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Capítulo 2 - Identidades juvenis e visualidade
Capítulo 2 2. IDENTIDADES JUVENIS E VISUALIDADE
Antes de iniciarmos as correlações a visualidade e os jovens, que são o nosso público a ser estudado, é necessário definirmos e contextualizarmos os conceitos referentes à juventude. Apesar do termo jovem ser uma categoria etária com resquícios históricos bastante antigos, institucionalmente a Assembleia Geral da ONU definiu o termo juventude, pela primeira vez, em 1985 no que foi declarado “Ano Internacional da Juventude”. Ao subscrever as diretrizes para o planeamento posterior e o acompanhamento adequado no sector da juventude, a Assembleia fixou como jovens os indivíduos com idades compreendidas entre 15 e 24 anos. O Programa Mundial de Acão para a Juventude até ao Ano 2000 acrescentou que o sentido poderia variar em diferentes sociedades e que as definições de juventude haviam mudado continuamente na história como resposta a flutuações das circunstâncias políticas, econômicas e socioculturais. Desde 1985, todos os serviços estatísticos do sistema das Nações Unidas têm utilizado a faixa etária 15-24 para a recolha de dados mundiais sobre as juventudes. Contudo, cada país possui a sua definição e legislação que incide a sobre juventude. Mas qual a definição para a fase da vida de um indivíduo a que chamamos de juventudes ou adolescências? Quais são as transformações, conflitos identitários, interações sociais e culturais que estes indivíduos passam, desde que saem da infância até tornarem-se adultos? Para alguns, as juventudes são um símbolo que ultrapassa a categoria etária, no qual emerge o significado de adolescência através da representação de uma aparência para cada período histórico (Wyn, 1997). Pode ser
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classificada ainda como uma fase de preparação para a idade adulta no qual passa por um momento de crise, desencadeando incertezas sobre as suas transições físicas e relações sociais (Erikson, 1968). A primeira ideia que nos surge, quando pensamos em adolescência, é a de “transformações”. Estas mudanças podem ser classificadas como biológicas ou fisiológicas, que as ciências médicas chamam de puberdade, marcada pelo crescimento rápido dos membros, surgimento de pelos, mudança na voz nos rapazes, desenvolvimento dos seios das mulheres, ebulições hormonais, entre outras. Já a psicologia foca a ênfase dessas transformações comportamentais e desenvolve uma análise acerca de uma suposta rebeldia, isolamento, apego aos grupos, adoção de novas formas de se vestir, falar e se relacionar, além de episódios como depressão, tristeza ou euforia. Segundo a psicóloga Melissa Lepre (2005), tal metamorfose inclui ideias, de certa forma, revolucionárias e inovadoras como crença de que se pode mudar o mundo, assim como a perda de algumas referências e de que papéis estão a assumir socialmente. Neste, capítulo pretendemos refletir acerca dos processos de construção da identidade dos jovens a partir do entendimento das suas relações interpessoais e intrapessoais, seus pares, família e ambientes sociais. Para tanto, faremos um resgate sobre o conceito de juventude, no intuito de esclarecer qual o sentido que esse termo possui nos dias atuais e de que forma estas definições esclarecem a compreensão desta fase. Pretendemos, ainda, apontar os processos identitários que são construídos neste período através das relações de identidade entre si, com os seus pares e com a sua família e todos os conflitos que estão associados a esta fase da vida. Teorias sobre juventude e identidade, como as de Erick Erikson (1968) e James Marcia (1980), farão parte do nosso marco teórico, sobretudo, suas análises sobre as crises deste processo, as formas de representação, as apropriações e consumos visuais deste grupo social. No decorrer deste capítulo, desde a conceitualização sobre juventudes, passando pelos processos identitários e as crises na adolescência, servem como base argumentativa para o nosso objetivo que será que importância a visualidade e a autorrepresentação
possuem nos jovens. A imagem com que se apresentam e se identificam são aspetos determinantes para as suas relações pessoais e a sua aceitação nos grupos de pares (Ferreira, 2008).
2.1 Uma definição de juventude
Apesar da popularização e visibilidade mediática do que seria uma definição de juventude ser dada, em grande escala, no século XX pelo mercado de consumo (Frith, 1986), argumenta-se que a análise e categorização das juventudes, como um período de transição para a idade adulta, possuem uma história anterior. A filosofia aponta que o termo juventude surgiu numa época remota, contudo ainda indefinida. Não pretendemos correr o risco de apontar marcos históricos. Por isso, tentaremos aludir um conjunto de situações na história ocidental que acreditamos ser relevantes para o entendimento e construção do conceito. Ao analisarmos a história da sociedade entendemos que o nascimento de um indivíduo não era o suficiente para a ocupação de um lugar no mundo. No império romano, por exemplo, era necessário um reconhecimento paternal para que iniciasse sua educação e consequente colocação na aristocracia romana. “Assim que a criança nascia era entregue a uma ama que ficava responsável por educá-la até a puberdade. Aos 14 anos, o jovem rapaz romano podia abandonar as vestes infantis e aos 17 já podia entrar para o exército e a carreira pública” (Lepre, 2005), fato que o designava um cidadão. Até o século V, no império de Justiniano, se reuniam em praça pública os membros familiares e o concílio romano para declarar a puberdade ao jovem, com o desposar da toga virilis que assinalava o seu ingresso na comunidade política enquanto cidadão. “Quando um jovem estivesse preparado para deixar “os signos da infância”, uma cerimónia, presidida pelo pai do adolescente, era realizada: o jovem desposava a toga praetexta1 e vestia a toga virilis2 como símbolo da sua maturidade” (Fraschetti, 1996: 90). “A partir deste momento
1. A toga Praetexta era utilizada na infância de um romano. 2. A toga Virilis era uma vestimenta branca usada no Império Romano em ocasiões formais pela maioria dos jovens romanos entre 14 a 18 anos, mas poderia ser qualquer fase entre esta idade. O uso da toga Virilis marca a maturidade.
poderia participar das eleições, aceder à magistratura, realizar negócio, participar do exército, tendo os mesmo direitos e deveres que um adulto” (Feixa, 1998: 29). Durante a Idade Média, o período de transição entre a infância e a idade adulta ainda era bastante incerto e indefinido. O ritual que estaria mais próximo da passagem do período da infância para a idade adulta, para os homens, dava-se através da cerimónia realizada no momento do primeiro barbear do jovem, chamada de “barbatória” (Raupp, 2006). “Nessa época, o pelo era a prova de que a criança tornara-se homem, podendo, a partir de então, cultivar a qualidade da agressividade que visava à boa formação do guerreiro - necessária para sua sobrevivência” (2006: 14). Para as mulheres, esta transição passaria a ser mais evidente na primeira menstruação, que a tornaria apta para ser mãe e ocupar uma posição social. Alguns estudos apontam que por volta do século VI e VII já se iniciam algumas categorizações, a partir das características etárias. Um testemunho esclarecedor pode ser encontrado numa espécie de enciclopédia do saber sagrado e profano, publicada na França, em 1556, e chamada Grand propriétaire de toutes les choses. “Na obra distingue-se sete idades, que correspondiam aos sete planetas conhecidos: infância, puberdade, adolescência, juventude, idade média, velhice e senilidade” (Feixa, 1998: 31). Guimarães e Grinspun (2008) apontaram que as idades se referiam a: infância (de 0 a 7 anos), puberdade (de 8 a 13 anos), adolescência (de 14 a 21 anos) e juventude (de 22 a 30 anos). Contudo, a classificação dos limites de idade ainda era muito relativa na qual a adolescência era confundida com a infância e a juventude com a “idade média” (que hoje se denominaria a fase adulta). Já Mitterauer (1993) argumentou que, de forma linguística e conceitual, o período da juventude não existiu na Europa até o século XVII. Embora um vocabulário da primeira infância tivesse surgido e se ampliado, subsistia a ambiguidade entre a infância e a adolescência, de um lado, e aquela categoria a que se dava o nome de juventude, do outro. Não se possuía a ideia do que hoje chamamos de adolescência, e essa demoraria a se formar.
Contudo, é com a Revolução Industrial que a imagem da juventude começa a ser construída tal como a conhecemos atualmente. Frank Musgrove afirmou que “o jovem foi inventado ao mesmo tempo em que a máquina a vapor. O principal inventor da máquina a vapor foi Watt, em 1765. E do jovem foi Rousseau, em 1762” (Musgrove, 1965: 33). Para Feixa (1998), é indiscutível a importância do filósofo para o desenvolvimento do pensamento sobre a infância e a adolescência. De acordo com o pensador iluminista, em Emile, a adolescência poderia ser vista como um segundo nascimento: há uma transformação no estado de existência do indivíduo no qual se desperta o sentido social, as emoções e a consciência (Feixa, 1998: 35). De acordo com Lepre (2005), é no século XVIII que aparecem as primeiras tentativas de se definir, claramente, a adolescência. No fim do século XIX, definiu-se, nas classes burguesas, o termo adolescência, como o resultado de uma sociedade capitalista e industrializada, com a intenção de demarcar o início da segunda infância, definindo a idade para além dos 13 anos (Worthman, 1987). Para Silva e Lopes (2009), na metade do século XIX surgiram inúmeras pesquisas sobre a psicologia do desenvolvimento infantil que apontam a infância como objeto de interesse acadêmico. Contudo, é no final do mesmo século e início do XX que a juventude passa também a ser objeto dos estudos científicos” (2009: 89). A ciência passa a se preocupar sobre como os jovens pensam, a justificar suas atitudes a nível social e clarificar as mudanças psíquicas da puberdade, constituindo a imagem da juventude que temos atualmente. Como obras de referência sobre a juventude, em 1904, Stanley Hall publicou Adolescence: Its Psychology, and it’s Relations to Physiology, Anthropology, Sociology, Sex, Crime, Religion and Education, abordando esta como uma singular e importante fase do desenvolvimento humano. Hall (1904) considerava que a emancipação e o sucesso da vida adulta seriam o resultado de um desenvolvimento acompanhado de cuidados especiais durante a fase da adolescência. Referindo-se a este período afirma que:
«Nenhuma idade é tão sensível aos melhores e mais sábios esforços dos adultos. Não há um único solo em que as sementes, tanto as boas como as más, atinjam raízes tão profundas, cresçam de forma tão viçosa ou produzam frutos com tanta rapidez e regularidade» (Hall apud Sprinthall e Collins, 2003: 15).
