Contos de um guerreiro - Como nasce uma lenda

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Como nasce uma lenda

B á r b ara C . O l i ve i ra

BÁ R BA R A C . O L IVE IR A

Contos de um Guerreiro

–– Circuli Ignis!

Bárbara C. Oliveira

Eu o abracei e o vi indo embora, apenas uma fagulha perto das chamas que eu estava prestes a testemunhar... Já é quase fim de tarde e até agora, nada a não ser o som do vento, incessante. Provavelmente já pensei em umas mil formas para matar aquela evolução de cobra, mas sei que nenhum desses planos dará certo, não contra Aquilo. Se eu falhar, não apenas morrerei, mas também toda uma cidade... Não posso ficar parada esperando que ele me ataque, tenho que fazer alguma coisa, me preparar. Olhei em volta e deixei o poder fluir através do meu corpo.

Contos de um Guerreiro COMO NASCE UMA LENDA

Bárbara C Oliveira, estudante de Psicologia, sempre viajou para lugares fantásticos e reais a cada livro que devorava, até descobrir que tinha ao alcance de um pensamento o poder de criar seu próprio lugar fantástico e real, sua própria lenda.

Há muito tempo, o mundo presenciou o nascimento do medo, da raiva e da ganância. Quando um aprendiz tomou posse da última marca da criação, um livro, “uma ponte” que contém o próprio poder do Criador, Os Seis Anciões que representam as seis forças em equilíbrio e harmonia regentes do universo, derrubaram a ordem para que o próprio mundo não caísse no caos. O sétimo reino foi criado, a prisão da primeira alma humana corrompida. Junto com ele, uma profecia que o tempo e as memórias frágeis transformaram em histórias. Séculos depois nasce no deserto uma herdeira, a garota cuja família foi marcada em sangue e papel sagrado. Pela primeira vez, desde o nascimento do medo, surge a esperança de todo em um mundo que ansiava silenciosamente descobrir como nasce uma lenda... Mas as lendas também exigem seu preço.

ISBN

Dimensões Ficção

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Contos de um Guerreiro COMO NASCE UMA LENDA



B Á R B A R A

C .

O L I V E I R A

Contos de um Guerreiro COMO NASCE UMA LENDA

Dimensões Ficção

EDITORA MULTIFOCO Rio de Janeiro, 2015


EDITORA MULTIFOCO Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda. Av. Mem de Sá, 126, Lapa Rio de Janeiro - RJ CEP 20230-152

REVISÃO

Laura Lins

DESIGN DE CAPA & DIAGRAMAÇÃO

Breno Moreira

Contos de Um Guerreiro Oliveira, Bárbara C. 1ª Edição Janeiro de 2015 ISBN: 978-85-8473

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do autor e da Editora Multifoco. Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens lugares, eventos ou incidentes são produtos da imaginação do autor ou usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, ou eventos reais é mera coincidência




Para Délis Barros, Rafael Marinho, Laura Lins e “Tia” Ana, que foram imprescindíveis para que uma lenda se tornasse mais do que a minha história.



Prólogo EM TEMPOS DISTANTES, entre dimensões que se interligavam constantemente, o mundo que acabara de ser moldado foi dividido em reinos, somando seis ao todo, pois assim escrito no livro, segundo as estórias que passam de geração de em geração, o número seis era a representação dos seis tipos de força que movem o universo: Bruta (reino da pedra), Emocional (reino do mar), Racional (reino do metal), Astral (reino da areia), Anárquica (reino do fogo), Ordem (reino celeste). Cada reino possuía suas características e leis próprias, costumes e unificações, mas em comum, possuíam homens. As cidades do reino celeste se encontram em meio às planícies, muitas delas em fendas, verdadeiros abismos, os seus são muito inteligentes e possuem os melhores astrônomos dentre todos os reinos. Do mar, dividido em norte e sul do planeta, vivem nos lugares mais frios nos extremos da terra e fazem os navios mais ágeis que podem rasgar os espelhos dos mares, além de serem exímios caçadores. Da areia, em um imenso deserto compõe esse reino, são conhecidos por sua agilidade e resistência, além é claro, de fabricarem as melhores cimitarras da terra. Do metal, moram em imensas cavernas em montanhas, são conhecidos pelos metais mais puros e produzem excelentes transportes sobre trilhos. Do fogo, vivem próximos a vulcões ou até mesmo dentro deles, adormecidos claro, são muito famosos por seus incríveis mecanismos a base de calor, além de ser um povo muito aten9


