO.

Endereço para correspondência: Museu Paraense Emílio Goeldi Editor do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas Av. Perimetral, 1901 - Terra Firme CEP 66077-830 Belém - PA - Brasil Telefone: 55-91-3075-6186 E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br

Lembre-se: 1- Antes de enviar seu trabalho, verifique se foram cumpridas as normas acima. Disso depende o início do processo editorial. 2- Após a aprovação, os trabalhos são publicados por ordem de chegada. O Editor Científico também pode determinar o momento mais oportuno. 3- A revista não aceita resumos expandidos, textos na forma de relatório e nem trabalhos previamente publicados em anais, CDs ou outros suportes.


BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS INSTRUCTIONS FOR AUTHORS Mission and Editorial Policy The mission of the Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas is to publish original works on archaeology, history, anthropology, indigenous linguistics, and related fields. The journal accepts contributions in Portuguese, Spanish, English and French for the following categories: Research Articles – original scientific articles reporting on research, that effectively contribute to the advancement of knowledge. Between 15 and 30 pages. Review Articles – analytical texts or essays that contain a bibliographical or theoretical review of a certain subject or topic. Between 15 and 30 pages. Short Communications – short preliminary reports on field observations, challenges faced and progress made in ongoing research emphasizing hypotheses, mentioning sources, partial results, materials and methods. Maximum length: 15 pages. Memory – this category includes texts about collections or items in collections considered relevant for scientific research; fully or partly transcribed documents with an introductory text; biographical essays, including obituaries or individual memories. Maximum length: 20 pages. Debate – critical essays on current issues. Maximum length: 15 pages. Book Reviews – descriptive and/or critical reviews of printed or electronic publications. Maximum length: five pages. Theses and Dissertations – brief descriptions of theses and dissertations, with no references section. Maximum length: one page.

Article proposals The Boletim only accepts original contributions in digital format. Digital manuscripts should be submitted via the online platform ScholarOne, which is accessible through the website of the Boletim <http://www.museu-goeldi.br/editora/humanas/index.html> or directly via the link <https:// mc04.manuscriptcentral.com/bgoeldi-scielo>, providing additional information requested during the various steps of the submission process.

Registration Authors must register in order to create a password-protected personal account on the online platform in the section “CREATE AN ACCOUNT” or “NEW USER” and correctly fill in the profile. Registration and the creation of an account need be done only once. Thereafter, the account should be used for current and future submissions to the Boletim. Starting January 2018, all authors must register with ORCID in order to submit manuscripts.

Submission In order to submit a new contribution, authors must log into their account on the online platform and click on “AUTHOR CENTER”. After completing this step, proceed to the “AUTHOR RESOURCES” window and start the submission process via the link “CLICK HERE TO SUBMIT A NEW MANUSCRIPT”, following seven steps: • Step 1: Type, Title, & Abstract º Choose type of manuscript (article, review, etc.).


º Title of manuscript. º Provide the abstract. • Step 2: Attributes º Add key words (3 to 6). • Step 3: Authors & Institutions º Declare whether the manuscript is submitted by the author, or by another person. • Step 4: Reviewers º Optionally name potential reviewers that are preferred, or non-preferred. • Step 5: Details & Comments º Specify who funded the research that resulted in the submission. º Declare that the work was submitted exclusively to the Boletim and has not been published elsewhere. º Declare that the work is in accordance with ethical norms. º Confirm that the submitted files are entirely anonymous, so as to enable anonymous peer review. º Declare whether there is any conflict of interest. If there is, please specify. • Step 6: File Upload º Upload the files. (At least one of the files should represent the Main Document) • Step 7: Review & Submit º Verify that all information and files are complete and finalize the submission by clicking on “SUBMIT”. The journal has a Scientific Council. Manuscripts are first examined by the Editor or by one of the Associate Editors. The Editor has the right to recommend alterations to the submitted manuscripts or to return them when they fail to comply with the journal’s editorial policy. Upon acceptance, manuscripts are submitted to peer-review and are reviewed by at least two specialists who are not members of the Editorial Board. In the event of discrepancy between the reviews, the manuscript is submitted to other referee(s). In case changes or corrections are recommended, the manuscript is returned to the author(s), who have thirty days to submit a new version. Publication of a manuscript entails transfer of copyright to the journal. A declaration of Assignment of Copyrights of the published work, signed by all authors, must be submitted together with the revised manuscript via the ScholarOne platform.

