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Lygia Pape: entre a geometria e a etnografia

LYGIA PAPE: ENTRE A GEOMETRIA E A ETNOGRAFIA

Luiz Camillo Osorio

As recentes retrospectivas internacionais de Lygia Pape, no Reina Sofia de Madri e no Metropolitan-Breuer de Nova York, deram uma nova perspectiva para pensarmos sua trajetória, incluindo aí os desafios que algumas de suas obras impõem às formas expográficas convencionais e seu lugar na virada cultural e etnográfica da arte contemporânea nos anos 1960/70.1 Sua poética, como já sabíamos, foi marcada, desde a década de 1950, pela experimentação e pela inquietação. O trânsito entre meios de expressão, disciplinas e institucionalidades jamais se deixou fixar em alguma identidade formal. Sua formação junto ao concretismo carioca revela o quanto esteve, desde o início, preocupada tanto com a renovação dos meios expressivos como com novos modelos de inserção social da arte. A capacidade de transformação social da arte estaria atrelada à sua capacidade de renovação formal. Como já dizia um dos seus mestres russos, Maiakóvski: uma arte revolucionária demanda uma forma revolucionária.

A aproximação entre a prática artística e a reflexão crítica foi determinante na disseminação do concretismo na cena brasileira. Tanto Waldemar Cordeiro quanto Ivan Serpa – os dois principais articuladores em São Paulo e no Rio de Janeiro do movimento concreto na primeira metade da década de 1950 – sabiam o quanto fazer arte e abrir novos processos de intervenção no debate cultural era determinante para um compromisso efetivamente de vanguarda. Não podemos

1 Esta dimensão etnográfica foi descrita por Hal Foster no sexto capítulo intitulado “O artista como etnógrafo” do livro O retorno do real. Nele, o crítico americano tratava de caracterizar o momento, a partir da Pop Art, em que a aposta na alteridade cultural e étnica passava a definir procedimentos artísticos tendo em vista os novos territórios abertos pela luta política na década de 1960. A direção tomada pelas obras de Oiticica, Clark e Pape, nesta década, assim como a virada pós-moderna da crítica de Pedrosa, respondem a mesma inquietação.

esquecer que as duas primeiras exposições do grupo Frente no Rio de Janeiro, em 1954 e 1955, fizeram-se acompanhar de textos de Ferreira Gullar e Mario Pedrosa.2 Além disso, ter tido na figura de Ivan Serpa e nos seus cursos ministrados no MAM-Rio um ponto de agregação do grupo carioca – que é o que nos interessa para falar de Lygia Pape – também mostra o quanto a reflexão sobre o processo de criação e o atravessamento da própria dimensão crítica no interior do fazer artístico eram da maior relevância.

Para a jovem Lygia Pape, este foi um momento definitivo em que se afirmava, para ela, a necessidade de fazer da experimentação formal um lugar de enfrentamento político. Tanto fazia se o meio expressivo era pintura com tinta industrial, guache ou xilogravura; o que importava era o modo como as linguagens plásticas se punham em questão e, concomitantemente, redefiniam suas possibilidades de comunicação. Olhando retrospectivamente, desmobilizado o otimismo progressista da década de 1950, o mais importante nesta formação construtiva foi a deliberação contida no ideário deste movimento, especialmente a partir de sua formação carioca,3 de que a arte e seu processo de criação deveriam buscar uma expressão descolada do sujeito expressivo. A expressividade não seria abandonada, mas deveria se exteriorizar no trabalho da forma e no tipo de disseminação que ela efetivaria culturalmente. Optar pelas formas geométricas, organizá-las no plano, estabelecer uma paleta mais restrita, abandonar a intensidade gestual, tudo isso eram estratégias para retirar o sujeito criador da fatura propriamente dita da obra. Entretanto, a presença material do fenômeno plástico deveria produzir uma experiência estética singular, ou seja, mobilizar sensivelmente quem está diante da obra. A geometria deixa de ser uma forma

