Revista Iaras - Edição II

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Iara

Revista Cultural

Escola de música

Centros artísticos de Porto Velho priorizam musicalização infantil e estão presentes em vários bairros

BEM-VINDO AO PARAÍSO... ...umlugarchamadoNazaré

Ano 01N° 02Jul-Nov/2023 DACOM/NUCSA/UNIR
João Lobato, pioneiro em Nazaré: música-raiz para para os locais e visitantes

Sumário

Passeio no Rio Madeira

Porto Velho tem muito a oferecer não apenas aos visitantes, mas também aos próprios habitantes que não conhecem as atrações turísticas locais. Uma delas é o passeio de barco pelo rio Madeira, que junta várias belezas urbanas e naturais em uma única atividade, incluindo o botos cor-de-rosa, as paisagens naturais, a gastronomia e uma rica história cultural. Leia na página 17

Samba e folia

No lugar das máscaras, muito glitter e alegria. O luto se transformou em motivos de celebração pela vida. O retorno do carnaval simbolizou o fim do isolamento social. Leia na página 32

Entrevista Capa

IARAS apresenta o perfil do artista Rodrigo Casteleira, que apresenta perfomances em combate ao racismo e ao desmatamento.

Leia na página 28

Expediente

A reportagem de IARAS visitou o Distrito de Naré, uma verdadeira viagem na história e na cultura da Amazônia.

Leia na página 28

Festa junina

Os arraias juninos nasceram na Europa, e no Brasil, apresentam-se com peculiaridades culturais africanas, brasileiras e amazônicas.

Leia na página 20

“Iaras” é uma publicação do Departamento de Comunicação (DACOM) da Unir – Universidade Federal de Rondônia.

Editor e responsável técnico: Professor-Mestre Marcus Fernando Fiori - Reg. Prof. nº 909 - DRT/RO.

Editor de Arte: Professor-Doutor Francisco Carlos Guerra de Mendonça Júnior.

Direção fotográfica: Professora-Doutora Larissa Zuim Materásio.

Reportagens: Ana Clara Fagundes de Toledo Duzanowski, Andressa Vassilakis, Caio Pereira Assunção, Davi Rodrigues Pinheiro, Débora Costa da Silva, Emily Torres Bravo, Emily Vitória

Silva da Costa, Fabiany Nery Araújo, Felipe da Silva Nascimento, Ian Gabriel Carvalho Machado, Iasmim Dinah Queiroz Rodrigues, Izabela Costa Muniz, Jainni Victória Leite Medina, Jorge Fernando Maciel Dantas, Joshua Rodrigues Lacerda, Juliana Miranda Garcez, Kyara Negretti Ramos, Lara Lívia Régis Frota, Loide Alves Goncalves, Mateus Alves dos Santos, Mylla Pereira da Costa, Raimundo da Silva Oliveira Filho e Vitória Cristina de Assis Fernandes.

Diagramação e Programação Visual: Ana Laura Gomes Cunha e Professor-Doutor Francisco Carlos Guerra de Mendonça Júnior.

Foto de capa: Mylla Pereira da Costa.

Revisão: Andressa Vassilakis.

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Sim, Rondônia tem cultura

Nazaré é desconhecida por muitos e, mesmo entre os que a conhecem, pouco se sabe sobre o modo de vida levado por seus moradores e a sua relação harmoniosa com a natureza, que remete a comunidade a uma posição de protagonismo e resistência no tocante à cultura-raiz da Amazônia. Considerado celeiro da cultura amazônica em Rondônia, Nazaré tem como marcas um povo acolhedor, cheio de sonhos, danças e culturas. Histórias, mitos e lendas da Amazônia se encontram em Nazaré.

E você sabia que, ao contrário do senso comum, o pole dance não tem ligação com a sexualidade? É o que explicou à reportagem de IARAS a professora e historiadora, Rita Vieira: “Historicamente falando é comprovado que essa é uma arte, uma prática de exercício físico, que existe há muito tempo, que vem de sociedades milenares, como é o caso da Índia e da China, praticado como um grande exercício de força e equilíbrio”, contou explicando que, na época, geralmente era praticado por homens e não por mulheres.

O carnaval nos remete, quase que automaticamente, às festividades tradicionais do Rio de Janeiro e de alguns estados nordestinos, como Bahia e Pernambuco, mas em Rondônia a festa existe e acontece. E para os foliões, é boa. Por se tratar de uma grande festa e de um período em que há muito contato com pessoas novas, a interação no carnaval auxilia na manutenção da convivência dos integrantes da sociedade. Seja carimbar todos os bloquinhos ou aproveitar o feriado para descansar, todos os rondonienses possuem uma cultura no período carnavalesco.

E em terras de Rondon, é claro que existe pólos turísticos. E Porto Velho não é exceção à regra. A reportagem de IARAS foi a campo e constatou que um dos principais pontos turísticos da capital rondoniense, o rio Madeira, atrai pessoas de várias

partes do Brasil e do mundo. O passeio de barco é a principal atração para aqueles que desejam desbravar o rio, na sua parte urbana, e apreciar o magnífico pôr do sol, além de desfrutar pratos e petiscos típicos da região.

Mas não paramos por aí. Nesta edição temática de IARAS, dedicada à cultura, entrevistamos o professor-doutor, Rodrigo Pedro Casteleiro, da Unir – campus de Vilhena. Graduado em filosofia, mestre em ciências sociais e doutor em educação, Casteleiro é homem, cis, gay, negro, vivendo outras identidades minorizadas presentes no social não-hegemônico brasileiro, e seu trabalho dialoga com os atravessamentos entre corporeidade negra, espaços urbanos e apagamentos colonizantes, tentando materializar em performances ou fotos as estéticas de resistências, demarcada pelo uso de fios vermelhos.

IARAS foi a campo também para constatar que os festejos juninos são um verdadeiro encontro de culturas das pessoas que formam a geografia humana de Rondônia. As festividades se fazem presentes em todo território rondoniense. Nota-se que, na quase totalidade das cidades do interior, é forte a presença de tradições sulistas nos eventos, dada as características da ocupação desses territórios por migrantes oriundos dessa região. Em Porto Velho e Guajará-Mirim, porém, a festa assume traços tipicamente amazônicos e nordestinos –trata-se de uma cultura introduzida na região por migrantes nordestinos durante os 1º e 2º ciclos da borracha e acrescida do folclore amazônico, que se faz presente pela participação de povos indígenas nos festejos.

Para fechar, IARAS traz um apanhado sobre o cenário musical em Porto Velho. Com vocês, a segunda edição de IARAS

Boa leitura a todos, a todas e a todes!

Editorial
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Pole Dance: vulgaridade ou empoderamento?

Entenda sobre a modalidade e os preconceitos que permeiam a prática. Modalidade atrai grande público em Porto Velho

Por Loide Gonçalves e Iasmin Rodrigues

Contratada como Assistente Jurídica há mais de oito meses e com relações profissionais estáveis, um dia, sem justificativa plausível, Jéssica Santos, de 27 anos, foi chamada para a sala do chefe e recebeu um “vou te desligar, não é nada pessoal”. Desempregada e tentando procurar motivos para a sua demissão súbita, a resposta só veio

duas semanas depois: Jéssica foi demitida por praticar pole dance. “Toda minha família ficou perplexa. Não saí por um trabalho ruim, mas sim porque pratico pole [dance]”, disse. Jéssica ficou sabendo do desligamento por coincidência: seu tio conhecia o ex-chefe.

Foi assim que soube que, na realidade, a esposa do seu patrão viu um vídeo dela nas redes sociais praticando na barra de pole dance. “Ele não sabia [que Jéssica fazia o esporte], ficou sabendo por conta da esposa e cumpriu a ordem dela, que nem trabalha lá”, explicou. Além de todo constrangimento e choro, a situação, segundo ela, foi muito complicada, pois teve que ficar no emprego até que fosse contratado alguém para substituí-la.

Depois disso, a dançarina ainda precisou ouvir de pessoas próximas que, talvez, se ela não postasse nas redes sociais, ela não teria perdido o emprego. Muitos receios passaram pela cabeça de Jéssica e, desde o acontecido, ela passou a postar seus vídeos da rotina no pole dance apenas nos “melhores amigos” do Instagram. Essa foi apenas uma das situações que Jéssica e todas as outras praticantes do esporte precisam passar diariamente. Seja pelo machismo, religiosidade ou assédio, as mulheres que escolhem o pole dance, precisam escolher também a resiliência.

SURGIMENTO

Segundo Rita Vieira, professora e historiadora, o surgimento do pole dance não tem ligação com a sexualidade. “Historicamente falando é comprovado que essa é uma arte, uma prática de exercício físico, que existe há muito tempo, que vem de sociedades milenares, como é o caso da Índia e da China, praticado como um grande exercício de força e equilíbrio”, contou explicando que, na época, geralmente era praticado por homens e não por mulheres.

Com esse intuito de ganhar força e equilíbrio, surgiu o pole dance com uma mistura de sociedade indiana e chinesa. De acordo com a profissio-

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Alunas após uma aula de pole dance acrobático Reprodução/Redes Sociais

nal, esse exercício físico chega ao Ocidente atravésda arte circense com grandes malabaristas e artistas em um momento delicado da história.

“[O pole dance chegou] por volta de 1870, quando a Europa está vivendo a La Belle Époque, que é aquele grande momento de desenvolvimento cultural e artístico para esconder os conflitos entre as nações já em vésperas da 1ª Guerra Mundial. Essas artistas circenses serão as grandes atrações dos grandes cabarés da La Belle Époque, principalmente na França”, contou a professora de história Rita Vieira.

A historiadora também explica que, nesse momento, o pole dance passou a ser visto como atrativo sexual e passou a ser ligado a mulheres que trabalham com o corpo. “Daí em diante, ele se torna uma prática ligada a essa questão da sexualidade, do sensual, prática de pessoas que trabalham com prostituição, em grandes casas de show… Mas, na realidade, lá no fundo histórico, ele nem era praticado por mulheres e muito menos estava ligado a sexualidade”, esclareceu.

Séculos se passaram e, até hoje (2023), o estereótipo de que o pole dance é uma prática de mulheres vulgares se mantém. Além da história, outros fatores contribuíram para reforçar esses estigmas. Uma delas foi a religião.

TEMPLO SAGRADO

Por volta de 50 d.C, Paulo escreveu a Primeira Carta aos Coríntios, onde destacou que “Será que vocês não sabem que o corpo de vocês é o templo do Espírito Santo, que vive em vocês e lhes foi dado por Deus? Vocês não pertencem a vocês mesmos, mas a Deus, pois ele os comprou e pagou o preço. Portanto, usem o corpo para a glória dele”. (1º Coríntios 6:19-20). É esse trecho que Keila Barbosa, cristã e pastora de uma igreja evangélica de Porto Velho, usou para dizer que o pole dance é um “assunto delicado”.