Preparing the manuscript for submission All manuscripts have to be submitted via the online platform ScholarOne. Original manuscripts must be prepared observing the following requirements:


1. Word for Windows format, Times New Roman font, size 12, line spacing 1.5, and pages must be numbered. Articles on linguistics must use a font that is compatible with the Unicode standard, such as Arial, Calibri, Cambria, Déjà Vu, Tahoma and others that include the IPA extended set of phonetic symbols. Times New Roman is preferred, but it includes the full IPA in Unicode only in more recent editions of Windows. One should never improvise IPA characters such as ɨ, ʉ, etc. by applying strike-through of common characters. 2. The cover page must contain the following information: a. Title (in the original language and in English); b. Abstract; c. Resumo (a Portuguese abstract in case the original is English); d. Keywords and their equivalent palavras-chave in Portuguese. 3. The manuscript must include neither the name(s) of the author(s) nor acknowledgements. 4. To highlight terms or phrases, please use single quotation marks. 5. Only foreign language words and phrases and Latinized scientific terms should be in italic type. 6. The articles should follow the recommendations of the Brazilian Association for Technical Standards (ABNT) for the presentation and use of bibliographical information: abstracts, NBR 6028; citation in documents, NBR 10520; references, NBR 6023. 7. Tables should be in Word format, numbered in sequence, with clear captions. 8. Images and graphs should be on separate numbered pages, with their respective captions. They should be submitted as separate files on the online platform. Digitalized images should have a minimum resolution of 300 dpi., a minimum size of 1,500 pixels, and be in TIFF (preferably) or JPEG format. They should be max. 16.5 cm wide and 20 cm high (when covering two columns), or 8 cm wide and 20 cm high (when used within a single column). Textual information inside the images should be in Arial font, size between 7 and 10 pts. 9. Images created in vectoral programs should be provided in open format, with either a .cdr (X5 or inferior), .eps or .ai (CS5 or inferior) extension. 10. All tables, graphs and images must obligatorily be mentioned in the body of the text. With regard to maps, please use symbols rather than colours (because of restricted use of colour in printed versions). 11. Sections and subsections in the text must not be numbered. 12. Only page numbering and the numbering of footnotes should be automatic. Texts containing automatically numbered sections, paragraphs, figures, examples or any other automatized processes cannot be accepted. 13. Texts must fully comply with scientific naming rules, abbreviations and other conventions current in the specific fields of discipline. 14. Footnotes should be used only when strictly necessary, never for reference to published work, and should be indicated in Arabic numbers. 15. References to manuscripts, archive documents or unpublished texts (reports, letters, etc.) must not be listed at the end of the article, but should be provided in footnotes. 16. Reference to works cited throughout the text should conform to the following convention: author’s last name (not in upper case), year, page(s). Examples: (Goeldi, 1897, p. 10); Goeldi (1897, p. 10). 17. All references used throughout the text must be listed at the end of the article, and all works listed should be mentioned in the text. 18. Works cited as “apud” should also be fully and correctly listed at the end of the article. The names of multiple authors and volume editors referred in the text as “et al.” must all appear in the reference list at the end of the article.