2 A Primeira Exposição de Grupo Frente aconteceu em 1954 na galeria do Ibeu no Rio de Janeiro. Os artistas que participaram desta primeira edição foram: Ivan Serpa, Aluísio Carvão, Lígia Clark, Lígia Pape, Décio Vieira, Carlos Val, João José da Silva Costa e Vincent Iberson. A segunda exposição do grupo aconteceu no MAM-Rio em 1955, e, além destes oito artistas acima, participaram também Abraham Palatnik, Franz Weissmann, Helio Oiticica, César Oiticica, Elisa Martins da Silveira, Eric Baruch e Rubem Ludolf. 3 Não podemos esquecer que a matriz deste grupo – Almir Mavigner, Ivan Serpa, Abraham Palatnik e Mario Pedrosa – teve nos workshops ministrados a partir do convite da Dra Nise da Silveira no hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, seu ponto inicial de conversão poética, estética e ética. Uma racionalidade artística que se constitui neste encontro com a loucura é, no mínimo, peculiar. Acima de tudo, parece-nos ter deixado marcas definidoras se olharmos o que se passaria na guinada Neoconcreta de 1959 e seu clamor pela expressão e pela individuação.

genérica (universal) para ser uma forma concreta (singular). Conquistar a singularidade é dar à forma geométrica uma expressividade própria – que não é nem da geometria, nem do artista, mas da obra. Como veremos mais claramente depois dos Neoconcretos, este ir além de si, de um eu lírico, implicava pensar uma nova relação entre expressão e subjetividade. Este era o desafio colocado como ponto de partida: como expressar sem falar de si, como se apropriar da estruturação formal e dos elementos geométricos sem ser meramente impessoal? Nesta dialética de expressão e impessoalidade, de experimentação e rigor, de indisciplina e forma, constituiu-se a poética de Lygia Pape e dos seus companheiros neoconcretos.

As passagens ocorridas em sua obra entre 1955 e 1960, das pinturas concretas, relevos e tecelares, passando pelos poemas-luz, pelos dois balés neoconcretos e chegando aos livros-objeto (do tempo, da criação e da arquitetura, entre outros), mostram uma artista absolutamente comprometida com uma investigação heterodoxa da forma, que muito rapidamente se desprendeu do plano e de toda e qualquer especificidade de meios expressivos. As três primeiras salas da exposição no MET-Breuer evidenciavam estas passagens e são fundamentais para a própria análise comparativa – com a Minimal Art e a Pop Art – do modo como a pesquisa formal moderna se deslocou para o espaço concreto do mundo, seja inicialmente pela ampliação do embate fenomenológico do sujeito inserido no espaço exterior, seja em seguida pela incorporação de uma discursividade cultural e institucional que desloca o campo de experimentação artística. Este segundo ponto acabaria sendo determinante a partir de meados da década de 1960 e teria, na formação cultural brasileira, um solo muito fértil para desdobrar-se. Não por acaso, Mario Pedrosa, ao observar em 1966 o surgimento de uma arte pós-moderna no Brasil (PEDROSA, 1981, p.206) remetendo a uma virada cultural da arte, dirá que sob muitos aspectos nos antecipamos aos movimentos internacionais, especialmente à Pop.

Entre todo o grupo Neoconcreto, Lygia Pape é a que teve maior interesse pela cultura ameríndia, pela absorção dos resíduos imateriais provindos daí que ainda pulsam à margem da cultura brasileira. Dos Tecelares (1957) até as Tetéias (2002), vemos em Lygia Pape um constante mergulho em padrões geométricos que se propagam no espaço e fazem da linha e do corpo uma unidade integrada do fazer e do construir, da arte e da vida. Neste aspecto, não parece interessante olhar a estruturação formal da pintura concreta em Lygia Pape apenas como

uma aposta na especificidade planar da pintura, uma delimitação do que seria próprio ao seu campo disciplinar. Todos os deslocamentos e passagens apontados acima implicam uma aproximação entre a impessoalidade geométrica e a ação do corpo, um movimento de concreção e disseminação da forma abstrata. Mas não era só isso, implicavam também uma resistência à acomodação formalista da arte que se fecharia no jogo de referências internas ao próprio fazer da arte negligenciando toda contaminação com o mundo.

