Enfrentamento da Violência

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Enfrentamento da Violência: Contribuições da Secretaria Municipal de Saúde para a cidade do Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro, Novembro de 2016.

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Expediente

Aline Almeida da Silva Aline de Carvalho Martins Aline Goulart Ferreira

Prefeito

Ana Lúcia Reis de Mello

Eduardo Paes

Ana Paula Celestino Andréa Manso

Secretário Municipal de Saúde Daniel Soranz

Andréa Rocha Ferreira Beti Jeane de Oliveira Brisse Rangel Bruna Assad Nakano

Subsecretário de Gestão Estratégica e Integração da Rede de Saúde

Camila Coelho Marques

José Carlos Prado Jr.

Camila Sixel Cordeiro

Camila Rebouças Fernandes Carla Brasil

Subsecretária de Atenção Primária, Vigilância e Promoção de Saúde

Carmem Lopes

Betina Durovni

Cilene Souza Boarro

Carmem Lúcia Troppiano Nogueira Cleusa Barbosa de Lima

Superintendente de Promoção da Saúde Cristina Boaretto Coordenação Editorial Ana Maria Castro Cristina Boaretto Jeanne de Souza Lima

Cristina Boaretto Débora Melo Canedo Santos Denise Alves José da Silva Denise Jardim Diana Valladares Djalma Pedro da Silva Filho Emanuely Santos de Carvalho

Rafael Cavadas

Eunice D’Assumpção Lima Rangel

Autores

Fátima Virgínia Siqueira de Menezes Silva

Adelaide F. Demétrio Mercês

Fernanda Prudêncio

Adriana do Carmo Mendes

Fernanda Tosta de Alcântara Portugal

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Germana Périssé de Abreu Géssica Martins Mororó Gracyelle Alves Remígio Moreira Izabel Cristina Ferraz dos Reis

Morgana Rodrigues dos Santos Priscila Figueiredo Cezario da Silva Rafael Cavadas Tavares Raimunda Magalhães da Silva

Jeanne Carvalho Aveiro

Raniela Borges Sinimbu

Jeanne de Souza Lima

Roberta Lemos Gadelha da Silva

Juliana Seabra Fontoura Laís Martins Costa Araujo

Roberta Matassoli Duran Flach

Laura Sarmento

Rosani Salles de Jesus

Lucélia dos Santos Silva

Silvana Caetano

Lúcia Maria Santos Brandão

Simone de Souza Pires

Luciana Ribas Côrtes

Simone Pires e Silva

Luciane Quagliane

Tânia Maria Almeida da Silva

Ludmila Fontenele Cavalcanti

Telma Guerço Fernandes

Luiza Jane Eyre de Souza Vieira Marcelle Nolasco Gomes Rodrigues Marcia Soares Vieira Márcio Dênis Medeiros Mascarenhas Margareth Glória Sgambato Ferreira Mariana Gonçalves Freitas Marina Maria Baltazar Carvalho Marina Márcia Ribeiro Ferreira Marta Maria Alves da Silva Mércia Gomes Oliveira de Carvalho

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Viviane Manso Castello Branco


Índice

Editorial

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Experiências da Secretaria Municipal de Saúde para o enfrentamento das violências na cidade do Rio de Janeiro

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Reflexões sobre a violência

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Formatura dos adolescentes e jovens do Rap da Saúde: uma tarde para celebrar saúde, cultura e direitos

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1. Editorial “Muitos que convivem diariamente com a violência acham que ela é parte intrínseca da condição humana. Mas não é. A violência pode ser evitada. Governos, comunidades e indivíduos podem fazer a diferença.” Nelson Mandela

A afirmação da violência como fenômeno social acompanha a história da humanidade. Sua incorporação como problema relevante de saúde pública é consequência da percepção dos agravos à saúde, e dos seus impactos na ameaça à vida e na qualidade da existência. Nos últimos 40 anos, tem se destacado entre as principais causas de morbimortalidade, com implicações no perfil epidemiológico e na incorporação de doenças e agravos não transmissíveis como objeto de monitoramento da vigilância epidemiológica. As evidências percebidas nessas últimas décadas resultaram em marcos organizativos para o setor saúde, como a publicação da Política Nacional de Morbimortalidade por Acidentes e Violências, de 2001, representando a incorporação definitiva deste agravo na agenda da política de saúde. A Portaria Ministerial que orienta a estruturação da Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde (2004), fortalece as ações de vigilância e promoção da saúde na abordagem das violências. E ainda, a primeira edição da Política Nacional de Promoção da Saúde (2006), que não por acaso, agrega entre seus objetivos a adoção de práticas centradas na equidade, na afirmação dos direitos sociais, no respeito às diferenças e na promoção da Cultura de Paz. São marcos políticos que incluem o enfretamento das violências como resultado da promoção da equidade e da melhoria das condições e dos modos de viver, ampliando a potencialidade da saúde individual e da coletividade para reduzir as vulnerabilidades e os riscos à saúde decorrentes dos determinantes sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais.

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A Secretaria Municipal de Saúde da Cidade do Rio de Janeiro (SMS-RJ) tem uma trajetória que antecipa os marcos nacionais supracitados, já que desde a década de 1990, vem estabelecendo ações, projetos e programas voltados para a prevenção e o cuidado das pessoas em situação de violência. O ano de 1996 é marco para a gestão municipal, com a realização do Seminário Violência contra a Criança e o Adolescente: o Olhar da Saúde e, a edição da Revista Saúde em Foco, com o tema Violência Social - O Olhar da Saúde, estratégias para ampliar a visibilidade e a organização das ações na rede municipal. Ainda nesse período, ressaltamos, em especial, a implantação pioneira da notificação de maus tratos contra a criança e o adolescente no município (D.O. da cidade do Rio de Janeiro, 07 de maio de 1996), documento este, que orientou o trabalho do Ministério da Saúde, para consolidação da notificação obrigatória destes agravos, em todo território nacional, em 2001. Posteriormente, respondendo a Portaria Ministerial de 2004 e como marco de organização da rede de proteção na cidade, é regulamentado o Núcleo de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências (resolução “P” nº 1.507 de 20 de outubro, 2009) com a coordenação da Superintendência de Promoção da Saúde e os Grupos Articuladores Regionais (GAR), em cada região de saúde da cidade, ampliando a capacidade de trabalho diante da complexidade e magnitude da violência na metrópole. Com a atual publicação, a SMS-RJ deseja renovar seu compromisso com o enfrentamento da violência e com o contínuo fortalecimento das iniciativas dos profissionais, do Núcleo Municipal de Promoção da Solidariedade e Prevenção da Violência e dos Grupos de Articuladores Regionais. É um registro que espera representar uma construção coletiva: técnicos, gestores e parceiros estratégicos vêm criando novos arranjos de gestão e de intervenção e fortalecendo cotidianamente uma rede de proteção diante das violências, que também se renovam em complexidades e desafios permanentes. Aceitando a responsabilidade do chamado de Nelson Mandela e reconhecendo o papel da saúde e da ação consequente dos profissionais, persiste a necessidade de ampliar as oportunidades de reconhecer a

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configuração destes agravos e diversificar as estratégias de prevenção, enfrentamento e cuidado. Buscar e respeitar silêncios, entender sofrimentos, cuidar de lesões e minimizar o impacto dos danos. Prioritariamente, possibilitar as inovações e o desenvolvimento de estratégias, e intervenções que considerem o caráter interdisciplinar, multiprofissional e intersetorial, necessários a amplitude que tais agravos solicitam. São os profissionais de saúde dedicados à gestão, à promoção ou à atenção que garantem, no cotidiano, a efetivação dos princípios do SUS e neste exercício de cidadania conferem materialidade a construção da Política da Cultura de Paz. Relatório Mundial sobre Violência 2014 (OMS) define diversos objetivos de prevenção da violência na agenda de desenvolvimento pós2015: “reduzir em 50% as mortes relacionadas com a violência em todos os lugares do mundo, eliminar a violência contra a criança e todas as formas de violência contra mulheres e meninas até 2030. Quer esses objetivos sejam ou não adotados, sua proeminência no debate até este momento confirma a relevância da prevenção da violência entre os desafios que as sociedades confrontam, hoje e no futuro. De fato, a prevenção da violência constitui uma das cinco prioridades indicadas como as mais importantes por cinco milhões de cidadãos que, por meio de consultas globais realizadas pela Organização das Nações Unidas, transmitiram suas opiniões sobre o foco da nova agenda de desenvolvimento. O Relatório Mundial sobre a Prevenção da Violência (2014), baseia-se em compromissos existentes, firmados por diversas agências da ONU, que garantiram seu apoio aos países em seus esforços de prevenção da violência. Identifica lacunas e oportunidades evidentes, e inspira nosso desejo de agir. Além disso, fornece uma base e um conjunto de indicadores para o acompanhamento de futuros progressos. Junte-se a nós para garantir que as constatações do relatório sejam utilizadas e que suas recomendações sejam implantadas, principalmente neste momento, às vésperas da adoção da agenda de desenvolvimento pós-2015. Juntos certamente podemos fazer a diferença”.

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Referência Bibliográfica 1. Relatório mundial sobre a prevenção da violência 2014 2. http://promocaodasaude.saude.gov.br/promocaodasaude/ assuntos/incentivo-a-cultura-da-paz/noticias/o-que-culturade-paz-tem-a-ver-com-saude 3. Iniciativas de vigilância e prevenção de acidentes e violências no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) Epidemiologia e Serviços de Saúde 2007; 16(1) : 45 - 55] 4. OMS - Relatório Mundial sobre Violência 2014

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Lua nova demais

Menina de enredo triste, dedo em riste, contra o que não sabe quanto ao que ninguém lhe disse. A malandragem, a molequice se misturam aos peitinhos novos furando a roupa de garoto que lhe dão dentro da qual mestruará sempre com a mesma calcinha, sem absorvente, sem escova de dente, sem pano quente, sem O B. Tudo é nojo, medo, misturação de “cadês.”

pracinha, penteadeira, pátria. Ela lua pequenininha não tem batom, planeta, caneta, diário, hemisfério, Sem entender seu mistério, ela luta até dormir mas é menina ainda; chupa o dedo E tem medo de ser estuprada pêlos bêbados mendigos do Aterro tem medo de ser machucada, medo. Depois mestrua e muda de medo o de ser engravidada, emprenhada, na noite do mesmo Aterro. Tem medo do pai desse filho ser preso, tem medo, medo Ela que nunca pode ser ela direito, ela que nem ensaiou o jeito com a boneca vai ter que ser mãe depressa na calçada ter filho sem pensar, ter filho por azar ser mãe e vítima Ter filho pra doer, pra bater, pra abandonar.

E a cólica, a dor de cabeça, é sempre a mesma merda, a mesma dor, de não ter colo, parque

Se dorme, dorme nada, é o corpo que se larga, que se rende ao cansaço da fome, da miséria, da mágoa deslavada dorme de boca fechada,

Elisa Lucinda

Dorme tensa a pequena sozinha como que suspensa no céu Vira mulher sem saber sem brinco, sem pulseira, sem anel sem espelho, sem conselho, laço de cabelo, bambolê Sem mãe perto, sem pai certo sem cama certa, sem coberta, vira mulher com medo, vira mulher sempre cedo.

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olhos abertos, vagina trancada. Ser ela assim na rua é estar sempre por ser atropelada pelo pau sem dono dos outros meninos-homens sofridos, do louco varrido, pela polícia mascarada. Fosse ela cuidada, tivesse abrigo onde dormir, caminho onde ir, roupa lavada, escola, manicure, máquina de costura, bordado, pintura, teatro, abraço, casaco de lã podia borralheira acordar um dia cidadã. Sonha quem cante pra ela: “Se essa Lua, Se essa Lua fosse minha...” Sonha em ser amada, ter Natal, filhos felizes, marido, vestido, pagode sábado no quintal. Sonha e acorda mal porque menina na rua, é muito nova é lua pequena demais é ser só cratera, só buracos, sem pele, desprotegida, destratada pela vida crua É estar sozinha, cheia de perguntas sem resposta sempre exposta, pobre lua

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É ser menina-mulher com frio mas sempre nua. [Poema encomenda,1995.]


2. Experiências da Secretaria Municipal de Saúde para o enfrentamento das violências na cidade do Rio de Janeiro. 2.1. Um Breve Histórico Linear da Implantação do GAR na AP 5.3 Carmem Lúcia Troppiano Nogueira¹; Cilene Souza Boarro²; Luciana Ribas Côrtes³.

Resumo Trata se de um relato de experiência sobre a implantação do Grupo Articulador Local (GAR) na Área Programática de Saúde 5.3, região de saúde da Cidade do Rio de Janeiro. O texto visa descrever as ações para o enfrentamento da violência e da promoção da Cultura da Paz na região, e também, o desenvolvimento da supervisão técnica como uma diretriz do processo de trabalho com as equipes de saúde da família na abordagem das vulnerabilidades do território. Palavras-chave: Violência; Promoção da Saúde; Assistência Integral à Saúde.