Segundo Carles Feixa (1998), Hall caracterizou a adolescência como uma etapa de tempestade e estímulo. Hall elaborou a chamada teoria da recapitulação, segundo a qual a estrutura genética da personalidade leva incorporada a história do género humano. “A adolescência corresponderia a uma etapa pré-histórica de turbulências e transições marcadas por migrações de massa, guerras e cultos a heróis” (1998: 16). A obra de Hall teve uma enorme influência para a difusão da imagem que é conhecida hoje da adolescência como uma etapa social e de crise do indivíduo. A antropóloga Margaret Mead realizou estudos entre 1925 e 1933 sobre os nativos da ilha de Samoa. Para divulgar suas descobertas, Mead publicou o livro Coming of age in Samoa: a psychological study of primitive youth for western civilisation (1928) no qual focou a adolescência samoana, fazendo comparações com os adolescentes das sociedades modernas industrializadas e desenvolvidas da época. Para a autora, o que marcava uma diferença profunda entre os jovens dos contextos de culturas modernas e os de Samoa é a quantidade de escolhas que se permite a cada indivíduo (Mead, 1928). No entanto, é no século XX que vimos nascer o adolescente moderno que exprimia uma mistura de pureza provisória, força física, espontaneidade e alegria de viver, o que tornou o adolescente o herói do início do século XX. Não é por casualidade que em 1919 o escritor alemão Hermen Hesse publica o livro Demian que relata em primeira pessoa a passagem da infância para a idade adulta. É na segunda metade do mesmo século quando se presencia a aparição do jovem como sujeito ativo. “A era pós-industrial descortina e ‘democratiza’ o conceito de adolescência, passando do início do século XX de um sujeito passivo a um ator protagonista da cena pública” (Feixa, 1998: 41). Após as experiências vividas pelas duas grandes guerras e pela autonomia dos “anos dourados”, as décadas de 60 e 70 desencadeiam momentos que refletem essa participação política em locais e datas como “Brighton, 1964;
San Francisco, 1967; París y México, 1968, entre muitos outros ao redor do mundo” (Gillis, 1981: 189). Teóricos da contracultura, como Herbert Marcuse (1968), anunciaram a emergência da juventude como uma nova classe e como vanguarda de uma sociedade futura. Estas etapas da adolescência durante o século XX vão delinear o termo Cultura Juvenil a partir do culto de uma idade em moda. Feixa (1998), assim como outros autores da Sociologia da Juventude e Antropologia da Juventude, fala de culturas juvenis, no plural, com o intuito de abranger a heterogeneidade das mesmas, como “um conjunto de experiências sociais dos jovens expressadas coletivamente mediante a construção de estilos de vida distintos” (Feixa, 1998: 84). Dentro dos Estudos Culturais, há uma longa tradição de investigações sobre as culturas juvenis que remontam ao início dos anos 1960. Ao considerarmos o nascimento dos estudos culturais entre 1950 e 1970, Amparo Huertas apontou, em seu estudo La audiência investigada (2002), que “esta tradição se dá praticamente desde o início desta corrente” (2002: 123). Estas pesquisas estão principalmente preocupadas com a forma como os jovens se apropriam das mercadorias culturais e as usam para seus próprios dispositivos. Muito destes trabalhos centraram -se especificamente nas “subculturas” juvenis nas quais “grupos como hippies, skinheads, punks, góticos, ravers e outros são vistos como resistentes ou opositores às culturas imperativas dos pais, por exemplo, através da moda, dança, música e outras formas culturais” (Buckingham, 2008: 4). Buckingham afirmou que, neste caso, as subculturas são vistas não apenas como subordinadas, mas também como subversivas. Elas surgem de contradições e tensões sociais contra uma ordem dominante e representam uma ameaça às normas sociais estabelecidas. É desta forma que a juventude passa a ser vista no fim do século XX. O período que Lepre (2005) chamou de “século da adolescência” passava a ser definido por Daniel e Cornwall (1993) como a era de uma “geração perdida”. Retomando ao mundo das escolhas a que Mead (1928) se referia, a juventude ocidental, principalmente, se encontra num mundo de opções que vão desde religiões, crenças, códigos morais e práticas culturais distintas. O pensamento da autora torna-se atual ao ponto que o conceito de juventude
não pode ser tomado como universal. Enquanto para alguns jovens as escolhas implicam transgressões às normas do grupo social, para outros jovens essas possibilidades são bastante mais amplas. Desta forma, o que tentaremos traçar é um entendimento das diversas formas de juventude nas sociedades modernas, que encontram um grande número de possibilidades, mas que convivem diariamente com conflitos afetivos, sociais e morais por suas escolhas e pelas condições sociais e culturais nas quais estão imersas. O surgimento da ideia de juventude está particularmente associado à construção social de uma representação do jovem enquanto agente económico: da exclusão do trabalho e de como fica remetido ao papel de consumidor. Frith (1986) argumentou que o termo juventude foi mais frequentemente utilizado em pesquisas sobre jovens da classe trabalhadora, principalmente nos Estados Unidos da América e no Reino Unido. As altas taxas de emprego deram a este grupo poder de consumo sem precedentes, dando-lhe visibilidade e uma nova forma de autoridade. Desta forma, o modelo económico passou a visualizar um novo público consumidor, que necessitava de ações e produtos direcionados, a juventude se torna uma “nova categoria”. Sobre esse novo mercado de consumo Carles Feixa (1998) apontou que:
«O nascimento do ‘teenager market’ oferece pela primeira vez um espaço de consumo especificamente destinado aos jovens que se convertia num grupo com crescente capacidade aquisitiva: moda, adornos, lazer, musica, revistas, etc., constituíam um mercado de produtor para consumidores adolescentes» (Feixa, 1998: 43).
Por outro lado, a partir de seus ideais inovadores e por vezes revolucionários, esse grupo social passaria a ser uma ameaça potencial para a estabilidade da sociedade. Embora o sentido de ameaça subentenda uma força física, os jovens passaram a simbolizar mudanças dos valores morais e culturais das sociedades em desenvolvimento. Esta sensação de ameaça foi descrita por Cohen (1997) como um “pânico moral”, com base no comportamento violento e perturbador que a juventude representava após a metade do século XX e de certa forma ainda afigura.
Embora a experiência da juventude possa ser de algum modo variável em diferentes culturas, e o conceito desta fase ainda seja muito indefinido, é importante a compreensão das suas complexidades que passam a ser visíveis nas mudanças sociais que esse grupo tem vindo a assumir na sociedade contemporânea. A imagem de “ameaça” à lei e a ordem representa um grupo com mais poder do que, por vezes, realmente possui. Embora os jovens tenham direitos enquanto cidadãos, “estes são facilmente negados quando pensamos que eles não são ouvidos ou ativos nas decisões das instituições que os representam e decidem sobre suas vidas” (Wyn, 1997: 11). Essa negação passa pela padronização da categoria juventude para que as estruturas e instituições, normalmente chefiadas por adultos, possam julgar alguns jovens como “dentro do padrão de sociabilidade” e outros como necessitados de intervenção, seja ela social, política ou psicológica. O mundo adulto preza a qualidade de um desenvolvimento deste grupo a partir de modelos e regras sociais do que seria um sujeito responsável, independente, centrado, autónomo, conformista e de identidade fixa. O desenvolvimento saudável de indivíduos centrados proporciona a possibilidade de uma sociedade futura mais estabilizada. A ideia de que os jovens são um problema para a sociedade e para si próprios passa a ser um tema figurativo das discussões sobre o grupo social. O posicionamento dos jovens e seus comportamentos, diante algumas situações, os colocam nesta posição de ameaça aos valores sociais. Esse descrédito pode ser referenciado na abordagem dos jovens como uma “geração perdida” (Daniel e Cornwall, 1993). O quadro que emergiu do estudo de Daniel e Cornwall (1993) aponta que os jovens não assumem compromissos com a sociedade, por não se sentirem pertencentes a ela. No entanto, os autores possuem uma definição da tal “geração perdida”, diferente dos ditos populares, quando justificam que os jovens são vítimas de alterações e evoluções da organização econômica e social que os marginalizam. Wyn (1997) complementou afirmando que “a juventude é uma vítima da sociedade, bem como uma ameaça a ela” (1997: 22). Como um período de transição para a vida adulta, o entendimento da juventude só tem sentido em relação às circunstâncias específicas da vida social, política e condições econômicas. Uma vez que o meio é compreendido,
é possível trazer as condições sociais para o primeiro plano e examinar a diferença significativa entre os grupos de jovens e como eles se envolvem com os processos que irão levá-los à vida adulta. É por isso que o conceito de juventude pode não ser o mesmo e apresentar definições e características distintas de um jovem europeu, caucasiano, de classe média alta, que vive num contexto urbano de outro de etnia africana ou asiática, residente numa comunidade rural. O que conhecemos hoje por juventude, desde uma fase de comportamentos de risco, rebeldia, transgressão, irresponsabilidade e dependência, é uma conceção ocidental que expõe o ideal de infância feliz seguida por mitos “construídos em torno das preocupações sociais e prioridades de países de economia global europeus e norte-americanos” (Boyden, 1990: 184). Enquanto uma perspectiva global é tomada, pela natureza social de juventude, “para uma grande porção de jovens no mundo o conceito de ‘juventude’ como uma etapa de desenvolvimento humano continua a ser um conceito inadequado” (Wyn, 1997: 10). Se a juventude pode ser entendida como um período tão importante da formação da identidade de um indivíduo, entre o fim da infância e a entrada para o mundo adulto, “situações como exploração sexual, do trabalho e jovens envolvidos em conflitos armados não deveriam fazer parte deste cenário atual” (ONU, 1986: 8), sendo os direitos visíveis e garantidos a estes grupos sociais apenas em algumas regiões do mundo.