Basic text structure 1. Title – The title must appear both in the original language of the text and in English (or Portuguese, in case English is the original language). The title must be in lower case in bold type, centralized on the page. 2. Abstract – This section should be a single paragraph and highlight the goals, methods and results of the research, with a minimum length of 100 words and a maximum length of 200 words. The abstract should be presented both in the original language of the text and in English (or Portuguese, in case the original language is English). The translated abstract must either be composed or corrected by a native speaker, which is the responsibility of the authors. 3. Keywords – Three to six words that identify the topics addressed in the article, for the purpose of indexation in databases. 4. Body of the text – The text should be subdivided into sections that are NOT numbered. Articles should preferably contain the following components/sections: introduction, theoretical background, main text, conclusion, references. Lengthy paragraphs and/ or sentences should be avoided. Acronyms should be preceded by the word or phrase to which it refers to when appearing for the first time. Example: “The Universidade Federal do Pará (UFPA) is preparing a new admission exam”. Quotations of less than three lines should be included in the body of the text between double quotation marks (“). Quotations of more than three lines are separated from the text and indented in block, with no quotation marks, the font size being smaller than the font used in the text. The road down into the Guaporé Valley was in quite good condition, for it had not yet begun to rain heavily, and we made good time to the ranch known as Estrela do Guaporé. There, I talked briefly with the administrator, a man named Alvaro, and then with Kim, who was recuperating from malaria. Kim was very pale and weak, and our talk was brief and constrained. I found out later that he had actually gone to Brasília and told the FUNAI that Sílbene was urging the Indians to kill cattle. In fact, Sílbene had told the Indians to defend their gardens, which were on demarcated land, from invading cattle (Price, 1989, p. 119). 5. Acknowledgements – Should be brief and can mention: support and funding; connections to graduate programs and/or research projects; acknowledgement to individuals and institutions. The names of individuals and institutions should be written in full, together with a motivation for the acknowledgement. Note that the first submitted version of the article should be without acknowledgements, because of the anonymous peer-review process. 6. References – Should be listed at the end of the text in alphabetical order according to the last name of the first author. In the event of two or more references to a same author, please use chronological order starting with the most recent work. References should comply with ABNT recommendation NBR 6023. Please avoid unnecessary capitals in the titles of books and articles. Only proper names, German nouns and the content words of journal titles and book series should start with a capital letter. Note that the correct application of the ABNT norms concerning bibliographical references (NBR 6023/2002) and the correct application of the modern spelling rules of Portuguese are the responsibility of the author(s). The following list contains examples of the different categories of bibliographical references, illustrating ABNT practice: Book: PRICE, David. Before the bulldozer: the Nambiquara Indians and the World Bank. Cabin John: Seven Locks Press, 1989. Book: WIECZOREK, Alfred; ROSENDAHL, Wilfried; SCHLOTHAUER, Andreas (Ed.). Der Kult um Kopf und Schädel. Heidelberg: Verlag Regionalkultur, 2012.


Series: GOELDI, Emílio. Escavações arqueológicas em 1895: executadas pelo Museu Paraense no Litoral da Guiana Brasileira entre Oiapoque e Amazonas. Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, 1900. (Memórias do Museu Goeldi, n. 1). Book chapter: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Política indigenista no século XIX. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (Ed.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 133-154. Book chapter and series: VUILLERMET, Marine. Two types of incorporation in Esse Eja (Takanan). In: DANIELSEN, Swintha; HANNSS, Katja; ZÚÑIGA, Fernando (Ed.). Word formation in South American languages. Amsterdam: John Benjamins, 2014. p. 113-142. (Studies in Language Companion Series, n. 163). Journal article: GURGEL, C. Reforma do Estado e segurança pública. Política e Administração, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 15-21, Sept. 1997. Journal article: TERSIS, Nicole; CARTER-THOMAS, Shirley. Investigating syntax and pragmatics: word order and transitivity in Tunumiisut. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 4, p. 473-500, Oct. 2005. Electronic journal article: VELTHEM, L. H. V. O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 7, n. 1, p. 51-66, jan./abr. 2012. Available at: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-81222012000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Accessed on: 06 Mar. 2015. Newspaper article: NAVES, P. Lagos andinos dão banho de beleza. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 Jun. 1999. Folha Turismo, Caderno 8, p. 13. Electronic newspaper article: SILVA, Ives Gandra da. Pena de morte para o nascituro. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 Sept. 1998. Available at: <http://www.providafamilia.org/pena_morte_nascituro.htm>. Accessed on: 19 Sept. 1998. Conference presentation: BRAYNER, A. R. A.; MEDEIROS, C. B. Incorporação do tempo em SGBD orientado a objetos. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE BANCO DE DADOS, 9., 1994, São Paulo. Proceedings... São Paulo: USP, 1994. p. 16-29. Electronic conference presentation: SILVA, R. N.; OLIVEIRA, O. Os limites pedagógicos do paradigma da qualidade total na educação. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPe, 4., 1996, Recife. Electronic proceedings... Recife: UFPe, 1996. Available at: <http://www.propesq.ufpe.br/anais/anais.htm>. Accessed on: 21 Jan. 1997. Electronic document: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010. 2011. Available at: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Accessed on: 23 Jan. 2012. Legal document: SÃO PAULO (Estado). Decreto nº 42.822, de 20 de janeiro de 1998. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo, v. 62, n. 3, p. 217-220, 1998.