Baseada nos princípios cristãos e, principalmente, na Bíblia, livro considerado sagrado pelos cristãos, Keila diz que tenta ver os dois lados: um deles é que muitas mulheres usam para seduzir os homens, outro é que pode ser usado apenas com o cônjuge. Mesmo assim, bate na tecla que o “corpo é santo” e que “nem tudo convém”, como diz outro versículo da carta de Paulo

PREOCUPAÇÃO ADICIONAL

Escolher praticar o pole dance, mesmo que seja uma decisão individual, afeta também pessoas ao redor. Seja com achismos, preconceitos ou, simplesmente, preocupação. Essa última opção é o caso de Renato Stanley, namorado de uma praticante da arte. Ele diz que ficou feliz por sua companheira ter encontrado um esporte que junta duas coisas com que ela se identifica: a dança e a força. Apaixonada por musculação, Rebeca Falcão, namorada de Renato, conheceu o pole dance em 2021 e nunca mais deixou de praticar. Além de frequentar aulas semanalmente, para treinar com mais intensidade, ela comprou uma barra para a sua casa, onde pode praticar os movimentos acrobáticos e também ensaiar as coreografias. Segundo Renato, mesmo achando muito legal a dedicação e todos os movimentos,precisa viver um dilema: “Minha única preocupação é com assédio nas redes sociais mesmo, mas isso sempre vai ter”, desabafou.

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Rebeca Falcão em um dos movimentos da modalidade

NA PELE

Amante de ballet desde criança e, após ver o pole dance na televisão e nas redes sociais, Beatriz Guterres, de 26 anos, começou a se interessar pela modalidade. No primeiro teste, ao acompanhar a sua irmã em uma aula experimental, nunca mais deixou de frequentar o estúdio e se desafiar em cada aula.

Mas, antes mesmo de começar a praticar, segundo ela, já tinha um certo medo em relação ao que poderia ouvir das pessoas. Ao decorrer dos quase cinco anos de treinos, o medo acabou sendo justificável devido aos assédios vividos.

Além dos assédios, uma situação que a marcou negativamente foi quando postou nas suas redes sociais uma coreografia na barra no Dia Internacional da Dança. “Uma moça comentou no vídeo que postei perguntando se eu estava dançando ou fazendo coisa de prostituta”, lembrou, e contou também que é comum aparecer comentários nos vídeos insinuando coisas e constrangendo-a.

As falas que as praticantes de pole dance ouvem são muito parecidas. Jéssica, por exemplo, já chegou a ouvir que praticar esse esporte é “coisa de puta” e que “nunca deixaria minha filha fazer”.

“ENCONTREI MEU PROPÓSITO”

Mesmo com todo esse cenário negativo e percepções deturpadas, Lara Pontes, de 26 anos, decidiu não apenas começar a praticar, mas também empoderar outras mulheres através da arte. Lara começou a frequentar as primeiras aulas em Manaus (AM), em 2019, após receber um convite de uma amiga da faculdade. “Me apaixonei pelo pole [dance] de primeira”, contou.

Quando se mudou para Porto Velho, não conseguia ter frequência nas aulas, por isso decidiu comprar uma barra para treinar em casa. Mesmo sendo muito aberta para o novo, Lara diz que demorou um pouco para se adaptar às roupas curtas por sentir vergonha do próprio corpo. As praticantes de pole dance precisam usar roupas que deixem a pele mais exposta, pois é necessário que haja o contato dela com a barra para conseguir fazer as “travas” necessárias para executar as acrobacias.

Desde que começou a se aventurar na modalidade há quase quatro anos, a professora precisou lidar com muitos constrangimentos, so-

desconfortáveis por conta das postagens, mas sempre filtrei bem, ignorava ou bloqueava. Principalmente vindo do público masculino”, lembra. “Convites” inapropriados falando para ela dançar entre quatro paredes, por vezes, fez Lara se sentir insegura para se apresentar em locais públicos.

No começo, Lara recebeu muito apoio da mãe e da irmã. Seu pai, por falta de conhecimento, não entendeu sobre a modalidade, mas tinha muita curiosidade a respeito. Assim como a maioria das pessoas, ele conhecia apenas o “lado sensual” do pole dance. Logo após conhecer sobre a prática, o apoio foi natural e genuíno. “Um pouco antes dele [o pai] falecer, me disse que não me via em uma área diferente, porque desde criança eu amava me pendurar nos lugares, que não era novidade pra ele”, relembrou com carinho.

Foi em um ponto desocupado do seu pai que nasceu a Cia Levitá, um estúdio de pole dance, lira acrobática e tecido aéreo. Lara, desde as primeiras aulas como aluna no pole dance, já tinha uma certeza: o desejo de ajudar outras mulheres.

“Quando, em uma aula, me deparei com alunas contando suas experiências e o motivo pelo qual escolheram o pole [dance], para superar alguém

Lara Pontes é proprietária e instrutora da Cia Levitá
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Reprodução/Redes Sociais

ou a si mesmas, para elevar a autoestima, para superar um divórcio, por estética e por saúde… Parece clichê, mas foi desse jeitinho! Decidi ser professora”, explicou. Encontrou sócias e, de maneira muito rápida e com pouco planejamento, iniciaram as aulas em setembro de 2021.

“Eu sinto que encontrei meu propósito, não escolheria outro caminho. Creio que a gente só se sinta realizado de forma plena quando podemos contribuir com a transformação de alguém, seja no âmbito físico, emocional, espiritual… Aprendi isso quando conheci o pole e tinha ciência que isso me transformaria também”, explicou Lara Pontes sobre ser instrutora de tantas mulheres.

Lara também descreve que a realização vai além do dinheiro, pois envolve conseguir fazer uma transformação interna tanto em você quanto em quem usufrui do seu trabalho. Empreender no Brasil é um grande desafio e, em um meio que sofre tantos preconceitos como o pole dance, as dificuldades são ainda maiores. “É muito difícil para gente, como instrutoras e empresárias, saber que nossas alunas foram prejudicadas por conta de preconceito. Uma de nossas alunas passou por isso dentro do trabalho, perder um emprego por conta de comentários maldosos que rolam, mais difícil ainda é ter que lidar com comentários do tipo quando vem de outras mulheres, quando deveríamos ter uma rede apoio entre a gente”, contou.

Dentre os cuidados que a Cia Levitá precisa tomar é quanto às divulgações. Segundo a proprietária e instrutora, sempre pedem autorização das alunas antes de postar qualquer coisa. “Paramos até de mencionar as alunas nos stories com o @ aparecendo para que outras pessoas não chegassem ao perfil delas e comentassem algo desconfortável, porque acontece muito de seguirem [a página da companhia] por interesse, só porque a pessoa faz a modalidade”, explicou.

Além disso, outra dificuldade enfrentada como instrutora é o desafio de lidar com o processo de cada aluna e até com as frustrações delas não realizarem um movimento de imediato. Em suas aulas, procura sempre inovar. “Hoje nosso foco é melhorar sempre nossas aulas para melhor atender às alunas, lidar com as dificuldades de um corpo mais rígido, ou com sobrepeso. Mostrar que não é uma questão do tipo de corpo, mas às vezes pela dificuldade do

professor também de apresentar técnicas ou preparos físicos para realização de um movimento específico. Tentamos ser mais humanos, mais sensíveis, isso tudo também faz parte do nosso aprendizado”, contou sobre a relação das professoras com as alunas. Afinal, o pole dance, para muitas praticantes, funciona como instrumento de aceitação, amor próprio e, principalmente, conhecimento do próprio corpo.

EMPODERAMENTO FEMININO

Diagnosticada com bulimia e anorexia aos 12 anos, Karina Dias, de 25 anos, sempre teve problemas voltados à alimentação. Aos 14 anos, também soube pelo médico que tem Transtorno Dismórfico Corporal (TDC), ou seja, uma preocupação exagerada com a própria imagem ao ponto de encontrar defeitos que não existem no corpo. A partir daí, tudo passou a fazer sentido.

Afinal, desde nova Karina tinha dificuldades de se olhar no espelho. “Eu lembro que uma vez eu quebrei todos os espelhos de casa por não aguentar ver o meu corpo. Sempre fui insegura. Usar roupas curtas? Nem pensar… Já cheguei a deixar de ver um amigo de longa data que não via há muito tempo por não querer que ele me visse ‘gorda’. Também já deixei de me relacionar e até de transar por não querer ser vista”, lembrou.

Foi nesse contexto que o pole dance entrou na vida de Karina, que sempre desejou fazer a modalidade, mas não tinha coragem por medo de estar em uma sala rodeada de espelhos e vergonha do próprio corpo. “Minha irmã começou a fazer e me motivou a ir também”, contou. Agora, quase dois anos depois de dar o primeiro passo desafiador e ir à primeira aula, ela afirma que o pole dance mudou a sua vida e a relação com o corpo.

“O pole dance me empoderou como mulher, mas muito além disso, me fez aprender a respeitar o meu corpo. Claro que continuo com os transtornos, mas conseguir ir em cada aula, fazer cada movimento, tem um valor muito grande para mim como mulher. Fez com que eu enxergasse meu corpo de forma mais leve, melhorando minha autoestima e aceitação de quem sou e como sou. Me trouxe liberdade e empoderamento. Atiçou um lado sensual que eu nem sabia que tinha e fez com que eu me enxergue de uma forma mais bonita no espelho”, revelou.

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Em contrapartida, também passou por muitas situações constrangedoras, como por exemplo ser seguida por um homem ao sair da aula de pole dance. Ela contou que ele falava coisas sexuais e chegou a mostrar que estava se masturbando. “Eu não desisto, por ter tido minha vida transformada, mas fiquei apavorada. Até passei a levar outra roupa na bolsa para vestir algo mais longo depois das aulas quando vou para parada de ônibus”, disse, explicando que passou a tomar mais cuidado até nas redes sociais. Jéssica, mesmo após perder o emprego por pra-

ticar o pole, diz que não desiste da modalidade, pois ela é o ponto de descanso e de libertação.

“O pole despertou o melhor de mim, minha autoestima, minha relação comigo mesma, meu casamento, como mãe e mulher”, enfatizou. Além disso, ela incentiva que outras mulheres também conheçam a modalidade: “O que importa é o que você pensa, o que deseja fazer, se isso te faz bem fisicamente e mentalmente, faça! Continue! Porque preconceito nenhum tira de você essa luz e paz que o pole [dance] proporciona”, finalizou.

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Aluna praticando a modalidade na Cia Levitá em Porto Velho

Contato com a natureza profunda; lendas, mitos e tradições; berço da cultura-raiz da Amazônia Ocidental; culinária, artesanato, música. Sim, você está no paraíso!

Por Felipe Nascimento, Juliana Garcez e Mylla Pereira

inda no final do séc. XVIII e início do séc. XIX, o escritor alemão

BEM-VINDO AO PARAÍSO... ... um lugar chamado Nazaré A

Johann W. Goethe já anotava a percepção de que “A natureza é o único livro que oferece um conteúdo valioso em todas as suas folhas”. Rondônia tem cultura correndo em suas veias desde os primórdios, cuja marca principal se abriga em suas comunidades

ribeirinhas – o estado nasceu da relação do povo com o rio Madeira. Essas comunidades, no entanto, foram relegadas ao esquecimento com o passar do tempo, em que pese serem famosas por suas belíssimas tradições culturais, além de estarem cercadas por uma natureza exuberante. Nestas páginas, IARAS faz uma imersão em busca do resgate histórico de uma comunidade localizada às margens do “Madeirão”

Felipe Nascimento
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Pousada da Selva, em Nazaré, um lugar onde as horas são idílicas e lentas, e as distâncias são medidas pelas curvas do rio

e que, seja pela natureza, seja pela população que a habita, é considerada por muitos o “celeiro” da cultura-raiz do povo amazônico: o distrito de Nazaré, localizado a 120 quilômetros do núcleo urbano de Porto Velho e cujo acesso se dá exclusivamente pelas águas do rio Madeira. Nazaré é desconhecida por muitos e, mesmo entre os que a conhecem, pouco se sabe sobre o modo de vida levado por seus

moradores e a sua relação harmoniosa com a natureza, que remete a comunidade a uma posição de protagonismo e resistência no tocante à cultura-raiz da Amazônia. Considerada celeiro da cultura amazônica em Rondônia, Nazaré tem como marcas um povo acolhedor, cheio de sonhos, danças e culturas. Histórias, mitos e lendas da Amazônia se encontram em Nazaré.