cioso e caloroso. Das pedras, vivem em montanhas rochosas, são bastante parecidos com o reino do metal, porém suas especialidades são mesmo as pedras preciosas, entre outras diversas, dominam as artes da corda e os sistemas de roldanas e manivelas. Além disso, outros aspectos foram diretamente divididos pelo criador, cada reino possui um rei, um general e um ancião, estes últimos são encarregados de cuidar da ponte, o livro sagrado deixado na terra, onde dizem estar escrito toda a história do mundo e dos segredos nele contido, várias lendas circulam sobre ele, mas ninguém o viu, assim como os anciões, chamados ironicamente pelos ciganos de sombra, não possuem identidade nem nome, ao menos que se saiba. O que se sabe é que de tempos em tempos, os anciões devem escolher e treinar seus aprendizes, um deles, porém, movido pela ganância, rebelou-se, roubando o livro por tempo suficiente para adquirir poder o bastante, de modo que não era possível aos anciãos destruírem-no, o aprendiz se auto intitulou Dracónem. Através da ponte, os anciãos transformaram-no em dragão e o aprisionaram em um sétimo reino, onde não poderia sair ao menos que assumisse a forma de humano, mas para isso, precisaria de um corpo, e para que nenhum seguidor seu servisse de tributo, foi escrito que nenhum humano poderia entrar no reino oculto. Porém, o dragão possuía conhecimento demais, era apenas uma questão de tempo, para que conseguisse um meio de escapar. A ponte seria então utilizada pela última vez antes de ser trancafiada em um lugar que nem mesmo os anciãos conhecem, dizem que foi escrito pelo próprio criador, o que seria o início de uma profecia, cuja história inteira não se sabe, mas o que se espalhou pelo mundo, foi que uma 10


família com sangue especial carregaria consigo o dom e a maldição e um dia, em noite de chuva de estrelas, nasceria o único que poderia de uma vez destruir o dragão. O mundo inteiro encheu-se de euforia, novas e variadas versões da lenda e da família eram contadas, mas o tempo foi apagando-as na mesma medida em que o dragão conseguia criar um exército que só aumentava, diziam os sábios que seu corpo estava aprisionado, mas para a magia negra que ele aprendeu a usar, não era preciso e assim, muitas pessoas iam sumindo, tinham o espírito domado e a alma corrompida, deixavam sua natureza humana e viravam os Discipulum dracónem, os seguidores do dragão, ou somente “Servus”. A lenda aos poucos foi se transformando em história, sem, no entanto, nunca ser esquecida, pois uma noite e somente essa noite, traria de volta os tempos de esperança, desde que a paz passou a ser lembrança dos mais antigos, recontada pelas gerações, o mundo ansiava descobrir como nasce uma lenda.

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Sumário Prólogo........................................ 9 Capítulo um.................................. 15 Capítulo dois............................... 34 Capítulo três............................... 57 Capítulo quatro............................ 84 Capítulo cinco.............................114 Capítulo seis..............................150 Capítulo sete.............................184 Epílogo......................................196




O R Í T I A M E D E N TE S

Capítulo um O futuro e o destino

“Há uma coisa engraçada em ser vidente: as pessoas acham que posso adivinhar números em jogos, ou se a colheita será boa... Mas isso remete ao acaso, o acaso remete ao futuro, que se constrói em cada movimento ínfimo nosso ou do ambiente, isso não é previsível... É claro, podemos calcular a quantidade de vezes que um número cai, ou medir a qualidade da terra e a quantidade da água, mas isso é o futuro, e está ligado ao acaso... O destino é diferente, está escrito, e a energia se permite apreender, de forma que posso vislumbrar alguma coisa pertinente, quando minha própria energia a busca... Ou seja, no futuro, está o acaso, e entre essas linhas em branco, algumas letras. O destino”.

Uma vez me perguntaram por que ainda existem nômades no reino da areia, eu respondi que o corpo deveria estar onde está seu coração. Ora, e se o coração não estivesse em canto nenhum, ou estivesse em todos os cantos, com o corpo também o seria. Talvez por isso surgiram as primeiras vilas, aldeias e cidades, enfim no reino, da mesma forma em que aconteceu quando duas caravanas se encontraram num oásis, haviam lá variadas etnias e de ambas nasceu a Villa, bem em frente ao oásis que as uniu. Fui concebida lá mesmo e ainda nova me separei da minha mãe. Vi a aldeia tomar for15