Abstract This is an experience report on the implementation of the Local Group Articulator (OHR) in the Catchment Area Health 5.3, Health area of ​​the city of Rio de Janeiro. The text aims to describe the actions to confront

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violence and promotion of Culture of Peace in the region and also the development of technical supervision as a guideline of the work process with the family health teams in addressing the vulnerabilities of the territory. Keywords: Violence; Health Promotion; Comprehensive Health Care. ¹ Enfermeira. Diretora da Divisão de Apoio a Programas de Saúde/ DAPS da CAP 5.3/SMS RJ e Mestre em Saúde Pública/ ENSP ² Assistente Social. Divisão de Apoio a Programas de Saúde/ DAPS da CAP 5.3/SMS RJ e MBA Gestão em Saúde/Universidade Candido Mendes ³ Enfermeira. Divisão de Apoio a Programas de Saúde/ DAPS da CAP 5.3/SMS RJ e Pós Graduação em Enfermagem do Trabalho/ Faculdade Bezerra de Araújo.

Introdução A violência é um fenômeno sócio-histórico e acompanha toda a experiência da humanidade. A problemática não foi considerada a princípio como uma questão de saúde pública. Entretanto, transforma-se em um problema para o território porque afeta a saúde individual e coletiva e exige, para sua prevenção e tratamento, formulação de políticas específicas e organização de práticas e de serviços peculiares ao setor1. Os fatores que provocam as situações de violência e/ou alto grau de vulnerabilidade dos indivíduos e das famílias podem ser observados a partir da violência estrutural, tais como: desemprego, uso abusivo de álcool e drogas, morte de um dos membros da família e outras adversidades externas que confrontam o indivíduo, resultando em altos custos sociais e econômicos devido ao impacto que tem na saúde e na qualidade de vida e vários anos em potencial de vida perdidos. Diante do preconizado no Sistema Único de Saúde (SUS), que todos tenham direito à saúde, ao acesso igualitário aos serviços, no qual se exige o desenvolvimento de ações da saúde, prevenção de doenças e agravos, atenção humanizada e o trabalho em rede. Neste contexto, diversas políticas públicas são elaboradas nas três esferas de governo, mas é na instância municipal, que tais políticas

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ampliam seu potencial de concretização e possibilitam orientações para a atuação do profissional de saúde de forma mais contundente, o que pode contribuir para um fortalecimento das políticas e dos planos de ação no âmbito da gestão local. Observa-se que a violência tem repercussões no cotidiano dos setores de saúde, fato que não difere na área programática de saúde 5.3. Esta região compreende os bairros de Paciência, Santa Cruz e Sepetiba, com sua população segundo projeção do Instituto Pereira Passos (IPP) de 354 mil habitantes, cada um dos bairros constitui uma Região Administrativa. Para atender a essa realidade, nos últimos oito anos, a Estratégia de Saúde da Família foi ampliada de 52.87% de cobertura para 98,2% no cenário atual configurado um salto na vigilância dos indicadores de saúde na área, em termos quantitativos, o aumento da rede física de saúde com as Clínicas da Família é um real acesso para a população da região. Atualmente, somos 105 equipes de saúde da família e 52 de saúde bucal2. Como diretrizes de gestão para ampliação de cobertura integral a saúde, dispomos como ferramenta precursora o conceito de Territórios Integrados (TEIAS) coordenados pela atenção básica; integração das unidades de produção de saúde existentes nas regiões e macro-regiões, através das linhas do cuidado; investimento nas lacunas e vazios assistenciais a partir da análise de situação de saúde dos territórios; política de Regulação e Gestão Regional efetivas. A equipe da CAP 5.3 adequou a conceituação teórica à realidade do território, respeitando a especificidade e vocação de cada comunidade, mapeando inclusive áreas demarcadas pela violência urbana. Anteriormente, havia desertos sanitários, comunidades sem cobertura dos serviços saúde e sem uma avaliação epidemiológica e de suas vulnerabilidades. Entretanto com a ampliação das equipes de saúde da família, traz novas demandas do território e situações de violência que não eram visualizadas passaram a fazer parte da rotina dos profissionais.

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Este contexto requisitou da gestão local mudança no processo de enfrentamento às situações de violência. A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS/RJ) implantou o Núcleo de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências através da Portaria “P” 1.507 de 20 de outubro de 2009, o que nos possibilitou o estabelecimento de novos fluxos e protocolos e a ampliação da cobertura dos serviços, a partir do Grupo Articulador Regional (GAR). A atenção primária em saúde é o primeiro nível de atenção e constitui-se na porta de entrada preferencial do SUS. Espera-se que os profissionais atuem de acordo com as orientações estabelecidas pela Linha de Cuidado para Atenção Integral à Saúde das Pessoas em Situação de Violência. Nessa perspectiva, os dispositivos da linha de cuidado estruturam-se em acolhimento; atendimento; notificação e seguimento para a rede de cuidado e de proteção social. Estes componentes são os principais eixos norteadores para o estabelecimento do Plano Terapêutico Singular3. As orientações apresentadas pelos planos e ações desenvolvidas pelo GAR, bem como a implementação das linhas de cuidado promove articulações entre as equipes, estalebecem os fluxos de atendimento para a população que necessita deste atendimento na área, assegura o acolhimento e a resolutividade dos problemas e a continuidade da atenção e do cuidado. O GAR na AP 5.3 se torna então um espaço privilegiado para o planejamento e monitoramento da atenção as pessoas em situação de violência no território. Além de possibilitar a supervisão técnica das equipes. O Grupo Articulador Regional (GAR) Neste contexto, a área AP 5.3 tem uma importante trajetória de articulação, implantação e consolidação de políticas públicas com a participação popular. Esse aspecto da gestão é exercido no conselho distrital de saúde, em colegiado gestor em prol do fortalecimento da rede de proteção local. Nos espaços conquistados com a Educação integrando

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as pautas com as equipes de saúde e do grupo gestor que atuam nas Coordenadorias Regionais. Nos espaços de discussão coletiva coordenados pela equipe da Saúde Mental, nos quais diferentes atores do território discutem e traçam estratégias para o atendimento ao usuário, com as equipes de Desenvolvimento Social, através dos encontros para discussão das demandas de violência vivenciadas pelas famílias, crianças e adolescentes e população idosa em situação de abandono, violação de direitos. E, mais recentemente, com a Justiça através das ações desenvolvidas no projeto local de Erradicação do Sub Registro e acesso à documentação básica, além de articulações com o conselho tutelar nos atendimento as suas demandas e no terceiro setor, que no território se faz presente através de representações de projetos desenvolvidos por organizações não governamentais. Uma das discussões conduzidas pelo GAR na região foi o debate da notificação como um pilar fundamental, não somente para a elaboração de políticas públicas e de análise de dados epidemiológicos da violência. A notificação permite, ainda, a proteção às vitimas e aos usuários dos serviços, a criação de espaços de discussão sobre o tema e proposição de ações de prevenção da violência e promoção da saúde4. Esse processo possibilita falar, trocar experiência, expor as angústias e discutir os possíveis entraves e impasses sobre como conduzir e lidar com estas situações que se apresentam no território. As supervisões são possibilidades de intervenções específicas e resolutivas na condução da assistência às pessoas vítimas de violência e também na reorganização das práticas e dos modos de atuar na promoção e prevenção das violências no território. Para tanto “é necessário conhecimento do território e, sobretudo, a maneira de levar a vida dos usuários no contexto em que se inserem. Pressupõem também a análise e o ordenamento dos recursos existentes e necessários para garantir nos territórios, serviços que promovam saúde e previnam violência, articulando se na afirmação da vida5”. Processo de Trabalho do GAR

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Dentro da proposta da institucionalização do GAR na CAP 5.3, dispomos deste espaço para buscar parceiros e articuladores que já desempenham papel fundamental nesta construção: os apoiares institucionais, que contribuem com as equipes de saúde na abordagem da violência. Entre as ações implantadas, destacam-se os processos de codificação e qualificação das fichas de notificação, que ampliou a interação das equipes com o território e o grupo GAR. Ampliar essas ações entre os dispositivos de rede e interface com a SMS, também foi urgente. Definir novos protocolos de atenção às vítimas de violência sexual na área e descentralizar a Profilaxia pós Exposição (PEP) para todas as unidades de saúde, implantar as fichas de notificação nas unidades básicas de saúde e nas UPAS Municipais e Hospital Municipal Pedro II, foi importante para institucionalizar as ações já previstas na portaria. No tocante as ações intersetoriais, a articulação com as equipes de Desenvolvimento Social para acompanhamento das gestantes em situação de uso de drogas e a formalização de diversas parcerias, com o Conselho Tutelar e Promotoria Pública, a discussão sobre as situações de saúde do idoso e busca da notificação destas demandas, articulação com o Núcleo de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência – da Delegacia de Atenção a Mulher (Deam), com o Hospital Municipal Pedro II estabelecendo fluxo de referência e contra referência nos casos de usuários em situação de violência, ampliação da Estratégia de Mães Adolescentes e suas Crianças (EMAC) na discussão, acompanhamento e intervisões dos casos nas unidades de saúde, e com a equipe de Saúde Mental nos fórum de rede local, entre outras. A formalização de tais parcerias trouxe a institucionalização de ações antes estabelecidas por relações interpessoais no território, com a ampliação da capacidade de gestão e o desenvolvimento concreto de um trabalho em rede integrada. O painel de indicadores é mais um instrumento utilizado pela SMS/RJ e pelo GAR, que permite um monitoramento das informações dos serviços, do diagnóstico situacional da área e a vulnerabilidade territorial. É visualizado em um quadro disponível na área dos serviços, definido em cores: verde, amarelo e vermelho dependendo do percentual

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atingido por cada unidade notificadora de um caso a cada três meses. A presença do registro dos casos de violência entre as informações alvo do monitoramento confere a necessária prioridade à vigilância das violências. Dentro desse processo, elaborando e executando o planejamento junto às equipes, o GAR conseguiu um impacto favorável com o desenvolvimento das ações e melhorando o painel de indicadores. Algumas Constatações Por conta da complexidade das situações e dos agravos os profissionais de saúde, acolhem, dão as orientações e suporte aos usuários, porém no momento da notificação, ainda se sentem desconfortáveis e vulneráveis para concluir tal procedimento e dar segmento ao caso. Neste contexto, os profissionais de saúde têm respaldo nos mecanismos e marcos legais (Estatuto do Idoso, Estatuto da Criança e do Adolescente, na Lei Maria da Penha e na própria Constituição Federal), além das Portarias Ministeriais que orientam as ações no tocante a vigilância em saúde, assistência, prevenção e promoção, desempenham um papel importante no cuidado, na avaliação dos riscos, e na articulação dos serviços disponíveis para apoiar os usuários e seus familiares. A equipe de saúde é orientada a nunca agir sozinha, principalmente quando os agentes comunitários são os profissionais que identificaram essas demandas. A rede de proteção local deverá sempre ser acionada e o trabalho em equipe multidisciplinar e do GAR podem apoiar com diferentes estratégias e conhecimentos o enfrentamento dessas situações. O apoio e aprimoramento contínuo das equipes de saúde para um novo olhar é uma condição para promover a mudança desta realidade. É uma estratégia permanente para ampliar a percepção sobre a diversidade dos territórios e, a partir deste olhar, redesenhar as intervenções e melhorar o atendimento a estes segmentos da população. Considerações Finais

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A partir da implantação do GAR houve uma evolução significativa na reformulação das ações nas unidades de saúde e na implantação dos fluxos e protocolos estabelecidos pela SMS/RJ, na área. O GAR possibilitou a interlocução com a rede de apoio e o estabelecimento de proposta de ações voltadas para promoção da saúde e da cultura de paz, além de abrir espaço nas rotinas e no cotidiano das equipes. Esperamos que o fruto desse trabalho se fundamente no fortalecimento da rede intra e intersetorial, com ênfase nas suas potencialidades e que as ações propostas pelo grupo articulador sejam na intenção de mudanças deste cenário junto à atuação das equipes, na medida em que o tema violência deixa de ser um tabu e se torne prioridade na agenda das equipes e quando sensibilizadas apresentam-se como forte potencial para a resolução dos casos, assegurando a integralidade do cuidado e a proteção social. Referência Bibliográfica 1. Impactos da Violência na Saúde: org por Kallice Kjaine, Simone Gonçalves de Assis e Patrícia Constantino. Rio de Janeiro: EAD/ENSP, 2013. 402p. 2. Relatório de Gestão – Coordenadoria de Atenção Primária em Saúde – CAP 5.3, 2016. 3. Ministério da Saúde. Clínica Ampliada, Equipe de Referência e Projeto Terapêutico Singular. 2ª edição. Brasília: Ministério da Saúde, 2007. 4. Brasil. Notificação de maus-tratos contra Crianças e Adolescentes pelos profissionais: um passo a passo a mais na cidadania em saúde / Brasília: Ministério da Saúde, 2002. 5. SILVA JÚNIOR, A. G.; PONTES, A. L. M.; HENRIQUES, R. L. M. O cuidado como categoria analítica no ensino baseado na integralidade. In: PINHEIRO R.; CECCIM R. B.; MATTOS R. A. (orgs). Ensinar saúde: a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área de saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, p.93-110, 2006.