O diálogo intenso com a tradição ameríndia não se dava apenas na superfície, pelo interesse nos padrões geométricos contidos nas pinturas corporais e nas cestarias (que reverberam nos Tecelares), tampouco na tematização do primitivo e do oprimido, mas principalmente na compreensão de que o fazer da arte se dá na precariedade e na processualidade da vida, ressignificando o cotidiano, misturando a alegria (e a dor) de criar com a de viver.4 Neste aspecto, gostaria de aproximar, sem nenhum determinismo nisso, seu nomadismo poético a aspectos da cosmologia ameríndia realizada por estudos etnográficos recentes. Como mostrou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro com a sua hipótese do multinaturalismo ameríndio, os princípios e dicotomias constitutivas das metafísicas ocidentais, tão determinantes do modo como se pensou a relação entre matéria e forma nas obras de arte, deveriam ser postas em xeque. Segundo ele,

Esta diversidade de corpos e a unidade de espírito é o que me parece caracterizar justamente a poética de Pape, sua migração e experimentação incansável entre linguagens e disciplinas. Para além da desmaterialização da arte, uma multimaterialização, uma mobilização incansável de suportes que vão sempre reafirmando a experimentação entre modos de ser da arte e de invenção de si. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p.226).

Neste aspecto, deslocar a geometria para o espaço, articular espaço e corpo, atravessar o corpo da obra com os corpos que a experienciam, misturar experiência e experimentação; são todos estes movimentos realizados por sua

4 Não podemos esquecer o projeto expositivo de Mario Pedrosa e Lygia Pape, que se intitularia Alegria de criar, alegria de viver, que fora abortado pelo incêndio do MAM. Nele, todo um leque de referências ameríndias da cultura brasileira estaria sendo investigado. Importante lembrar que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro era um dos consultores que ajudariam a curadoria.

obra que combinam intensidade e fragilidade buscando uma espécie de disseminação e polinização poéticas. Disseminar no sentido de multiplicar o gesto criador e polinizar no sentido de fazê-lo fertilizar pela mediação da proposição artística, por aquilo que Oiticica denominava de objetato referindo-se a performance de Lygia Pape intitulada O Ovo. “O objeto ou a obra seriam as probabilidades infinitas contidas nas mais diversas proposições da criação humana: a mágica do fluir das ideias, no instante, no ato, no comportamento.” (OITICICA, 1980, p.80).

A noção de não-objeto, tão cara ao movimento neoconcreto, retirava o elo, determinante na noção mais tradicional de obra de arte, entre forma e objeto, retirando a fixidez da forma, deslocando-a para o polo da subjetivação, da construção de si. Neste aspecto, o ato criador e a obra atuariam fertilizando sensorial e produtivamente quem dela se aproximasse, incutindo nele a disposição experimental que disseminaria o gesto criativo e transformador. As obras de Pape seguiram ao longo de sua trajetória, para além do próprio momento neoconcreto, esta intenção germinadora de criação e vida, olhando à margem do sistema da arte, das convenções e padrões instituídos, a presença pulsante de potencial criativo bruto que nascia junto ao enfrentamento das adversidades cotidianas.

Neste aspecto, a crise do movimento neoconcreto entre 1962 e 1963, junto ao agravamento da situação política brasileira que acentuava as polarizações, fez aparecer uma crítica mais politizada do grupo ligado ao Centro Popular de Cultura (CPC) – com Ferreira Gullar à frente – que mirava na experimentação formal. O sintoma era de alienação e hermetismo que desconsiderava a realidade social e as tensões políticas urgentes. Contra tal alienação, era fundamental uma arte engajada. Entretanto, por este viés, engajamento significava uma pedagogia ideológica de conscientização que retirava da arte qualquer tipo de exercício experimental. Em nome da comunicabilidade de conteúdos políticos, seria determinante alguma regressão no trabalho com a forma. Contra a equação do CPC, menos experimentação e mais engajamento, artistas, como Oiticica, Pape e Clark, buscaram outra formulação: experimentar para produzir outro tipo de engajamento. Novas subjetividades coletivas demandavam novas vozes políticas. Em vez de falar em nome dos oprimidos – conscientização política – buscar viabilizar a participação de novos corpos e novas subjetividades nos processos de expressão poética. Em certa medida, podemos perceber que a opção participativa, que implicava a transformação da obra em proposição, mudava

o lugar do espectador, ele também convocado como parte determinante da vontade construtiva disseminada pelo gesto criador. Falar com em vez de falar por ou para.