2.2 Identidade Juvenil: conceitualizando um estado de crise
As Ciências Sociais e Humanas têm sido um notável palco para as questões da identidade, sendo estas reivindicadas e analisadas pelas lentes de disciplinas como a Psicologia, Sociologia, Filosofia e Antropologia, entre outras. Para David Buckingham (2008), teorias como a do interacionismo simbólico, os Estudos Culturais, a Psicologia do Desenvolvimento e muitos outras têm trabalhado este conceito como elemento gerador de respostas das interações sociais e culturais. O autor salienta que a identidade é um termo ambíguo e escorregadio e “tem sido utilizado em excesso em muitos contextos e fins diferentes, principalmente nos últimos anos” (Buckingham, 2008: 1). As identificações e semelhanças nas relações entre indivíduos e
meio pode oferecer um conhecimento mais aprofundado do ser humano, com o entendimento de que ele é produto único das suas experiências e repertórios que formam uma biografia pessoal. Embora os dicionários não nos expliquem claramente a aplicação da palavra identidade, sabe-se que as origens provêm do latim identitat e do francês identité. Contudo, como comentou Buckingham (2008), o paradoxo fundamental da identidade é inerente ao próprio termo. Da raiz latina idem, que significa “o mesmo”, o termo, no entanto, implica tanto a semelhança, quanto a diferença. Apesar desta dicotomia entre o entendimento do conceito do que se assemelha e diferencia é recente a popularidade do termo pelas Ciências Sociais. Marcia (1980) atribui a Erik Erikson (1950; 1968) o pioneirismo a partir do desenvolvimento psicossocial e expandindo os estágios psicossexuais de Freud. Os trabalhos de Erikson passaram a influenciar pensadores como James Marcia (1980), que relatou os quatro estados de identidade, que veremos adiante; Anthony Giddens (2002) e os laços entre identidade e modernidade nos contextos globalizados; Stuart Hall (2001) com as identidades culturais e chega a autores como David Buckingham (2008), através das decomposições e apropriações dos contextos digitais e juvenis e os processos identitários. Uma apreciação adequada do significado ontológico de identidade engendra na sua função enquanto “instância específica de interpretação do mundo que investe significado a uma pessoa e àqueles à sua volta” (Heaven e Tubridy, 2003: 152). As identidades estruturam a forma como uma pessoa se compreende a si mesma, no seu mundo, tanto no senso descritivo quanto prescritivo. A partir do período da infância (Inhelder e Piaget, 1958) uma pessoa é descrita e apontada pelos outros através de identidades que a convida a ser categorizada, de uma certa maneira. Culturalmente, específicos modos de ser masculino ou feminino estão entre as primeiras identidades (género) nas quais as pessoas classificam os outros e são reciprocamente categorizadas. Estes seguem por outros estados identitários a serem identificados como raça, etnia, geração, classe social. Contudo, no decurso do desenvolvimento biológico e social de um indivíduo, as identidades podem mudar de acordo com a circunstância e, em certa medida, com as preferências. Para Heaven e Tubridy (2003), isso
resulta “numa compreensão sempre complexa, muitas vezes contraditória e normalmente profundamente assente no entendimento da natureza de si próprios, dos outros e do seu mundo” (2003: 152-153). Desta forma, a negociação da identidade é um processo dinâmico e contínuo. Como referimos, o processo de construção de identidade é social e intermitente ao longo da vida dos indivíduos. Lepre (2005) enfatizou que desde o seu nascimento os indivíduos percorrem uma longa interação com o meio em que estão inseridos, a partir da qual construirão não só a sua identidade, mas também a sua inteligência, emoções, medos, angústias formadores da sua personalidade. A formação da identidade pode ser ainda um dos fatores que está intimamente ligada aos modelos culturais e sociais em que o indivíduo se encontra inserido. Durante o desenvolvimento de construção identitária podemos observar certas crises de identidade (Lepre, 2005). Erikson (1968) mencionou que essas crises podem ser desencadeadas em cada um dos seus oito3 estágios do desenvolvimento psicossocial humano. A resolução dos conflitos psicológicos, que podem ser bastante profundos e devastadores, permite uma progressão saudável para a fase seguinte (adulta). Dentro da “Teoria do Desenvolvimento Psicossocial” de Erikson, a adolescência é o quinto estágio que o autor chama precisamente de “identidade versus confusão”. É esta fase em que “os adolescentes começam a racionalizar e sofrer uma crise de identidade pessoal verdadeiramente como um adulto” (Boyes e Chandler, 1992: 278).
3. Os oito estágios foram a Teoria do Desenvolvimento Psicossocial de Erikson constituídos por: 1. Confiança versus desconfiança (ocorre aproximadamente durante o primeiro ano de vida. 2. Autonomia versus dúvida e vergonha (aproximadamente entre os 18 meses e os 3 anos). 3. Iniciativa versus culpa (entre os 3 e 6 anos). 4. Indústria (produtividade) versus inferioridade (decorre na idade escolar antes da adolescência, dos 6 aos 12 anos). 5. Identidade versus confusão (este marca o período da adolescência). 6. Intimidade versus isolamento (entre os 20 e os 35 anos, aproximadamente). 7. Generatividade versus estagnação (35 - 60 anos). 8. Integridade versus desespero (a partir dos 60 anos)
O desenvolvimento de um sentido de valores forte e estável de si próprio é considerado como uma das funções centrais da adolescência. Apesar do desenvolvimento da identidade ocorrer durante toda a vida, é na adolescência que as pessoas começam a pensar sobre esse processo de escolhas, influenciadas por diversos fatores que virão a afetar suas vidas. Michael Berzonisk (1981) reconheceu que a juventude é um período crítico e decisivo na vida do ser humano. Conforme Suárez (2011), esta é uma etapa em que a personalidade de um indivíduo se desenvolve em pelo menos quatro dimensões: “Os interesses sociais se ampliam; os poderes intelectuais aumentam; os objetivos da vida se expandem e as experiências pessoais se aprofundam” (2011: 31). Nesta fase, o ser humano passa a vivenciar momentos decisivos para a formação de sua identidade. Entre os principais desafios, podemos afirmar que a busca pela individualidade se dá dentro de uma fase de relações coletivas (Erikson, 1968), necessárias para a legitimação das suas escolhas. Essa elaboração de um conceito estável de si mesmo é que vai lhe oferecer um sentido norteador para a adoção de um sistema de valores e ideologia. Para Erikson (1959, 1968), uma tarefa central do período da adolescência é orientar a si próprio para uma gama de compromissos que são exigidos até a chegada à iminente idade adulta. Neste período, o indivíduo vai avaliar as construções dos períodos anteriores, próprios da infância. Assim como o adolescente, que está vivenciando transformações fisiológicas próprias da puberdade, precisa rever suas posições infantis frente à incerteza dos papéis adultos que se apresentam. David Buckingham (2008) comenta que esta expectativa para a vida adulta pode ser uma das bases para a etapa de conflito identitário que a adolescência atravessa. A solução desta crise proporciona ao jovem o fechamento de ciclos de posturas infantis para um posicionamento, que está vinculado à idade adulta, ligado à estabilidade e responsabilidade diante dos outros e do ambiente em que vive. O autor apontou que:
«[…] resolver este conflito pode envolver encontrar um papel mais ou menos estabilizado na vida, resultando na formação de uma virtude, neste caso lealdade ou fidelidade, que permite que o jovem avance para a idade adulta de modo a formar ligações íntimas que são as chaves desta etapa» (Buckingham, 2008: 02).
Buckingham (2008) alude ainda que uma resolução frágil pode resultar numa má adaptação, que pode ser visualizada numa forma de fanatismo ou até de repúdio da idade adulta. Na visão de Erik Erikson (1968), o que preocupa fundamentalmente o adolescente “é que a estar perante os olhos de um círculo mais amplo de pessoas significativas, em comparação com o que eles próprios chegaram a sentir que são” (1968: 285). Esse dilema se manifesta em questões como: quem eu sou? Onde irei na vida? Em seu livro Youth and Crisis, publicado em 1968, o psicanalista desenvolveu a teoria de Piaget sobre “idades e estágios.” Erikson vê a adolescência como um período crítico da formação da identidade. Contudo, apesar das incertezas e conflitos, o autor argumenta que é nesta etapa da vida que uma pessoa se torna mais consciente de seus pontos fortes e fracos e se torna mais confiante nas suas próprias qualidades, que podem ser únicas. Em sua teoria, não considera a crise como uma catástrofe iminente, mas como “um ponto decisivo e necessário e momento em que o desenvolvimento deve seguir uma ou outra direção” (Erikson, 1968: 14). Contudo entendemos que esta não deva ser sinônimo de catástrofe ou desajustamento, mas de mudança e construção. Esta fase passa a ser um momento crucial no desenvolvimento, em que a necessidade de se optar por uma ou outra direção é evidente, mobilizando recursos que levam ao seu crescimento (Lepre, 2005). Ainda quando estava a desenvolver pesquisas sobre a infância, Erikson (1950) declarou que a crise de identidade pode se apresentar de maneira diferenciada, por esta não possuir características homogêneas a todos os grupos e indivíduos. Afirma que a crise pode ser mais ou menos percetível e marcante em diferentes ocasiões e contextos sociais, históricos,