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2.2. Projeto Sala Lilás: uma experiência intersetorial na atenção às mulheres em situação de violência. Marcia Soares Vieira; Fernanda Prudêncio; Carmem Lopes; Andréa Manso1.

Resumo Este artigo apresenta a experiência de um trabalho intersetorial na atenção às mulheres em situação de violência - “PROJETO SALA LILÁS”, implementado no Instituto Médico Legal da cidade do Rio de Janeiro através de um convênio que integra áreas importantes no enfrentamento da violência contra a mulher: saúde, justiça e segurança pública. Tem como objetivos descrever o trabalho da saúde na implementação deste projeto e apresentar um breve perfil dos atendimentos realizados. Trata-se de um relato descritivo sobre as estratégias para a implementação e monitoramento do referido projeto. Procura-se partir de uma breve reflexão sobre a violência contra a mulher e, em seguida apresentar as etapas deste processo, com a apresentação do perfil dos atendimentos. Considerações finais: o processo de implementação deste projeto tem demonstrado a importância da articulação entre as diversas instituições que atuam sobre a violência contra a mulher, visto que, o trabalho de um potencializa e complementa o trabalho dos outros, formando uma rede qualificada, acolhedora e integrada para a garantia dos direitos das mulheres. Palavras-chave: Violência; Saúde da Mulher; Ação Intersetorial.

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Abstract This article introduces the experience of a project made from different working areas related to women suffering violence - “PROJECTO SALA LILÁS” implemented in the “Instituto Médico Legal da cidade do Rio de Janeiro” through an agreement that integrates important areas in the fight against violence against women: health, justice and public security. The aim of the present article is describe the work of the health area in the implementation of this project and to introduce a brief profile of the treated cases. It is a descriptive written account about the strategies for the implementation and monitoring of this project. It tries to start from a brief deliberation about violence against women and then introduce the stages of this process, with the presentation of the profile of the treated cases. Final remarks: the implementation process of this project has demonstrated the relevance of the coordination across different institutions that act on violence against women given that the work of one boosts and complements others jobs, making a qualified network, welcoming and integrated to guarantee women’s rights. Keywords: Violence; Women´s Health; Intersectorial Action 1

Assistente social e enfermeiras, respectivamente, da equipe técnica da Gerência de Saúde da Mulher.

Introdução Este artigo é um relato da experiência da equipe da Gerência de Saúde da Mulher-GSM, da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro/SMS na implementação de um projeto intersetorial, voltado para a atenção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, “Projeto Sala Lilás”. A GSM/RJ encontra-se vinculada a Subsecretaria de Promoção, Atenção Primária e Vigilância em Saúde, sendo responsável pela atenção integral à saúde da mulher, conforme a Política Nacional de Atenção Integral à saúde da Mulher/2004. Neste sentido, desenvolve ações que visam à garantia dos direitos humanos das mulheres e a redução da morbimortalidade por causas evitáveis, dentre elas, o enfrentamento à violência doméstica e sexual.

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Este relato expressa a preocupação da Gerência da Saúde da Mulher com a implementação, monitoramento e publicização das ações desenvolvidas nesta área, como componentes importantes do seu processo de trabalho, enquanto componente de gestão da política pública

de saúde. A violência contra a mulher Esta é uma questão discutida e denunciada por vários setores e organizações de mulheres no Brasil e no mundo e que requer o enfrentamento pelo Estado e pela sociedade civil. Para a Lei Maria da Penha “configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. O Ministério da Saúde, considerando as convenções e tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário e a legislação vigente há alguns anos tem incorporado em sua agenda de prioridades, a atenção à mulher em situação de violência. Dentre outras ações importantes realizadas destacam-se: a Politica Nacional de Morbimortalidade por Acidentes e Violência (2001), a Norma Técnica de Atenção à Violência Sexual (1999, 2006 e 2012), a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres (2011). Essas referências apontam a necessidade de ações articuladas entre os três níveis de governo e organizações da sociedade civil para o enfrentamento à violência contra a mulher. Muitos são os desafios dos gestores e profissionais de saúde nesta área, uma vez que esta temática mobiliza conhecimentos, valores, emoções e preconceitos produzidos e reproduzidos na sociedade brasileira, sob a influência da ideologia machista/ patriarcado. A ideologia machista, na qual se sustenta esse sistema, socializa o homem para dominar a mulher e esta para se submeter ao “poder do macho”. A violência contra as mulheres resulta da socialização machista. “Dada sua formação de

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macho, o homem julga-se no direito de espancar sua mulher. Esta, educada que foi para submeter-se aos desejos masculinos, toma este “destino” como natural” (SAFIOTTI, 1997, p.79) Cabe salientar que esta ideologia impacta na forma de se conceber e enfrentar a violência contra a mulher, não estando os profissionais de saúde excluídos desse processo, tanto na vida privada quanto no exercício profissional. Sendo assim, cabe aos gestores estruturar uma rede de serviços e garantir educação permanente para os profissionais de saúde, visando uma atenção qualificada e humanizada às mulheres. Reconhece-se que este fenômeno tem repercussões sobre a vida das mulheres, afetando a saúde física, mental e reprodutiva, além de provocar sérios danos à saúde de suas crianças e adolescentes, especialmente quando também são vítimas, ou testemunhas. As ações de educação permanente desenvolvidas pela SMS/RJ nesta área partem desta análise e procuram sensibilizar os profissionais para a compreensão das relações de gênero e a inserção das mulheres no contexto social, para os impactos da violência na saúde e vida das mulheres, dispositivos de proteção e integração da rede de serviços. Secretaria Municipal de Saúde/RJ e a atenção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar Os dados do Dossiê Mulher – 2015, do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, revelam que as mulheres sofreram diversos tipos de violência, com destaque para a violência física e sexual. Em 2014, 57.232 mulheres foram vítimas de violência física, deste total, 420 mulheres foram vítimas de homicídio doloso; 4.725 vítimas de estupro; 57.258 sofreram violência psicológica, dentre outras. Esta é uma realidade constante na vida das mulheres. A Secretaria Municipal de Saúde/RJ desde a década de 1990 vem desenvolvendo ações que expressam sua responsabilidade com o

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enfrentamento da violência contra as mulheres. O quadro de morbimortalidade, gravidezes indesejadas e não planejadas e quadros psíquicos, dentre outros, muitas vezes estão associados à questão da violência doméstica e familiar. Neste sentido, expandiu a rede de serviços para facilitar o acesso, realizou ações de educação permanente de seus profissionais, definiu fluxo interno e disponibilizou exames e medicamentos para a qualificação da atenção às mulheres em situação de violência. Atualmente possui uma rede de serviços de atenção primária e hospitalar para garantir a integralidade das ações, seguindo a linha de cuidado: prevenção, promoção e acompanhamento a essas mu-lheres. Todas as unidades de saúde estão aptas para o atendimento às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Em relação à violência sexual disponibilizam a profilaxia para as DST/HIV e contracepção de emergência, além de garantirem a realização do aborto legal. Projeto Sala Lilás: estratégias de Implementação A proposta inicial do projeto foi iniciativa do Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher/RJ, que mobilizou inclusive outras instituições. Tal articulação resultou no convênio estabelecido com o referido Juizado, Secretaria Estadual de Segurança Pública/IML, Secretaria Estadual de Saúde/RJ, Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres e Secretaria Municipal de Saúde/RJ, com o objetivo de humanizar e proteger às mulheres em situação de violência doméstica e sexual. É importante destacar que este convênio envolve aspectos estruturais do espaço físico do IML/São Cristóvão (reforma da sala, instalação de ar condicionado, computador e outros) e a lotação de enfermeiras pela SMS/RJ. O projeto “Sala Lilás” conta ainda com a inserção dos residentes de enfermagem da atenção primária, constituindo-se em espaço de capacitação profissional. As três enfermeiras e os residentes de enfermagem antes de inicia-

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rem o atendimento na Sala Lilás participaram da capacitação “Atenção às Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Sexual” organizada da pela Gerência de Saúde da Mulher. A inauguração do espaço ocorreu em dezembro de 2015, com a presença dos gestores dos órgãos componentes do convênio. Desde dessa data, a equipe da GSM tem oferecido suporte técnico e logístico ao trabalho desenvolvido pelas enfermeiras. Com o objetivo de divulgar o projeto para os profissionais de saúde e prevendo os impactos que o projeto teria sobre a rede de serviços municipais realizou-se reunião com profissionais das Coordenações de Saúde das áreas programáticas da cidade para apresentar o projeto e alinhar ações para o seguimento. É importante destacar, que no início do projeto, por ser um campo novo num espaço institucional vinculado a outro órgão não comum aos profissionais da saúde, com as particularidades que contém, a absorção dos atendimentos ocorreu de forma gradual. Isto porque se desconhecia o ritmo e volume exato dos atendimentos realizados no IML. No primeiro momento privilegiaram-se as situações de violência sexual, com a preocupação da demanda ser superior a capacidade de atendimento instalada. Aos poucos o atendimento foi ampliado para os demais tipos de violência doméstica/familiar. Outra questão fundamental que ocorreu e que interferiu no trabalho apresentado refere-se à essência do convênio, o qual se efetivou para o atendimento às mulheres. No entanto, a dinâmica dos atendimentos e o reconhecimento da equipe do IML do trabalho levaram a expansão deste atendimento para crianças e adolescentes, em sua maioria do sexo feminino. Neste sentido, a realidade da violência à mulher em diferentes ciclos de vida motivou a ampliação do projeto, o que se constitui num desafio para os profissionais. É importante destacar que neste relato priorizou-se a atenção a mulher adulta. A Atenção às Mulheres em Situação de Violência na Sala Lilás A sala Lilás consiste na atenção à mulher que é encaminhada pelas

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Delegacias de Polícia/DEAM para avaliação pericial, nos dias úteis das 8h às 17h, garantindo acolhimento/atendimento na perspectiva da integralidade. Neste atendimento procura-se refletir sobre a violência contra a mulher e conhecer a partir do boletim de ocorrência e do relato: o contexto e os tipos de violência sofrida, o suposto agressor, local da ocorrência, rede de proteção, serviços já acionados, dentre outros aspectos para definir as ações do profissional. Essas são discutidas com as mulheres procurando preservar sua autonomia nas decisões quanto aos encaminhamentos propostos no cuidado à saúde e no enfrentamento â violência. Todas são referenciadas para as unidades de atenção básica para realizarem o seguimento com a equipe de saúde, exceto as que não têm interesse ou não aceitam por terem plano de saúde privado. Considera-se a avaliação da mulher sobre sua segurança e privacidade para a definição da unidade de referência, sem a obrigatoriedade do vínculo territorial. É fundamental ressaltar que este atendimento visa ainda informar e referenciar as mulheres em todos os ciclos de vida para outros serviços de apoio, que compõem a rede de enfrentamento à violência doméstica e sexual. Nos casos de violência sexual ocorrida no período de 72 h são realizados testes rápidos para as IST: HIV, Sífilis e hepatites e a contracepção de emergência. A profilaxia anti-retroviral é realizada pelas unidades de saúde, sendo priorizada a escolha da mulher, sendo fundamental a sensibilização para o seguimento. A mulher é informada sobre o direito ao aborto legal e de outras possibilidades caso engravide em decorrência do estupro. As enfermeiras participam ainda do acompanhamento ao exame pericial, apoiando às mulheres e o perito, configurando um trabalho em equipe. Todos os atendimentos da saúde são registrados no FORMSUS, para acompanhamento da equipe da GSM e geração de relatórios para os parceiros do convênio, havendo também a notificação dos casos à vigilância em saúde da SMS/RJ, através da ficha SINAN-NET. Esses registros têm possibilitado a sistematização das informações e o monitoramento do projeto.