ma rapidamente e logo se tornou um ponto estratégico para os viajantes, muitos deles por lá permaneciam. Desde cedo aprendi muitos segredos, usava o máximo que conseguia para ajudar as pessoas, me tornei, ainda na adolescência, a “curandeira” da Villa, sempre achei engraçado o nome que escolheram, significa aldeia em latim, mas parece vila e hoje fisicamente já é uma cidade, nada mais simples... Um dia conheci Kanope da Arena, foi a primeira pessoa e única para quem contei minha vida e o que pertencia a mim, meus segredos, meus medos minhas inseguranças, ele nunca me pediu para “fazer” nada nem eu o pedi para me aceitar, mas ele o fez. Quando começamos a namorar, seu pai morreu, Kanope assumiu a liderança da Villa, pouco depois de terminarem de construir as muralhas em volta da cidade, já possuía uma praça central e como de costume, todas as ruas convergiam para ela. O “castelo” que não era bem como contavam nas histórias sobre as vidas dos reis, ficava bem em frente a praça central, tinha três pisos, além do médio, um superior, onde ficavam os quartos e o inferior, onde guardava tudo o que minha mãe me deixou antes de sair, pergaminhos e frascos, muitos frascos. Não parece um presente muito atrativo, mas aprendi que era o que eu precisava ter. Alguns anos depois casei com Kanope, para explicar melhor, eu “vi” que casava com Kanope, então de fato aconteceu... Sou segundo minha mãe a 79º visionária da família, mas não pude prever que ficaria grávida. E quando soube, na noite de hoje, relembrei tudo o que se passou e me perguntei pela primeira vez o que era o futuro. Eu, Orítia Medentes, 79º visionária da família Medentes, sucessora do 13º olho dos anciões, não soube explicar. 16


–– Querido –– Oi. –– O que é o futuro? Ele olhou para mim com ar irônico –– Quer dizer que você pode “ver” o futuro e não sabe o que é? –– Eu não vejo o futuro. –– Então? –– Segundo o que eu sei o destino está escrito, mas o destino não é a totalidade do futuro, ele se forma a partir das circunstâncias, alguns “rabiscos” acabam se mostrando quando também já estava escrito que eu os veria. –– Mas se o destino já está escrito, não existe futuro. –– Ser uma visionária significa muita coisa na minha família, significa que existo para testemunhar algo maior e repassar a história para além da minha existência. Sabes também que há muitas gerações de minha família segredos são passados de mãe para filho e com esses segredos, nossos dons se revelam, meu dom, é o de testemunhar coisas que estão para acontecer. –– Continue. Olhei para ele, como dizer de modo simples? ––Teremos uma menina em oito meses. Kanope engasgou com o chá e se levantou, olhou para mim que estava sentada na beira da cama olhando a lua além da noite. Então ele me envolveu com ternura, estava muito feliz pela notícia, assim como eu, que teria então minha aprendiz para ensinar-lhe os segredos de sua família. Minha pequena luz.

Apertei Kanope com mais força, eu soube com um aperto no peito, que coisas maiores estavam para acontecer. Pela 17


primeira vez em toda a minha vida, uma lenda me parecia muito mais tangível do que uma história. Alguns meses se passaram. Agora estava no oitavo mês de gestação, paparicavam-me o dia inteiro, não só por Kanope, mas também por todos da cidade, que como ele, aguardavam ansiosamente a chegada da “herdeira da cura”. Escondi de Kanope minha preocupação, poderia não ser nada demais, mas algo dentro de mim gritava, inquieto. Visionários haviam aprendido ao longo dos séculos a canalizar energia para uma previsão específica. Pus a mão sobre o ventre, senti sua pulsação acelerado, forte. Eu precisava estrar preparada para protegê-la. O dia passou, esperei que Kanope voltasse da cidade, me ajoelhei e comecei a desamarrar seus sapatos. –– Orítia levante-se. –– Kanope, estou grávida e não doente, deixe-me fazer o que sempre fiz. Retirei o primeiro pé. –– O que houve? Olhei para ele, aquele olhar de preocupação que eu tanto conhecia. –– Amanhã, antes que o sol nasça, irei ao deserto. Ele balançou a cabeça. Sabia o que eu iria fazer. Conhecia minhas angústias. –– Não gosto dessa história de destino. Muito menos eu. Pensei. Mas o que poderia fazer? Existo para testemunhar. –– Tem certeza? Não acho seguro você sair assim, sozinha, no deserto. –– Há gerações as mulheres da minha família vão ao deserto, reclusas, preciso fazer isso por nossa filha. 18