Opovo, a terra e o alimento

Valdelurdes Maciel dos Santos, conhecida como Lurdinha, mãe de quatro filhos, mora em Nazaré há mais de 40 anos. Ela nasceu em Uruapiara, no baixo Amazonas e, com 25 dias de nascida, foi para o distrito rondoniense. Com essa conexão estabelecida a partir dos primeiros dias de vida, construiu-se uma relação de amor com o lugar. Para a moradora veterana do distrito, a vida no local é tranquila e a calmaria é apreciada por quem mora ali –esse fato se torna notável quando Valdelurdes conta que, após seis meses em Porto Velho, não via a hora de voltar para a terra natal e se ver longe das agitações da vida urbana.

A família de Lurdinha é produtora de farinha destinada tanto ao consumo próprio quanto para a venda quando há excedente. Segundo ela, o sustento se dá através do trabalho na roça, por isso, a rotina conta com um despertar às quatro horas da madrugada. João Lobato, paraense e pai de Lurdinha, é muito conhecido no distrito. Entusiasta musical desde Uruapiara, trouxe a tradição para Nazaré. João tem um laço visível com o canto e violão, inclusive com

põe as próprias músicas e adora cantar para os visitantes. Mas nem tudo é um mar de rosas em Nazaré. Apesar dos pontos positivos da vida pacífica e da relação de harmonia e cumplicidade com a natureza, a moradora cita o descaso do poder público com a população de Nazaré. “É como se não ligassem pra gente, ficamos praticamente abandonados”, reclama. Apesar disso, mesmo com as dificuldades enfrentadas pela invisibilidade, Lurdinha não abre mão do lugar que cativou seu coração. “Eu gosto muito de tudo aqui. Todos os dias acordo com o canto dos pássaros ao redor da casa, é uma felicidade imensa”.

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Felipe Nascimento

Minhas Veias, Minhas Raízes

“Somos terra do Brasil, somos da beira do rio. Sou de Nazaré, alegria, cultura e fé”, é o que canta o grupo Minhas Raízes, e não há trecho melhor da música “Sou de Nazaré” para sintetizar a efervescência cultural do distrito e a sua profunda raiz com a cultura amazônica. Formado há 18 anos, o grupo é composto por uma família nativa e nasceu como um coral de crianças da comunidade. Durante a pandemia de covid-19 o festival tradicional do distrito de Nazaré, que acontecia anualmente, foi interrompido e, em 2023, acontecerá pela primeira vez no pós-pandemia, sendo o grupo a atração principal. Tullio Nunes não só é um dos mentores, como acompanha a evolução do Minhas Raízes desde os primórdios.

O músico Tanisson Passos cresceu como integrante do Minhas Raízes, para ele o início foi lúdico, algo que ele via apenas como uma brincadeira. “O processo de evolução no grupo foi muito legal porque a gente levava tudo como uma brincadeira. Depois do meu primeiro show eu percebi que fazer arte e música é algo que causa impacto e emoção nas pessoas. Como eu venho do Baixo Madeira, nossa relação com a natureza é muito forte e nossas

músicas mais antigas falavam sobre as lendas amazônicas, o que foi muito marcante para mim”, disse o artista. A música favorita de Tanisson é “Minhas veias”, o que o emociona, pois foi cantada por ele na infância. “É uma música que gosto porque relembro meu passado e me faz perceber a diferença da voz de hoje para a de antigamente” comenta. O grupo realiza, em média, seis shows anualmente, se fazendo mais presente em shows culturais e, principalmente, no Festival de Nazaré.

Outro componente do grupo, Thallysson Passos, conta que a pandemia foi um período difícil para a comunidade, que teve que lidar com a perda de integrantes antigos. Para o músico, a maior motivação para que o Minhas Raízes continue a produzir não é apenas o processo de criação, “mas também trabalhar a música com o propósito de ajudar crianças e adolescentes a terem uma noção maior sobre a cultura e a criação de bioinstrumentos”. O grupo também busca educar e reeducar crianças, pois em Nazaré muitas delas acabam indo para o garimpo. “Essa prática, querendo ou não, acaba tirando um pouco da infância, do viver e do ser da criança”, afirma o músico.

Grupo Minhas Raízes em apresentação realizada em março, na capital, Porto Velho
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Juliana Garcez

Por intermédio de Tullio Nunes, o Minhas Raízes foi apresentado ao cantor porto-velhense Ixã Baribay, jovem que possui raízes do povo Huni Kuî, etnia indígena do Acre. Em março deste ano, o cantor realizou um show que contou com a presença do Minhas Raízes. “Tullio tornou possível que fizéssemos um projeto mais Amazônico e que também faz parte de uma raiz muito forte em mim, trazendo origens que têm tudo a ver com o que o grupo tem a oferecer”, comenta Tullio Nunes, mentor do grupo Minhas Raízes.

PROJETANDO O FUTURO

Com o objetivo de fomentar a cultura, a educação e o lazer no distrito de Nazaré, o Minhas Raízes desenvolveu um projeto musical com vistas às comemorações dos 19 anos de fundação do grupo. A iniciativa tem como objetivo o resgate e fixação da cultura “beradeira” na comunidade. “Até hoje a gente escuta a utilização do termo ‘beradeiro’ como sendo algo pejorativo, diversas vezes escutamos dentro do barco pessoas rindo e nos chamando de índios, beradeiros e matutos. Hoje conseguimos ver cada vez mais pessoas reafirmando o orgulho de serem beiradeiros. Isso é fruto do trabalho conjunto de toda a comunidade e do nosso grupo”, avaliou Tullio Nunes.

O trabalho realizado pelo Minhas Raízes começou antes da primeira música. Foi com o professor Maciel Nunes, pai dos fundadores da banda, que há cerca de trinta anos os projetos de fomento à cultura e educação surgiram na comunidade. Com a ideia de promover o resgate da própria cultura, o professor levou o teatro, a música e a educação para Nazaré. Atualmente a única escola municipal que existe no local leva o seu nome. Em uma das canções do Minhas Raízes, os filhos e netos dedicam uma homenagem a Maciel Nunes. Na música, eles cantam que em sua despedida até o barranco chorou. Hoje o professor descansa entre as matas do famoso lago do Peixe Boi.

Numa atitude de resistência, os filhos de seu Maciel cresceram com a certeza de que a educação transforma. O surgimento do grupo se deu com a ideia de inserir a música no cotidiano e currículo escolar. A única exigência para entrar no grupo era manter excelentes notas na escola. O projeto iniciou com 25 crianças, entre 6 e 12 anos. Existem muitas lendas e histórias que as crianças e toda a comunidade acreditam, e as músicas falam sobre elas.

Juliana Garcez Tullio Nunes, principal mentor do grupo Minhas Raízes Divulgação/ Minhas Raízes Os bioinstrumentos são feitos com madeira, pedras e folhas
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Tradições, lendas e vivências sociais e gastronô micas são os temas principais das músicas. Muitos instrumentos são de fabricação própria, os bioins trumentos são feitos com madeira, pedras e folhas encontradas na mata ou no lago de Nazaré. Chama dos de instrumentos de efeitos, eles reproduzem os sons da mata e dos animais. Todos os integrantes da banda, além de serem da mesma família, mantém a tradição e todos os nomes começam com a letra ‘T’. Tullio, Teimar, Timaia, Thaís, Tanisson e Thallys son, são alguns deles. As músicas contam histórias e a realidade vivida naquele local e foi fundamen tal para o desenvolvimento de crianças que hoje são adultas. “É muito bacana ver como eles cres ceram, hoje são os filhos que iniciam nos projetos. Todas as crianças que participaram do grupo estão formadas atualmente, e em universidades federais” disse Túllio, que acrescentou que “o ensino técnico a gente acaba aprendendo, mas o ensino humano só a cultura pode oferecer”.

Um dos fundadores da banda, Timaia Nunes é professor e, assim como seu pai, se dedica a inserir a cultura musical de Nazaré na comunidade e na escola. A grade curricular não tem a música como disciplina obrigatória, mas Timaia insere atividades culturais de forma extracurricular. Defensores da cultura e da educação como base da existência humana, o Minhas Raízes já acumula sete álbuns musicais. O primeiro foi feito com as crianças e as músicas são cantigas de fácil memorização. O segundo álbum surgiu sete anos de

O músico Teimar mantém a tradição familiar e ensina ao neto a manusear os instrumentos do grupo Minhas Raízes

“O projeto poderia ser bem maior, se recebesse o apoio necessário. A comunidade não tem investimentos previstos em lei. A prefeitura afirma que não apresentamos projetos, o que é mentira. O Estado não reconhece nosso festejo, pensamos que são políticas de governo e não de Estado, são políticas para si e não para gente”, disse Tullio.

O Instituto Minhas Raízes também é um projeto desenvolvido pelo grupo, e tem por objetivo a educação. Um projeto cultural, social e ambiental que tenta diminuir a evasão escolar do distrito. “Não queremos levar o ribeirinho e nossa cultura para os outros, queremos que venham até nós e nos conheçam. A gente quer que o mundo conheça as comunidades ribeirinhas”, avaliou Tullio.

Divulgação/ Instagram Minhas Raízes

Divulgação/ Minhas Raízes

O músico Timaia se dedica a inserir a cultura musical de Nazaré na comunidade e na escola
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Festival de Nazaré é Patrimônio Cultural de Rondônia

Vívido, alegre, contagiante… um esplendor de cores e energia. São inúmeros os adjetivos que poderiam descrever uma das maiores festividades tradicionais ribeirinhas da região norte: O Festival de Nazaré. Idealizado e realizado há 40 anos, o Festival Cultural de Nazaré é um evento de grande porte, tão característico que leva o nome do Distrito e é conhecido em todo o estado de Rondônia e adjacências.

Em 2023 o festival está previsto para acontecer nos dias 28 e 29 de julho e, como comentou o músico Túllio Nunes, a ideia é trazer vida e alegria aos participantes, e não há maneira melhor de fazer isso do que através das cores, portanto, esse será o tema do evento em 2023: As Cores do Encanto. A expectativa para esta edição é de que o festival seja um dos maiores já feitos. A festa é tão querida que o primeiro lote de ingressos esgotou em menos de duas semanas.

Por sua importância, o evento se tornou Patrimônio Cultural e Imaterial do Estado de Rondônia. A proposta do festival deste ano é a de trazer bandas

musicais da cidade, o que proporcionará inclusive uma maior diversidade musical. A multiplicidade também será bem-vinda nas comidas típicas, que terão como foco as produções regionais, a fim de fazer com que o público sinta, através dos cinco sentidos, toda a riqueza de Nazaré.