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Monitoramento Todos os atendimentos realizados pelas enfermeiras são registrados no FORMSUS, para acompanhamento da equipe da GSM e geração de relatórios para a saúde e os parceiros do convênio, além da notificação dos casos à vigilância em saúde da SMS/RJ, através da ficha SINAN-NET. Esses registros têm possibilitado a sistematização das informações e o monitoramento do projeto. Periodicamente uma planilha com informação sobre os atendimentos é enviada para as Coordenações de Áreas/Grupos Articuladores Locais para que a atenção primária possa acolher, dar continuidade, monitorar os atendimentos e definir estratégias de prevenção, promoção e acompanhamento às mulheres em situação de violência. Destaca-se que este projeto tem apontado diversas questões no atendimento às mulheres que sofreram violência doméstica e familiar ou por desconhecidos, motivada, especialmente, pela ideologia de gênero, dentre elas: - a importância da atenção na perspectiva da intersetorialidade, visto que parte significativa das mulheres que registram a ocorrência nas delegacias não procura os serviços de saúde, além de desconhecerem os serviços especializados de atenção às mulheres em situação de violência. O trabalho desenvolvido tem potencializado a divulgação destes serviços em todos os setores e o encaminhamento destas mulheres, sempre que necessário e de seu interesse; - a integralidade na saúde, garantindo à mulher a continuidade da atenção. O primeiro atendimento realizado pelas enfermeiras nem sempre esgota as necessidades de saúde das mulheres, sendo necessária a definição de um fluxo que garanta uma atenção integral e o apoio para o rompimento do ciclo da violência. Em relação à rede de saúde, a notificação pela ficha SINAN-NET tem sido o elemento importante de articulação, principalmente quando se trata de uma situação complexa que requer ações imediatas de proteção e de cuidados

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em saúde. Nestes casos, a comunicação com a atenção primária ou hospitalar é realizada imediatamente; - a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas que favoreçam a autonomia das mulheres para o rompimento do ciclo da violência: trabalho, habitação, educação, visto que a dependência financeira dos parceiros e a ausência de oportunidades têm dificultado a identificação de novas perspectivas de vida; - a importância da articulação com o movimento de mulheres, no sentido de publicizar informações sobre os atendimentos realizados e repensar estratégias coletivas de enfrentamento. O atendimento na Sala Lilás demonstra que ainda há muito a se construir na área de violência contra a mulher e que os múltiplos fatores que interferem para sua produção e reprodução, dificultam sua publicização e rompimento. A violência contra a mulher não pode ser naturalizada, nem tão pouco banalizada, ou mesmo imobilizar os profissionais de saúde, os quais muitas vezes se sentem impotentes para oferecer uma atenção que contribua para cessar o ciclo da violência. É fundamental considerar que mesmo nas situações em que a violência contra a mulher já ocorreu, os profissionais de saúde mantêm a posição estratégica nesta atenção, para evitar novas violências e/ou sua reincidência. A quebra do silêncio pelas mulheres, quando buscam os serviços de saúde ou mesmo as Delegacias de Polícia deve ser reconhecida como oportunidade para atuação dos profissionais e, algumas vezes, um pedido de ajuda para evitar um dano maior à sua vida. Breve perfil dos atendimentos na Sala Lilás Estas informações sobre os atendimentos são resultado do processo de monitoramento e se mostram de grande relevância para a discussão e definição e estratégias de ação pela saúde e demais

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serviços no enfrentamento à violência doméstica e sexual contra as mulheres. I – Atendimentos segundo os meses

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Tendo iniciado o projeto no início de dezembro de 2015 até junho de 2016, totalizou-se 322 atendimentos, com concentração no mês de março motivada pela ampliação dos atendimentos para além da violência sexual e funcionamento pleno nos dias definidos. A partir de março, conforme previsto no projeto ocorreu a inserção dos residentes de enfermagem da Secretaria Municipal de Saúde, que organizados em grupos passaram a acompanhar o trabalho desenvolvido, de maneira a potencializar a formação de profissionais para a atenção às mulheres em situação de violência. Como todos estão inseridos na atenção primária contribuem também como multiplicadores na qualificação dos serviços neste nível de atenção. II – Ciclo de vida Considerando as justificativas acima em relação ao atendimento a crianças e adolescentes além de mulheres adultas observa-se que o número de atendimento de adolescentes e crianças corresponde a 44% do total de atendimento. Ainda que o atendimento à violência doméstica a mulher adulta tenha se ampliado a partir de março este gráfico demonstra o número significativo de atendimentos realizados. Verifica-se que, apesar da legislação atual, crianças e adolescentes continuam sendo vítimas de violência, especialmente, doméstica.

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Pessoas que deveriam protegê-las violam seus direitos, impactando na saúde e no seu desenvolvimento integral. Estes dados demonstram a necessidade do profissional da saúde estar preparado para acolher pessoas em situação de violência de qualquer ciclo de vida, o que se constitui num desafio, dada a particularidade de cada abordagem, rede de serviços e legislação específica.

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III – Sexo Como o serviço foi implementado para atendimento à violência contra as mulheres é evidente que o maior número de atendimentos foi do sexo feminino. Os atendimentos ao sexo masculino foram todos a crianças e adolescentes, em sua maioria, por violência sexual, conforme gráfico abaixo.

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Este gráfico revela que há necessidade das instituições que trabalham com crianças e adolescente, de ambos os sexos para a possibilidade da violência também atingir o sexo masculino. IV – Raça/cor Como se observa a maioria dos atendimentos foram realizados a pessoas de cor parda, que somada a cor preta representam mais de 60% dos atendimentos. Esses dados provocam a reflexão sobre a vulnerabilidade das mulheres, nos diferentes ciclos de vida, acentuada pela questão da raça/cor que denuncia a dificuldade de acesso à educação, ao trabalho e aos serviços básicos em geral e possibilidades de romper o ciclo de violência das mulheres pardas e negras.

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V –Tipos de Violência Observa-se que de todos os tipos de violência, definidos pela Lei Maria da Penha, a violência física foi a mais expressiva, em consonância com dados da violência contra a mulher, divulgados pela mídia e pesquisas oficiais. Muitas mulheres atendidas nos diferentes ciclos de vida sofreram mais de um tipo de violência, associando, principalmente violência física e violência sexual com a violência psicológica/moral.

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A violência sexual por desconhecido ou conhecido atingiu 141 mulheres nos diferentes ciclos de vida. As situações que chegaram ao IML antes das 72h da ocorrência foram realizados testes rápidos para as DST e contracepção de emergência e encaminhados para unidades de saúde de preferência das usuárias para a profilaxia do HIV/AIDS.

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VI – Vinculo/grau de parentesco com a pessoa atendida Este gráfico revela que a maioria dos supostos agressores mantém ou manteve relação íntima/próxima com as mulheres, são seus conhecidos: companheiros e ex-companheiros, namorados e ex-namorados. O mesmo ocorre com crianças e adolescentes, que também são vítimas de violência sexual praticada por parentes ( tios, primos e outros), padrastos e pai, o que se encontra em consonância com a literatura da área. No caso de crianças e adolescentes, a maioria dos atendimentos da violência sexual, era crônica, o que significa a submissão a ameaças, chantagens e danos físicos e emocionais durante muito tempo. Os adultos próximos sejam da família, da escola, da saúde ou outras instituições não foram capazes de protegê-las.

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VII – Local da agressão

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Como já acima assinalado, o vínculo com a maioria dos supostos agressores é marcado por uma relação íntima, logo o local mais expressivo da ocorrência da violência é a própria residência ou de parentes, caracterizando a violência doméstica/familiar. Considerações Finais Este projeto tem possibilitado à saúde uma experiência ímpar no enfrentamento à violência contra a mulher. Aproximou a SMS/RJ de importantes instituições que atuam nesta área, especialmente o I Juizado de Violência Doméstica Contra a Mulher e a Secretaria de Segurança Pública/IML. As reuniões realizadas têm contribuído para discutir os avanços e desafios do projeto, além de dar visibilidade ao trabalho da saúde nesta área.

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Ainda que seja recente a sua implementação é possível avaliar alguns impactos desses atendimentos na rede de serviços de saúde do município, provocando a reflexão, a redefinição de fluxo de atendimento e de notificação, a estruturação de instrumentos de monitoramento pela GSM e pelas Coordenações de Área, a capacitação de residentes de enfermagem que atuam na atenção primária, dentre outros. Os dados dos atendimentos colocam para a saúde e demais instituições a necessidade de responder à demanda das mulheres, com ações públicas que possam proteger e cuidar, prevenindo e quebrando o ciclo da violência. Essas ações podem e devem ser articuladas para que possam impactar sobre este contexto. A participação da saúde neste projeto tem contribuído para melhorar a qualidade do atendimento no IML/São Cristóvão de forma articulada com os peritos, facilitando o acesso dessas mulheres à saúde e a rede de serviços especializados, na atenção às mulheres em situação de violência, dentre outros. Avalia-se que o atendimento acolhedor/integrado no IML poderá repercutir na decisão da mulher em realizar o exame pericial após o registro de ocorrência e, assim possibilitar ao sistema judiciário o deferimento de medidas cautelares de proteção à mulher e a investigação da violência, conforme legislação em vigor. Foi com estes objetivos que o convênio foi estabelecido. Referência Bibliográfica 1. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas - Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: Norma Técnica/Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. – 3. ed. atual. e ampl., 1. reimpr. – Brasília: Ministério da Saúde, 2012.

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2. ________. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde. Brasília, 2010. 3. ________. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise de Situação de Saúde. Política Nacional de Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Portaria MS/GM n.º 737 de 16/5 /01 Publicada no DOU n.º 96, seção E, de 18/5/01 – Brasília, 2002/Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Análise de Situação de Saúde. – 2. ed. – Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2005. 4. _________. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres – SPM – 2011; 5. __________Lei nº 11.340, de 07/08/2006 - Lei Maria da Penha. 6. SAFFIOTI, H.I.B. Gênero, Patriarcado e Violência.1 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. Agradecimentos Agradecemos as enfermeiras Patricia Cardia, Renata e Suzy por terem aceitado o desafio de iniciarem e desenvolverem o Projeto Sala Lilás, possibilitando as reflexões e análises deste artigo.

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2.3. A violência contra a pessoa idosa no município do Rio de Janeiro: pensando em estratégias de abordagem. Violence against the elderly in the city of Rio de Janeiro: thinking approach strategies. Germana Périssé de Abreu Margareth Glória Sgambato Ferreira Andréa Rocha Ferreira Izabel Cristina Ferraz dos Reis Ana Lúcia Reis de Mello Jeanne de Souza Lima Resumo Trata-se de um relato de experiência em que se descreve as ações adotadas pela Gerência de Saúde do Homem e da Pessoa Idosa, da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, para a abordagem das situações de violência contra a pessoa idosa na rede de saúde. Duas estratégias foram descritas: os Fóruns de Saúde da Pessoa Idosa, direcionados aos profissionais da rede de saúde da Atenção Primária, e as oficinas de mediação de conflitos para os profissionais do Programa de Atenção Domiciliar ao Idoso (PADI). Foram realizados 31 Fóruns de Saúde da Pessoa Idosa, no período de 2011 a 2015. Quanto à mediação de conflitos, um total de 100 profissionais das equipes do PADI foram capacitados para a utilização da ferramenta e abordagem diante das situações de violência intrafamiliar. Essas experiências permitiram qualificação do processo de trabalho, articulação com a rede intersetorial de serviços e a troca de experiências entre profissionais e equipes. Além da identificação de situações de violência que são perpetradas contra a pessoa idosa e o estabelecimento de ações para a prevenção e o seu enfrentamento.

