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Waly Salomão: entre o olho fóssil e o olho míssil

WALY SALOMÃO: ENTRE O OLHO FÓSSIL E O OLHO MÍSSIL

Frederico Coelho

Pelo açougue também se chega a Mondrian. Haroldo de Campos

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Não se trata neste ensaio de buscar na obra do poeta baiano Waly Salomão aspectos visuais. Nem se trata de mostrar que entre as duas máximas do olhar e do tempo – o “olho fóssil” e o “olho míssil”, expressões do próprio poeta – encontram-se os limites de uma perspectiva cronológica da história. Waly apresenta uma trajetória intelectual que reivindica estrategicamente a sua face acronológica. Escapar do fóssil é escapar da semiótica da história da cultura e dos seus modos de esquadrinhar vidas e obras por décadas e escolas.

Como no poema que abre o livro Gigolô de bibelôs (SALOMÃO,1983) e traz a máxima fóssil/míssil, trata-se aqui de investigar um OU e se preservar de seu óbvio movimento pendular entre polos discursivos. Superar o tique e taque do “ou um ou outro” que sempre aponta para um dos lados, incessantemente. Este ensaio se instala exatamente na ideia de que, em algum micromomento – o faixo de luz do meio dia nietzschiano –, se vive os dois: fóssil E míssil. Ao requisitar a multiplicidade do E no título deste ensaio, estou justamente criando uma imagem do estilo do poeta - aquela que frita o peixe do porvir e olha o gato da história.

Trata-se talvez de demonstrar por piscadas velozes e rabos de olhos um pensamento imagético que se esgueira na obra mais ampla de Waly. Do texto em estilo Cinemex (1972) ao corte e cola da Groovy Promotion (1972). Das fotos-poemas dos Babilaques (1977) aos cartazes-salva-vidas FA-TAL e VIOLETO nos shows de Gal Costa em 1971.

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Um poeta se faz de versos, mas também se faz de imagens do delírio da língua. Ou melhor, NO delírio da língua. Imagens que retiram os olhos de quem lê e o ouvido de quem ouve do campo corrente da palavra esquadrinhada em verticais e horizontais e arremessam os sentidos para uma fissura. Criar brocas no muro do mundo, diz Waly. Deixar marcas que atravessam corpos e mentes e criam, lá onde não se sabe ao certo o que ancora, a velocidade do míssil a partir da perenidade do fóssil.

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Em uma fala batizada de “Contradiscurso: do cultivo de uma dicção da diferença”, feita em 2002 por ocasião do seminário “Anos 70: trajetórias” (Itaú Cultural, 2005, p.77), Waly não deixa dúvida: quer ser sempre míssil, nunca fóssil. Assim, fica claro que o par fóssil/míssil não seria uma aposta de simultaneidade – como o moderno baudelairiano que traz, como uma ostra do futuro, a pérola certa do passado. Para Waly, o futuro é fluxo meândrico, que tudo atravessa em direção ao que está encapsulado na frente do presente. Na sua visão crítica, a história é um pesadelo se pensada como bola de ferro. Ao mesmo tempo, nesse contradiscurso, também afirma que “o modo que trabalho o mundo parte da ambiguidade” (p.75). Por fim, ainda nessa fala riquíssima – talvez a última grande fala pública de Waly que foi registrada – ele nos lembra que um dos motores do artista deve ser “suportar a vaziez e aguentar o período de abandono do déja vu” (p.78).

Abandonar o que já esteve, mesmo que breve e como fantasma, dentro dos olhos. Há de se superar o já visto, há de se atravessar o rio de fogo do que o olho já digeriu, já traduziu, já recortou, já ruminou e, por fim, repete. O olho míssil, assim, é o agente que transforma o visto em fóssil. Transformar o fóssil (elemento chave para combustíveis industriais) em míssil. Não ver de novo, ver sempre o novo, mesmo que seja o mesmo, mesmo que seja o de sempre: ver a vaziez.