políticos e culturais. Enquanto para alguns jovens a crise de identidade se apresenta sem nenhum impacto; em outros, o conflito marca um período crítico, “uma espécie de ‘segundo nascimento’ (como ressaltou Rousseau), institucionalizado mediante cerimónias, ou intensificado mediante a disputa coletiva ou o conflito individual” (1950: 13). Essa crise, segundo o autor, pode ser vivenciada em diferentes estágios da vida. No entanto, é na adolescência que emoções como angústias, passividade ou revolta, dificuldades de relacionamento com os outros e consigo mesmo, além de conflitos de valores, se tornam mais latentes. A noção de identidade para Erikson (1968) é desenvolvida durante todo o ciclo vital, no qual cada indivíduo passa por uma série de períodos desenvolvimentais distintos, havendo tarefas específicas para se enfrentar. A função central de cada período é o desenvolvimento de uma qualidade específica de si próprio. O psicanalista aponta que dos 13 aos 18 anos o estatuto a ser desenvolvido é a identidade, sendo a principal tarefa do indivíduo adaptar o sentido do ‘eu’ às mudanças físicas da puberdade, além de desenvolver uma identidade de género mais fortalecida, buscar novos valores e fazer escolhas ocupacionais. “De fato, podemos falar da crise de identidade como o aspeto psicossocial do processo da adolescência” (Erikson, 1972: 90). A resolução bem-sucedida desta crise pode levar a uma identidade segura. Assim como uma insuficiente pode levar a uma confusão de papéis e um fraco senso de si (Butler, 2010). Uma das chaves para a resolução reside dentro da interação do jovem com os outros, sejam estes seus pares, sua família ou o meio em que vive. Marcia (1966) sugeriu etapas de desenvolvimento para os adolescentes, mas ao invés de caracterizá-las de “fases”, o autor chamou de estados, que leva a um processo não-linear (Marcia, 1966). O psicólogo propôs que os estados de desenvolvimento de identidade ocorrem em resposta às crises em domínios, como as relações e valores e instituições nas quais o jovem interage, tais como a escola. Para Marcia (1980), esses modos são definidos em termos de presença ou ausência na tomada de decisão (crise) e o grau de investimento pessoal (compromissos) em duas áreas: ocupação e ideologia. Os estados de identidade são desenvolvidos no processo metodológico com base na “Teoria do Desenvolvimento Psicossocial” de Erikson (1968), contudo, submetido a estudos empíricos. Assim, os modelos
identitários que Marcia (1980) vem a chamar de Diffusion, Foreclosure, Moratorium e Achievement passam posteriormente a fazer parte das teorias da identidade. Os quatro estados de identidade são modelos para lidar com as questões identitárias características da juventude. A identidade Diffusion é marcada pelos jovens “que não definiram uma direção ocupacional ou ideológica, independentemente de terem ou não experienciado um período de tomada de decisões” (Marcia, 1980: 111). Um jovem que ainda não tenha considerado perspetivas de uma carreira profissional, por exemplo, poderia estar com esse estatuto em relação à sua identidade profissional. Esse não pode ser resolvido, a menos que algumas experiências forcem a passagem por uma possível crise. A identidade Foreclosure é formada por pessoas que possuem comprometimento com posições ocupacionais e ideológicas, mas estas podem ter sido escolhas parentais em vez de autoescolhas. Marcia (1980) apontou que estes jovens demostram pouca ou quase nenhuma evidencia com a crise em que Erikson (1968) mencionou e no estatuto que Blos (1962) veio a chamar de abbreviated adolescence. De certa forma, essa tomada de consciência pode também ocorrer por tradições culturais ou por intervenção, sem opção de escolha, das figuras paternas. Na identidade Foreclosure, entre os estados de identidade, ambos os sexos são receptivos a valores autoritários. Os jovens que estão na identidade chamada de Moratórium são os indivíduos que estão lutando com problemas ocupacionais e/ou ideológicos. “Este pode ser um momento interessante, porém potencialmente perigoso, levando a conflitos com os pais ou figuras de autoridade” (Marcia, 1980: 118). Marcia apontou ainda que “este é o estatuto mais evidente da crise de identidade na adolescência” (1980: 112). Por fim, a identidade Achievement é marcada por indivíduos que estão passando por um período de tomada de decisão e possuem a oportunidade de explorar as suas escolhas próprias de posições ideológicas e de ocupação. Sobre os estados de identidade de James Marcia (1966, 1967, 1980) é possível visualizar duas vantagens claras sobre a abordagem da identidade. A primeira é que eles fornecem uma maior variedade de estilos em lidar com a questão da identidade na adolescência do que a dicotômica quinta etapa
de Erikson (1968): “identidade versus confusão”. Em segundo lugar, o autor apontou aspetos mais diversos e categóricos para cada um dos estilos, que podem ser mesclados e ter um amplo leque de interpretações psicológicas. Como citado pelo próprio:
«A identidade “foreclosure” pode ser vista como firme ou rígida, comprometida ou dogmática, cooperativa ou conformista; A “moratórium” pode ser entendida tanto como sensível ou ansiosa, altamente ética ou hipócrita, flexível ou vacilante; A “diffusion” pode ser considerada despreocupada ou descuidada, encantadora ou psicopática, independente ou esquizofrénica. E a “achievement”, para muitos, pode ser vista como forte, autodirigida e altamente adaptável» (Marcia, 1980: 111).
Marcia (1967) descreveu os quatro estados de identidade, a partir da teoria de Erikson (1950, 1968), com base no grau de exploração da identidade e compromisso. Os estados de identidade teoricamente podem seguir uma trajetória de desenvolvimento em que os indivíduos começam no diffusion e depois prosseguem naturalmente através da identidade moratórium para a achievement. No entanto, alguns indivíduos fazem um desvio neste caminho e encontram a si próprios no estado foreclosure por fazer compromissos prematuros e por vezes fora de suas escolhas pessoais. Marcia (1976) apontou que o grande diferencial da categorização de estados de identidade feito por ele, em contraposição à teoria de Erikson, é o seu grau de confiabilidade, devido às aplicações empíricas realizadas. O autor assegura que estes estados se apresentavam em cerca de 80% da população juvenil da época em que os estudos foram realizados.
2.3 A identidade coletiva e cultural no contributo para a adolescência
É durante a chamada crise de identidade na adolescência que os jovens buscam um entendimento de si próprios e do meio onde vivem, através da identificação de diferenças e semelhanças. Se por um lado a construção de valores e ideologias faz parte desse processo, por outro o self não
é complementarmente individualizado. Na juventude, os indivíduos valorizam e moldam os seus sentimentos através de relações intrapessoais e interpessoais, no confronto com outros “iguais” e na formação dos seus grupos. A necessidade de dividir suas angústias e padronizar suas atitudes e ideias faz do grupo um espaço privilegiado, pois nele se pode encontrar uma uniformidade de comportamentos, pensamentos e hábitos. Heaven e Tubridy (2003) acreditam que uma das chaves para a resolução, ou pelo menos entendimento, dos conflitos pelos quais os jovens passam durante a crise da adolescência reside dentro da interação do jovem consigo próprio, com os outros, sejam este e os seus pares, família ou o meio em que vivem. Acredita-se que as mudanças corporais, ao nível físico, são relativamente universais, com algumas variações. Entretanto, ao nível psicológico (principalmente comportamental), pode-se encontrar uma vasta diferença de características no que tange às mudanças. Estas estão intimamente relacionadas com as suas experiências, compromissos sociais e identidades pessoais, coletivas e familiares que se alteram de cultura para cultura, de grupo para grupo e de indivíduo para indivíduo. Vamos neste tópico levantar uma reflexão acerca destes modelos de interação, baseados nos processos de identidade pessoal (individual), coletiva (ou social com os seus pares), parental (com seus familiares e responsáveis) e cultural (com a comunidade e o meio em que vivem. Estas são ainda os quatro perfis identitários serão detalhados na análise das representações visuais das imagens fotográficas produzidas pelos jovens participantes do projeto Olhares em Foco e dos processos, enquanto trabalho empírico que justifica esta investigação. Aqui, justificamos o porquê da escolha destas relações e sentidos identitários como objeto de análise, nos permitindo um entendimento mais pormenorizado da natureza e representações de si próprios, dos outros e dos seus mundos. A partir desta perceção poderemos identificar como os processos identitários estão associados a esta fase da vida, pois são construídos através das relações identitárias pessoais, coletivas, familiares e culturais dos jovens consigo próprios, com seus pares, famílias e contextos sociais.
As relações individuais e coletivas são aqui analisadas como processo de formação identitária na busca de respostas para questões como: “de que forma pessoas se categorizam a elas e aos outros? Como se identificam como membros de determinado grupo? Como se desenvolve e mantém o sentido de grupo social?” (Buckingham, 2008: 5). Através da construção identitária, e ainda dentro do conflito gerado pela fase, algumas atitudes são internalizadas e construídas e outras não. O adolescente, paulatinamente, percebe-se portador de uma identidade que sem dúvida é social, mas é pessoalmente construída. Nesta investigação, trabalhamos as questões da identidade pessoal e coletiva de forma integrada, pois acreditamos que apesar de diferentes as esferas coletiva e a individual se cruzam; o ‘eu’ e o ‘nós’ interligam suas características. Seguindo o pensamento de Rappaport (2003), podemos configurar a identidade, seja ela pessoal ou coletiva, em três áreas básicas: “a identidade sexual, a identidade profissional e a identidade ideológica” (2003: 30). A identidade sexual pode ser definida pelo género, sexo ou construção de suas escolhas. Apesar do pensamento de Erikson (1968) ser alguma forma absolutista e limitado pela época que desenvolveu seus estudos, quando argumentou que esta é definida pela definição genital de seu papel. Hoje as pesquisas em género já passam a conceber uma identidade sexual muito mais ampla, plural, e consolidada a partir dos estudos feministas, da teoria Queer e das masculinidades plurais. Apesar de o indivíduo jovem se deparar com uma pluralidade de géneros, ainda é a segurança de um papel sexual definitivamente assumido que lhe permite estabelecer as relações características das próximas etapas da vida. Para a psicóloga do desenvolvimento Clara Rappaport (2003) é no momento em que o jovem assume o seu papel sexual que ele pode suportar, entender e conviver com as diferenças do outro “sem que essas diferenças, ou até divergências, ameacem seus próprios valores, pois agora está seguro em sua característica exclusiva” (Rappaport, 2003: 30). É num ambiente contemporâneo que a sexualidade se encontra multifacetada e que vem a abranger muito mais escolhas ao jovem em que a sociedade o impõe que se posicione.