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Palavras-chave: Saúde do Idoso; Conflito Familiar; Gestão em Saúde. Abstract It is a work that aims to present the strategies proposed by the Health Management of People and the Elderly of the Municipal Health Secretariat of Rio de Janeiro to address situations of violence against the elderly. Two strategies have been described: the health boards of the Elderly, directed to professionals in the health primary care network, and the workshops of conflict mediation for professionals in the Home Care Program for the Elderly. 31 health boards were made of the Elderly in the period to 2011 until 2015. As for conflict mediation, a total of 100 professionals were trained to use the tool and approach to situations of family violence. These experiences allowed qualification of the work process, intersectoral network services, exchange of experiences between professionals and teams, identify situations of violence that are perpetrated against the elderly and the establishment of actions for preventing and facing it. Keywords: Health of the Elderly; Family Conflict; Health Management. Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro Endereço postal: Rua Afonso Cavalcanti, 455, sala 807, Bloco A, Cidade Nova, CEP 20.211-901. Telefone: (21) 3971-1960. E-mail: gpi.smsdc@gmail.com

Introdução Ao longo dos anos temos acompanhado a divulgação de estudos e alertas para questões sobre o envelhecimento populacional brasileiro. Destacamos, dentre outros, um estudo publicado Camarano1, em 2002, que apresentou contribuições para o entendimento das consequências do processo de envelhecimento nos países em desenvolvimento como o Brasil. Os desafios de uma população em processo de envelhecimento, como a brasileira, são muitos, superá-los requer um planejamento inovador

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e reformas políticas substanciais. Apesar de já termos uma legislação vigente voltada para essa faixa etária, como exemplo, a Política Nacional do Idoso (Lei 8.842 de 04/01/19949)2, a Política Nacional de Saúde do Idoso (Portaria/MS 1.395 de 09/12/1999)3 e o Estatuto do Idoso (Lei 10.741 de 01/10/2003)4, nem todas foram implementadas de forma a serem vivenciadas por todas as pessoas idosas. A observância dos direitos conquistados nesses instrumentos legais é fundamental. Convivemos com grandes desigualdades, sejam econômicas, sociais e culturais, que clamam pela efetividade de programas complementares e reafirmação de valores de justiça distributiva envolvendo as atuais e futuras gerações. Sendo assim, as políticas sociais e de saúde devem estar afinadas uma com a outra, pois o conceito de saúde, para este grupo etário não pode se basear no parâmetro de ausência de doença, mas deve se reger pelo paradigma da capacidade funcional5. Nessa perspectiva, os segmentos sociais mais vulneráveis, dentre eles a população idosa, têm sua qualidade de vida comprometida quando a sociedade não é capaz de lhes oferecer meios que garantam o acesso aos demais direitos sociais. Para a cidade do Rio de Janeiro o envelhecimento populacional já é uma realidade, e o Censo Demográfico de 20106 confirma isso, pois a população idosa (60 anos e mais) já atinge 14,9%, superando a média nacional que é de 10,79%. O envelhecimento da população é reflexo do aumento da expectativa de vida, devido ao avanço no campo da saúde e à redução da taxa de natalidade. Esse dado é altamente relevante porque a mudança na distribuição etária de um país altera o perfil das políticas sociais, exigindo estratégias e implementação de benefícios, serviços, programas e projetos relacionados à promoção dos direitos humanos da população idosa. Infelizmente, observa-se que significativa parcela desse segmento se encontra em situação de abandono ou sendo vítima de maus-tratos praticados, na maioria das vezes, por familiares, conhecidos ou cuidador. Outro ponto que contribui neste perfil de risco para violência, é a fragilidade própria da idade e do lugar social

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que ocupam, torna-os, sobretudo, muito mais vulneráveis a violência. Quando sofrem maus-tratos praticados pelos familiares, os idosos e, sobretudo as idosas, em virtude de sua fragilidade física e emocional, temem denunciar os agressores por medo de sofrer represálias e também em virtude de, muitas vezes, alimentarem sentimento de afeto em relação aos autores de violência7. Diante desse quadro, a ausência de políticas sociais direcionadas à população idosa em situação de vulnerabilidade traduz-se na própria negação dos direitos fundamentais da pessoa humana. A violência é considerada uma questão de saúde pública e com a implantação da ficha do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), em 2009, vem obtendo maior visibilidade no município do Rio de Janeiro, sendo necessário criar mecanismos para enfrentamento e acompanhamento das situações de violência. Para evitar que as várias formas de violência contra as pessoas idosas sejam banalizadas na sociedade, torna-se essencial desencadear um processo sólido de informação sobre os direitos desse segmento, bem como o desenvolvimento de ações, comprometendo, dessa forma, as comunidades e o Estado a prevenirem e enfrentarem todo e qualquer tipo de violência praticada contra esse segmento8. Assim sendo, Gerência Técnica de Saúde do Homem e da Pessoa Idosa (GSHI), como instância da rede municipal de saúde, tem como objetivos planejar, organizar, coordenar, acompanhar, supervisionar e avaliar ações para a promoção da saúde, a prevenção e o enfrentamento das violências contra a pessoa idosa. O presente trabalho tem como propósito apresentar as estratégias adotadas pela GSHI, da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS/RJ), para a abordagem das situações de violência contra a pessoa idosa na Atenção Primária e na Atenção Domiciliar. O processo de trabalho no tocante a população idosa e as estratégias de prevenção da violência

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Fórum de Saúde da Pessoa Idosa Trata-se de um relato de experiência, em que se descreve a implementação das estratégias para abordagem à violência contra a pessoa idosa. Em 2011, foram iniciados os Fóruns de Saúde da Pessoa Idosa, encontros regionalizados, com os profissionais da rede de saúde da Atenção Primária, que se mantém até a presente data. Os encontros são coordenados pela GSHI em parceria com as Coordenadorias Gerais de Atenção Primária (CAP). As atividades realizadas são planejadas visando à troca de informações e apresentação das ações que as CAP vêm implementando no território. Foram realizados 31 Fóruns de Saúde da Pessoa Idosa, no período de 2011 a 2015, conforme tabela abaixo. Tabela 1 - Fóruns de Saúde da Pessoa Idosa realizados por CAP por ano

Coordenadoria Geral de Atenção Primária

2011

2012

2013

2014

2015

CAP 1.0 CAP 2.1 CAP 2.2 CAP 3.1 CAP 3.2 CAP 3.3 CAP 4.0 CAP 5.1 CAP 5.2 CAP 5.3

Os fóruns têm se apresentado como um momento de qualificação dos profissionais da rede de saúde que estão no território, pois nele recebem informações atualizadas sobre as diretrizes das políticas públicas propostas pelo Ministério da Saúde e pela GSHI, contribuem para construção de rede, discutem os casos específicos para avaliação das ações empreendidas, dentre outros. Portanto, os Fóruns de Saúde da Pessoa Idosa apresentam-se como espaços privilegiados para a discussão do tema violência contra a pessoa idosa e os profissionais das unidades de saúde que têm o papel de multiplicar os conteúdos apresentados para os demais profissionais nas suas respectivas unidades.

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As oficinas de Mediação de Conflitos Outra estratégia foi a realização de oficinas de mediação de conflitos para profissionais do Programa de Atenção Domiciliar ao Idoso (PADI). Este programa foi lançado em agosto de 2010, com o objetivo de fornecer Atenção Domiciliar, prioritariamente, às pessoas idosas (com 60 anos ou mais de idade), portadoras de doenças crônicas agudizadas, com incapacidade funcional provisória ou permanente, oriundas de internações hospitalares, com dificuldade de deambulação, em cuidados paliativos e com outros agravos passíveis de recuperação. As equipes multiprofissionais estão alocadas em hospitais municipais de emergência. Estas equipes são compostas por médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, técnicos de enfermagem, fonoaudiólogos, assistentes sociais, psicólogos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas e, recentemente, odontólogos. As oficinas aconteceram com uma periodicidade mensal, de 2012 a 2014, para sensibilização dos psicólogos e assistentes sociais, sobre a relevância da mediação de conflitos e a instrumentalização destes profissionais na compreensão das dinâmicas familiares e na identificação de situações de violência. De 2013 a 2014, pela importância do tema, as oficinas foram ampliadas para todos os profissionais. Foi realizada uma oficina em cada base do programa. Em 2015, iniciou-se o monitoramento do processo de trabalho realizado com todas as bases. Em 2016, a partir do resultado do monitoramento/avaliação das oficinas e a repercussão da utilização da ferramenta mediação de conflitos na prática dos profissionais, realizou-se uma segunda oficina em todas as bases do PADI, para mapear e contabilizar quais profissionais já haviam participado ou não de alguma das oficinas. Um total de 100 profissionais das equipes de Atenção Domiciliar foram capacitados, para a utilização da ferramenta e abordagem às situações de violência intrafamiliar. Destes, 15 profissionais (assistentes sociais e psicólogos) se transformaram em agentes multiplicadores internos e suporte para cada equipe, uma vez que tiveram capacitação com oficinas mensais contínuas. Também foi realizado o monitoramento

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das equipes quanto à utilização da ferramenta. Essa experiência permitiu a qualificação do processo de trabalho, articulação com a rede intersetorial de serviços, troca de experiências entre profissionais e equipes, identificação de situações de violência que são perpetradas contra a pessoa idosa e o estabelecimento de ações para a prevenção e o seu enfrentamento. Cabe ressaltar que mediação de conflitos, de forma não jurídica, tem se mostrado como um valioso instrumento de reestruturação de questões familiares contra as pessoas idosas9. Esse é um mecanismo pacífico de resolução de conflitos que pode ser aplicado por profissionais de saúde e que visa o diálogo, a consecução de acordos mutuamente satisfatórios, a promoção em tempo adequado da reorganização familiar para o cuidado da pessoa idosa e facilita a continuação do relacionamento entre as partes por meio da comunicação e da mútua compreensão9. As oficinas de mediação de conflitos surgem de uma demanda vivenciada pelas equipes do PADI em suas visitas domiciliares, pois este serviço atende aos munícipes do Rio de Janeiro, portadores de patologias de complexidade que permita o atendimento domiciliar. Programas de assistência domiciliar apresentam-se como uma oportunidade para a melhor terapia destes pacientes, pois o impacto funcional de uma internação hospitalar na saúde da pessoa idosa pode representar uma grave morbidade permanente. As oficinas realizadas convergiram com o que determina o Estatuto do Idoso4, no que tange ao enfrentamento da exclusão social e de todas as formas de violência contra esse grupo social10, e as diretrizes da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde11 para a implementação da educação permanente para os profissionais de saúde. A qualificação permanente dos profissionais da rede de saúde é ponto estratégico nas ações da GSHI, atendendo às necessidades e às possibilidades que o dinamismo do cotidiano traz ao serviço. Considerações finais Essas duas estratégias adotadas pela GSHI permitem despertar nos

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profissionais tanto da Atenção Domiciliar como dos profissionais da rede de saúde da Atenção Primária um olhar para captar as situações de suspeita ou confirmação de violência contra a pessoa idosa, permitindo desenvolver propostas para o estabelecimento de soluções que dêem conta das situações conflitivas, sempre numa linha voltada para a dinâmica de comunicabilidade e de acompanhamento profissional. Além disso, pretende-se expandir a tecnologia da mediação de conflito para os profissionais da rede de saúde da atenção primária de forma que estes se sintam habilitados para atuar em situações de suspeita ou confirmação de violência contra a pessoa idosa.

Referências bibliográficas 1. CAMARANO, A. A. Envelhecimento da população brasileira: uma contribuição demográfica. IPEA, 2002. 2. BRASIL. Política Nacional do Idoso. Lei 8.842 de 04 de janeiro de 1994. 3. _______ Portaria 1.395, de 10 de dezembro de 1999. Política Nacional de Saúde do Idoso: Brasília: Ministério da Saúde, 1999. 4. ______. Ministério da Saúde. Lei 10.741, de 1 de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 03 out. 2003. 5. RAMOS, M.P. Apoio social e saúde entre idosos. Sociologias, v. 4, n. 7, p. 156-175, jan./jun. 2002. 6. Censo Demográfico de 2010: Características da população e dos domicílios - Resultados do universo. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2011. 7. SOUZA, E.R.; MINAYO, M. C. S. Inserção do tema violência contra a pessoa idosa nas políticas públicas de atenção à saúde no Brasil. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 15, n. 6, Sept. 2010.

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8. MINAYO, M.C.S. Relaciones entre Procesos Sociales, Violencia y Calidad de Vida. Salud colectiva, Lanús, v. 1, n. 1, abr. 2005. 9. VALE, M.S.; FALEIROS, V.P.; SANTOS, I.B.; MATOS, N.M. Mediação de Conflitos de Violência Intrafamiliar Contra Pessoas Idosas: uma proposta não jurídica. Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 14, n. 1, p. 104 - 114, jan./jun. 2015. 10. Brasil. Presidência da República. Subsecretaria de Direitos Humanos. Plano de Ação para o Enfrentamento da Violência Contra a Pessoa Idosa / Presidência da República. Subsecretaria de Direitos Humanos. – Brasília: Subsecretaria de Direitos Humanos. 2005. 11. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.996, de 20 de agosto de 2007. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação da política nacional de educação permanente em saúde. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 22 ago. 2007.