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Foi um artista visual, seu irmão de armas e amores Hélio Oiticica, quem VIU nos textos seminais de Waly Salomão um livro de poesia. Era ainda 1970, e o poeta mostrava seus versos para muitos sem retorno algum. Oiticica viu o livro de Waly, diagramou, propulsionou o míssil com combustível que queimou até

seu fim prematuro em 2003. Sua relação com as artes por meio de e além de Oiticica fez com que sua escrita densa e polifônica ganhasse o mundo. Foi para ele que Waly criou sua Groovy Promotion, recortes de notícias espetaculares sobre esquadrões da morte e eventos sanguinários das manchetes policiais populares.1 O poeta os recortava, destacava textos de imagens, os colocava em envelopes e os enviava para Oiticica, que vivia então na “Manhattan Brutalista”. O artista delirava com as imagens e os enunciados trocados, sugerindo uma poética do vazio, uma prosa-pacote que engendrava novas escritas e imagens. Oiticica chegou a situar os textos de Waly numa imagem plástica clássica do século XX: a escultura brancusiana que absorve o pedestal. (SALOMÃO, 2002, p.203).

Anos depois, foi também perto de Oiticica que Waly inicia a criação de seus Babilaques, dispositivos poético-visuais cujas pranchas trazem fotos de páginas de cadernos com grafismos e imagens recortadas, deslocadas, rasuradas em sua estabilidade retiniana. Eles consistem em uma série de vinte fotografias realizada entre 1975 e 1977 em Nova Iorque, Rio de Janeiro e Salvador. Em texto dedicado aos trabalhos, Luciano Figueiredo, designer, poeta visual, cenógrafo, parceiro de primeira hora nas naves loucas e nos mísseis disparados mais a torto do que a direito, afirma sem rodeios a evidência de uma poesia “muito ligada não só à pintura”, mas “também à escultura” (FIGUEIREDO, 2007, p.11). Era no amálgama do E, no atrito produtivo dos meios em trânsito, que Waly esburacava os muros do mundo, criava imagens tão sugestivas quanto o rosto sobre o buraco negro ou o muro crivado de balas de uma Escola Municipal no Rio de Janeiro.

Nessa experiência de palavra e imagem, Waly traçava a plasticidade das letras e cores – criador de sons e luzes e planos e espaços – e sua companheira Marta Braga era o olho que as fotografava. Para os Babilaques, o entorno da imagem formada pela folha de blocos e cadernos era vital. Não se tratava de um mergulho no suporte, de uma imagética interna da superfície de papel, mas sim da criação de um campo de força ao redor da folha-tela. Suas fotos montam, junto com os títulos, as caligrafias e os poemas, um intricado jogo de referentes em que o próprio poeta situou na linhagem “Apollinaire, Jean Arp, Jean Luc-Godard” (SALOMÃO, 2007, p.61). Incluiu também nessa família

1 Para um estudo mais aprofundado da relação entre Waly Salomão e Hélio Oiticica e o tema da Groovy Promotion, ver COELHO, Frederico. Groovy Promotion: Waly Salomão, Hélio Oiticica, literatura e amizade. In: OLINTO, Heidrun Krieger e SCHØLLHAMMER, Karl Erik (orgs.). Literatura e espaços afetivos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014, p.94-102.

por contágio os futuristas italianos e russos. Desbravadores do padrão gráfico e da geometria radical nas artes, Waly cita um poeta desenhista, um pintor, escultor e criador de colagens que também escrevia poesia e um cineasta que fez de cada fotograma um poema na iminência de explodir para fora da tela. Eis aí a matilha Babilaque que Waly invoca para ampliar o olhar de sua experiência polissêmica.

Luciano Figueiredo nos lembra ainda, para selar essa contaminação do poeta pela imagem, da participação de Waly na Ex-Posição (1972), projeto de Carlos Vergara realizado no MAM em 1972, Vergara exibe uma série de trabalhos de não-artistas, nomes que, em sua maioria, nunca tinham participado ativamente do circuito das artes visuais. Waly estava lá, com a palma da mão fotografada por Bina Fonyat, afirmando em um poema-carimbo que conhecia a cidade com a palma da minha mão cujos traços desconheço.

Para Waly, e isso é fundamental de se colocar aqui, os Babilaques eram “Performance poético-visual”. Fiel às ideias de polissemia e amálgama, ele amarra em nó cego o aspecto performático-delirante do corpo ao aspecto dominante do texto e da imagem. Códigos que remetem tanto ao sensorial quanto ao visual, arrancando a marcação moderna do poema espacializado na sua pureza em forma de folha de papel. Há uma sujeira necessária nessas fotos de caligrafias ao mesmo tempo selvagens e estilosas. Brocas nos muros do mundo em multilinguagem. Daí a negação de ser parte da historia engessada da poesia marginal dos anos 70. Daí sua resistência a ser visto como fóssil, pois nunca fez parte do poemão anunciado por Cacaso para falar da geração dos anos 1970, apesar de saber exatamente o quinhão que lhe cabia reivindicar.