Ele concordou, a contragosto. E assim me preparei para partir. Ainda estava escuro, como havia dito. Arrumei o saco de peles, carregado de substâncias que me auxiliariam quando eu precisasse, Kanope acompanhava a tudo em silêncio. Retirei um colar diferente, de uma pequena arca com insígnias antigas, olhei para pedra no colar, Kanope percebeu que havia algo escrito nele, não poderia ler, não sabia que língua era aquela, sussurrei na língua antiga, no mesmo instante a pedra de cor azul-turquesa brilhou, pus o colar no pescoço. Senti o peso da pedra sob meu manto, o peso do medo de deixava consciente do que estava prestes a fazer. –– Me acompanhará até o portão? Kanope fez que sim com a cabeça. Aproximou-se e pôs a mão sob o manto, pressionando a pedra. –– Que pedra é essa querida? Sorri, cansada, lembrei-me de quando ela havia sido passada para mim, através de minha mãe, eu ainda era uma garotinha que não conhecia nada sobre a história. “Guarde-a com a sua vida e use-a para guardar a vida que virá”. Aquelas palavras se repetiram na minha mente, agora fazendo sentido. –– Esta pedra é passada de geração em geração, usada apenas uma única vez em cada geração, sendo guardada para ser usada por toda uma vida. Olhei para Kanope, como quem espera uma reação já conhecida. Ele passou alguns instantes pensando, até se dar conta de que eu o observava, ele sorriu. Talvez não tivesse entendido o real significado daquelas palavras, mas o fato é 19


que nós Medentes existimos com um propósito, cada geração possui um papel fundamental, cada história, cada acontecimento, existe para que um dia traga paz. Já estava terminando de arrumar as coisas, peguei o cajado e o olhei, não havia tocado nele uma única vez em anos. Segui caminhando pela cidade, sentido ao portão sul, estava vazia, todos ainda dormiam. A brisa suave vinda do leste derramava aos poucos a areia das dunas do deserto, anunciava que o sol estava prestes a surgir, os únicos que estavam acordados eram os guardas que faziam vigia nas muralhas. Os guardas abriram o portão sul, a pedido de Kanope. –– Tome cuidado. –– Terei. A aflição dele estava estampada no modo como Kanope olhava, falava, movia-se. Beijei-o demoradamente, sentindo meu coração apertar. Passei todo o dia caminhando rumo ao sul, conhecia as rotas das caravanas e sabia exatamente onde deveria ir. Minha mãe me trouxe uma vez, era uma rocha alta e singular, um obelisco, havia centenas espalhados pelo reino da areia, existiam para muitas utilidades espirituais. Minha família, o usava para canalizar energia. Estava escurecendo quando avistei, descansei um pouco e retirei alguns frascos do saco de peles, senti o peso da pedra novamente, preparei uma mistura com os frascos. Cada elemento da natureza poderia ser usado de diversas formas, suas combinações serviam para ações específicas, curandeiros conheciam as melhores combinações para curar alguma doença ou aliviar a dor, os curandeiros da minha família criaram combinações específicas para abrir os pontos de energia do corpo e da mente. Tomei um dos frascos, se tratava de um alucinógeno vindo de uma raiz amarga, porém, quando combinado com o 20


sumo de uma fruta em especial e diluído em água, clareava a mente para sentir o mais ínfimo dedilhar das linhas de energia astral que se concentravam no topo do obelisco. Estiquei o braço com a tinta na outra mão e limpei a mente, entrei em meditação e fui além, minha última sensação física foi o colar aquecendo meu peito. Acordei com os dedos manchados de tinta, a fogueira já havia se apagado, o sol estava nascendo. Virei-me para obelisco, era a língua antiga. E minha letra, mesmo que eu não me lembrasse de ter escrito. Aquela que agora dorme, irá acordar, Fazendo um ciclo iniciar A geração caíra uma última vez, Quando o filho de carne e fogo Ver queimar o pai Ao terminar de ler, sentei e retirei o colar que carregava como quem carrega o próprio veneno para fabricar uma cura, fiz um pictograma na areia com um soro de ervas e leite de camelo, pus o colar no centro do desenho e falei na língua morta. Poucos conheciam a língua, menos ainda a compreendiam, o conselho, eu, minha mãe, algum ou outro líder espiritual cigano. sanguine novum. Somente uma pessoa da família Medentes, pronunciando a língua, poderia invocar os poderes da Petra. A Petra começou a brilhar, dessa vez o brilho não possuía uma cor clara, assumiu uma cor avermelhada. Retirei-a do centro do desenho e coloquei-a novamente no pescoço. Ao entrar em contato com minha pele, a cor avermelhada da Petra foi aos poucos clareando, como se descarregasse seu poder no corpo, meu corpo, até retomar novamente a cor 21