No caso de Lygia Pape, desde os balés neoconcretos e dos livros-objeto, esta disseminação começava a ser percebida. Entretanto, a partir de meados da década de 1960, este movimento começa a incorporar as vozes marginalizadas que gravitavam no interior da cultura brasileira. A minha sugestão é que isso dar-se-ia a partir do seu contato com o Cinema Novo, trabalhando junto a diretores tais como Paulo Cesar Saraceni, Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha, mais especificamente em filmes como Vidas Secas (1963) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Para a linguagem cinematográfica, talvez pela inespecificidade inerente ao audiovisual que inviabilizaria de saída a pureza de meios expressivos, o conteúdo político articulado à imagem não arrefecia a experimentação formal. Na mesma direção, devemos lembrar quanto os artistas da Nova Figuração buscavam recolocar o problema da participação via uma nova articulação entre palavra, imagem e materialidade. Articulava-se uma temporalidade mais densa e reflexiva para a imagem, constituída no interior de um contexto cultural marcado pelas assimetrias que buscava uma disseminação mais abrangente para os conflitos sociais, políticos, éticos que desafiavam os processos de uma modernização conservadora. Não se tratava de inverter a dicotomia forma e conteúdo, mas deixar aparecer corpos e vozes historicamente excluídos para, deste contato, se viabilizar uma outra densidade formal. Uma fabulação, tal como vemos em Glauber de Deus e o Diabo, acabaria juntando o tempo da experimentação formal com a urgência dos corpos políticos excluídos, que atravessam as imagens com uma contundência histórica singular, uma vez que nunca estiveram ali no centro da história.

Guardadas todas as diferenças de contexto, seria o caso de lembrarmos aqui da crítica que Pasolini dirigia a Godard neste mesmo período. Sem abrir mão da experimentação cinematográfica, introduzir nela os corpos precários e pobres que pareciam afastados do universo burguês do cineasta parisiense: “na cultura de Godard, há qualquer coisa de brutal e quiçá de ligeiramente vulgar: ele não concebe a elegia, pois enquanto parisiense ele não se deixa tocar por sentimentos tão provincianos e campesinos.” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p.185). Na interpretação dada por Didi-Huberman a este comentário crítico de Pasolini, a vulgaridade remetia a perda de contato com a realidade concreta do mundo.

Quando em seu artigo sobre o cinema de poesia, Pasolini afirma que Godard não pode ser tocado por um sentimento provinciano e campesino, é para indicar que não há cor pos pobres nos filmes de Godard e, portanto, nenhuma pesquisa sobre esta sobrevivência de gestos antigos com os quais o seu próprio cinema (de Pasolini) tinha sido profundamente atravessado (DIDI-HUBERMAN, 2015, p.192).

Algo desta vontade deliberada de trazer os corpos pobres para dentro da forma poética vimos aparecer nos Parangolés de Oiticica (1964) e, em seguida, no Trio do embalo maluco (1968) de Pape. Os sambistas rompendo do interior dos cubos de cores primárias, com seus corpos e ritmos libertados, fazem destas proposições exemplos paradigmáticos desta transformação. Depois, isso viria à tona no Divisor (1968) e nos filmes da década de 1970, Our Parents: Fossilis (1974), Carnaval no Rio (1974) e Mão do Povo (1975). Há neles uma urgência de aproximar o artista-inventor desta potência criativa bruta, que, em vez de falar em nome dos oprimidos, busca disparar nele o gesto transformador que faça liberar subjetividades recalcadas que componham um novo e experimental corpo coletivo. Citemos a própria Lygia Pape em sua dissertação de mestrado:

O que dizer, por exemplo, dos objetos recriados pela economia do precário do nordeste? Há alguns anos, em Areia, na Paraíba, interessados que estávamos em manifestações do povo, começamos uma pesquisa de objetos reciclados; iniciamos pelas latas de lixo feitas pelo aproveitamento dos pneus velhos de carros. Verificamos que sua presença na calçada era quase simbólica. Pouco ou nada havia dentro delas [...] A percepção do homem prevê a estrutura geométrica implícita naquele material pelo uso e dá-lhe nova forma, refaz e recria significados para ele (PAPE, 1980, p.66).

Este contato com o outro, este interesse pelo que não era seu, fez com que sua obra aderisse sempre ao gesto simples das práticas convencionais, dos objetos e atividades cotidianas, buscando retirá-los de uma espécie de limbo social para ressignificá-los. O trabalho manual da xilogravura, o contato direto com a madeira, o gesto de corte que produz nela espaço através da luz, em seguida ela vai deslocar a luz para a cor, depois a cor para o poema e o poema para a vida. Dos Tecelares passando pelo Balé neoconcreto, livro da criação, livro da arquitetura e chegando até as Tetéias, vemos o gesto da mão que procura a luz se expandir enquanto movimento do corpo, das palavras, das

cores, tudo levando à constituição de espaços imantados que nos atraem e nos impulsionam na direção do que há de transformador na vida. Desdobrando aspectos genuínos das culturas ameríndias conforme explicitado por Viveiros de Castro, “não há mudança espiritual que não passe por uma transformação do corpo, por uma redefinição de suas afecções e capacidades.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p.247).