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A palavra especializada já era, para Waly, aquilo que ele fazia com a música. Suas letras, gravadas então por jovens que seriam mestres – como Gal Costa, Jards Macalé ou Maria Bethânia –, eram um gesto performático de o texto se tornar corpo. De ele se espalhar através de um corpo em voz e imagem para múltiplas escutas em ecos permanentes de seus versos. Ficar na boca do público é ser míssil. Ele sabia que naquele período, mais do que nunca, a voz era atrelada inexoravelmente a uma imagem performática desse corpo em canto. No mesmo texto em que ele cunha o termo “Performance poético-visual”, Waly reivindicou para esse momento uma “musicalidade poético visual” (SALOMÃO, 2007, p.21).

Performance e música, no fim das contas, podem colidir em um mesmo espaço de fruição sensorial das palavras e das imagens poéticas.

Ainda com Waly, temos a prova de que palavra e imagem não cessam na bidimensionalidade da página ou da foto e saltam em direção a uma incerteza fundamental. Cito o texto de 1979:

Uma foto de um pedaço de fruta dentro de uma lata vazia não pretende ser uma forma insólita de “natureza-morta”, mas instaura um discurso, uma fala, um canto, uma música, cines imaginários (SALOMÃO, 1979, p.21).

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Cines imaginários. O cinema foi a primeira porta de entrada de Waly na imprensa carioca. Ao lado do amigo Torquato Neto, publicava no suplemento cultural do Correio da Manhã a coluna “Super frente Super oito” e adiantava o relógio dos dispositivos imagéticos do seu tempo. A portabilidade da câmera super oito e a sua capacidade de captar a ação em movimento de forma precária, porém perene, torna-se para o poeta um caminho e uma linguagem que seriam indissociáveis de sua prática artística. Em Me segura que vou dar um troço (1972), a imagem oscila nos versos e títulos. Logo na primeira página, no primeiro poema (“Apontamentos do Pav Dois”), a palavra escolhida para sintetizar uma cena é a repetição do jargão maquínico-malandro CINEMEX. Um exemplo de uma cena CINEMEX: “Alguém fantasiado de javali feroz ataca uma pessoa diante do mar. como numa dança de Bumba”. (SALOMÃO, 2002, p.60).

A seguir, o título do segundo poema assume a tradição do Self-portrait. Mas lá, também, se insinua o vírus maquínico do CINEMEX:

Mulheres em formação chinesa armando uma frase como nos desfiles políticos. Uma pessoa com um telefone na mão discando o numero enorme de emergência enquanto é assassinada por uma enormidade de balas disparadas por um pistoleiro (SALOMÃO, 2002, p.86).

O cinema norte-americano nos redimirá. Ou nos matará. Nesse poema, o combustível do míssil é revelado: “CARNAÚBA DO NORDESTE NO FOGUETE DA NASA”. Por fim, o autorretrato definitivo daqueles tempos de vida sem pouso certo: “Foto minha com roupa e numeração de presidiário” (SALOMÃO, 2002, p.86).

No poema seguinte, “Roteiro turístico do Rio”, o poeta separa os blocos de versos por planos cinematográficos. O roteiro sai de sua acepção de caminho mapeado e desaba na escrita cinematográfica. São Planos de bairros e ruas cariocas trilhados por Waly. Seu olho míssil torna-se a câmera-olho de Dziga Vertov. Se ele vê com olhos livres, sua vista é roteirizada nas artimanhas das quebradas dos morros e desvãos da cidade que o poeta adota para si.

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A música, novamente. Foi no show de Gal Costa, realizado no Teatro Tereza Raquel durante 1971, que Waly, junto com a dupla de designers Luciano Figueiredo e Oscar Ramos, criaram as palavras-cenários –FA-TAL – E VIOLETO. Ambas escritas em caixa alta, penduradas acima do cenário do show.

Waly já inseria, desde o livro de 1972, fotos-montagens para abrir os sentidos de alguns de seus poemas. Ainda nesse ano, fez, ao lado da dupla de designers e do seu amigo e parceiro de imprensa Torquato Neto, o petardo poético-visual Navilouca (1972). A nave, aqui barco, transmuta-se rapidamente em nave espacial pela impossibilidade de ser fóssil um projeto gráfico radical que conseguia articular heranças e presenças modernas-construtivas dos concretos e neoconcretos com a juvenília da experimentação brasileira de então.