Sobre a identidade profissional, Suárez (2011) aponta que é a realização profissional que oferta ao indivíduo a capacidade de sentir-se membro ativo e produtivo dentro do grupo social, além de configurá-lo como um membro independente e coparticipante na construção de bens. Apesar de Jeremy Rifkin (1995) ter afirmado que não existe mais a estrutura de um trabalho para toda a vida e que agora o mercado de trabalho implica trajetórias muito mais flexíveis e uma identidade profissional em constante mudança. A terceira área categoria identitária apontada por Rappaport (2003) é a ideológica e implica que “o adolescente, em permanente reconstrução interna, deve acompanhar a reconstrução do mundo e posicionar-se” (Rappaport, 2003: 31). A adolescência é um regenerador vital no processo de evolução social, pois a juventude pode oferecer suas lealdades e energias, tanto à conservação daquilo que continua achando verdadeiro como à correção revolucionária do que perdeu o seu significado regenerador. Estes três pilares de formação de identidade pessoal têm como objetivo o alcance da sua identificação própria, propiciando uma ideia coerente sobre sua identidade sexual, direção vocacional e visão ideológica do mundo. “Se o jovem não tiver o senso de identidade ou um conjunto de padrões internos para avaliar sua imagem e valor nas principais áreas da vida, passará pela confusão de identidade, que é o contraponto de uma identidade bem resolvida” (Atkinson et al., 2002: 124). David Buckingham (2008) atesta que a identidade é desenvolvida pelo indivíduo, mas tem de ser reconhecida e confirmada por outros. E é justamente neste período que os jovens “negociam a sua separação de sua família e desenvolvem competências sociais de independência” (2008: 3). A participação nos grupos de pares exerce diferentes tipos de influência. Neste caso, a crise de identidade pode desencadear um processo de identificações com pessoas, grupos e ideologias, que se tornarão uma espécie de identidade provisória coletiva, no caso dos grupos, até que a crise em questão seja resolvida e uma identidade pessoal autônoma seja estabelecida. A juventude pode ser analisada como um período caracterizado por um progressivo desligamento das relações parentais que obedece a um processo de mudança das figuras de vinculação. Se antes os pais representavam as referências, agora os pares desempenham esta mesma função (Sprinthall
e Collins, 2003). As relações de grupo afetam diretamente os processos de identidade pessoal e coletiva, pois, nessa fase, os adolescentes passam a estar definitivamente voltados para relações exteriores aos meios familiares. É justamente na adolescência que se dá um maior alargamento das relações sociais, pois os adolescentes passam a ocupar mais o seu tempo com os seus pares. Começam também a desenvolver um isolamento, ao invés da companhia dos seus próprios familiares, com o objetivo de resolução dos conflitos gerados pela construção de seus valores e ideologias que estão vivenciando (Sprinthall e Collins, 2003). Esta transformação das relações põe fim a uma das características da idade da infância, na qual a criança passa mais tempo com os adultos do que com as outras crianças. As culturas familiares podem ser consideradas como grandes redes culturais autônomas e nucleares nas quais o adolescente se desenvolve de forma complementar às normas de conduta e valores vigentes no meio social de origem (Pappámikail, 2009). Para Carles Feixa (1998), estas não se limitam às relações diretas entre pais e filhos, passando a ser um conjunto mais amplo de interações cotidianas entre membros de diferentes gerações. A família estabelece estas formas e limites para as relações geracionais, adaptando os jovens às exigências do convívio social. “Mediante esta socialização primária, o jovem interioriza elementos básicos culturais, como o uso da língua, os comportamentos sexuais, formas de sociabilidade, critérios éticos, estéticos e valores, que serão utilizados para a sua construção identitária” (Feixa, 1988; 86). Contudo, a instituição social da família tem vindo a passar por um processo de intensas transformações. Diversos são os fatores que impulsionam estas mudanças como o processo de urbanização e industrialização, o avanço tecnológico, a maior participação política e econômica da mulher, a diminuição de famílias numerosas, estruturas monoparentais e uma legislação referente à dissolução matrimonial que conduz a um desmembramento familiar. Pappámikail (2009) apontou que dificilmente a família poderia ter sido imune à extensão das transformações que a modernidade inaugurou. “Mais, não se sabe até que ponto a disseminação de certas ideias e visões do mundo não serão antes um resultado de mudanças culturais vividas no seio da família” (2009: 98).
No que diz respeito às relações entre adolescentes e suas famílias, esse modelo tem vindo também a se alterar de um padrão baseado na imposição da autoridade paternal para a valorização de um relacionamento pautado na abertura, autonomia e diálogo (Lisboa, 1987; Pappámikail, 2009). Sobre o processo de autonomia e liberdade na família, Lia Pappámikail (2009) argumentou que a democracia estava a revelar-se um modelo de organização social pautado na ideia de que todos os indivíduos são (ou devem ser) iguais […] reproduzindo à escala os mesmos princípios” (2009: 95), o que representou a perda das relações baseadas na autoridade e num padrão hierárquico parental. As ligações contemporâneas entre pais e filhos adolescentes estão assentes em relações conflituosas que partem de distintas perceções, que levam a uma falta de comunicação, entendimento e a tensões no ambiente familiar (Noller e Callan, 1991). “O processo de crise na adolescência não afeta apenas os indivíduos que estão a passar por este período, mas também as pessoas que convivem diretamente com os mesmos, principalmente a os membros da família” (Becker, 1994: 12). A juventude, a partir da necessidade de escolhas e formação de valores e ideologias, favorece as condições necessárias para o surgimento de uma série de problemas e conflitos dentro do contexto familiar. As discussões de valores e ideologias em contextos familiares são complementares no processo de construção identitária dos jovens. A relação entre os adolescentes e esta instituição social está presente em diversos estudos sobre identidade e adolescência (Erikson, 1968; Marcia, 1980; Pappámikail, 2009; Feixa, 1998). Estes modelos de relacionamentos podem ser visualizados em dois dos quatro estados de Marcia (1980), com forte influência e participação da família na crise de identidade pela qual estão passando. Enquanto alguns jovens, desde cedo, assumem suas posições e comprometimentos, referentes às posturas e escolhas definidas pelos pais (Foreclosure), “outros assumem uma posição negativa que se define na oposição à família e à sociedade (Moratórium), adotando uma postura em conformidade com o grupo a qual possui semelhanças” (Myers, 1999: 86).
Os grupos de semelhança são inevitavelmente as referências mais importantes para a maioria dos adolescentes (Harris, 1995). A família tenta intervir nesta negociação através de diálogos e, por vezes, alertas sobre um potencial perigo destas influências. Contudo, estas passam a ser negadas pela necessidade que os adolescentes possuem de convivência e pelo desenvolvimento de competências e habilidades sociais. Pappámikail (2009) acredita que alguns comportamentos transgressores em relação às regras familiares são resultantes a uma afiliação pressionante dos grupos de pares. Além do que, os papéis sociais importantes na formação identitária como liderança, relacionamentos amorosos, amizades permanentes, negociação e tantos outros, são desenvolvidos na convivência com o grupo de pares. A inibição e proibição desse exercício, por parte da família, podem acarretar conflitos e distúrbios cognitivos e sociais na fase adulta. As amizades, de certa forma, compensam e substituem as relações familiares, especialmente as mais desestruturadas. Baixos níveis de coesão familiar proporcionam um poder maior de influência negativa dos seus pares (Guaze et al., 1996). Os adolescentes provenientes de famílias mais coesas e com relações mais próximas dos seus pais são menos influenciados pelos grupos de amigos. Ou pelo menos desenvolvem elementos referenciais que os transformam em indivíduos com ideias mais fortalecidos para a tomada de decisões e construção de argumentos próprios. Numa era marcada pela multiculturalidade, rápidos avanços tecnológicos aliados à contemporaneidade das relações sociais, o papel da influência dos pais referente à adolescência tem sido seriamente questionado. Há evidências de que a família faz a diferença no desenvolvimento do adolescente, e que esta opera através da natureza do seu vínculo por meio dos laços afetivos (Doyle e Moretti, 2000). As rápidas alterações fisiológicas, neurológicas e sociais da adolescência são favoráveis à criação de um dilema sociocognitivo para a juventude que tem as suas bases na integração de novas e diversificadas experiências em relação ao mundo e a si próprio. É o que Moretti e Holland (2003) chamaram de “dilema do apego”, no qual o adolescente passa a manter as relações familiares ao mesmo tempo em que explora novos ambientes e papéis sociais com os seus pares. Na verdade, o que muitos autores apontam é que a transição saudável para a
autonomia da idade adulta não se dá com o desapego dos pais, mas sim com uma relação de confiança e conexão emocional com os membros familiares de referência (Ryan e Lynch, 1989). A segurança familiar proporciona um ambiente menos propenso a comportamentos violentos, de risco, uso e dependência de drogas (Howard e Medway, 2004) minimizando problemas usuais no período de crise de adolescência como depressão, ansiedade, falta de atenção, transtornos de conduta e agressividade (Cooper et al., 1998). Outro fator de influência na formação da identidade dos adolescentes está intimamente vinculado com os valores e tradições culturais nas quais se encontram inseridos nesta fase da vida. Margaret Mead já apontava, em 1928, que as possibilidades de escolhas variam em função da cultura. Isso faz com que alguns jovens não possuam as mesmas opções de valores, crenças e práticas culturais e ideologias que outros de diferentes contextos. Quase todos os modelos de transgressões dos valores culturais associados a esse período da vida são relativos mediante os modelos culturais (Cohen, 1997). Heaven e Tubridy (2003) atestaram que não é possível o entendimento de uma complexidade identitária sem a perceção de uma componente diversidade cultural somada. Rousseau já indicava que o meio cultural é que forma a personalidade e identidade de cada indivíduo, com a sua teoria do bom selvagem4 . Nas Ciências Sociais, a Antropologia da Juventude é uma das disciplinas em que os aspetos etários, geracionais, de ritos de passagem e ciclos vitais são temas fulcrais das investigações empíricas com a finalidade de um amplo entendimento das estruturas culturais de cada sociedade. Para Carles Feixa, o estudo da construção cultural da juventude promove um entendimento de como cada sociedade “modela as maneiras de ser jovem e como estes participam dos processos de criação e circulação culturais” (Feixa, 1988: 11), assim como a própria sociedade. Esses modelos culturais, em que cada indivíduo está inserido no período da adolescência, refletem-se diretamente na sua identidade cultural. Esta se encontra subordinada a uma ampla gama de crenças e comportamentos
4. O pensamento de Rousseau se baseia no Romantismo do século XVIII. O que não corresponde ao que atualmente se sustenta, devido à existência e importância de fatores individuais que interagem com fatores sociais.
que se compartilham com os membros da comunidade. Meio século atrás, antropólogos como Whiting e Child (1953) descreveram a relação entre essas crenças e práticas culturais como “um sistema complexo consistindo de um composto de costumes, práticas, hábitos, crenças, valores, sanções, regras, motivos e satisfações associados” (Shweder et al., 1998: 872). Nesta perspetiva antropológica, a juventude aparece como uma construção cultural relativa no tempo e no espaço. Cada sociedade possui a sua organização, formas e conteúdos que remetem a esta transição entre a infância e a idade adulta. Estes limites são marcados por alguns valores associados ao grupo e por ritos de passagem que diferenciam e caracterizam uma fase que está entre a dependência infantil e a autonomia adulta. Por isso, apesar de haver uma convenção internacional do que seria a juventude, cada modelo cultural declara quando e como esse grupo será anunciado como tal, como explica Feixa.
«Para que exista a juventude, devem existir, por uma parte, uma série de condições sociais (normas de comportamento e instituições que distinguem os jovens de outros grupos etário) e por outra parte, uma série de imagens culturais (valores, atributos e ritos associados especificamente aos jovens» (Feixa, 1998: 18).