Lurdinha comentou que a relação da comunidade de Nazaré com os estudantes da UNIR – Universidade Federal de Rondônia – é próxima, já que todos os anos os discentes visitam o distrito não só para festivais, mas também para estudos e obtenção de conhecimento sobre povos ribeirinhos. A reitora da UNIR, professora-doutora Marcele Pereira, realizou diversas pesquisas no distrito, como o trabalho intitulado “Banzeiro da memória: a extensão universitária e a experiência do Programa Em Defesa do Patrimônio Cultural na Comunidade Ribeirinha de Nazaré”. Além do ensino e da pesquisa, a gestora da UNIR faz questão de trazer o Grupo Minhas Raízes para participações em eventos da Universidade, buscando reafirmar a importância da cultura local.

Divulgação/ Minhas Raízes

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O festejo de Nazaré é regado a muita música regional e exalta a cultura, os mitos e as lendas amazônicas

Marcele diz que “o projeto que desenvolvemos no âmbito do Proeza nacional, edital contemplado com recursos públicos para extensão, nos permitiu contribuir com o processo de preservação da memória e dos patrimônios culturais locais ribeirinhos. Ver a manifestação cultural dos moradores que nasce da valorização das memórias locais, com destaque para a cultura da Amazônia e dos povos tradicionais, sem dúvida enriquece o processo de valorização e permite envolver toda a comunidade em ações culturais que tornam mais fortes seus moradores, suas memórias e trajetórias de vida. O compromisso social que temos com as comunidades ribeirinhas se destaca pelo direito à memória e preservação de seus patrimônios. Vida longa ao festejo de Nazaré, e que possamos ver iniciativas com políticas públicas para que esses festejos aconteçam em diversas comunidades que precisam de igual atenção”.

UM LUGAR DE PAZ

Nazaré é um mar de vivências, de cultura e de conexão que, todos os anos, atrai pessoas engajadas em obterem novas experiências, que marcam toda uma vida e que trazem de volta aqueles que por lá um dia passaram. Os cantos dos pássaros de manhã cedo. O barulho da cigarra anuncian-

Madeira de cedro cai por questões naturais sobre as águas dos rios, e são reutilizados nas produções de marcenarias

som que emana da natureza.

Cerca de 80 famílias habitam a comunidade, sendo que a maioria mora no início do vilarejo. Mas, desbravando o local, percebe-se que eles vivem espalhados pelo território, que fica a 120 quilômetros da capital rondoniense, para onde a única via de acesso para os moradores é o barco, numa viagem que dura, em média, 10 horas de navegação contra as correntezas do rio Madeira.

Réplica em miniatura dos barcos que descem o Baixo Madeira, produzidos por Timaia e seu filho, Tayson

Felipe Nascimento
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Felipe Nascimento

O lago Peixe-Boi, próximo de Nazaré, é uma extensa área de água em cor negra, distinguindo-se da cor barrenta do rio Madeira. É um dos atrativos turísticos da região, sendo que o seu acesso se dá por canoa, que é o principal modo de locomoção da população local.

Durante essa reportagem, foi possível aferir que o povo da comunidade de Nazaré, mesmo precisando se deslocar até a cidade para aquisição de alimentos e remédios, não troca seu modo de vida pelo urbano, pois não se sentem integrados a uma vida de correrias. Emblemático é o caso de Lurdinha, que teve que passar alguns dias em Porto Velho, pois estava enferma. Tão logo melhorou, ela voltou às pressas à sua comunidade. Lurdinha exala em seu sorriso a felicidade que é estar de volta à sua residência, lugar com o qual estabeleceu laços profundos devido à convivência de mais de 40 anos – tanto com o lugar quanto com as pessoas.

Pai e filha moram em duas casas distantes de toda a comunidade. João Lobato reside numa casa de madeira pequena, com telhado de alumínio, de frente para a casa de uma de suas filhas. No quintal, há diversas plantas e árvores, como a tão conhecida seringueira, que lhe remete a seu pai, um homem que na época da Borracha, saiu do Pará para o Amazonas, trabalhando na extração da seringa.

O dia começa cedo para Valdelurdes, trabalhador rural. A imensa plantação de mandioca é fruto de muito esforço de Lobato, que com 89 anos afirma acordar todos os dias às 05h00 para trabalhar no roçado. Além da música, é possível apreciar barcos feitos por Timaia e seu filho, Tayson. Ensino de marcenaria que se passa por geração, trabalho executado por meio do companheirismo entre pai e

filho. O casco dos barcos é produzido por Timaia, já a montagem do barco, com mais detalhes, é realizada por Tayson.

Na Pousada de Selva, de propriedade de Aleita e Timaia, é possível acompanhar o trabalho da família realizado por meio de pinturas de quadros e desenhos de animais esculpidos em tábuas de madeira cedro. Aleita organiza a pousada há mais de nove anos. Ela organiza um grupo de dança de carimbó, que se apresenta no festival que acontece na comunidade todos os anos em julho. Membro de uma família talentosa para a arte e a cultura, Alieta não só ajuda nas coreografias, mas também confecciona as roupas usadas pelos integrantes do grupo de dança.

Essa é a Comunidade de Nazaré, lugar onde seus moradores se sentem felizes em acolher todos que os visitam. Lugar onde se chega e já é possível se deparar com alguém sorrindo em sua direção querendo familiarizar-se. Mas, além de tudo isso, um povo que preserva sua cultura, ensinando aos mais novos a valorizá-la.

Para muito além da música, Nazaré transpira arte e cultura. Pintura realizada por Timaia reproduz a exuberante fauna e flora da região
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Felipe Nascimento

Barcos de turismo no rio Madeira levam turistas a conhecerem a história, a cultura, a gastronomia típica e as belezas naturais de Porto Velho

Por Andressa Vassilakis, Débora Costa, Jainni Victória e Raimundo Filho

orto Velho tem muito a oferecer não apenas aos visitantes, mas também aos próprios habitantes que não conhecem as atrações turísticas locais. Uma delas é o passeio de barco pelo rio Madeira, que junta várias belezas urbanas e naturais em uma única atividade, incluindo o boto cor-de-rosa, as paisagens naturais, a gastronomia e uma rica história cultural.

Um dos principais pontos turísticos da capital rondoniense, o rio Madeira atrai pessoas de várias partes do Brasil e do mundo. O passeio de barco é a principal atração para aqueles que desejam desbravar o rio, na sua parte urbana, e apreciar o magnífico pôr do sol, além de desfrutar pratos e petiscos típicos da região.

O roteiro do barco, por ser de fácil acesso, é desejado por turistas de diversas partes do país. O empreendedor goiano Gustavo Ofugi é um desses que ansiava em conhecer o Rio Madeira. Visitando Porto Velho pela primeira vez, o turista conta que tinha muita vontade de conhecer as belezas do “Madeirão”. Ele já havia admirado o rio anteriormente e, numa rápida

visita ao Porto do Cai n’Água, onde ficam atracadas as embarcações, e ao se deparar com a visão das águas, pensou: “Eu quero fazer o passeio”.

Rio Madeira: um passeio no tempo e no espaço P

A curiosidade de ir até a barragem da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio e explorar as águas da Amazônia atraíram Gustavo para o passeio. Ele conta que apenas ouvia falar do rio Madeira, que é bastante conhecido fora da região. Conhecer rios e fazer passeios históricos e culturais já é parte da rotina de Gustavo. Sempre que está em uma cidade que tem rio, deseja conhecê-lo. O turista conta que achou o rio Madeira muito bonito, de forma que combina não só com Porto Velho, mas com o próprio estado de Rondônia.

Gustavo ressalta a importância do passeio para o turismo local. “É muito bom para divulgar a região, o rio e suas belezas. É bom para que as pessoas de outros estados saibam sobre a cultura de Porto Velho”. Com um olhar visivelmente de admiração, o turista goiano disse que “conhecer o rio Madeira, um rio de águas caudalosas, famoso no mundo todo, foi um sonho realizado”.

O turista Gustavo Lucena veio de Goiás para conhecer as belezas do Rio Madeira : “Um sonho realizado”
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Raimundo Filho

OS ENCANTOS DO RIO MADEIRA

O rio Madeira é conhecido por sua fauna e encantos. Afinal, quem nunca ouviu falar dos botos que nele vivem ou do pôr do sol que suas águas turbulentas refletem? Não é à toa que um dos principais rios da região Norte é bastante visitado pelos turistas que passam por Porto Velho e adjacências.

Conhecido por muitos, tanto por sua história que envolve o início da ocupação da cidade de Porto Velho quanto por sua beleza natural, o Madeira tem sua nascente na cordilheira dos Andes, localizada em território boliviano. Conhecido como Rio Beni em seu trecho inicial, percorre a Bolívia e, posteriormente, passa pelos estados brasileiros de Rondônia e Amazonas. Trata-se de um dos maiores afluentes do rio Amazonas, com uma extensão total de mais de 3.200 km, sendo que cerca de 1.400 km passam pelo Brasil.

PELAS ÁGUAS DO MADEIRA

O passeio de barco pelo rio Madeira oferece diversas oportunidades para os turistas conhecerem a região amazônica, sua fauna e flora, além da cultura local. Durante o passeio, é possível ver diversas espécies de animais, como jacarés, botos cor-de-rosa, macacos e varia-

das espécies de aves, além de plantas e árvores nativas. Outro destaque é a chance que aqueles que realizam o passeio têm de provar a comida típica da região, com pratos que vão de filé de pirarucu à isca de tambaqui.

O passeio de barco também oferece uma visão única das paisagens naturais do Rio Madeira. Durante o trajeto, é possível observar as mudanças na vegetação, a diversidade de cores e formas da paisagem. O trajeto, que vai do Porto do Cai n’Água até as proximidades da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, é um verdadeiro espetáculo para os olhos, encantando a todos que o fazem.

RECONHECIMENTO

Devido ao seu grande valor histórico e cultural no município de Porto Velho, o tradicional passeio de barco pelas águas do rio Madeira agora é Patrimônio Cultural. A Prefeitura de Porto Velho sancionou a Lei n° 3.009, de 10 de janeiro de 2023, que declara o passeio como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial da região.

Sendo uma das maiores atrações turísticas de Porto Velho, a cerimônia para oficializar o passeio como Patrimônio não poderia ser realizada de outra forma: um passeio pelas águas do Madeira. O evento, que aconteceu poucos dias após o sancionamento da Lei, reuniu autoridades, representantes e convidados. O passeio ganhou um dos maiores reconhecimentos pelo poder público, o que gera visibilidade e, consequentemente, maior lucro para os donos das embarcações. Isso afeta diretamente a cultura, história e turismo local.

O passeio de barco no rio Madeira também conduz o turista a uma viagem gastronômica, sendo que o peixe é a estrela do cardápio tipicamente amazônico

O professor, historiador e vereador Aleks Palitot (PTB), autor do projeto de lei, ressalta o contexto histórico e a importância cultural de tornar o passeio Patrimônio Cultural. “A lei foi uma forma de buscar visibilidade para a causa dos donos das embarcações, é esperado que os passeios tenham um receptivo semelhante ao que acontece na Praia do Jacaré, em João Pessoa, por ser um portfólio de sucesso e cujo modelo pode ser trazido para Porto Velho”, comenta o parlamentar.

Arquivo pessoal/
Marcos Passos
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O vereador também informa que existem planos para aumentar o público nos passeios. “A aplicação da padronização do passeio nas quatro embarcações, com músicas regionais e comidas típicas, produzirá um ambiente diferenciado”, informa ele.