azul-turquesa. Havia acabado de realocar um pouco da energia em volta do obelisco para minha filha. Estava pronta para retornar à Villa. Estava entardecendo quando avistei o portão sul da cidade, ele estava aberto e Kanope tomava frente a um grupo de pessoas que como ele, seguravam lanternas de papiro. Ao me avistar, ele não esperou que chegasse ao portão, largou a lanterna e correu ao meu encontro. Estava exausta, grávida de oito meses passando dois dias andando pelo deserto sem comida. Assim que senti os braços de Kanope me envolvendo, aproximei meus lábios aos ouvidos dele e sussurrei em seu ouvido. –– Ela se chamará Naíma. Naíma era o nome de uma flor violeta que crescia entre as rochas de alguns vales do deserto. Crescia em um lugar difícil, tinha as pétalas delicadas e as raízes fortes. Era resistente e frágil. Não tinha aroma, mas antes de morrer suas pétalas se fechavam para proteger o botão dentro de si que se transformaria em outra flor. Não me importei com os olhares preocupados, as perguntas sobre meu paradeiro nem em quando Kanope me pôs nos braços e me levou de volta para casa, havia assuntos maiores com que deveria aprender a lidar. Ao entrar no quarto e me acomodar na cama, Kane me trouxe água e eu fechei os olhos, ele não saiu do meu lado durante todo o tempo, sentia-o alisando minha barriga saliente, sussurrando que estava tudo bem. Ouvia o vento suave do deserto à noite, que fazia com que as chamas das velas tremulassem, fazendo os sombreados das cortinas de seda do quarto recaírem sobre nós, envolvendo-nos em um jogo de claro e escuro, estava aninhada em seus braços e sentia pequenos beijos em minha cabeça. Via a cor moreno-claro de sua pele contrastando com meus cabelos negros que roçavam seus braços. 22


Deleitei-me com aquele momento por horas. Não consegui dormir, estava confusa, uma mistura de sentimentos que se entrelaçavam e formavam nenhum. Essa não definição do que ocorria, do que apenas imaginava que estaria prestes a ocorrer. Afinal, o futuro é ao mesmo tempo a bênção e a maldição de quem o pode vislumbrar, se não houver cuidado, você se perde entre o momento de ser e de poder ser, e nessa perda no tempo surge o caos. Já era noite do dia seguinte quando acordei, Kane já estava, ou ainda estava ao meu lado. Suavemente me ajudou a sentar na cama. –– O que aconteceu exatamente no deserto? Suspirei, aquela seria uma conversa difícil. –– Agora preciso comer, estou faminta. Ele sorriu e mandou que preparassem minha comida predileta Fool, um ensopado de grãos, Kebabs, que é à base de carne de carneiro e pão seco. Kane me acompanhou na refeição, enquanto persistia para que respondesse às suas perguntas, ele admirava nossas tradições do mesmo modo que se assustava com elas, o modo como minha família agia, quer dizer, minha mãe. Só restávamos nós duas, a família sempre foi pequena, desde sempre. Dando a última golada de Fool, comecei a responder às insistentes perguntas dele. –– Quando entro em estado transire profundo, minha mente se torna como a superfície de um lago calmo que pode refletir o céu. –– Como assim? –– O criador é energia pura, só energia é capaz de criar e recriar a matéria, nossa alma é uma parcela paradoxal dessa energia, primeiro, porque é tão pequeno que chega a parecer 23


insignificante, segundo, porque nos permite o conhecimento e esse conhecimento, essa consciência, nos aproxima do criador enquanto também nos diferencia um dos outros, porque cada um é diferente em sua singularidade. A alma está em nosso corpo, mas sua essência não, porque há energia em todos os lugares, a visão se dá quando a alma transcende o tempo e espaço, quando a alma alcança a energia originária, torna-se como um espelho, refletindo o que está do outro lado, o destino são esses fragmentos visíveis que ocorrem independente das circunstâncias. “Geralmente fico fraca quando isso acontece e na maioria das vezes também não me lembro do que escrevi ou falei, só do que vi, porque o corpo não é energia, é matéria, então não suporta essa carga.” Ele pareceu ponderar tudo o que havia ouvido por alguns minutos. –– Você me conhece melhor que eu mesmo, não é? ––Conhecer aqueles que amo é meu modo de descobrir como fazê-los felizes. Passou meu último mês de gestação, minhas reflexões e ponderações pareciam me levar a uma trilha que não levava a lugar algum. Então por hora, me foquei em quem crescia dentro de mim, e ficava bastante feliz com isso... Havia amanhecido. Kane já havia saído. Levantei-me e senti algo estranho, pus a mão e meu vestido estava molhado, olhei para a cama, estava igualmente molhada, meu coração começou a bater depressa, fiquei apavorada, gritei para chamarem minhas parteiras. Só quando estava deitada esperando elas chegarem, comecei a sentir as dores das contrações, levou o que parecia uma eternidade para elas chegarem e mais uma para Kanope chegar... 24