Ainda que este processo tenha uma base biológica o importante é a perceção social destas mudanças e suas repercussões para a comunidade. Wyn (1997) relatou que uma das questões mais importantes que confrontam as investigações sobre juventude é a aparente simetria entre os processos biológicos e sociais. A idade é um referencial assumido para se atestar uma realidade biológica. “No entanto, o significado e a experiência da idade, e do processo de envelhecimento, estão sujeitos a processos históricos e culturais” (Wyn, 1997: 9-10). Embora cada indivíduo tenha uma extensão de vida diferenciada, cada pessoa pode ser analisada “objetivamente” pelos seus repertórios e experiências. Os entendimentos culturais sobre as diferentes fases da vida, refletidos nos processos de crescimento e de envelhecimento, dão o seu significado social. Assim, os processos sociais e políticos fornecem
as bases para os significados culturais serem desenvolvidos. Tanto a juventude quanto a infância possuem significados distintos, dependendo das circunstâncias sociais, culturais e políticas em que cada indivíduo se encontra inserido. As classificações da cronologia biológica, em termos sociais, por vezes podem ser contestadas, pois se alteram em termos culturais ou sociopolíticos. Um pré-adolescente ou jovem acusado de cometer crimes violentos pode ser classificado como adulto no sistema jurídico dos EUA. Da mesma forma que jovens abaixo dos 20 anos são marcados na discussão sobre trabalho infantil de crianças e adolescentes (Gailey, 1999). A juventude é categorizada por Bucholtz (2002) “como um palco cultural que geralmente marca o início de um longo prazo na vida de pessoas que assumem práticas culturais que as categorizam enquanto jovens ou não” (2002: 526). Neste sentido, indivíduos pré-adolescentes podem fazer parte de uma cultura juvenil, assim como sujeitos com 30 ou 40 anos poderão apresentar características que os aproximem desta classificação. O processo de aceitação das normas culturais, crenças, atitudes e valores de um grupo cultural faz parte da sua formação identitária. Por vezes, estes conceitos de identidade cultural podem ser bastante limitadores quando se deixa de lado a possibilidade do jovem de identificação com diferentes grupos culturais, sendo estes também formadores complementares da sua identidade. “Num novo contexto cultural um ser humano, ou grupo, pode desenvolver diferentes capacidades de adaptação e receção de influências, sem que estas o façam perder o seu senso de identidade individual” (Lene, 2003: 191). É nos casos de contatos com diferentes culturas que surgem os questionamentos que tanto podem ser referentes à formação da identidade étnica quanto a formação da identidade cultural. Phinney (1990) aponta que existem definições amplamente divergentes da identidade étnica e cultural. Para o autor, o foco central da formação da identidade étnica está nos membros das minorias étnicas que negoceiam suas identificações através das suas relações com o seu próprio grupo e entre outros grupos étnicos.
“No entanto, formação de identidade cultural pertence a pessoas que fazem parte de uma cultura hegemónica, mas que também possuem exposições a outras culturas” (Lene, 2003: 190). Estas exposições podem ser visualizadas num contexto globalizado no qual os adolescentes contemporâneos estão inseridos atualmente. Estes são testemunhas de uma era onde os seus mundos são consideravelmente mais multiculturais do que aqueles em que os seus pais e avós cresceram. Devido aos processos de globalização, os jovens têm cada vez mais contato e interação com pessoas de diversas culturas e esse multiculturalismo começa a fazer, cada vez mais, parte da sua construção identitária, dos seus valores e ideologias. O fluxo entre culturas de ideias, produtos e pessoas pode não ser considerado uma realidade recente, mas a extensão atual e a velocidade da globalização fazem desta transmissão de informação algo sem precedentes (Lane, 2003: 189). Com o aumento dos processos de migrações, das redes sociais digitais, dos medias internacionais, corporações multinacionais, viagens e turismo as fronteiras encurtaram-se proporcionando uma maior interação entre as culturas juvenis. De acordo com Gómez Vargas (2010) é impossível entendimento do funcionamento das culturas juvenis sem uma compreensão alargada das relações mediáticas em que eles estão imersos na cultura contemporânea e os ambientes culturais globalizados no qual se encontram inseridos.
2.4 Jovens, contextos globalizados e mediados
O advento da globalização tem sido um tema corrente do debate académico desde o fim do século XX, trazendo uma série de indagações relevantes sobre as relações culturais. Stuart Hall (2003) salientou que alguns modelos culturais tradicionais estão passando por um processo de transformação que vem a desencadear um sistema de mutação identitária, sem limites de tempo e espaço. Como o autor mesmo menciona:
«As identidades, concebidas como estabelecidas e estáveis, estão naufragando nos rochedos de uma diferenciação que prolifera. Por todo o globo, os processos das chamadas migrações livres e forçadas estão mudando de composição, diversificando as culturas e pluralizando as identidades culturais dos antigos estados dominantes, das antigas potências imperiais e, de fato do próprio globo. Os fluxos não regulados de povos e culturas são tão amplos e tão irrefreáveis quanto os fluxos patrocinados do capital e da tecnologia» (Hall, 2003: 44).
Neste ponto, Hall (2003) ressalva o papel da multiculturalidade pelos processos migratórios e pela diminuição das fronteiras geográficas e culturais, promovida, em grande parte, pelas tecnologias. O autor aponta para um impacto do avanço da globalização na mutação das identidades culturais, de género, étnicas, individuais e coletivas, assim como defende também na mesma linha o antropólogo sociocultural Arjun Appadurai (1996), em seus estudos sobre a modernidade e a globalização. A preocupação com as influências e interferências dos processos de globalização na cultura e na sociedade tem provocado, nas últimas décadas, algumas inquietudes nas Ciências Sociais e Humanas. A modernidade vem acompanhada pela massificação das culturas introduzidas pelas Indústrias Culturais (Mattelart, 2004) que origina um fluxo acelerado de informações no qual são produzidas novas formas de pensamento e existência indispensáveis para o convívio no mundo social. Antony Giddens (2002) já mencionava que “a modernidade vem a alterar radicalmente a natureza da vida social quotidiana e afeta os aspetos mais pessoais da nossa existência” (2002: 09). Essa forma de alteração acelerada e incontrolável, que Giddens apontou, passa a intervir diretamente nos aspetos individuais do sujeito, fragmentando a sua identidade. No caso da juventude, torna-se necessária a reflexão da influência da globalização nas identidades culturais dos grupos juvenis, no sentido de que este fenómeno se torna um fragmento da complexidade atual do processo de formação identitária deste grupo social. A interferência dos contextos globalizados propõe um conjunto de construções de entendimento das
identidades pessoais e coletivas do adolescente, num sentido mais amplo do reconhecimento de si próprio. Para Giddens (2002), a construção do ‘eu’ também é determinada por influências externas. Estas podem ser configuradas através do contato com os grupos de pares, a família, a cultura e do meio no qual se encontram inseridos. No entanto, Bruner (1990) acredita que o jovem constrói sua identidade através de um processo dialético, entre as experiências diretas e as mediadas. Estas podem ser também pelo contato com grupos sociais e culturais, mas, em grande parte, pelos meios de comunicação no qual os jovens encontram-se como receptores e, por vezes, produtores de conteúdos. Pindado (2006) sugeriu que “a comunicação mediada nos permite o encontro com pessoas que representam âmbitos sociais, étnicos e culturais diversos” (2005: 12). O que o autor supõe passa pela concepção de que o processo mediado globalizado submete o jovem a uma infinidade de oportunidades que podem repercutir na configuração da sua identidade (Grodin e Lindlof, 1996). O fato de alguns grupos de jovens, dependendo dos contextos culturais, consumirem as mesmas imagens, conteúdos e utilizarem os mesmos meios de comunicação, reflete numa formação identitária na qual as mensagens afetam as noções individuais que os formam enquanto indivíduos (Gergen, 1991). Pindado (2006) atesta ainda que todo esse mundo mediado que os circunda faz suspeitosa a ideia de uma subjetividade fixa e de uma identidade única, apesar de estarem expostos às mesmas influências externas, mediadas. “O adolescente inicia uma trajetória na qual vai incorporando sinais procedentes de âmbitos distintos, sem saber muito bem quais” (2005: 13). Os meios de comunicação constituem um espelho para os jovens que passam a estar continuamente “comparando e contrastando o mundo ficcional dos media com o seu próprio mundo social, de acordo com uma escala de critérios com a qual avaliam o realismo das representações com as suas vidas” (Fiske, 1989: 60). Neste sentido, diversos autores (Pasquier, 1995; Tapscott, 1998; Fisherkeller, 2002; Martín Barbero, 2002; Buckingham e Willet, 2006; Pindado, 2006) têm argumentado a essencialidade dos meios de comunicação como um instrumento de configuração
da identidade juvenil, ao proporcionar-lhes uma gama de recursos simbólicos com os que interagem e que servem de referências para o seu desenvolvimento identitário. Ao pensarmos a adolescência como um período que se caracteriza pelo incremento da autoconsciência, este grupo social passa a ser especialmente sensível a imagens que são providas pelos media. Estas são utilizadas como fontes referenciais de informação e comparação na busca de sua identidade (Mazzarella e Pecora, 1999). Os modelos de relações que são estabelecidos com os símbolos mediáticos se encontram rodeados de uma série de complexidades, que colocam estes jovens no papel de agentes suscetíveis a uma negociação identitária (Liebes, 1999). Assim, por estar passando por um período de crise e formação de valores e ideologias, o jovem se torna mais exposto a influências de receção de conteúdos que os fazem refletir acerca de suas vidas e posturas pessoais e sociais. Alguns estudos (Mazzarella e Pecora, 1999; Fisherkeller, 2002) têm mostrado que a identidade na adolescência é um processo de negociação que se desenvolve numa certa dialética de aproximação e distanciamento com o que lhes é transmitido pelos media. O receptor adolescente, desde a sua perspectiva de género à experiência de vida, se vê obrigado a ter atitudes de identificação ou oposição. Essa dialética pode ser expoente nas contradições e inquietudes dos recetores juvenis. Neste caso, os media se constituem como um depósito de símbolos e valores com os quais a vinculação entre real e representação é, de alguma forma, complexa e em muitas ocasiões transcende a natureza realista de muitos deles. As séries televisivas, filmes ou videojogos, servem como exemplos referenciais nos quais alguns adolescentes constroem suas experiências de mundo (Pasquier, 1995; Fisherkeller, 2002). Pindado (2006) disse que quando um adolescente se mostra inteirado da agenda mediática juvenil, ainda que não goste ou concorde, o torna capaz de interagir de forma coesa com o seu grupo de pares. “Neste sentido, a cultura mediática serve de alimento para as suas relações sociais” (2005: 18). A necessidade de compartilhar os conteúdos e interesses do grupo se dá através de suas experiências mediadas em que os meios de comunicação se constituem como uma ferramenta que suporta
a interação social e pertencimento ao grupo. O vínculo com estes espaços simbólicos faz também parte da sua formação identitária e por vezes é gerador dos estilos juvenis e de uma imagem padronizada sobre a juventude.