A partir desse encontro entre Waly, Luciano e Óscar ao redor de Gal Costa (o primeiro era o diretor do show), Torquato, o quarto vértice dessa geometria, escreve um dos textos mais pungentes da geração que atravessou mares revoltos entre exílios, internações e suicídios. O poeta piauiense vinha sugerindo desde 1971 em suas colunas na “Geleia Geral”, do Jornal Última Hora, o que chamava de “perda da fé nas palavras”. Cito Torquato:

Quando eu a recito ou quando eu a escrevo, uma palavra – um mundo poluído – explode comigo e logos os estilhaços desse corpo arrebentando, retalho em lascas de corte e fogo e morte (como napalm) espalham imprevisíveis significados ao redor de mim: informação. Há palavras que estão nos dicionários e outras que não estão e outras que eu posso inventar, inverter. Todas juntas à minha disposição, aparentemente limpas, estão imundas e transformaram-se, tanto tempo, num amontoado de ciladas. [...] Agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma; qualquer palavra é um gesto e em sua orla os pássaros de sempre cantam nos hospícios (NETO, 2004, p.262).

A partir do show de Gal, porém, Torquato escreve um agradecimento público a Waly não pelo show em si, pelas suas canções ou pelos seus versos em letras como “Vapor Barato” (1971). Ele agradece pelas grandes placas gráficas. Eis o texto de Torquato, feito na sua coluna em 4 de novembro de 1971:

Ao poeta Sailormoon estou devendo a fé que eu já havia esquecido. Mas eu nunca disse para ninguém e digo logo desta vez: era um grilo zumbindo e eu não acreditava mais que as palavras pudessem me servir de nada. fa-tal e violeto, palavras-destaque do show de Gal by Waly, desfizeram meu absurdo encantamento pelo grilo. Não é nada daquilo e é o mesmo de sempre: tudo é perigoso, divino, maravilhoso. E as palavras, eu aprendi novamente, não são armas inúteis (NETO, 2004, p.288).

Assim, o poeta no limite da afasia, que caminhava também para a imagem em detrimento do verso –, Torquato fazia poemas visuais radicais e iniciava um desejo de se tornar diretor de cinema – encontra na palavra-destaque, puramente visual e em escala espetacular, a fé perdida. O olho vazado e opaco de Torquato foi reativado pelo combustível do olho míssil de Waly e seus parceiros designers. Esse episódio marcou também o poeta baiano, sempre lembrado ao rememorar o amigo. Vale lembrar, porém, que essa rememória de Torquato por parte de Waly é fortemente marcada pelo tom ácido com que o segundo afirmava as voltas do relógio do tempo. Waly gostava dos longevos, dos velhos poetas maduros. Para ele, a morte do amigo, seu suicídio ainda em 1972, um ano depois da retomada na fé pelas palavras, ganha metáfora imagética: “Foi um snapshot intersemiótico. Um Fotograma de cine-poesia.” (SALOMÃO,1993, p.66). Ainda Waly registra o epitáfio duro, porém generoso: “Mas a poesia não salva nada nem ninguém, ela somente supre o buraco das certezas.” (p.68).

Buracos feitos pela Broca no muro? Ainda em cinema-verdade, metáfora da morte real na ficção das imagens em movimento, ele vê a vida de Torquato nos personagens de Godard. Torquato Pierrot, le fou, Torquato Le petit Soldat, Torquato One plus one. O final trágico deixa em aberto uma imagem que Waly nunca aceitaria: a santificação. Quem fica, aguenta a barra. O filme não pode parar quando alguns de seus atores saem de cena.

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Cine-poesia, poesia do olho em travelling, zoom, plongé ou plano e contraplano. O poeta da imagem-performance e da palavra sonora polissêmica e multicolor estava perto do Quasi-Cinema (1973) das Cosmococas (1973) de Oiticica e Neville de Almeida, estava dentro dos sets de filmes experimentais produzidos em velocidade míssil por Júlio Bressane, Rogério Sganzerla e Ivan Cardoso, era íntimo papeador do designer, poeta e filósofo Rogério Duarte. A decalagem histórica no Brasil entre a palavra e a imagem teve no período heroico da Poesia concreta e de seus colaboradores um marco fundamental. Não foi à toa que Waly levou até o fim da vida as lições do Paideuma proposto, projeto em que o ideograma chinês e o “lance de dados” mallarmaico sempre estiveram em órbita na mesma galáxia. Nos anos 1970, palavra e imagem já tinham sido remixadas pelos meios de massa multimídia para fora do domínio letrado. Silviano Santiago, em artigo dedicado no calor da hora aos primeiros livros de Waly e Gramiro de Matos, vaticina, a partir do termo curtição, essa fissura espaço-temporal da palavra e da imagem no Brasil. Citando o crítico (também poeta visual nesse período em livros como Salto (1971):