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2.4. Centro de Atendimento à Criança e ao Adolescente Vítima de Violência (CAAC) Cristina Boareto1 Denise Alves José da Silva2 Superintendente de Promoção da Saúde Assistente da Coordenação das Linhas de Cuidado das Doenças Transmissíveis (CDT)

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As violências são na atualidade importante ameaça à vida de crianças e jovens no nosso país e na nossa cidade. Proteger a vida e a saúde das pessoas é um grande desafio para o setor saúde, para o setor de justiça e para toda a sociedade. No caso de crianças e adolescentes vítimas, estas também padecem de violência institucional pela forma muitas vezes como são atendidas, a chamada vitimização secundária, pelo excesso de exposição à situação que as vitimou, com repetições desnecessárias dos relatos. A busca de maneiras para proteger a interação da criança e do adolescente com a rede de proteção, incluindo os sistemas de segurança e de justiça, resultou na criação, em 2015, do Centro de Atendimento a Adolescentes e Crianças Vítimas de Violência, no Hospital Municipal Souza Aguiar numa parceria com o Governo Estadual por intermédio da Secretaria do Estado de Segurança (SESEG) com as Delegacias da Criança e Adolescente Vítimas (DECAV) e o Instituto Médico Legal; a SMS/RJ; e a Organização Não Governamental (ONG) Instituto Bola pra Frente. Trata-se de um centro integrado de atendimento com princípios de integração de políticas de saúde, assistência social e segurança pública para a escuta qualificada e depoimento especial assegurando ao acusado-réu a apuração transparente, livre de sugestionamento e o seu cuidado orientado pelos princípios da

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integralidade e humanização da atenção. Um dos objetivos da implantação do CAAC foi dar subsídio a aplicação da Lei 12845 de 2013 que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. Visa, igualmente, promover a celeridade na apuração dos fatos. O Centro tem um espaço humanizado, com profissionais capacitados para lidar com vítimas de abuso sexual, ajudando a minimizar o impacto da violência sofrida. O serviço oferece um atendimento emergencial, integral e multiprofissional às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. A população beneficiada pode ser admitida por livre demanda, trazida por ambulância ou encaminhada pelo serviço ambulatorial do próprio hospital e de outras unidades de saúde. O atendimento segue um fluxo, na lógica multiprofissional, realizando acolhimento, classificação de risco, assistência médica a partir do Protocolo de Cuidados Profiláticos e Tratamento para Violência Sexual do Ministério da Saúde e por fim o atendimento pericial com a oitiva. Depois do atendimento, o usuário é encaminhado conforme a gravidade do caso à internação ou à uma unidade básica de saúde. Caso o desfecho do caso seja a última opção, o referenciamento dependerá se residente ou não no município do Rio de Janeiro. Aquele não residente é encaminhado ao município de origem, e o residente, após consulta do endereço no programa “Onde ser atendido”, será encaminhado para unidade de saúde responsável pelo seu cuidado. Neste espaço de atendimento são realizados os seguintes procedimentos às crianças e adolescentes vítimas de violência: 1 – Escuta atenta e acolhimento a pessoa que sofreu violência sem fazer julgamentos ou perguntas desnecessárias com gravação da história evitando assim que ela tenha que recontar os acontecimentos a cada novo atendimento. A entrevista é gravada em áudio e vídeo para posteriormente ser incluída como peça de suma importância nos au-

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tos do inquérito policial, auxiliando na autoria e materialidade do delito. A pessoa e seus familiares são estimulados a expressarem seus sentimentos de tristeza, raiva, medo, não minimizando seu sofrimento e não desconfiando de sua história, fortalecendo sua auto-estima e sua capacidade de superação; 2 – O exame pericial é realizado pelo perito legista oficial, designado pelo Diretor do Instituto Médico Legal para tal ato; 3 – Preenchimento do Boletim de Ocorrência e prosseguimento da investigação, garantindo a resolutividade que o caso exige com os encaminhamentos necessários. Dessa forma evita-se o processo de peregrinação das crianças e adolescentes e seus familiares em lugares distintos e longínquo, entre os Conselhos Tutelares, Hospitais, Delegacias e IML. Vale lembrar o importante papel dos Conselhos Tutelares no controle e monitoramento dos casos, com um olhar abrangente que transcende ao ato criminoso e avaliam a capacidade protetiva por parte da família e as necessidades que seus membros possam ter em decorrência do delito. Cabe ainda destacar o papel do Estado e suas Instituições na construção de políticas públicas que intervenham nas causas das violências, reduzam as desigualdades sociais, combatam a criminalidade, fortaleçam a cultura da paz, respeitando a diversidade e eliminando o racismo, a homofobia e o machismo ainda presentes na nossa sociedade. O CAAC funciona de segunda a sexta das 9:00 às 19:00 horas, na emergência do Hospital Municipal Souza Aguiar, situado na Praça da República, 111, Centro. Telefone: (21) 2332-9748 | Email: dcav.caac@gmail.com A proteção das pessoas que vivem situação de violência só se completa pela ação cuidadora de muitos profissionais. Faça sua parte!

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2.5. O processo de estruturação do Núcleo de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências e dos Grupos Articuladores Regionais do Rio de Janeiro: 20 anos de trajetória Denise Alves José da Silva1 Jeanne de Souza Lima² Laura Sarmento³ Luciane Quagliane¹ Márcia Soares Vieira1 Margareth Glória Sgambato Ferreira1 Marina Maria Baltazar de Carvalho4 Silvana Costa Caetano 4 Viviane Manso Castello Branco² Cristina Boaretto Resumo A violência se constitui um grave problema de saúde pública e tem demandado do setor saúde e de outras instâncias a implantação de políticas públicas para seu enfrentamento. Este relato de experiência visa descrever as ações do Núcleo de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências e a estruturação dos Grupos Articuladores Regionais pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, destacando algumas estratégias de prevenção e atenção às pessoas em situação de violência nos últimos 20 anos. Trata-se de um relato descritivo das iniciativas adotadas no processo de formulação da política pública de saúde para o enfrentamento da violência. Esta estratégia de trabalho tem viabilizado sensibilizações, seminários, rodas de conversas, reuniões, pesquisas, projetos e ações intra e intersetoriais.

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Palavras-chave: Violência; Saúde Pública; Gestão em Saúde. Abstract Violence is a major public health problem and has demanded the reorganization of the health sector and other institutions in order to implement public policies to face the problem. This paper aims to describe the actions of the Committee for of the Promotion of Solidarity and Violence Prevention, as well as the process that lead to the creation of the regional groups by the Municipal Secretary of Health of Rio de Janeiro and some strategies for the prevention of violence. This paper describes the initiatives adopted to formulation of public health policy to face the violence.These strategies have fostered different training strategies as well as surveys, intra and inter-sectoral projects and actions, contributing to health promotion and to the qualification of care. Keywords: Violence; Public Health; Health Management . Superintendência de Atenção Primária. ² Superintendência de Promoção da Saúde ³ Coordenação de Saúde Mental 4 Superintendência de Vigilância à Saúde

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Introdução A violência assume grande importância para a saúde pública em função de sua magnitude, gravidade e impacto social sobre a saúde individual e coletiva. Este agravo repercute na diminuição da expectativa e da qualidade de vida, aumento dos cuidados e custos para a saúde e previdência, absenteísmo no trabalho e na escola, conflitos de ordem familiar e pessoal, entre outros1. Diversas estratégias como normas, manuais, diretrizes e um sistema de informação, foram implantadas pelo Ministério da Saúde (MS) para dar visibilidade e enfrentar a questão da violência. A aprovação da Política de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, em 2001, marca definitivamente a entrada dessa problemática na agenda

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da política pública2. Além do avanço na legislação brasileira que estabelece a violência como uma violação de direitos humanos. Este relato de experiência é resultado de um processo de trabalho construído coletivamente por profissionais e gestores das áreas técnicas da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS/RJ), que levou à implantação de projetos e iniciativas voltadas para a promoção da saúde, prevenção e atenção às pessoas em situação de violência. Tem como objetivo descrever, mais especificamente, as atividades do Núcleo de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências (NPSPV) e dos Grupos Articuladores Regionais (GAR), como espaços privilegiados para a formulação, monitoramento e avaliação de ações. Antecedentes à implantação do NPSPV O decorrer dos anos de 1990 é marcado pela necessidade de reorganização das políticas públicas de saúde nas bases definidas na Constituição Federal de 1988. O princípio da universalidade garante o direito à saúde para todos (as) cidadãos (as) brasileiros (as). Parte do pressuposto que a integralidade diz respeito ao atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais. Isto significa que o sistema de saúde deve estar preparado para ouvir o (a) usuário (a), compreendê-lo (a) inserido (a) em seu contexto social e, a partir daí, atender às demandas e necessidades desta pessoa3. A equidade como princípio complementar ao da igualdade que significa tratar as diferenças em busca da igualdade. Nesse sentido, a equidade norteia as políticas de saúde, reconhecendo necessidades de grupos específicos e atuando para reduzir o impacto dos determinantes sociais da saúde aos quais estão submetidos. Baseados nestes princípios e nos indicadores de saúde da cidade, que apontavam a relevância da violência, a SMS/RJ desencadeou um processo de reflexão sobre o seu papel,resultando em uma série de ações, descritas abaixo:

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Superintendência de Saúde Coletiva - Realização do Seminário Violência contra a Criança e o Adolescente: o Olhar da Saúde e Edição da Revista Saúde em Foco com o tema “Violência social - o olhar da saúde” no ano de 1996; Gerências Técnicas de Saúde da Criança e do Adolescente O ano de 1996 marcou a realização de uma série de ações: - Criação da ficha de notificação de maus tratos contra a criança e o adolescente, iniciativa pioneira no Brasil(Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, de 07/05/96). A ficha e a definição do fluxo de notificação e atendimento contaram com a parceria de diferentes instituições científicas e do sistema de garantia de direitos; Oficina com parceiros do sistema de garantia de direitos para definir fluxos e identificar dificuldades no atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência; Capacitação dos profissionais da rede municipal para ações de prevenção com a Organização Não Governamental (ONG) ABRAPIA e apoio Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA); Publicação da cartilha Protegendo nossas Crianças e Adolescentes para trabalhar com os responsáveis a prevenção da violência doméstica; - Realização do II Seminário do Projeto Horizontes com o tema “Violência contra o adolescente: um desafio para os serviços de saúde”, em parceria com a Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro e do Unicef, com foco na gravidez das adolescentes; Projeto piloto de atenção às adolescentes vítimas de abuso sexual em duas maternidades da AP 3.3, realizadas no ano 1998; - Criação do Grupo de Trabalho de prevenção da violência, com encontros mensais abertos a profissionais de saúde e parceiros, visando aprofundamento teórico, troca de experiências, fortalecimento das parcerias e elaboração conjunta de estratégias de ação no ano 2000;

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- Implantação, capacitação e supervisãoda Rede de referência para atendimento de crianças e adolescentes em situação de violência em parceria com o Núcleo de Atenção à Violência (NAV) e apoio do MS, no ano 2003. Gerência Técnica de Saúde da Mulher - Capacitação dos profissionais de saúde e estruturação do atendimento às vítimas de violência sexual no Município do Rio de Janeiro (MRJ), com estabelecimento de fluxo, protocolo de profilaxia para DST/ HIV, contracepção de emergência e aborto legal, em parceria com a ONG - Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (CEPIA) a apoio do MS, entre os anos de 2002 a 2004. Superintendência de Vigilância em Saúde - Projeto Risco Zero, de prevenção de acidentes de trânsito no ano de 2005; Processamento na Vigilância em Saúde das fichas de Maus Tratos/Violência Sexual das Gerências Técnicas de Saúde da Criança e do Adolescente no Programa Epi Info,entre anos de 2006 a 2010; Implantação do Sistema de Vigilância de Violência e Acidentes (VIVA) com a utilização da primeira ficha de notificação do MS e do Epi Infona Maternidade Fernando Magalhães, entre os anos de 2006 e 2008. Assessoria de Promoção da Saúde - Capacitação e supervisão das equipes de Saúde da Famíliana atenção às crianças, adolescentes e famílias em situação de violência em parceria com o NAV, no ano de 2006; Implantação do projeto Escolas promotoras de saúde e solidariedade em parceria com Instituto NOOS e apoio do MS, no ano de 2007. Implantação do Núcleo de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências no Rio de Janeiro - Diversas políticas públicas foram estabelecidas pelo MS no sentido de dar visibilidade à problemática da violência. A aprovação da Política

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de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, em 2001, estabelece diretrizes e responsabilidades institucionais, nas quais estão contempladas e valorizadas medidas inerentes à promoção da saúde e à prevenção desses eventos, mediante processos de articulação com diferentes segmentos sociais. As diretrizes mencionadas na política são: promoção da adoção de comportamentos e de ambientes seguros e saudáveis; monitorização da ocorrência de acidentes e de violências; sistematização, ampliação e consolidação do atendimento pré-hospitalar; assistência interdisciplinar e intersetorial às vitimas de acidentes e de violências; estruturação e consolidação do atendimento voltado à recuperação e à reabilitação; capacitação de recursos humanos; apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas2. O MS, em 2004, por meio da Portaria n. 936, instituiu a Rede de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde e a implantação e implementação de seus Núcleos em Estados e Municípios4.Esta portaria subsidiou a Resolução do Núcleo Municipal de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências (NPSPV) da SMS/RJ, regulamentado através da Resolução “P” nº 1.507 de 20 de outubro de 2009. Coube a Superintendência de Promoção da Saúde (SPS), através da Coordenação de Políticas e Ações Intersetoriais(CPAI) a coordenação do referido núcleo. Por se tratar de tema complexo e transversal foi importante, ao longo dos anos da implantação do NPSPV, o envolvimento das diferentes áreas técnicas da SMS/RJe parceiros estratégicos externos como: Instituto Pereira Passos (IPP), Secretaria Municipal de Educação (SME), Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), Coordenadoria de Promoção de Políticas para a Igualdade de Gênero, Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual (CEDS), Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Carelida Fundação Oswaldo Cruz (CLAVES - Fiocruz), Comitê Internacional da Cruz Vermelha, entre outros. A promoção da saúde e da cultura de paz e a prevenção das violências é papel de toda a sociedade e, portanto, todas as instâncias da SMS/ RJ devem ter este compromisso. Abaixo são descritas as ações, pro-