A Secretaria Municipal de Indústria, Comércio, Turismo e Trabalho (SEMDESTUR) trabalha em parceria com o historiador, e continua buscando alternativas para beneficiar os donos das embarcações. Aleks conta que “a SEMDESTUR montou um trade turístico só para o passeio de barco, colocando dentro do roteiro do município e providenciando um portal de identificação, informando o local do passeio, os horários e guiando até as embarcações”.

O turismo de barcos está diretamente relacionado à economia local. O presidente da Associação dos Barcos de Turismo e Flutuantes do Rio Madeira, Marcos Barroso Passos, comenta a importância da atividade para ele. “Simplesmente tudo que eu conquistei na minha vida vem do trabalho no barco”.

Marcos celebra o reconhecimento recebido pela Lei nº 3.009/2023 e afirma que seu principal objetivo como presidente da associação é “gerar melhorias e melhores condições de trabalho para todos os membros da associação”.

Os passeios estão disponíveis de segunda a sexta-feira, das 17h30 às 18h30. Aos finais de semana e feriados, os passeios acontecem das 9h às 18h. Tendo lotação de mínimo 12 pessoas, o barco sai para passeio com duração de 1h. O valor da passagem é de R$40 por pessoa, crianças com até 10 de idade pagam a metade.

A empresa de embarcações Nossa Senhora Aparecida II, já atua no ramo há mais de 14 anos. O gerente, João Victor Lopes da Silva, explica que, com o decorrer do tempo, a empresa passou por mudanças significativas, como a ampliação para um espaço de bebidas e porções, além de tam bém trabalhar com locação para eventos e viagens.

O gerente ressalta a importân cia de o turismo náutico ser reco nhecido como patrimônio cultu ral. “Trabalho a vida toda aqui, ver essa atividade ser reconhecida traz uma alegria muito grande, eles não podem tirar a gente do que é Passeio de barco no

Agora o passeio é patrimônio cultural, isso é um ponto positivo para a gente”. O passeio de barco pelo Rio Madeira é uma oportunidade única de conhecer uma das regiões mais ricas em biodiversidade do mundo.

Além disso, oferece uma chance para aprender sobre a cultura local ao mesmo tempo em que se desfruta de uma experiência turística inesquecível.

O turismo de barcos é uma atividade importante em um contexto geral para Porto Velho. Além de oferecer uma experiência única para os turistas, a atividade gera empregos, contribui para a economia local e promove a preservação da natureza. É uma atividade que deve ser incentivada e valorizada para que a cidade continue atraindo visitantes de todo o mundo.

rio Madeira agora é Patrimônio Cultural de Porto Velho Arquivo pessoal / Marcos Passos Arquivo pessoal/ Marcos Passos O casal Edimeri e Marcos vive do turismo de barco nosso.
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Festa junina Uma festa,

muitas culturas

Datado do século XVI, o arraial junino é uma festa folclórica e popular com origens europeias. De acordo com historiadores, era considerada uma festividade pagã que comemorava o início do verão no Hemisfério Norte e acreditava-se que os rituais afastavam maus espíritos ou pragas que prejudicassem as colheitas. Posteriormente, a igreja católica adaptou-a para o cristianismo, pois a celebração ocorria na mesma época de São João Batista, em 24 de junho.

Por intermédio dos colonizadores portugueses, o arraial junino chega ao Brasil já definido como cele-

bração cristã e, por aqui, conforme vai se difundindo pelo vasto território, agrega diferentes traços culturais – de raízes africanas e indígenas, por exemplo –, se manifestando de formas diversas e se firmando como festa folclórica e popular em todas as regiões do país.

De acordo com o professor-doutor Josué da Costa Silva, do Departamento de Geografia da Unir –Universidade Federal de Rondônia –, especializado em Geografia Cultural, “As festas juninas têm por base o ‘agradecer pela safra’, o ‘festejar sempre’, o que explica a forte presença de símbolos rurais inseridos nos rituais juninos”.

Os arraias juninos nasceram na Europa mas, atualmente no Brasil, apresentam-se com peculiaridades culturais africanas, brasileiras e amazônicas.
Brincante em ensaio de quadrilha junina em Porto Velho: os arraiais unem as comunidades durante o ano inteiro
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Ana Clara Duzanowiski

Para o professor e geógrafo, Aluísio Moreira, na Amazônia o arraial junino se apresenta como um grande mosaico de culturas, pois carrega traços regionais acrescidos de culturas de todo o país que foram introduzidas por constantes ondas migratórias.

ENCONTRO DE REGIÕES

As festividades juninas se fazem presentes em todo território rondoniense. Nota-se que, na quase totalidade das cidades do interior, é forte a presença de tradições sulistas nos eventos, dada as características da ocupação desses territórios por migrantes oriundos dessa região. Em Porto Velho e Guajará-Mirim, porém, a festa assume traços tipicamente amazônicos e nordestinos – trata-se de uma cultura introduzida na região por migrantes nordestinos durante os 1º e 2º ciclos da borracha e acrescida do folclore amazônico, que se faz presente pela participação de povos indígenas nos festejos.

Em Porto Velho a festa junina é uma forte manifestação cultural e se espalha por diferentes comunidades e bairros da capital, sendo que o seu auge se expressa no Arraial Flor do Maracujá – uma verdadeira mescla de culturas, onde a quadrilha junina

tipicamente nordestina e o boi-bumbá amazônico se encontram e caminham de mãos dadas numa mesma coreografia.

Na capital rondoniense, a festa junina se apresenta muito além da tradicional dança junina – uma espécie de ballet com vários personagens, como o casal de noivos, o padre, o guarda e o casal de rei e rainha.

Por aqui fazem-se presentes ainda o seringueiro, o caçador e o boi-bumbá – é a cultura amazônica se manifestando com seus personagens, suas lendas e seus folclores.

É impossível não se encantar com apresentações de quadrilhas juninas como a Rádio Farol (1997 –atual) e Jucadiro (2017 – atual). Não seria exagero afirmar que a preparação desses grupos para a Flor do Maracujá, em muitos aspectos, se assemelha às das escolas de samba do carnaval carioca. Três meses antes das festas, iniciam-se os ensaios exaustivos das coreografias a serem apresentadas por brincantes e personagens.

A Rádio Farol é a maior campeã do concurso de quadrilhas do Arraial Flor do Maracujá – são 13 títulos desde a fundação do grupo, em 1997. O acesso se deu logo na primeira participação, ocasião em que a quadrilha também já levou o primeiro lugar. Com mais de 20 anos de história, a Rádio Farol percorreu um caminho pontuado por prêmios e resiliência. De acordo com a coreógrafa e uma das fundadoras do grupo, Luciene Lopes, “Ano a ano buscamos melhorar e inovar. O nome carrega história, pois no bairro que sedia a junina, o Novo Estado, existia um farol na beira do rio Madeira que servia para orientar os tráfegos fluvial e aéreo da capital”, conta a coreógrafa.

Elementos do folclore amazônico se misturam com clássicos do arraiá junino nas perfomances
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Izabela Muniz

A Rádio Farol é a única do estado que conta com sede própria onde ocorrem ensaios, reuniões e preserva grande acervo de materiais e roupas da quadrilha. Para o presidente da entidade, Severino Castro, a história do grupo vai muito além da dança. “Se criou uma família, é toda uma comunidade vibrante e unida, dedicada a manter viva um movimento que, apesar de relativamente novo, já é tradicional aqui no bairro”, afirmou Severino.

Já tendo sido eleito “melhor noivo do país”, o brincante Cristiano Lima diz que, nas quadrilhas juninas, é possível encontrar brincantes totalmente apaixonadas. “Registra-se que vivemos uma época de ‘apagamento’ cultural’ e a falta de apoio oficial é enorme”, analisa o dançarino, que destaca ainda que, mais do que uma dança, o arraial junino é pura história e resistência.

A coreógrafa Luciene Lopes lembra dos três anos de pandemia da Covid-19, que causaram não só “um verdadeiro choque na comunidade, mas uma enorme dificuldade em manter a sede ativa”. Nesse sentido, a coreógrafa conta que, juntamente com os dançarinos do grupo, vive-se um momento ímpar, de grande expectativa, com a volta da Flor do Maracujá, “Pois vamos com tudo em busca de mais um título para a nossa coleção”, avisa, lembrando que a Rádio Farol se caracteriza pelo encontro de gerações, ou seja, num mesmo grupo é possível se perceber desde crianças até idosos.

A Rádio Farol é a maior campeã

do concurso de quadrilhas do Arraial Flor do Maracujásão 13 títulos .

Diretora fez sacrifício pessoal para viabilizar a junina

As cores da Junina Caipiras da Diversidade Rondoniense (Jucadiro) vão muito além do cetim de cor vibrante que se movimenta freneticamente e dos babados bem trabalhados que envolvem as roupas de seus brincantes. A quadrilha traz como uma das maiores marcas o acolhimento, pois possui um corpo de dançarinos LGBTQIAP+. Fundado em 2017, a diretora e uma das fundadoras do grupo, Gilmara Lopes, lembra que enfrentaram críticas e desmotivação por parte de pessoas que não acreditavam na viabilidade de uma junina periférica da Zona Leste de Porto Velho, mas determinados, os fundadores

transformaram as críticas em motivação e, desde o primeiro ano, já colheram bons frutos.

Apesar das enormes dificuldades financeiras para a aquisição de suprimentos de arte e obstáculos logísticos para encontrar um espaço adequado para os ensaios, a Jucadiro mostrou o seu peso, conquistando o segundo lugar em seu primeiro ano no grupo de acesso da Flor do Maracujá. “Para colocar a junina na Flor, eu tive que vender uma casa. Eu vi muita garra, determinação, talento e paixão pela arte no movimento e soube, imediatamente, que teria que me sacrificar pelo grupo”

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Rádio Farol ensaia para a edição do Flor do Maracujá de 2023

Minha flor, uma flor, nossa Flor do Maracujá

O Arraial Flor do Maracujá é uma das maiores e mais tradicionais festas da região Norte do Brasil, sendo a maior festa junina da Amazônia. Reúne várias quadrilhas e bois-bumbás que se apresentam em dias variados, atraindo grande número de apreciadores da cultura folclórica regional. A festa nasceu de juninas escolares ainda na década de 1980 e incorporou a tradição amazônica do boi-bumbá, que surge em 1920, em Porto Velho.

Segundo o presidente da Rádio Farol, Severino Castro, a Flor do Maracujá foi organizada pelo ex-vereador e presidente da Câmara Municipal, Joventino Ferreira Filho, morador no Bairro do Triângulo desde a década de 1950. Até 1981, o governo do extinto Território Federal de Rondônia apoiava apresentações que ocorriam nas quadrilhas juninas. À época, tratava-se de uma tradição estudantil, sendo que colégios como Barão do Rio Branco, Carmela Dutra e Duque de Caxias eram as maiores referências em arraiais juninos na capital.

Segundo explicou João Alves, conselheiro financeiro da Federon – Federação de Quadrilhas, Bois-Bumbás e Grupos Folclóricos do Estado de Rondônia –, até 1989 os grupos juninos recebiam troféus pela par-

ticipação no arraial. No ano seguinte, foi introduzido o concurso de bois e quadrilhas e, atualmente, a Mostra de Quadrilhas e Bois-Bumbás faz parte do calendário turístico oficial de Rondônia.