Horas já haviam se passado, velas foram acesas, Kane passou todo o tempo do meu lado e não vou mentir, me irritei várias vezes com as parteiras, eu não queria respirar mais, eu queria minha filha nos meus braços! A dor era tamanha, que lágrimas não paravam de escorrer pelo meu rosto, Já não sentia mais a diferença entre picos de dor e dor contínua, quando novamente fiz força para que minha filha viesse ao mundo. Quando achei que fosse desmaiar, ouvi o choro, tão frágil, meio desengonçado, engasgando com o ar, isso me despertou na hora. Puseram-na em meus braços, Kanope segurava meus braços com força e eu segurava nossa filha, sorria para aquela coisinha miúda que silenciou assim que a segurei, Kane estava chorando mais que eu. Era um homem de forte, mas naquele momento estava paralisado, olhando para ela, uma das parteiras falou o trouxe de volta relembrando que as pessoas queriam vê-la. Era uma tradição apresentar o recém-nascido na janela de casa para que todos testemunhassem a vida. Kanope concordou com a cabeça, estendi os braços com a criança, ele a segurou desajeitado, com medo, como se ela fosse feita de papel, enquanto me ajudavam a se levantar, juntos fomos à sacada do quarto, muitos aguardavam a notícia lá em baixo, estavam com velas, tecidos brancos, jarros de água. Kanope beijou a testa de Naíma e a ergueu os braços. –– Esta nasceu sangue do nosso sangue, fruto de nossa felicidade, descendente da areia do deserto, Naíma Medentes da Arena. As pessoas proferiram a palavra vida em vários dialetos, erguiam os braços, as velas os tecidos e as jarras. Retornamos ao quarto. Naíma estava dormindo horas mais tarde, balancei seu cesto enquanto cantarolava, presente de uma mulher cuja vida salvei de uma doença, assim como quase tudo o que estava no quarto para ela, Kanope observava com tamanha ternura. Nunca havia sentido tanta felicidade. 25


–– Vamos querido. –– Já? –– Toda cidade nos espera para a comemoração, Naíma estará bem. Aixa ficará com ela até retornarmos. Eu sei que se dependesse de Kanope nem tão cedo sairia do lado de Naíma. Olhou-a mais uma vez, mas ele estava certo, a cena poderia ser observada por horas, a criança dormindo envolta por tecidos vermelhos, em um cesto de bambu suspenso, o sol de fim de tarde, que tocava delicadamente a pele da criança, jamais esqueceria aquele momento de tranquilidade.

Passaram-se dez anos desde aquele dia. Estava na hora. Logo cedo desci ao porão e comecei a revirar os baús e prateleiras antigas, contendo em sua maioria pergaminhos com anotações e desenhos sobre plantas e minerais, já havia algumas horas que estava lá, Kanope entrou com outra vela e pegou um pergaminho próximo. –– Íris, querida, Naíma está sentindo muita falta de você, o que você está procurando? Já fazia algum tempo que Kane não me chamava de Íris, a flor da areia. –– Obrigado querido, mas não posso, estou procurando alguns pergaminhos simples para começar o aprendizado de Naíma, já está na hora de eu começar a ensiná-la o que aprendi com minha mãe. –– Ela só tem dez anos Orítia. –– Sim, eu sei, irei ensinando a ela aos poucos, creio que ela não terá dificuldades, já faz parte dela. –– Eu não gosto quando você fala assim, parece que as pessoas de sua família não possuem direito de escolha. 26


Eu parei de vasculhar o fundo de um baú, retirei um pergaminho e o pus em uma pilha com outros que eu já havia limpado. –– Não é assim. –– Então? –– Você acredita que todas as pessoas do reino da areia sabem fabricar ou empunhar uma cimitarra? –– Não. –– Mas ainda assim fabricação e manuseio dessas armas são umas de nossas características diante do mundo. Ele balançou a cabeça negativamente. –– Mas e se ela não quiser isso? Se ela não quiser? Eu nunca havia pensado dessa forma, eu não me lembro de algum dia ter querido ou não, desde sempre eu sabia o que era e o que fazia. Suspirei. –– Não vou obriga-la a nada, se ela não quiser, não fará, mas assim como eu, ela ouvirá seu chamado. Eu sei que parece cruel, mas existimos com um propósito final. –– Ela é só uma criança! –– Eu também já fui! E mesmo com o tratamento que minha mãe me dava, eu atendi o chamado, ela não me obrigou, foi natural, eu aprendi, eu fui e sou. Kanope cruzou os braços, não era possível fazê-lo entender, eu sabia disso e ele também. Limpei as mãos sujas de poeira e segurei seus ombros, ele pôs as mãos na minha cintura e me abraçou. Cochichei em seu ouvido. –– As perguntas que Naíma fará, serão as mesmas que eu já fiz um dia e que me faço diversas vezes, isso também é um processo natural. –– Mas e o destino? –– Está fora do nosso alcance, Kane, é algo que somente ela deve descobrir. 27