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jetos e programas de maior impacto realizados pelo Nível Central no processo de implantação do NPSPV: Superintendência de Promoção da Saúde - Implantação de rodas de Terapia Comunitária - Espaço de expressão dos conflitos, dúvidas, possibilidades de soluções, sem risco de exclusão e sim de valorização da diferença e do referencial positivo de cada um; - Desenvolvido o projeto “Unidades e Comunidades Promotoras de Solidariedade” implementado pelo NPSPV em 2011, por meio da CPAI, em três Coordenações de Áreas de Planejamento (2.1, 3.1 e 3.3), em parceria com a Organização Social Viva Comunidade e apoio do MS; - Desenvolvimento do Projeto Mobilidade, Segurança e Cidadania no Trânsito, que envolveu dois sub-projetos: a) pesquisa Segurança e Civilidade no Trânsito Urbano do Rio de Janeiro, realizada com apoio do Ministério da Saúde, encomendada a pesquisadores do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESeC/Ucam); b) elaboração de um plano estratégico de comunicação, realizado de forma participativa com diferentes setores da sociedade com a consultoria da Rebouças e Associados, com o apoio da Superintendência de Vigilância em Saúde; - Desenvolvimento do Programa de Saúde nas Escolas (PSE) – destaque para o estabelecimento de estratégias de prevenção da violência e mediação de conflitos nas escolas e creches; - Rede de Adolescentes e Jovens Promotores da Saúde (RAP da Saúde); aposta no protagonismo de adolescentes e jovens, fomentando a autoestima e a resiliência, contribuindo para reduzir vulnerabilidades e dar visibilidade positiva aos jovens das comunidades populares, em especial, aos jovens negros; - Movimento pela Valorização da Paternidade e Iniciativa Unidade de

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Saúde Parceira do Pai – visa o enfrentamento do machismo e a ampliação do envolvimento dos homens nas ações de cuidado, com apoio do Comitê Vida. Estímulo à participação do pai nas consultas de pré-natal e no crescimento e desenvolvimento de seus filhos e filhas. Realização de campanhas e ações permanentes, com ênfase no mês de agosto sobre a importância da participação do pai no autocuidado e no cuidado com a família. Certificação das unidades de saúde como Unidades Parceiras do Pai. Esta iniciativa foi integrada ao Certificado de Reconhecimento ao Cuidado de Qualidade (CRCQ), em 2012 e 2014; - Implantação no MRJ da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra5 - visa à promoção da equidade étnico racial e a redução da mortalidade, principalmente de jovens negros. Introdução do quesito raça/cor nos prontuários, definição de orçamento específico e criação do Comitê Municipal de Saúde da População Negra; - Implantação da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT)6 – promove o respeito à diversidade sexual e a redução da homofobia. Inclusão do nome social nos prontuários, ações de sensibilização dos profissionais de saúde para facilitar o acesso dessa população aos serviços; apoio e participação em atividades intersetoriais e de visibilidade como as Paradas LGBT; - Mediação de conflitos – visa a sensibilização de profissionais de saúde para o estabelecimento de estratégias locais para prevenção e o enfrentamento das situações de violência. Realização de oficinas de sensibilização, seminário e rodas de conversas com profissionais de saúde e rede de apoio intersetorial. Inclusão da mediação de conflitos e prevenção da violência nos Ciclos de Debate; - Brincação – implantação de espaços lúdicos nas unidades de saúde que favoreçam a expressão de sentimentos das crianças e fortalecimento de vínculos entre pais/responsáveis e filhos (as). Destaque para recente inauguração da Brinquedoteca do Hospital Municipal Souza Aguiar;

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- Campanha Gentileza no Namoro – visa a prevenção da violência no namoro e a promoção de relacionamentos saudáveis e gentis. Realização de campanhas e ações permanentes, com ênfase no mês de junho de valorização do respeito nas relações afetivas; - Participação no Comitê Megaeventos, coordenado pela Subsecretaria de Direitos humanos, uma inciativa intersetorial para o enfrentamento das violações de direitos humanos das crianças e adolescentes. Superintendência de Atenção Primária - Incentivo ao aleitamento materno– fortalece vínculos entre mães e filhos/as, promove a saúde e a proteção das crianças. Realização ações de promoção do aleitamento e da Semana Mundial da Amamentação; - Desenvolvimento da Estratégia Mães adolescentes, suas crianças e suas famílias (EMAC) - visa à promoção da saúde, a redução da vulnerabilidade das famílias e a prevenção da violência contra as crianças. Estas ações ocorrem no cotidiano das unidades de atenção primária e maternidades da rede municipal; - O enfrentamento à violência contra a pessoa idosa – destaque para duas estratégias de abordagem das situações de violência contra a pessoa idosa: os Fóruns de Saúde da Pessoa Idosa, direcionados aosprofissionais da rede de saúde da Atenção Primária e as oficinas de mediação de conflitos para os profissionais do Programa de Atenção Domiciliar ao Idoso (PADI); - Atenção às mulheres em situação de violência –destaque para o “PROJETO SALA LILÁS”, implementado no Instituto Médico Legal da cidade do Rio de Janeiro, através de um convênio que integra áreas de saúde, justiça e segurança públicano enfrentamento da violência contra a mulher; - Construção Coletiva da Linha de Cuidado/ Guia Rápido de Preven-

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ção da Violência para ser utilizado na atenção primária, em parceria com diversos setores do nível central; - Apoio Institucional àsunidades de atenção primária para diminuição da mortalidade materno infantil no que tange as questões ligadas à violência, envolvendo diversos setores do nível central e parceiros estratégicos; - Colaboração na implantação do Centro de Atendimento à Adolescente e Criança Vítimas de Violência Sexual (CAAC), inaugurado em 2015, no Hospital Municipal Souza Aguiar. O CAAC representa um marco para o Estado do Rio de Janeiro e surge para otimizar o processo de investigação dos casos de violência sexual, previsto na Lei 12.245, de 1 de agosto de 20137; - Construção coletiva da Linha de Cuidado/Guia de Prevenção do Suicídio para ser utilizado na atenção primária, em parceria com diversos setores do nível central; - Participação no Comitê Megaeventospara o enfrentamento de violações de direitos humanos das crianças e adolescentes; - Participação na Rede Capital – visa a estruturação da rede deserviços de atendimento às mulheres em situação de violência do MRJ, em 2015; - Participação no Fórum da Juventude em parceria com a SME, com a finalidade de discutir ações de prevenção da violências. Superintendência de Vigilância em Saúde A importância da vigilância em saúde para esse agravo é fundamental na organização dos serviços, na definição do perfil do MRJ e no planejamento de estratégias oportunas de prevenção dos agravos resultantes da violência. Portanto, é necessário articular a notificação dos casos à vigilância epidemiológica do município, após o seu conheci-

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mento. Diversas iniciativas foram realizadas pela equipe de Vigilância em Saúde e outras em parceria com áreas técnicas integrantes do NPSPV, são elas: - Seminário Municipal de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências – “implantando a ficha de notificação da violência doméstica, sexual e outras violências no SinanNet”, em 2009, com a participação de profissionais de saúde e outros parceiros estratégicos da rede de enfrentamento da violência; - Oficinas nos anos de 2009/10 nas áreas de planejamento da cidade do Rio de Janeiro para implantação da referida ficha, sendo adotada estratégia para mobilização e sensibilização dos profissionais da atenção primária e demais profissionais da área, para importância desse agravo; - Realização da I Mostra DANT – Doenças e Agravos Não Transmissíveis em 2010 – Conferência com a representante do MS: Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes do Ministério da Saúde e Mesa Redonda – Relato de Experiências em Acidentes e Violências no MRJ; - Realização, em parceira com CPAI, no I Seminário Caminhos da Educação e Segurança no Trânsito. Apresentação na modalidade Painel: “O que sinalizam os dados e as pesquisas?”–apresentação dos dados da morbimortalidade dos acidentes de transporte em residentes do MRJ no ano de 2011; - Implantação da notificação da violência homofóbica no Sinan no âmbito municipal, em parceria com CEDS atendendo ao Decreto SMA 35.816 de 28/06/12, no ano de 2013; - Descentralização das ações de Vigilância em Saúde relativas ao instrumento de notificação (rotina de codificação, qualificação e digitação da informação) para às Divisões de Vigilância em Saúde (DVS), com o apoio do GAR nos anos de 2013/14;

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- Treinamento para a notificação de violência sexual em parceria com Gerência de DST/Aids, dirigido aos profissionais que participaram da capacitação Protocolo Procedimento Pós Exposição (PEP) em 2014; - Inclusão do tema violência no Certificado de Reconhecimento ao Cuidado de Qualidade (CRCQ), em 2012 e 2014, com o nome de“Unidade Promotora da Solidariedade”, inserido posteriormente na avaliação CRCQ Ciclos de Vida em 2015 e 2016, bem como no último Seminário do Accountability; - Implantação da notificação imediata da violência sexual e tentativa de suicídio, atendendo a portaria nº 1.271 de 06/06/148; - Capacitação para a nova versão da ficha de notificação SINAN versão 5.1 em 2015; - Participação junto à Gerência da Mulher nas visitas de monitoramento das ações relativas ao agravo violência nas AP, que resultou na apresentação dos dados do MRJ sobre o tema no Colegiado Gestor em 2015; - Participação na elaboração das orientações ligadas a notificação da violência no documento Rede Capital junto com a Gerência da Mulher em 2014; - Participação no Comitê Megaeventos da Secretaria de Desenvolvimento Social – Subsecretaria de Direitos Humanos com ênfase o enfrentamento das violações de direitos humanos das crianças e adolescentes na Copa do Mundo (2014) e Jogos Olímpicos e Paralímpicos (2016); - Inclusão da Notificação de Violência no Ciclo de Debates da Vigilância Epidemiológica em 2015 com o tema “Vigilância Epidemiológica: O que mudou? O que você precisa saber?”e subtema: Vigilância de Violências e Acidentes – O que fazer?

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- Elaboração de texto sobre Vigilância e informação(dados da morbimortalidade da violência autoprovocada no MRJ e capítulo da notificação) para compor o Guia de Prevenção do Suicídio e Folder Digital, em conjuntocom a SUBPAV/Superintendência de Atenção Primária (SAP) e SUBHUE/Superintendência de Saúde Mental (SSM) pelo dia mundial de prevenção do suicídio - 10 de setembro, no ano de 2016; - Participação na elaboração do Guia de Prevenção das Violências em conjunto com a SUBPAV - Coordenação de Ciclos de Vida - nas questões ligadas à notificação das violências interpessoal e autoprovocada,no ano de 2016; - Capacitação e sensibilização quanto a Notificação dos Casos de Violência, da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) das AP 3.1, 3.2 e 3.3, em parceria com a /SUBHUE/SSM no ano de 2016; - Apresentação do Tema Notificação de Violência contra Mulher naSubsecretaria Especial de Políticas para as Mulheres no ano de 2016; - Colaboração no Guia Prático da Vigilância Epidemiológica no capítulo Violências e Intoxicação Exógena, no ano 2016. 3. Descentralizando as ações do NPSPV: a implantação dos Grupos Articuladores Regionais nas AP Após a realização do Seminário Municipal e das sensibilizações para implantação da ficha, realizadas em 2009/10, foi constatada a necessidade da criação de equipes que pudessem apoiar a organização nos territórios das ações de prevenção, atenção e notificação das pessoas em situação de violência. A Portaria do Ministério da Saúde previa a criação de um núcleo por município, mas na cidade do Rio Janeiro a alternativa foi estimular a descentralização das ações a partir da criação de 10 (dez) Grupos Articuladores Regionais (GAR), um em cada CAP, ligados ao nível central.No ano de 2010 foram realizadas as primeiras reuniões para o fomento dos GAR para a estruturação da Linha de Cuidado para Atenção