Legal document: BRASIL. Congresso. Senado. Resolução nº 17, de 1991. Coleção de Leis da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v. 183, p. 1156-1157, May/Jun. 1991. Legal document: BRASIL. Medida Provisória nº 1.569-9, de 11 de dezembro de 1997. Estabelece multa em operações de importação, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 14 Dec. 1997. Seção 1, p. 29514. Academic theses (PhD theses, MA theses and monographs): MORGADO, M. L. C. Reimplante dentário. 1990. 51 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Odontologia) – Universidade Camilo Castelo Branco, São Paulo, 1990. Academic theses (PhD theses, MA theses and monographs): ARAUJO, U. A. M. Máscaras inteiriças Tukúna: possibilidades de estudo de artefatos de museu para o conhecimento do universo indígena. 1985. 102 f. MA thesis (Mestrado em Ciências Sociais) – Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, 1986. Academic theses (PhD theses, MA theses and monographs): BENCHIMOL, Alegria. Resgate e ressignificação da pesquisa no Museu Paraense Emílio Goeldi: presença e permanência de cientistas estrangeiros (1894-1914) na produção científica de autores atuais (1991-2010). 2015. PhD thesis (Doutorado em Ciência da Informação) – Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Academic theses (PhD theses, MA theses and monographs): MOORE, Denny. Syntax of the language of the Gavião Indians of Rondônia (Brazil). 1984. 200 f. PhD thesis (Doctorate in Anthropology) – University of New York, New York, 1984.

Initial evaluation An initial evaluation will be carried out by the editorial staff, following a checklist of basic criteria. In case the submission is incomplete or the images are not in accordance with the specifications mentioned above, the article will be returned to the author through the platform, by marking it as “UNSUBMITTED”. This means that the article returns to the stage of not yet having been submitted, with an explanation of the issues to be resolved. After having resolved the pending issues, the author should resubmit the article by choosing the option “RESUBMIT”.

Revision of articles After receiving the anonymous peer reviews, the Editor decides whether the article is accepted for publication. If accepted, the author is requested to revise the article on the basis of the reviews and the Editor’s observations. The author must also explain how the revision was done and provide justification in case the advice of the reviewer(s) was not followed. It is obligatory to use the “Track Changes” function in Word, when applying changes. The revised article should be submitted via the online platform, via the revision link at “AUTHOR RESOURCES”, by clicking on “CREATE REVISION”.

Proofs After having been formatted by the editorial staff, the articles will be sent in PDF format to the authors via the ScholarOne e-mail system for final approval, and must be returned as soon as possible. Requested changes in the text have to be marked and commented as clearly as possible in the PDF document. At this stage, changes concerning content or changes resulting in an increase or decrease in the number of


pages will not be accepted. In the event that the author does not respond in time, the formatted version will be considered as approved by the author. The articles will be published in full in PDF format on the journal website, in Issuu, in DOAJ, and at SciELO.

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