Este espírito colado ao corpo, esta deliberada aposta naquilo que nos materiais, na sua contingência, se deixa atravessar de sentido e energia, que faz falar pelos intervalos da linguagem, pelo silêncio, pelas cores, pelo gesto, pela luz, é o fio deflagrador que na sua migração entre linguagens vai tecendo um corpo poético coerente e fascinante. Gostaria de terminar, citando uma passagem de uma crítica que escrevi, quando estive em uma de suas últimas exposições no CAHO em 2001/02, que abordava uma instalação intitulada Carandiru (2001) – o nome de um presídio em São Paulo onde em 1992 a polícia militar exterminou 111 presos de forma cruel e banal.

O trabalho que recebe o público nas duas galerias contíguas do térreo, Carandiru, é o mais ousado e impactante de todos na exposição. Na primeira sala, estão duas projeções de slides, misturando imagens dos índios tupinambás com cenas de presidiários, geralmente desfocadas, contaminadas pelo vermelho que vem da sala seguinte, que tem uma fonte onde corre água avermelhada. As duas salas são invadidas pelo forte som de cachoeira gravado e reproduzido. O cruzamento entre energia, vida, desperdício e destruição é uma síntese crua e ácida da cultura brasileira (OSORIO, 2002, p.8).

No final da vida, Pape seguia experimental, crítica e contundente como sempre. Juntando duas fraturas expostas da sociabilidade brasileira, os pobres e os índios, duas energias sistematicamente desperdiçadas que volta e meia explicitam suas vozes e corpos deliberadamente excluídos das narrativas hegemônicas da história do Brasil, Lygia Pape seguia seu compromisso etno-poético-político-experimental. Se as Tetéias são rasgos de luz que articulam os pontos da arquitetura (espaço) e nosso vínculo com a transcendência simbólica, Carandiru são rasgos de corpos luminosos e triturados que articulam os pontos da história (tempo) local e nosso vínculo com a imanência da exclusão. Vida e morte, criação e destruição são os elementos dialéticos de sua poética e da construção de

uma experiência singular de arte e de Brasil. Ver a obra de Pape exposta em importantes instituições internacionais é o sinal de que nossas questões e conflitos têm cada vez mais ressonância universal, na inversão do processo colonial, no embaralhamento geral de centros e periferias. Além disso, os desafios colocados à apresentação museológica, certa sensação de inadequação institucional, em que os gestos de inconformismo poético e político não cabem na composição imposta por toda exposição, é simultaneamente a certeza de que a arte pulsa além dos domínios estabelecidos. A inadequação é sintoma da resistência da arte, sendo que ela (a resistência) só aparece uma vez inserida (a arte) institucionalmente. Esta é a contradição vivida por estas obras e estes artistas agora que, gostemos ou não, a experimentação instalou-se nos museus.

Referências bibliográficas

DIDI-HUBERMAN, Georges. Passés Cités par JLG. Paris: Les Editions de Minuit, 2015.

OITICICA, Hélio. Objeto: Instâncias do problema do objeto. In: PAPE, Lígia. Catiti catiti, na terra dos Brasis. Dissertação de mestrado: IFICS – UFRJ, 1980, p.78-81. OSORIO, Luiz Camillo. Ousada, irreverente, plural. Jornal do Brasil, Caderno B, 12/01/ 2002. PAPE, Lygia. Catiti-catiti, na Terra dos Brasis. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: IFICCS – UFRJ, 1980. PASOLINI, Pier Paolo. Le cinema de Poesie. In: DIDI-HUBERMAN, Georges. Passés Cités par JLG. Paris: Les Editions de Minuit, 2015. PEDROSA, Mario. Arte Ambiental, Arte Pós-Moderna, Hélio Oiticica. In:______; AMARAL, Aracy. Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasília. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1981, p.205-210. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. O que nos faz pensar, [S.l.], v. 14, n. 18, set. 2004, p.225254. ISSN 0104-6675. Disponível em: www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/ index.php/oqnfp/article/view/197. Acesso em: 12/09/2018.