2.5 A imagem e os estilos visuais no centro do processo de reconhecimento
Para Buckingham e Willett (2009), a representação visual sempre foi uma dimensão importante das subculturas juvenis. O estilo visual de grupos juvenis como punks, hippies, góticos e muitos outros, passaram a se caracterizar a partir dos usos característicos de roupas e adornos corporais como afirmações simbólicas de pertença e rejeição de valores tradicionais do mundo adulto (Hebdige, 1979). A visualidade apresenta uma maior importância nos estudos das subculturas juvenis. Para as culturas juvenis a visualidade é fundamental, mas de uma outra forma. Mais banal, mais estilística, mas com menos conotações associadas a símbolos.Neste sentido, a visualidade pode ser compreendida como uma componente fulcral valioso na vida social de um adolescente, sendo a imagem uma ferramenta de representação, formação identitária e um veículo de comunicação para o mundo. A imagem pode ser entendida como um modo dos jovens se apresentarem visualmente ao mundo, recorrendo a distintos elementos que passam a caracterizá-los, como o corpo, o vestuário e seus apetrechos diversos, objetos de consumo, que são indispensáveis para a sua organização simbólica e categorização social (Feixa, 2008; Ferreira, 2008). A visualidade é uma das formas de representação juvenis que estão entre os interesses estruturais desta investigação. O termo subculturas juvenis nasceu de uma resistência simbólica dos jovens aos processos socioeconómicos e culturais. Suas raízes são associadas ao surgimento das culturas mods na década de 50 e 60 no Reino Unido e se consolidou com as culturas juvenis hippies e punks, nos anos 70. Daí por diante diversos estilos e imagens da juventude passam a ser associados a afirmação de grupos sociais relacionados a movimentos juvenis. A afirmação de uma identidade juvenil, marcada por uma oposição às culturas de massa a partir de uma adoção estética e de posturas ideológicas, passou a ficar conhecida como um estilo subcultural (Clarke, 1976; Hebdige, 1979).
A abordagem sobre uma subcultura juvenil passou a ser argumento de diversos autores (Muggleton, 1997; Wullf, 1995; Campos, 2010; Weinzierl e Muggleton, 2004) que apontam as suas fragilidades no contexto social. Ricardo Campos (2010), por exemplo, mencionou que o “exotismo visual, engendrado coletivamente por estes grupos (mods, skinheads, teds, rastas, etc.), era identificado como um elemento chave para a descodificação de dinâmicas conflituais de classe, mas, igualmente, de distinção entre grupos” (2010: 115). Contudo, na juventude contemporânea o estilo de vida vem substituir os modelos de subculturas. Estas com um discurso menos político, em que o visual é associado de uma forma mais incisiva numa cultura de consumo, como nos estudos sobre as culturas de celebridades. Estar visualmente semelhante à sua celebridade ou grupo de fãs faz parte da identidade dos jovens num mundo mediático que impõe uma cultura das celebridades. Diversos autores que têm dedicado suas investigações ao estudo da juventude contemporânea mencionam a importância das representações visuais na formação dos processos identitários juvenis (Hebdige, 1979; Willis, 1990; Pais, 1993; Abramo, 1994; Simões, 1999; Ferreira, 2008; Feixa, 2006; Maffesoli, 2002; Martin, 2002; Muñoz Carrión, 2007; Feixa et al., 2008; Campos, 2009). Seja nas formas, usos e apropriações das representações visuais, esse fenómeno passa a ser um modelo de produção cultural que assenta num campo onde a visualidade e a comunicação visual passam a ter uma importância fulcral na identificação e valores dos jovens. Campos (2010) relaciona a relação das culturas juvenis com a visualidade, enquanto objeto de inquirição científica, partindo do pressuposto de que existe um vínculo poderoso entre os exercícios de construção identitária e de representação visual do mundo. Para os estudos neste campo, a “identidade e representação são conceitos que nos permitem investigar eventuais conexões entre os circuitos de produção, difusão e consumo de significado e os mecanismos de configuração identitária, nomeadamente através dos sistemas de simbolização visual” (Campos, 2010: 117). Trabalhos de investigação recentes como os de Campos (2010), Buckingham e Willett (2009) alertam que a atenção dada às representações mediadas vem decrescendo a medida dos anos, passando a ciência a valorizar as formas
pelas quais a juventude se representa e se define através de uma produção visual, oriunda dos usos, apropriações e formatos de disseminação, por via dos media visuais. O que os estudos citados anteriormente nos demonstram é que temos que ter em conta que a representação visual e seus modelos de produção por estes grupos juvenis estão cada vez mais presentes no campo simbólico, estético e da formação identitária dos grupos juvenis. Estes passam tanto pelas formas de expressão não-verbal, na qual são utilizados dispositivos especializados como o corpo (com as posturas, cortes de cabelo, movimentos, tatuagens, piercings) (Ferreira, 2008), os adornos, o vestuário e o consumo (de música, conteúdos mediáticos, etc.), quanto pela produção de conteúdos e objetos visuais (graffiti, stickers, blogs, perfis, fotografias, entre outros). Entre as diversas formas de expressões juvenis têm-se identificado por objetos como as jaquetas dos punks, as botas dos skinheads e estilos como o corte de cabelo e a scooter dos mods. Contudo, Carles Feixa (2008) atenta que apesar de a representação e produção visual ser um elemento simbólico expressivo identitário, esses adornos, objetos e caracterização não faz por si só o que popularmente passa a ser chamado de “estilo”. Feixa (2008) argumentou que “o que faz o estilo é a organização ativa de objetos com atividades e valores que produzem e organizam uma identidade de grupo” (2008: 98). Alguns autores (Johnson, 1993; Garratt, 1997) atestaram que os “estilos juvenis” são resultantes de um boom financeiro, especialmente pós Segunda-Guerra, no qual os “mercados constroem um significado de juventude com o objetivo de alvo de consumo” (Frost, 2003: 55). Em contrapartida a esse argumento, Jean Monod (1971) já salientava que é um pouco simplista responsabilizar o mercado e a economia pela aparição dos “estilos” juvenis.
«Os acessórios, e o vestuário tiveram o papel de mediadores entre os jovens e seus ídolos. Favoreceram sua identificação e cumpriram ainda com a função de uma linguagem simbólica introdutora da comunicação dos fiéis. Por isso, dizer estilo, género e moda é demasiado pouco» (Monod, 1971: 141).
O estilo para os jovens pode se constituir por uma combinação de diversos elementos culturais que são simbolicamente representados na sua aparência e postura como elemento catalisador fundamental de socialização e reconhecimento entre os pares. Para a Psicologia Social, um dos mecanismos subjacentes à influência dos pares é o uso de comparações sociais (Durkin, 1995). Estas envolvem a identificação das semelhanças, atitudes, comportamentos e realizações com as de outros jovens que partilham os mesmos interesses e se identificam como mesmo grupo. Paul Willis analisou em sua obra Common Culture (1990) as formas de criatividade simbólica dos jovens na vida cotidiana, do final da década de 80. “O autor descobriu as múltiplas e imaginativas vias mediante as quais os jovens usam, humanizam, decoram e dotam de sentido seus espaços vitais e suas práticas sociais” (Feixa, 2008: 100). O conceito de “cultura comum” para as culturas juvenis se dá, por Willis, como um campo cheio de expressões, sinais e símbolos através do qual indivíduos e grupos buscam de forma criativa estabelecer sua presença, identidade e significado. O autor afirmou que os jovens estão sempre expressando ou tentando expressar algo sobre o seu significado real ou potencial cultural, seja através da linguagem, da produção e audição musical, da moda, da ornamentação corporal, do uso ativo e seletivo dos meios audiovisuais, a decoração dos seus espaços habitacionais, dos rituais, dos jogos e brincadeiras com os amigos, do lazer, do desporto, da criatividade artística, entre outros (Willis, 1990). Feixa (2008) elege alguns destes elementos estilísticos como indissociáveis e fundamentais para as formas de representação e identidade destes grupos juvenis como sujeitos sociais. A linguagem é um destes elementos por estar intimamente ligada à aparição de formas de expressões orais características, em oposição ao mundo adulto, como, gírias, frases feitas e entonação. A audição e a produção musical são outros componentes centrais na maioria dos estilos juvenis, pela música ser utilizada pelos jovens como “um meio de autodefinição, um emblema que marca a sua identidade de grupo e que está na base da criatividade e contradição” (Feixa, 2008: 101). A evolução das subculturas pode ser associada às tendências musicais. Elvis Presley está
para os teds, assim como os The Who estão para os mods, o reggae para os rastafáris, o folk e a psicodelia para os hippies, os Sex Pistols para os punks, o Public Enemy para os rappers e o Iron Maiden para os heavies Contudo, dos diversos elementos de expressividade juvenil citados por Willis (1990) e Feixa (2008), o que é transversal a todos os estilos é a componente estética visível que associa o jovem ao grupo e às suas posições ideológicas que compartilha com os seus pares. Ainda que não seja a totalidade dos indivíduos jovens que adotam um padrão estético completo dos estilos, como o corte de cabelo, roupas, tatuagens, acessórios e adornos, a maioria utiliza alguns elementos visuais aos quais são atribuídos significados coletivamente (Ferreira, 2008). Alguns estilos juvenis se converteram em fonte de inspiração para o conjunto de jovens, marcando tendências, valores e ideologias de uma geração, como foi o caso dos hippies e dos punks. O fato é que as culturas juvenis têm utilizado a representação visual como território privilegiado para a consolidação dos seus valores e colocação ideológica e simbólica da sua formação identitária. Para Campos (2010) ,a noção de tribos juvenis, por vezes depreciativa, não ignora “o vigor da imagem e da representação visual, na medida em que vincula os indivíduos a uma linhagem que não resulta de determinantes estruturais mas mais de opções estético-estilísticas, emocionais e gregárias, que se denunciam em grande medida no domínio do performativo e da aparência” (Campos, 2010: 116). No fundo, o que o autor pretende afirmar é que o conjunto de referentes semióticas, que são representados num discurso e estilo imagético, se configura como elementos cruciais para a consolidação das identidades pessoais e coletivas da juventude na sociedade contemporânea.