O atraso da literatura com relação a outras formas de expressão artística já chega a ser normal em nossa época, e talvez neste preciso momento em que a arte da curtição ouve seu canto de cisne é que a literatura comece a tomar conhecimento do que esteve acontecendo. Perdemos o bonde; não percamos a esperança (SANTIAGO, 2000, p.129).

Silviano arremata a discussão apontando como agravante do atraso o fato das novas gerações olharem com descaso a comunicação verbal e valorizarem o trecho sobre o todo. Em outro artigo da mesma época, intitulado de forma emblemática “O assassinato de Mallarmé”, o crítico (que publicou poemas visuais na revista concreta Invenção) acusa o golpe geracional: os jovens preferiam a teoria antropofágica dos manifestos oswaldianos do que a teoria matemática dos manifestos do plano piloto noigandres. De certa forma, essa fissura, contraditoriamente criada pelos próprios poetas concretos em seu exercício crítico-míssil de atualizar a obra de Oswald de Andrade, foi justamente o espaço cindido em que Waly Salomão se instalara. Exercendo sua famosa tática “Pound Tsé-Tung”, ele produz novamente o E disseminador de sentidos e opta pelo concreto e o ocre dos casebres das favelas.

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Fechando esta escrita, mas abrindo a trilha, Waly se referiu ao seu primeiro livro, ainda no seu lançamento em 1972 como “energia propulsora” (1972, s/p.). Sua perspectiva histórica na díade fóssil/míssil pode derivar da perspectiva nietzschiana, para quem a história deve, de todas as formas, estar a serviço da vida. O fóssil, aquilo que encontramos a posteriori para comprovar vida – orgânica ou material – de povos passados, nos aprisiona na garantia do fato, e, como diz o filósofo, o fato é sempre estúpido. Mas há também os momentos em que o fóssil nos serve a favor de um fluxo de vida, de uma civilização vindo a ser. Há uma força, um combustível que, para Waly, faz com que ele queira sempre ser míssil. Se o mesmo diz que nunca será fóssil, hoje podemos dizer que a memória de sua obra e vida permanece viva, plena de roteiros a serem explorados. Uma obra cuja ideia de blocos de som, corpo, imagem e letra (sejam eles de carnaval, sejam eles de sensações, sejam eles o mármore de Brancusi) mantêm-se simultaneamente dentro e fora da história. Móvel, inquieto, quente e panorâmico. Como o próprio afirma em seu poema de 1983 “Olho de lince”:

Quando quero saber o que ocorre a minha volta ligo a tomada abro a janela escancaro a porta experimento invento tudo nunca jamais me iludo quero crer no que vem por aí beco escuro me iludo passado presente futuro. (SALOMÃO, 1983, p.9)

Referências bibliográficas

COELHO, Frederico. Groovy Promotion: Waly Salomão, Hélio Oiticica, literatura e amizade. In: OLINTO, Heidrun Krieger; SCHØLLHAMMER, Karl Erik (orgs.). Literatura e espaços afetivos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014, p.94-102. FIGUEIREDO, Luciano. Babilaques: poesia e arte. In: SALOMÃO, Waly. Babilaques. Rio de Janeiro: Contracapa, 2007, p.11-18. NETO, Torquato. Torquatalia – Geleia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. SALOMÃO, Waly. Babilaques. Rio de Janeiro: Contracapa, 2007.

SALOMÃO, Waly. Contradiscurso: do cultivo de uma dicção da diferença. In: RISÉRIO, Antônio; FREIRE, Maria C. M.; KEHL, Maria Rita et al. Anos 70: Trajetórias. São Paulo: Itau Cultural/Iluminuras, 2005, p.77-89. SALOMÃO, Waly. Me segura que eu vou dar um troço. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. SALOMÃO, Waly. Armarinho de miudezas. Salvador: Fundação Jorge Amado, 1993. SALOMÃO, Waly. Gigolô de bibelôs. Rio de Janeiro: José Álvaro editor, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos – ensaios sobre dependência cultural. Perspectiva: Rio de Janeiro, Rocco, 2000.