Em 2014, quando aconteceu a histórica cheia do Rio Madeira, o estado passou a coordenação do Flor do Maracujá para a Federon, entidade que abarca todos os grupos folclóricos e associações congêneres em Rondônia. Na época foi assinado um decreto onde o governo não poderia realizar nenhum tipo de evento por conta dos gastos com as comunidades atingidas pelas enchentes. Em 2023, o governo de Rondônia volta a assumir a coordenação e pretende resgatar a cultura e folclore rondonienses por meio da tradicional festa.

Historicamente, quando termina o Flor do Maracujá, na mesma noite se anuncia o calendário do ano seguinte. Desde que foi transferido de próximo ao centro da cidade, na área onde hoje se localiza o prédio do Tribunal de Justiça e próximo à atual Assembleia Legislativa, o arraial só teve alguns momentos mais perto daquilo que foi no passado em dois ou três anos, quando foi realizado no Parque do Tanques. A partir de então, a festa entrou em decadência, situação apro-

Izabela Muniz Quadrilhas como a Rádio Farol e Jucadiro se assemelham às escolas de samba cariocas no engajamento da comunidade
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fundada pela pandemia.

Em 2023 o Flor do Maracujá voltará a ser grande?

A depender das quadrilhas e grupos de bois-bumbás que teimam em sobreviver (mais de 20), a resposta é sim, em que pese a falta crônica de apoio não só dos órgãos públicos como de empresas privadas. Uma das alternativas tem sido a busca de apoio de deputados que, por meio de emendas parlamentares, têm ajudado os grupos de suas preferências ou redutos eleitorais. Neste pacote estão 12 grupos beneficiados por emendas. Vinte e cinco grupos, porém, encontram-se desamparados, sem qualquer tipo de apoio oficial. Há conversações em andamento para que o governo estadual forneça um aporte financeiro por intermédio da Superintendência da Juventude, Cultura, Esporte e Lazer. Há ainda tentativa de apoio de empresas privadas, mas essas são tratativas incertas.

Ano a ano, mesmo que a paixão dos dirigentes e dos milhares de participantes dos grupos jamais tenha diminuído, ela foi inversamente proporcional ao apoio dos governos, entidades, instituições e outras. Em seu auge, o Arraial Flor do Maracujá chegou a ser uma atração mundial, quando foi transmitido ao vivo pela emissora de TV Record News, entre 2009 e

2012, chegando a pelo menos 156 países.

Em 2023, o Flor do Maracujá volta a ser realizado no período junino após seis anos ocorrendo em meses que não correspondiam à época do São João. Este ano, o festejo será de 23 de junho a 2 de julho no Parque dos Tanques. Apesar do anúncio da volta do evento, algumas pessoas ligadas a área da cultura estão com um “pé atrás” quanto à realização do mesmo, já que houve ocasiões em que a data foi anunciada, as quadrilhas começaram a ensaiar mas o Flor foi cancelado, como explica João Alves: “ As expectativas estão altas para esse ano, mas desde o ano passado, que foi anunciado e cancelado semanas depois, tentamos controlar as expetativas”.

Além da desconfiança quanto à realização do festival, muitos grupos andam sem rumo por conta da falta de apoio. João Alves lembra que “É desigual, já aconteceu de um grupo ser apadrinhado por políticos e ter até R$ 100 mil para custear a participação no evento, enquanto outros sobrevivem com quase nada”, conta. Certo mesmo é que todos torcem pelo sucesso da edição 2023 do Arraial Flor do Maracujá. Todos mesmo – dos dançantes e brincantes dos grupos ao grande público.

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Izabela Muniz Em Porto Velho, a festa se apresenta além da dança junina – uma espécie de ballet com personagens variados

Música: Educação artística começa cedo

Porto Velho vive ápice da musicalização e de aprendizagem de instrumentos musicais com a ascensão dos centros artísticos na cidade

Davi Rodrigues, Ian Machado, Jorge Fernando e Kyara Negretti

Amúsica é uma linguagem artística e cultural universal. Desde o início das poesias trovadorescas, o eu-lírico realiza cantigas de amor, cantigas de amigo, escárnio e maldizer. A princípio, a música possui a capacidade de desenvolver a mente humana, a fim de promover o lado lúdico, a socialização, a alfabetização, entre outros fatores importantes.

Em Porto Velho, em 1989, a Escola Municipal de Jorge Andrade – conhecida como Centro de Arte e Cultura Jorge Andrade, devido á Lei Complementar nº 772, que transformou as Escolas Municipais de Música em Centros Municipais de Arte e Cultura Escolar – iniciou as suas atividades. Ao longo dos anos, passou por diversos processos de reformas, aquisição de instrumentos, contratações

de professores, e formou muitos estudantes. O Centro de Arte e Cultura Jorge Andrade tem como objetivo oportunizar aos estudantes das escolas municipais o acesso ao aprendizado de instrumentos musicais. A inserção no centro artístico ficou mais prática e fácil, pois é realizado por meio de edital. Além da Jorge Andrade, em Porto Velho há outros centros artísticos, como Som na Leste e Francisco Lázaro dos Santos. De acordo com Rosicleia Barbosa, diretora do Centro de Arte e Cultura, há uma valorização maior dos segmentos artísticos na cidade com a nova gestão municipal: “Podemos perceber no município uma valorização maior, não só no campo da música, mas como outras linguagens da arte. Hoje, a nossa obrigatoriedade é atender aos estudantes da escola municipal. A partir desse ano conseguimos inserir a dança e o teatro também. Por anos, esses três espaços, que até 2019 eram Escolas de Músicas (Jorge Andrade, Francisco Lázaro dos Santos e Som na Leste), ficavam à mercê, fazíamos ações voluntárias para comprar instrumentos e vivíamos de doações, mas agora voltou-se um olhar sensível para os centros de arte”, disse a gestora.

Da bateria à guitarra, passando por instrumentos mais clássicos como o piano e o violino, em Porto Velho já existem opções de aprendizado para todos os gostos

Apesar da importância da inserção musical, há quem seja, de certa forma, obrigado pelos pais a participarem nesta questão tão pessoal do indivíduo. Em outras palavras, a descoberta ou não da

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da musicalização e suas variâncias é de caráter individual e pode acarretar em desconforto e desinteresse por parte do estudante. É o que diz o professor Francisco Mendes: “A escolha pela arte é muito relativa e pessoal. Normalmente alguns alunos são empurrados pelos pais. Acontece muito aqui na escola de os pais imporem, pois tinham sonhos de tocar algum instrumento. Infelizmente as coisas não acontecem desse jeito. Temos várias histórias de vários alunos que entraram no piano, que passaram quatro a cinco anos e depois desistiram, pois não se identificaram e mudaram de instrumento”, relatou. Os números de alunos matriculados no centro artístico são altos. Cerca de 900 estudantes frequentam a Jorge Andrade e estão inscritos em alguns dos cursos ofertados, como violão, guitarra, contrabaixo, teclado, saxofone e clarinete. E para auxiliar na musicalização destes novos alunos, há aulas de coral. Durante a manhã e à tarde, os estudantes são atendidos por meio da chamada escolar, em outras palavras, por meio de edital de chamamento público. Mas no período noturno é aberto ao público geral a partir de 17 anos.

O piano se tornou um instrumento eclético na faixa etária, pois nas escolas observa-se estudantes infantis, jovens, adultos e até idosos

cais em Rondônia. “Nós temos a parte profissional da música. Temos um grande mercado de trabalho para o músico profissional. Para a formação de música tem um grande mercado também, principalmente de uns 10 anos para cá. Isto vem do Sul e Sudeste, pois são regiões em que a música é considerada uma cultura”, disse Yamazaki, acrescentando que leciona desde 1988 no estado e que vê o nível técnico e educacional aprimorando cada vez mais.

OUTRAS OPÇÕES

Além dos estabelecimentos públicos, há outras escolas musicais particulares em Porto Velho, como a Escola Musical Villa-Lobos. Para Marcelo Yamazaki, diretor da escola, o mercado de trabalho para o músico profissional é muito amplo na cidade, pois a migração da população do Sul e Sudeste do país contribuiu para a diversificação dos gêneros musi-

A cantora e professora, Katrine Araujo, conta que o mercado musical em Porto Velho está melhorando. Ao passar dois anos e meio trabalhando como artista no Sul, ela percebeu que para trabalhar com musicais e teatros teria que continuar fora de Rondônia, mas para exercer sua verdadeira paixão, que é dar aulas, ela não precisava se mudar para prosperar. A artista, além de atuar como cantora e professora, também se tornará empresária do mercado musical. “É um ramo próspero, pois tem muito espaço, ainda há poucos professores de canto e de música”, disse Katrine Araújo.

É inegável que a música também beneficia a saúde. Estudos mostram que a música é capaz de estimular a liberação de dopamina e causa a sensação de bem estar, muitos médicos e terapeutas já come-

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Jorge Fernando

çaram a utilizar a música para alguns tipos de tratamento. Katrine Araujo diz que alguns procuram a aula de canto para cantar, se divertir e conversar. “É incrível, você acaba sendo professor e terapeuta ao mesmo tempo”.

MUSICALIZAÇÃO INFANTIL

O objetivo da musicalização infantil é tornar a criança mais sensível e receptiva aos sons e promover um contato com o mundo musical já na primeira infância, através de estímulos com instrumentos e atividades intuitivas. Aprendizagem musical e musicalização são diferentes. A primeira visa ensinar um manuseio mais técnico do instrumento, a segunda busca desenvolver na criança uma afeição pela música.

Algumas escolas de Porto Velho já implantaram musicalização infantil nos currículos escolares. Os benefícios são inúmeros para o desenvolvimento da criança, como por exemplo, a melhora na comunicação, expressão corporal e socialização, além de estimulo à concentração e memória. Algumas escolas particulares de ensino regular já estão adotando a prática, como Maple Bear e Unidunitê.

Para Jemima Melo, professora de musicalização infantil, a tendência é que outras escolas também adotem a prática de oferecer aulas de musicalização nas séries iniciais. “O número de pesquisas a respeito dos benefícios da música para saúde e desenvolvimento pessoal e intelectual vem crescendo, as pessoas estão passando a ter mais acesso à informação e, consequentemente, valorizando mais. Com certeza a musicalização infantil vai ganhar mais e mais espaço na nossa sociedade”.

Durante as aulas as crianças se divertem com brin-

cadeiras e canções, além de conhecerem e diversos instrumentos que dificilmente teriam contato em outro contexto.

Yamazaki contextualiza que a musicalização e a própria música têm grande importância nas ações cognitivas para as crianças. “Quando o filho está no útero, os pais já começam a pesquisar sobre. Hoje estamos nesta era de smartphone e os pais já pensam em retirar o celular para poder inserir o filho na música. Mas há a utilização do smartphone na música também, pois auxilia na hora de ver a partitura ou até mesmo em visualizar a nota”.

Em uma pesquisa realizada na internet, 56% das pessoas que responderam a enquete já tiveram aulas de músicas. Entre elas, 62,5% tiveram vontade de aprender violão; 31,3% guitarra; 31,3% bateria; 6,3% bateria e teclado; 56,3% piano, 12,5% flauta e 25,1% violino.

A musicalização infantil favorece no desenvolvimento cognitivo das crianças, a fim de contribuir para a inserção delas na sociedade. Ademais, a praticidade dos instrumentos ou da vocalização contribui na formação individual, favorecendo o crescimento sensorial dos jovens.