Ele encostou os lábios no meu ombro e apertou meu corpo mais ainda no dele. E então inha vista escureceu, aquela sensação de formigamento na boca, familiar, fiquei tonta, mas eu a vi, sabia que era ela, mais velha, estava ajoelhada em um círculo chorava e me chamava repetidas vezes, fiquei angustiada, queria falar que estava tudo bem, acalenta-la, mas eu não podia, eu simplesmente jamais poderia fazê-lo novamente. Senti meu corpo ir para trás, esfreguei meus olhos que ardiam, senti novamente as mãos de Kane na minha cintura, ele me olhava preocupado. –– O que houve? Ergui a cabeça, não sabia bem o que falar, estava angustiada. Ele pôs uma das mãos no meu peito. –– Seu coração está acelerado, você teve uma visão? –– Não, não se preocupe, está tudo bem, um pouco de poeira entrou nos meus olhos e eu me assustei. Ele me olhou desconfiado, me conhecia há tempo demais, mas se sabia que eu estava mentindo, não disse nada. –– MÃE! PAI! Onde estão vocês? Kane olhou sorridente para mim. –– Eu falei. Sorri de volta e lhe dei um beijo. –– Vou ao Oásis com ela, passaremos a tarde lá, tudo bem? –– Quer que eu vá? –– Não precisa e ainda por cima, você está ocupado, esqueceu na negociação de hoje? Aqueles mercadores de especiarias que vem além mais no sul? Ele comprimiu os lábios, eu sabia que ele não gostava de mercadores de fora, não eram confiáveis e falavam latim com um sotaque estranho, a conversa era difícil. 28


–– Tudo bem, vou subir. Deu-me outro beijo e saiu. Eu recolhi os pergaminhos, algumas ervas e soros que armazenava no maior baú, subi as escadas com dois sacos de peles cheios. Naíma estava sentada na escada brincando com a barra do vestido desbotado e agitando um dos pés para os lados com impaciência. –– Mãe! Ela deu um pulo só para os últimos degraus da escada, mas quando chegou perto de mim correndo parou e olhou para as bolsas de pele. –– Para que tudo isso mãe? Tem alguém muito doente? –– Não meu amor, tome, segure essa. Passei a com pergaminhos e ela pôs nos braços como se fosse um filhote de cabra o que segurava. –– Vamos passear um pouco, tudo bem? Ela sorriu. E olhou para os lados. –– Mas papai não vai? –– Não dessa vez querida. Atravessamos toda a extensão da cidade, quase uma hora de caminhada, saímos pelo portão sul e fomos andando pela sombra da muralha sentido leste até visualizarmos a enorme mancha verde que é o oásis no meio da areia clara do deserto, cobri minha cabeça com um tecido e fiz o mesmo com Naíma, mais vinte minutos de caminho até chegar à primeira palmeira e finalmente adentrar nas plantas. –– Cansada? Naíma não olhou para mim, mas respirava pela boca e o tecido já havia grudado na testa. –– Não. Eu sorri em silêncio. É tão orgulhosa quanto o pai. 29


Aos poucos as plantas foram ficando mais espaçadas, até que chegamos a uma clareira e mais na frente a água brotava no solo e dava início a um pequeno riacho. Pus a bolsa no chão e Naíma quase a jogou antes de sair correndo de encontro ao riacho, jogou os calçados de couro para os lados e sentou na areia que beirava a água, pôs os dois pés dentro e juntou as mãos para beber e molhar o rosto. Sentei em uma pedra baixa e retirei um cantil da bolsa. –– Se estava com tanta sede por que não pediu água ou pegou no cantil que está na sua bolsa filha? Ela parou e olhou para mim. –– Cantil? Eu ri alto dessa vez. –– Nunca saia para andar fora da cidade sem pelo menos dois cantis de água, seu pai já não lhe disse? Ela se levantou e enxugou as mãos na saia, segurou os calçados e sentou perto de mim. –– Deve ter dito alguma vez, mas ele quase não me leva quando sai. –– Reuniões de mercadores não podem ter crianças, quando eles levam as mulheres eu sempre levo você também. –– Mas eles levam os filhos deles para as reuniões mãe. –– Por que eles precisam aprender o que o pai deles faz querida. –– E as filhas? –– Aprendem com as mães. –– Mas e se a filha quiser aprender com o pai? Ou com o pai e a mãe? –– Bom, vai depender do pai e da mãe, se eles quiserem. –– Isso é injusto. –– Eu sei, mas tem muitas mulheres que fazem as mesmas coisas que um homem faz. 30