2.6 O corpo como modelo de representação visual juvenil
O sistema económico capitalista e a sociedade de consumo, através dos imperativos estéticos de autoaperfeiçoamento da aparência física e da produção de uma autoimagem, fornecem elementos cruciais para o entendimento identitário das culturas juvenis. Para Monod (1971), a representação visual dos estilos juvenis é um sistema integrado de comunicação onde o corpo e os gestos possuem um discurso coerente com
o verbal. Neste sentido, o corpo é uma ferramenta comunicacional sendo que, de acordo, com Liz Frost (2003) a moderna padronização dos corpos juvenis tem levado a inúmeras reflexões académicas sobre a ligação entre esse elemento, a adolescência, a identidade e o consumo. Em seu texto, Frost (2003) verifica que algumas problemáticas referentes à crise na adolescência estão em concordância com aspetos identitários alusivos ao corpo e à aparência. Segundo a autora, a imagem corporal e a aparência para os adolescentes são os elementos que os definem e exprimem seus ideais e escolhas. O corpo pode ser entendido como um cartão-devisita e primeira forma de expressão dos seus valores e ideologias (Frost, 2003). Este, por vezes, pode servir de vitrine para desvelar as individuais e distintas formas de interpretação do mundo social, “como uma extensão visível de identidade pessoal, enquanto expressão idiossincrática e concreta do ‘eu’” (Ferreira, 2007: 304). Não pretendemos aqui desenvolver uma abordagem ampla e detalhada sobre a relação entre o corpo e a juventude. O que nos propomos neste tópico é entender como o corpo pode ser uma ferramenta útil de expressão e reconhecimento, além de fazer uma breve abordagem acerca do impacto e usos visuais do corpo no processo de formação de identidade nos jovens e nas representações visuais dos participantes. Iniciamos a nossa observação a partir de uma decomposição de dois aspetos analíticos, que entendemos serem complementares à nossa investigação. Um de natureza biológica e outro de essência simbólica. O primeiro aspecto relaciona-se com a aparência física, as mudanças fisiológicas e biológicas que o adolescente presencia durante esta fase da sua vida. Para Erane Paladino (2005), as mudanças físicas que ocorrem na adolescência levam o indivíduo a uma preocupação excessiva com o corpo. Estas transformações podem implicar uma necessidade de obtenção de um corpo ideal, consequente de uma ditadura estética do corpo promovida, por vezes, pelo mercado de consumo (Hill et al., 1992). A Psicologia Social atesta que, em muitos casos, “essa alteração corporal deixa uma vivência de transtornos e temor do não alcance do corpo perfeito” (Frost, 2003: 56). Comportamentos de adulteração corporal ligados à aparência física podem
estar correlacionados com distúrbios alimentares, peso e elevados níveis de preocupação dos adolescentes com as suas estruturas corporais (Phillips, 1996; House et al., 1999). As modificações corporais da adolescência dão origem a um período evolutivo com características e conflitos muito específicos, nos quais o corpo desempenha importante papel na construção identitária do indivíduo em crescimento (Paladino, 2005). Estas modificações significam uma inevitável crise de reconhecimento, no qual o adolescente passa pela dicotomia da perda do corpo infantil e consequentes transformações da sua estrutura corpórea na adolescência (Outeiral, 2003). Clerget (2004) ressalta que a rapidez desta transformação física é tal que o seu desenvolvimento cognitivo não segue de imediato o corpóreo, podendo haver um atraso temporal entre a realidade externa do corpo, o seu reconhecimento e a aceitação da sua nova imagem corporal. Mesmo de forma inconsciente, a capacidade de comunicação corporal por um indivíduo inicia-se na infância e pode permanecer por toda a vida. Nasio (2009) acredita que ainda quando criança o indivíduo desenvolve a competência de manifestar-se não-verbalmente por meio do seu corpo, da sua atitude corporal e das suas expressões. Podemos considerar que o poder comunicativo mediado pelo corpo é inicialmente dominado na adolescência e reflete-se diretamente na sua identidade pessoal como expressão subjetiva dos seus valores, com a função de transmitir uma mensagem ou de constituição de um ato. Ao falarmos da utilização do corpo como elemento de expressão e ferramenta comunicativa, já entramos no nosso segundo aspecto analítico que retrata a natureza simbólica e cultural. Neste caso, o corpo é um lugar de inscrição simbólica e operação social (Ferreira, 2007; 2008) que pode ser vislumbrado, como falado anteriormente, como recurso estratégico de identificação e participação de grupos sociais. O modo como os jovens apresentam as suas imagens corporais possui vínculos estreitos com a sua identidade e os posiciona diante dos olhares dos outros (Douglas e Isherwood, 1979). Neste sentido, a aparência remete aos bens simbólicos que eles ofertam, através de valores, etiquetas, estereótipos, modelos e concepções que são compartilhados pelos grupos de pares. Já que a aparência os identifica com
os seus semelhantes e os diferencia dos outros, o corpo permite ao jovem entrar nos processos de identificação e de diferenciação, ao mesmo tempo em que necessita de uma aceitação do olhar externo (Restrepo, 2003). Klesse (1999) e Ferreira (2008) nos ofereceram exemplos de como as culturas juvenis recriam suas imagens corporais através das tatuagens, piercings, adornos, vestuário e outros rituais corporais ligados à visualidade, por vezes universal, do conceito de juventude para cada época. O corpo pode ser utilizado para construir uma identidade de acordo com uma representação social, recorrendo a uma série de estereótipos sobre a natureza simbólica dos mesmos. “O vestuário, os ornamentos e as marcas corporais revelam uma série de informações sobre a condição e proveniência dos indivíduos, sobre a sua identidade e pertença cultural” (Campos, 2007: 74). Para os adolescentes, o vestuário e adornos corporais significam uma forma de contraposição dos modelos familiares e sociais tradicionais, no qual “o corpo é um instrumento de exibição simbólica, uma maneira de dar forma externa à sua identidade pessoal” (Giddens, 1997: 84). Covarrubias (2009) complementou afirmando que o corpo é uma das expressões culturais e identitárias, sendo este produto e produtor de cultura. Transversalmente aos aspetos apresentados de natureza biológica e de essência simbólica é visível uma padronização feita pelos mercados económicos que conduz a uma homogeneização de uma cultura corporal. Nas modernas sociedades de consumo, o corpo torna-se signo (Baudrillard, 1995), elemento passível de circulação num extenso mercado de imagens, assim como a “aparência está correlacionada aos hábitos de consumo ocidentais, consolidados no século XX” (Frost, 2003: 55). Como mencionamos anteriormente, argumenta-se que a juventude tem sido visada pelo mercado a partir da década de 50, com a afluente necessidade da definição deste grupo como público consumidor de relevante poder aquisitivo. Neste contexto, a representação visual de um corpo, por vezes homogeneizado, faz parte do processo de construção de identidades através de normas e padrões aludidos pelo mercado (Frost, 2003). O que vestir, o corte de cabelo e as formas de adornamento do corpo, os gestos, além de estarem intimamente relacionados com uma identificação visual dos jovens sugerem um reconhecimento das práticas de consumo ligadas à sua
imagem (Douglas e Isherwood, 1979). A imagem corporal homogeneizada pelo mercado está intimamente ligada aos desejos de perfeição física dos consumidores adolescentes ou a identificação a um grupo de pares. A moda, por exemplo, é uma forma do mercado se beneficiar dos diversos estilos para oferecer a possibilidade de identificação com determinado “estilo de vida”, reforçando o carácter de identidade coletiva. Assim os grupos juvenis, a partir das suas relações com seus pares, demonstram uma adesão ao consumo de um referencial visual único, no qual se identificam e se sentem pertencentes mais confortavelmente (Miles, 2000). Desta forma o mercado tem imposto à juventude uma imagem que condiciona os jovens a apreciar uns aos outros, levando a um estabelecimento de hierarquias de aceitabilidade dos membros do grupo. Segundo Frost (2003), para alguns jovens, as práticas consumistas das imagens corporais podem ser entendidas não apenas como uma gama de opções e escolhas que são feitas livremente e que compõe a sua identidade, “mas pelo sentimento pessoal das experiências de adesão ou exclusão de corpos e estilos perfeitos que podem, ou não, terem sido alcançados” (Frost, 2003: 56). Campos (2007) complementa que o convívio com seus pares revela a singularidade do estado etário e social do adolescente através das suas formas de interação, comunicação e de como se apresenta visualmente. “É a partir da representação visual e estética do corpo que nos permite, de certa maneira, identificar e qualificar os jovens, através dos elementos de autorrepresentação ou de representações mediadas” (2007: 76).
Notas conclusivas
Fizemos neste capítulo um percurso através dos contextos juvenis, seus conceitos e definições no qual passámos pela construção identitária, seus estados de crise, até um entendimento mais detalhado das noções de identidade pessoal, coletiva, cultural e familiar. O período da adolescência é marcado por diversos fatores que são formadores de valores e ideologias, representados através de escolhas pessoais e influências coletivas e mediadas. É na tomada de consciência de um novo espaço no mundo e entrada numa nova realidade negociada e baseada nos compromissos
que alguns referenciais, como a família e os grupos, são ao mesmo tempo produtores de conflitos e formadores de valores e ideologias. O encontro dos iguais no mundo dos diferentes é o que caracteriza a formação dos grupos de adolescentes, estilos e as culturas juvenis onde encontram um espaço livre para a expressão e reordenação da personalidade (Lepre, 2005). É um fato que os processos identitários que os indivíduos enfrentam até chegarem à vida adulta só podem ser entendidos quando os contextos sociais, políticos e culturais nos quais estão inseridos são levados em consideração. A partir da compreensão da influência do meio é possível trazer as condições sociais para o primeiro plano e examinar a construção de identidade e suas crises enquanto processo de transformação, pelo qual os grupos de jovens passam até chegarem ao estatuto de adulto. A partir da reflexão teórica oferecida neste capítulo, podemos passar a entender um pouco melhor os grupos de jovens participantes nesta investigação e como estas se representam visualmente inseridas em uma cultura hegemónica e tradicional do universo adulto. “Os jovens, inclusos os que são provenientes das classes dominantes, se acostumam a ter um escasso controlo sobre a maior parte dos aspetos decisivos das suas vidas, e estão submetidos à tutela das instituições adultas” (Feixa, 1998: 85). Estas podem ser entendidas pelo género, geração, classe, etnicidade, território e estilo. Conectamos a nossa análise sobre juventude com a influência das relações mediadas como parte da formação identitária na adolescência. A cultura popular e dos media (televisão, filmes, música e Internet) contribuem para a propagação rápida e extensa de ideias entre culturas. Numa possível vulnerabilidade da juventude por uma construção identitária mediada, a hegemonização da visualidade passa a ser uma característica fundamental para a aceitabilidade dos jovens nos grupos de semelhança. Essa imagem da juventude tem sido propagada pelos media e utilizada pelos mercados para uma definição contemporânea de juventude.