A professora de música, Jemima Melo, diz que a tendência é que escolas comecem a musicalização nas séries iniciais

Professor de música mostra a potência da sonoridade do contra-baixo, presente em vários estilos musicais Jorge Fernando
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Kyara Negretti

Entrevista Rodrigo Pedro Casteleiro

Educação, arte, ativismo e... transformação: Filósofo com formação em ciências sociais e educação surge como “contribuinte”, dando voz e corpo ao debate em torno do ativismo em defesa de identidades minorizadas

CComo grande contribuinte à educação, arte e ativismo em todo Brasil, o professor-doutor, Rodrigo Pedro Casteleiro, da Unir – Universidade Federal de Rondônia –, surge ocupando voz e corpo em Rondônia. Graduado em filosofia, mestre em ciências sociais e doutor em educação, Casteleiro é homem, cis, gay, negro, vivendo outras identidades minorizadas presentes no social não-hegemônico brasileiro, e seu trabalho dialoga com os atravessamentos entre corporeidade negra, espaços urbanos e apagamentos colonizantes, tentando materializar em performances ou fotos as estéticas de resistências, demarcada pelo uso de fios vermelhos. Conhecido como “Artista”, nascido em Jandaia do Sul (PR) e integrando os quadros da Unir – campus de Vilhena – desde 2019, Casteleiro concedeu a seguinte entrevista à IARAS: Iaras – Fale sobre suas origens.

Rodrigo Pedro Casteleiro – Nasci em Jandaia do Sul (PR), próximo a Maringá. Minha infância foi em Mandaguari. Passo a viver definitivamente em Maringá a partir de 2012 e, em 2019, mudo-me para Vilhena, onde passo a integrar os quadros da Unir via concurso público de provas e títulos.

Iaras – Que lembranças traz de sua terra-natal?

Casteleiro – Lembro-me de uma cidade pequena (cerca de 35 mil habitantes), eu morava com minha família numa casa de madeira, não havia nem banheiro dentro, era compartilhado entre as casas do mesmo quintal. Tive uma infância nem sempre feliz. Lembro-me que meu pai me dava muitas cédulas para comprar pão porque a inflação era altíssima. Cresci com muita tranquilidade com meu irmão. A gente tem uma diferença de menos de dois anos. Minha irmã só nasce seis anos depois de mim, então a gente teve uma convivência muito gostosa.

Iaras – Que momentos marcaram a sua infância?

Iara 28
“Revisitar alguns espaços do passado é revisitar violências, é rememorá-las, é pensar no que eu poderia ter feito, que reação poderia ter esboçado naquele momento em que eu fiquei tão só e durante tanto tempo”
Por Caio Pereira Assunção e Mateus Alves dos Santos

Casteleiro – Eu tinha quatro avós. Uma era madrinha da minha mãe, e outra era uma senhora que eu adotei na infância. Ela passava em frente à casa da minha avó paterna e eu ficava gritando, querendo ir com ela e chamando de vó, então ela passou a ser a minha avó. Por outro lado, as dificuldades de infância foram no ambiente escolar. É lá que a gente sente o significado da palavra “diferença”. Não existia políticas públicas para pensar as desigualdades, a negritude, a educação pela e para diversidade. Fui vítima de muitas violências simbólicas, algumas até físicas por ser negro, por ser uma criança efeminada – embora não soubesse o que isso significava –, não sabia nada sobre a representação da sexualidade até a primeira fase da adolescência, então eu era alvo de homofobia sem ter consciência da minha própria sexualidade. Iaras – Que peso têm essas lembranças em seu processo criativo acadêmico, artístico e no seu papel de ativista?

Casteleiro – É um modo de contar, recontar e reflexionar as memórias e tentar revertê-las em um trabalho artístico e em uma poética com potência para expurgar as nossas dores e representá-las para outros e outras para que essas pessoas façam uma reflexão: “Olha, talvez isso que aconteceu comigo já tenha acontecido com você” ou “Olha, trago aqui uma narrativa sobre infância e convido você a participar, a caminhar pelas minhas memórias”. Não tem como desvincular o processo criativo das relações de vivência e existência pelo mundo. Por outro lado, é difícil sobretudo porque revisitar esses espaços é reviver e rememorar violências, é pensar sobre o que eu poderia ter feito, que reação eu poderia ter esboçado naquele momento. Eu fiquei muito só durante muito tempo porque meus amigos de sala de aula faziam parte desse processo de violência. Professores, em sua maioria, eram coniventes com esse status. Revisitar essas memórias pode disparar diversos gatilhos e diversas an-

gústias. O desafio consiste em pensar como trabalhar, produzir e seguir em frente sem ficar naquele lugar de sofrimento.

Iaras – Educação, arte e ativismo andam de mãos dadas?

Casteleiro – A educação deve ser um meio de transformação social, econômica, cultural e religiosa. Penso que a vinculação entre educação, arte e ativismo tem potencial para implodir alguns preconceitos e, desse modo, tentar tensionar a construção de uma sociedade mais tolerante com a diversidade. É urgente trabalharmos de modo a que o mundo seja mais equânime, mais possível de existir para todos. Temos que tentar extinguir essa impossibilidade de viver nesses espaços para todos. Ainda temos grandes lutas pela frente – lutas essas que advém do fato de que as pessoas ainda não têm plena consciência do papel libertados da cultura e da arte. Nesses termos, o ativismo é um processo catártico de expurgação de vários demônios que eu carrego e que eu jogo para essas materializações ou investigações. Nem todos os trabalhos que eu projeto ganham corpo. Muitos ficam no meu caderno de anotações para, quem sabe mais

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Rodrigo Casteleira faz performances em combate ao genocídio negro

tarde, tentar transformá-los em materialidade. Iaras – Educação, arte e ativismo: como trabalhar esses três conceitos conjuntamente?

Casteleiro – Revisitar alguns espaços do passado é revisitar violências, é rememorá-las, é pensar no que eu poderia ter feito, que reação poderia ter esboçado naquele momento em que eu fiquei tão só e durante tanto tempo, já que meus amigos faziam parte desse processo de violência, já que professores normalizaram essa situação. Voltar no tempo pode disparar diversos gatilhos e, portanto, diversas angústias. Essa é uma das maiores dificuldades: pensar em como trabalhar esses três conceitos sem ficar naquele lugar de não saber o que fazer.

Iaras – Educação, arte e ativismo... existe simbiose entre esses elementos?

Casteleiro – Estão entrelaçados. Para trabalhar com arte, tenho consciência de que as pessoas precisam de educação para compreender a minha arte. São necessárias algumas habilidades proporcionadas pela educação formal para a compreensão da arte contemporânea, ou seja, de onde eu falo, trabalho, me expresso... não estou falando de uma arte palatável, bonita, confortável, métrica, para ser colocada numa pseudo-lareira. Estou falando de uma arte ativista, que aqui está para provocar reações, com desenvoltura para fazer a audiência pensar o seu papel dentro dessa estrutura social.

Iaras – Existe uma preferência no seu processo de criação?

Casteleiro – Antes eu tinha uma conexão muito grande com o fio vermelho, gosto dessa narrativa, mas ele foi cedendo espaço para outros processos. Tem um trabalho que eu ando investigando, com papel crepom, que é da área da educação infantil, que me remete àquele processo de a gente trabalhar com a coordenação motora fina, eu tenho feito essa investigação mas não sei dizer qual é o maior prazer que eu sinto no desenvolvimento. Todos me geram noções de prazer e, ao mesmo tempo, um lugar de conforto, embora eu trabalhe com a perspectiva do desconforto. Iaras – Suas obras possuem muitos fios vermelhos. O que eles significam na sua arte?

Casteleiro – Os fios vermelhos têm algumas simbologias vinculadas. Primeiro, a extensão, similar a extensão da vida. Então o fio representa uma vida. O rompimento de um fio é o rompimento de uma vida. Ao mesmo tempo, o fio representa uma história em que

narrativas vão se entrelaçando, criando uma espécie de bolo que não dá para desembaraçar o fio. Ao mesmo tempo, o fio também tem uma ideia de contorno. Pense, às vezes um objeto comum, um banco, uma cerca. Quando você o envolve com os fios vermelhos, você convida a pessoa a olhar não somente o fio que está livre, mas também o objeto que está envolto, em conexão com com o fio. Essa preferência pelo vermelho é por conta da conexão com a vida e com a ideia de calor, pulsão, passionalidade e luta pela vida, ao mesmo tempo que também representa a ideia de morte. O uso do fio vermelho em meus trabalhos é para criar uma outra narrativa sobre elementos existentes. E também criar essa noção de extensão e de conexão.

Iaras – Como é falar sobre cor, corpo, sexualidade, e outras temáticas minorizadas em Rondônia?

Casteleiro – Não é fácil falar sobre isso no Brasil. Venho do Sul do país, as dificuldades encontradas lá são muito próximas das daqui, embora o peso do processo evangelizador seja maior aqui do que lá. A perspectiva religiosa em Rondônia é diversa da de onde eu venho. A gente tem que pensar em como dialogar. Eu tenho uma disciplina próxima a isso na academia e é sempre a mesma narrativa de desconhecimento. As pessoas desconhecem e, ao mesmo tempo, são atravessadas por fake news e por discursos não acadêmicos, não científicos, todos pautados em achismos. É aqui que entra o papel do pesquisador, desse ser vivente de uma comunidade LGBTQIA-mais.

Iaras – É diferente do que você vivenciou em Maringá?

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As pessoas desconhecem e, ao mesmo tempo, são atravessadas por fake news e por discursos não acadêmicos, não científicos, todos pautados em achismos.

Casteleiro – É completamente diferente da minha experiência no Paraná. A própria universidade era um lugar de muita tranquilidade para o meu trânsito. Diferente daqui, costumo dizer que eu sou o único professor gay do campus. Porque eu sou o único que quis. Sou o único a anunciar essa posição abertamente, pois ninguém é obrigado a anunciar a sua sexualidade. Essa sociedade heteronormativa e um pouco heteroterrorista fica, a todo momento, nos inquirindo sobre a nossa sexualidade, nossas subjetividades, nossas privacidades. Eu adoto esse argumento de dizer já de cara para que o sujeito já não tenha nenhuma chance de especulação. Aqui, você está falando com gay. Ponto. Assim não há espaço para os comentários de corredores, para piadinhas indiretas, porque eu cheguei e já dei o paradigma de minha existência. Já fui muito mais assediado num sentido ruim em Maringá do que aqui, mas aqui, apesar de ser uma cidade colonizada por sulistas, ainda não consegui entender essa relação de subjetividade local.

Iaras – E sobre premiações, qual o peso delas, nas suas produções, na vida em geral?

Casteleiro – É pontual dizer que esses prêmios nos dão não apenas a chancela como artista, mas nos dá a possibilidade de trabalhar e dar sequência às pesquisas. O desafio é ensinar a trabalhar com arte, então há uma urgência para que as pessoas entendam que o nosso trabalho não é pura e simplesmente uma alegoria pedagógica para enfeite – não que eles não sejam,

mas não é apenas isso. A gente tem um trabalho que é fruto de pesquisas que as que às vezes levam anos pra serem realizadas. Temos de lembrar que os grandes centros têm uma outra dinâmica e isso acaba impactando nos artistas que moram, sobretudo, no Norte. Nós temos baixa produção artística? Não. Nós temos baixo reconhecimento. Às vezes os editais não cobrem os custos que o artista tem para expor seu trabalho em outros centros, então, em muitos momentos temos de nos virar com o que temos – e com o que não temos, no caso de muitos artistas.