–– Quem? –– Sua avó por exemplo. –– E o que ela faz? –– Muitas coisas. Que nem mesmo eu sei. –– Mas Naíma, você já sabe por que viemos aqui? –– Não mamãe, por quê? –– Antes que possa responder a sua pergunta, vou lhe contar uma história, que há gerações, é repassada aos descendentes de nossa família Medentes. Naíma endireitou as costas e ficou séria, com um brilho nos olhos. “Tudo começou quando um homem humilde foi expulso de sua cidade natal, acusado de fazer magia negra, foi acusado injustamente na verdade, naquela época, pouco se sabia sobre substâncias com poderes de cura, fora que muita gente não sabe diferenciar ambas as magias, mas seja como for, ele não praticava magia negra. Então passou alguns dias, sozinho, desolado, caminhando no deserto, sem rumo, sem nada que o mantivesse, até que avistou um oásis com um pequeno riacho, ele estava muito fraco, sequer conseguiu chegar até a água, desmaiou antes, desidratado. Quando acordou, ainda fraco, viu uma mulher que estava ao seu lado, sua vista estava embaçada, mas ele a viu machucando algumas ervas com seiva. “Ela não disse nada, apoiou o rosto do rapaz em suas pernas e despejou em sua boca a solução produzida...” –– Igualzinha a você mamãe. Mas o que é magia negra? Eu sorri, os olhos de Naíma brilhavam de curiosidade. –– Essa é uma história que lhe contarei outro dia. “Algumas horas depois o moço já estava quase totalmente recuperado, ficou eternamente grato a ela, decidindo então 31


acompanhá-la em suas viagens, com o tempo tornaram-se amigos, não demorou muito para que se apaixonassem. Casaram-se. Dizem que seu amor puro e sem pretensão foi abençoado pelo próprio criador, que os concedeu o dom da cura, a eles e aos seus descendentes, acredito que tenha sido pela bondade e humildade que possuíam, tiveram uma filha e estavam muito felizes. Até que um dia, um grupo de pessoas, com inveja de seus poderes, passou a persegui-los, acusando-os de praticar magia negra. Para proteger sua filha, escolheram um mineral muito raro, fundiram-no com ajuda de um amigo do reino das pedras e através do sentimento mais puro, o amor, passaram parte de seus poderes para a pedra, sua filha era muito nova, não poderia se proteger sozinha, essa pedra (Petra), a protegeria, de todos que contivessem o coração obscuro e invejoso, as pessoas os chamavam de Medentes, aqueles que curam, esse conhecimento foi passando de geração em geração, juntamente com a Petra, para os primogênitos...” Enquanto terminava a história, ia revelando à Naíma as ervas e os soros que trouxera na bolsa de pele de camelo. Ela prestava atenção em tudo o que lhe dizia e lhe mostrava, estava encantada com tudo. E segurava soro e erva um de cada vez, o olhava e o sentia, nas mãos e o cheiro. –– Vê esses soros e ervas? –– Sim mãe, para que servem? –– Bom, separados, alguns podem ser usados como tempero em alguma receita, outros por sua vez são altamente tóxicos. Sozinhos, não são tão úteis para nós, mas sabendo misturar a erva certa, o soro certo, os minerais certos, você pode cicatrizar cortes, retirar venenos e tantas doenças quanto possa conhecer. Mas para fazer tudo isso você primeiramente precisa estudá-los muito bem, para não acabar tendo o contrário do efeito desejado, entendeu até aqui? 32


–– Entendo mãe, você irá me ensinar? Os olhos dela se arregalaram. –– Claro que sim minha filha, você é uma descendente do sangue Medentes, lhe ensinarei tudo o que aprendi como um dia você também o fará com seu filho... Passei o dia inteiro lhe explicando o básico para que ela aprendesse sozinha, lendo, o sol já estava se pondo, guardei tudo de volta e entreguei à Naíma. –– Pegue filha, é sua agora, precisará dela para guardar suas ervas. Também pus alguns pergaminhos na bolsa, leia-os e qualquer dúvida pergunte a mim. Naíma segurou-a como quem segura algo muito precioso, e de fato a bolsa agora era para ela, estava muito ansiosa para começar a ler os pergaminhos, não foi nem preciso mandá-la ir ao quarto. Chegando ao castelo, Naíma saiu correndo para seu quarto, depois de dar um beijo e um abraço em Kanope. –– Agora tenho certeza de que ela está pronta. –– Sei que ela será tão boa quanto à mãe é. Melhor. Aquele fim de tarde, foi só o começo para Naíma. Algumas horas mais tarde, antes de ir dormir, passei pelo seu quarto e abri uma brecha no tecido pesado que servia de portal, ela estava debruçada na cama, vários pergaminhos abertos e espalhados, algumas ervas sobre os pergaminhos, ela segurava um frasco de madeira, o abriu e cheirou, vetou novamente e pôs o frasco no chão, onde já havia tantos outros. Fechei a fresta do tecido e segui para o meu quarto. Melhor.

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