Iaras – O que faltou e o que ainda temos para receber da sua pessoa, como professor, artista e ativista?

Casteleiro – Eu não viajei muito pra expor por conta da pandemia. Não sou um jovem artista. Eu sou um artista jovem. O meu trabalho tem menos de dez anos. Eu estava enveredado em outros campos da arte, como a dança. Enveredei no teatro, fui migrando e me sentindo atraído por performances que me levaram a outras linguagens. Me considero um ativista, um artista que trabalha o corpo voltando-me para um ativismo pontual das minhas vivências e memórias. Eu viajei pouco para apresentar, mas os meus trabalhos viajaram muito, então, tenho trabalhos que foram apresentados no Reino Unido, em Lisboa, no Rio Grande do Sul, no Pará, no Museu Paranaense, enquanto eu já estava aqui, então a ideia é que este ano eu possa ir para outros espaços presenciais para poder manifestar o meu trabalho.

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Combate ao desmatamento na Amazônia é denunciada em perfomance de Rodrigo Casteleira

O carnaval como parte da cultura rondoniense

No lugar das máscaras, muito glitter e alegria. O luto se transformou em motivos de celebração pela vida. O retorno do carnaval em 2023 simbolizou o fim do isolamento social, uma das medidas adotadas para minimizar o contágio da covid-19. Essas festividades que acontecem em todo o país vão além da folia, é um momento de reforçar a cultura. Ele faz parte da construção da história da memória brasileira e do incentivo à socialização entre os povos.

A festividade mais aguardada pelos foliões do Brasil e de várias partes do mundo, teve sua origem popularizada na idade média e é diretamente associada ao cristianismo. Chegou no país no período colonial, ficou conhecida pela alegria das pessoas que se fantasiam e se jogam no ritmo contagiantes das músicas e das famosas “marchinhas de carnaval”.

CARNAVAL NO BRASIL

O carnaval foi trazido por colonizadores portugueses em meados dos séculos XVI e XVII. A construção dessa festa no Brasil se deu ao longo de todo o século XX com a incorporação de vários ritmos como o samba, maracatu e frevo, que são os principais símbolos da construção da cultura carnavalesca. A festa possui elementos herdados da mistura de diferentes povos, em especial os mesopotâmicos, gregos e romanos.

Com a consolidação da Igreja Católica houve uma tentativa de controle sobre o fervor das festividades e foliões, que eram vistas na época como celebrações exageradas e com alta propensão de atos profanos sob os olhos da igreja. Devido a isso a igreja estabeleceu a quaresma (período de 40 dias que antecede a Semana Santa e é marcado pelo arrependimento dos fiéis e e pelo jejum).

Diplimatas do Samba, uma das pioneiras do movimento carnavalesco em Porto Velho, realiza desfile em 1970
Iara 32
Loide Gonçalves

Por isso, essa folia que arrasta multidões no Brasil é celebrada com data determinada pelos critérios que definem a data da páscoa, ou seja, através do calendário cristão. Assim, uma vez estabelecidos os dias da Páscoa, é possível definir os dias das festividades.

Segundo estudiosos, no Brasil sua primeira prática aconteceu na cidade do Rio de Janeiro e teve como referência o “Entrudo” antigo folguedo luso-brasileiro com semelhanças ao carnaval. Com o passar do tempo a festa caiu no gosto da elite brasileira e passou a ter um formato mais requintado, com o surgimento dos bailes de máscaras no Brasil. A partir do século XIX, os bailes começaram a popularizar-se, e, com a criação de sociedades carnavalescas,

foram levados para as ruas. Consolidando assim o hábito de mascarar-se durante as festividades do Carnaval brasileiro.

As sociedades carnavalescas também passaram a desfilar publicamente e a partir do século XX, o envolvimento popular com a festa contribuiu para a consolidação de outros ritmos que incorporaram a influência da cultura africana no carnaval brasileiro.

SÍMBOLO DE MANIFESTAÇÃO

Por se tratar de uma grande festa e de um período em que há muito contato com pessoas novas, a interação no carnaval auxilia na manutenção da convivência dos integrantes da sociedade. Seja carimbar todos os bloquinhos ou aproveitar o feriado para descansar, todos os rondonienses possuem uma cultura no período carnavalesco.

“O carnaval é uma das mais importantes expressões da cultura brasileira e provavelmente uma das mais aguardadas durante o ano. O período cultural não produz somente aquilo que é mais bonito e brilhante, mas torna a cadeia produtiva mais rentável, pois, além produzir conhecimentos, também estimula a economia local”, afirma o professor e sociólogo da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Wallace Oliveira.

Essas festividades são uma importante manifestação cultural que promove a diversidade e inclusão. Mas essas festividades são responsáveis por agitar não só a vida dos foliões, mas a economia em vários segmentos dos comércios. A festa ajudou a aumentar o número de empregos informais, como os de vendedores ambulantes.

A presidente da Liga das Escolas de Samba de Rondônia (LIESER), Ana Lúcia Barroso enfatiza a importância do carnaval para outros setores, como a economia. “Eu penso que todas as ações que envolvem o carnaval influenciam diretamente a economia do nosso Estado e também dos municípios. As festividades envolvem várias ações, como por exemplo, compras de tipos de itens para confeccionar fantasias, carros alegóricos, os adereços e entre outras produções que fazem parte do carnaval. Também não podemos esquecer da geração de lucro na alimentação no período do carnaval, com os vendedores autônomos que vendem suas comidas, bebidas nas ruas, e também nos restaurantes com um grande fluxo de pessoas vindas de outras regiões.”

Carnaval arrasta multidões em várias partes do Brasil
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Emily Vitória

Carnaval em Rondônia iniciou em 1945

No Estado de Rondônia, o primeiro evento carnavalesco se manifestou em meados de 1945, com os “blocos sujos”, termos utilizados para nomear os carnavais de rua. Um dos principais personagem precursor da cultura na época, foi Eliezer Santos.

Nascido no município de Itororó, em Salvador, Eliezer chegou em Rondônia em 1943 e ficou conhecido como o saudoso “Bola Sete”. Ele foi um dos baluartes do samba rondoniense, criador do bloco carnavalesco “Deixa Falar” e também foi um dos fundadores da Escola Diplomatas do Samba, que na época era nomeada como Universidade dos Diplomatas do Samba.

“Os Diplomatas” foi fundada em 4 de novem-

bro de 1958 e foi a primeira escola de samba a ser criada no município de Porto Velho. A organização reuniu grandes nomes dos carnavais de rua como Valério Souza e Adelaide Souza, fundadores do ‘Bloco Dona Jóia’, o mais popular da década de 1950 na cidade.

Os primeiros blocos carnavalescos do Estado foram os “‘Bloco do Seca Buteco’, ‘O Bloco do Purgatório’, ‘ O Bloco do Sol’ e tantos outros blocos existentes na cidade. Era nesses blocos que os foliões se reuniam em direção à avenida com intuito de desfilar, competir e realizar brincadeiras, como guerra de confetes e danças.

A presidente da Liga das Escolas de Samba de Rondônia (LIESER), Ana Lúcia Barroso, ressalta a importância da contribuição do carnaval para a população. “O período carnavalesco é um dos maiores eventos do país. Ele é de extrema importância para toda a sociedade, tanto na questão econômica, como culturalmente e também na educação. As pessoas se sentem felizes, são livres e esperam o ano inteiro por isso.”

Diplomatas do Samba, uma das pioneiras do movimento carnavalesco em Porto Velho, realiza desfile em 1970 Arquivo da Lieser
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As pessoas se sentem livres, felizes e esperam o ano inteiro por isso.

Bloco de rua: patrimônio histórico da capital

“Na brincadeira entra quem quiser”. Criada há mais de 40 anos, a banda do vai quem quer é considerada o maior bloco carnavalesco de Rondônia e da Amazônia. Atualmente, é reconhecido também como patrimônio cultural do estado.

Em um sábado de janeiro de 1981, surge o bloco “A banda do vai quem quer” como uma forma de protesto. A inspiração principal foi um bloco carioca já existente. Entre os fundadores estavam Manoel Mendonça, o Manelão, que ficou conhecido mais tarde como o “General da Banda” e o jornalista Silvio Santos, o famoso “Zé katraca”. Os dois foram uns dos mais populares entusiastas da cultura carnavalesca em Rondônia.

Quanto mais brilho, melhor! Máscaras, fantasias, tules. Nessa folia realmente entra quem quiser. Pessoas de todos os jeitos, raça, fé e com um propósito principal, fortalecer a cultura popular. É marinheiro, pirata, policial… O típico desfile, que acontece em um sábado de carnaval, é marcado pelas fantasias que o público veste. A folia começa às 16h e se estende até 22h pelas ruas do centro da capital.

Atualmente, quem comanda o bloco carnavalesco “Banda do Vai Quem Quer “ é a filha do General, Siça Andrade. Manelão faleceu no dia 28 de fevereiro de 2011 em Porto Velho. E o jornalista,

produtor cultural e um dos fundadores do bloco, Silvio Santos, faleceu em 2021.

O Bloco Pirarucu do Madeira também é um dos pioneiros na história da cultura do Estado. Está há cerca de 30 anos presente no cenário carnavalesco. Suas cores, fantasias e os desfiles de bonecos gigantes, são algumas das características marcantes do bloco.

Surgiu em 1993 e foi batizado como “pirarucu do madeira” fazendo analogia a um dos peixes típicos da região norte e o maior de água doce do Brasil. Na época, a inspiração veio do bloco Bacalhau do Batata, de Olinda (PE)

“O pirarucu do madeira é um movimento cultural popular, comportamental, estético, atitudinal e horizontal, ou seja, é folia inclusiva, para todas, todos e todes. No primeiro desfile pós-pandemia, houve um aumento expressivo dos foliões no cordão mais democrático da cidade. Isso mostrou o quanto o bloco e sua folia carnavalesca são importantes ao período momesco, o de maior confraternização cultural” diz o Presidente do Bloco, Ernande Segismundo.

Além de ser um dos principais blocos na cena, também foi declarado Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial no Carnaval de 2023 pelo Vereador Aleks Palliot no projeto de lei 4428/2023.

O retorno do carnaval em Rondônia após pandemia

O primeiro caso de covid-19 registrado no Brasil ocorreu poucos dias após as festividades carnavalescas, em 26 de fevereiro de 2020. Nos meses seguintes, o mundo adentrou no cenário da pior pandemia vivenciada pela atual geração. Medidas emergenciais, como o isolamento social, foram adotadas para tentar controlar a proliferação do coronavírus.

Abraçar, cumprimentar e estar juntos dos amigos era praticamente impossível. Um grande avanço no combate à pandemia foram os imunizantes produzidos e que começaram a ser aplicados na população em janeiro de 2021. Porém, durante dois anos, a ideia do retorno do carnaval foi descartada. Em

Porto Velho, o carnaval voltou a acontecer oficialmente em 2023 e foi um dos maiores da história, uma vez que marca o fim de um ciclo de sofrimento e medo para a humanidade.

Muitos foliões saíram às ruas e aproveitam para matar a saudades das festas e dos amigos. É o caso da estudante Mariana Wentz: “Eu amei a volta do carnaval. Acho que é muito importante o retorno, foram momentos de reencontro e de se sentir livre novamente. Fui a praticamente todos, vi muitos amigos que não encontrava há anos e conheci pessoas novas também. Como é bom o carnaval”, afirmou o foliã.

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