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Integral à Saúde de Crianças, Adolescentes e suas Famílias em Situação de Violência9. Ao longo do processo de trabalho foi possível estabelecer atribuições para os GAR em conformidade com a Resolução “P” 1.507: • Elaboração do diagnóstico situacional, obtidos a partir da análise e consolidação dos dados obtidos da ficha de notificação individual, violência interpessoal/autoprovocada (Sinan) e outras fontes; • Elaboração de um Plano de Ação para prevenção e atenção às pessoas em situação de violência; • Desenvolvimento de ações para a qualificação e articulação da rede de atenção às pessoas em situação de violência; • Desenvolvimento e/ou apoio as ações de promoção da saúde, prevenção da violência e estímulo à cultura de paz; • Apoio no desenvolvimento de estratégias de mediação de conflitos com ênfase aos segmentos populacionais mais vulneráveis; • Promoção e/ou participação nas redes sociais, fóruns e ações intersetoriais que contribuam para a promoção da solidariedade e da saúde e prevenção das violências; • Apoio e/ou desenvolvimento de práticas voltadas à educação permanente dos profissionais sobre a violência e a interlocução com outros temas; Para que uma articulação em rede se fortaleça, é essencial que os distintos atores das organizações envolvidas se integrem não somente para trocar experiências, mas principalmente para enfrentar problemas concretos e comuns, cuja solução não está ao alcance de um isoladamente. Nesse sentido, é desejável que cada GAR promova a integração com as redes de saúde mental, assistência social, educação, sistemas de justiça, Ministério Público, Defensoria Pública, Va-

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ras da Infância e Juventude, Conselhos Tutelares e conselhos de direitos, segurança pública e a sociedade civil (grupos formais e informais, lideranças jovens, etc.) em cada área para fortalecer e/ou implementar a rede de cuidado e de proteção social9. A intersetorialidade é essencial para a promoção da saúde e a prevenção das violências. Com o passar dos anos os GAR foram estruturando suas atividades na gestão da linha de cuidado às pessoas em situação de violência em cada AP. Atualmente, as áreas técnicas do nível central do NPSPV se reúnem com os 10 GAR, a cada dois meses. O trabalho conduzido pelos GAR evidencia a necessidade demanutenção dos vínculos do (a) usuário (a) com a unidade e da garantia do acompanhamento longitudinal,aí incluídas as parcerias com a rede intra e intersetorial. A descentralização do Sistema de Vigilância em Saúde (SVS) permitiu, ainda, a otimização do tempo entre notificação e acompanhamento. O trabalho coletivo desenvolvido entre o Núcleo e os GAR procura ser orientado pela educação permanente, que busca uma qualificaçãocontínua das informações, do acolhimento e das tecnologias de cuidado às vítimas de violência, sobretudo a sexual. Algumas considerações A violência é um tema complexo, que desafia nossos saberes. Para que uma articulação em rede se fortaleça, é essencial que os distintos atores das organizações envolvidas se integrem não somente para trocar experiências, mas principalmente para enfrentar problemas concretos e comuns, cuja solução não está ao alcance de um isoladamente. Nestes 20 anos de história, ocorreram muitas transformações fruto de esforços de muitos profissionais, comprometidos com o enfrentamento dessa problemática, que buscaram qualificação em cursos de aperfeiçoamento profissional, especialização,

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mestrado e doutorado. Todo esse investimento por parte dos profissionais e gestores sensibilizadosjá mostra resultados positivos como o amadurecimento sobre o papel dos profissionais e do setor saúde frente à violência, além do crescente envolvimento de diferentes instâncias da SMS/RJ e parcerias intersetoriais. Nesse sentido o trabalho de qualificação permanente da rede de saúde e outros parceiros tem resultado na ampliação das notificações; definição de fluxos para o atendimento das pessoas em situação de violência; fortalecimento do GAR e das ações desenvolvidas em cada território, elaboração de materiais educativos, entre outros. Os desafios, no entanto, ainda são enormes. Ainda temos muito trabalho pela frente, sob novos cenários, mas cientes que temos hoje cada vez mais profissionais envolvidos e mais iniciativas para o aprimoramento da linha de cuidado às pessoas em situação de violência, contemplando a prevenção das violências e promoção da cultura da paz. Referência Bibliográfica 1. Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. 132p. 2. Brasil. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por acidentes e violências: Portaria MS/GM n.º 737 de 16/5/01, publicada no DOU n.º 96 seção 1E de 18/5/01. Ministério da Saúde, 2005. 3.Pinheiro, R; Mattos, R (org.). Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS: ABRASCO, 2003. 4. Brasil. Portaria MS/GM nº 936, de 19 de maio de 2004. Dispõe sobre a estruturação da Rede Nacional de Prevenção da Violên-

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cia e Promoção da Saúde e a Implantação e Implementação de Núcleos de Prevenção à Violência em Estados e Municípios. 5. Brasil. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. Ministério da Saúde, 2013. 6. Brasil. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Ministério da Saúde, 2013. 7. Brasil. Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. 8. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.271, de 06 de junho de 2014. Define a Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências. A mesma foi atualizada pela Portaria 204, de 17 de fevereiro de 2016. 9. Brasil. Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde. Ministério da Saúde, 2014.

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2.6. Contribuições do modelo de parto e nascimento para uma sociedade mais pacífica “Para mudar o mundo é preciso mudar a forma de nascer” Michel Odent Carla Brasil1 Cristina Boaretto2 Denise Jardim3 Diana Valladares4 Superintendente de Hospitais Pediátricos e Maternidades da SMS; Superintendente de Promoção de Saúde da SMS; 3 Assessora da Superintendência de Promoção de Saúde da SMS; 4 Assessora da Subsecretaria de Urgências e Emergências da SMS. 1 2

A violência contra a mulher constitui um grave problema de saúde pública e de violação sistemática de seus direitos humanos, que mostra de forma dramática os efeitos da discriminação e subordinação da mulher por razões de gênero na sociedade. O Brasil possui altos índices de morbimortalidade materna e neonatal, sendo que as causas de mortalidade materna mais frequentes são aquelas consideradas evitáveis, como hipertensão, hemorragia, infecção e complicações de aborto. As principais causas de mortalidade neonatal igualmente são aquelas consideradas reduzíveis e evitáveis, como falhas na atenção adequada à mulher durante a gestação e parto, bem como ao recém-nascido. O parto e o nascimento de um filho são eventos marcantes na vida de uma mulher. Infelizmente muitas vezes são relembrados como uma experiência traumática na qual a mulher se sentiu agredida, desrespeitada e violentada por aqueles que deveriam estar lhe prestando assistência. A dor do parto, no Brasil, muitas vezes é relatada como a dor da solidão, da humilhação e da agressão, com práticas institucionais

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e dos profissionais de saúde que criam ou reforçam sentimentos de incapacidade, inadequação e impotência da mulher e de seu corpo. O debate sobre o modo de nascer no Brasil diz respeito a toda a sociedade e afeta também a conformação dos serviços e do trabalho dos profissionais de saúde. A mulher deve ser a protagonista de sua história e, assim, deve ter poder de decisão sobre seu corpo, liberdade para dar à luz e acesso a uma assistência à saúde adequada, segura, qualificada, respeitosa, humanizada e baseada em evidências científicas. Para tanto, no pré-natal, no parto e no pós-parto, a mulher precisa ter apoio de profissionais e serviços de saúde capacitados que, acima de tudo, estejam comprometidos com a fisiologia do nascimento e respeitem a gestação, o parto e a amamentação como processos sociais e fisiológicos. Na década de 80, surgem os movimentos sociais pela humanização da assistência ao parto e ao bebê, que reivindicam a qualidade na assistência e o direito ao parto respeitoso. Organizações como a REHUNA, Amigas do Peito, entre outras, ajudam a impulsionar as políticas públicas de promoção do parto normal, com a implementação da assistência baseada no protagonismo e autonomia da mulher, na segurança, nas evidências científicas e nos direitos humanos. Neste contexto a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro vem investindo, nas últimas duas décadas, na mudança do modelo e na qualificação da assistência ao parto e nascimento. Foram realizadas reformas estruturais nas maternidades municipais, inúmeras maternidades privadas de baixa qualidade foram descredenciadas e em 1995 foi inaugurada a Maternidade Leila Diniz. Os processos de trabalho foram reorientados com a inclusão do profissional enfermeiro obstetra na assistência aos partos de baixo risco e estímulo ao contato imediato mãe-bebê com o início da amamentação ainda na sala de parto. A presença de acompanhante no trabalho de parto e parto foi garantida em todas as maternidades municipais, inclusive com a publicação de uma Resolução específica sobre esse direito.

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O Ministério da Saúde por sua vez implementa uma série de iniciativas para a sustentação normativa das transformações necessária. Em 2000 lança o Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento, em 2005 promulga a Lei nº 11.108, que garante às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS e em 2011 lança a “Rede Cegonha” com preconização de normas de adequação das estruturas dos estabelecimentos e dos processos de trabalho. A partir de 2009 inicia-se na rede municipal de saúde uma grande expansão e reorientação da atenção primária com a implantação das Clínicas da Família, sendo o atendimento pré-natal ampliado sobremaneira. Nesta linha de cuidado, materno e infantil, poderíamos sem dúvida afirmar que os atributos da atenção primária, quais sejam, acesso aos serviços, longitudinalidade, integralidade e coordenação do cuidado, foram mais e melhor incorporados na prática da atenção em saúde no âmbito municipal. Programa Cegonha Carioca Destaque para o Programa Cegonha Carioca que vem consolidando essa política de qualificação da assistência tendo como objetivo garantir atenção integral a todas as gestantes usuárias do SUS na Cidade do Rio de Janeiro garantindo para todas elas a tranquilidade, o apoio e a boa prática clínica. Implantado em 2010 o Programa Cegonha Carioca tem suas ações desenvolvidas no âmbito de três Módulos: 1 – Assistência pré-natal realizada nas unidades básicas de saúde, centros de saúde, clínicas da família ou, nos casos de gestantes de risco, nos serviços de pré-natal das maternidades públicas (municipais, federais e universitárias). Neste momento, a gestante recebe o “Cartão da Gestante” com o “Passaporte Cegonha” no qual está registrado sua maternidade de referência, onde há espaço específico para o agendamento da Visita Cegonha no 3º trimestre da gestação e o número do “tele atendimento Cegonha” para solicitação da Ambulância no momento do parto. Na “Visita Cegonha” a gestante é estimulada a levar

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um(a) acompanhante de sua escolha. Nesse momento, além de conhecer as instalações, a gestante conversa com os(as) profissionais de saúde, esclarece dúvidas e recebe orientações. Ao final da visita, ela recebe uma bolsa com um enxoval completo para o bebê que, para a Prefeitura, simboliza a celebração pela chegada dos(as) novos(as) “carioquinhas”. 2 – Acolhimento e Classificação de Risco realizado nas maternidades por equipe exclusiva para esse atendimento inicial, composta por enfermeiro(a) obstetra, enfermeiro(a) generalista e técnico(a) de enfermagem. Esta equipe faz uma escuta qualificada com base na queixa de cada gestante. Baseada em protocolos e recomendações do Ministério da Saúde, são definidas as prioridades no atendimento que garantam a qualidade e a segurança do mesmo. Tão importante quanto a classificação de risco é a ação de acolhimento que que a equipe promove. 3 – No Módulo Transporte no momento do trabalho de parto, toda gestante cadastrada no Programa tem a garantia de uma ambulância para transportá-la de sua residência para a maternidade de referência. A solicitação da “Ambulância Cegonha” é feita por telefone, através de um número específico para tal. Os principais benefícios do Programa são maior segurança e tranquilidade para a gestante e sua família, desde o atendimento pré-natal, quando a gestante recebe o Cartão da Gestante com o Passaporte Cegonha no qual está registrado sua maternidade de referência; a possibilidade de visitar essa maternidade e estar mais informada e preparada para o momento do parto e de poder levar um acompanhante de sua escolha nessa visita; o atendimento baseado em protocolos de acolhimento e classificação de risco, garantindo atendimento oportuno, seguro e adequado; garantia de transporte da residência para a maternidade de referência no momento do trabalho de parto na ambulância Cegonha, 24 horas por dia (solicitação realizada via telefone – tele atendimento Cegonha). Estas ações estão integradas a um conjunto de outras estratégias permanentes nas maternidades para a redução da mortalidade materna e neonatal.

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Analisando o ano de 2015, os resultados foram que 40.662 gestantes visitaram sua maternidade de referência (68% das gestantes que utilizaram o SUS na Cidade). Foram realizados 117.663 atendimentos com acolhimento e classificação de risco nas emergências obstétricas das seis maternidades municipais, e 18.811 gestantes utilizaram a ambulância Cegonha no momento do parto. O Programa obteve, em 2016, um índice de 91% de satisfação das usuárias (Informações da Ouvidoria Geral da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro - 1746). Os resultados apontam que o Programa, desde sua implantação, vem demonstrando a importância do SUS garantir uma linha de cuidado consistente e articulada entre os vários níveis de assistência, para as gestantes e seus bebês. E que essa boa experiência da Secretaria Municipal de Saúde vem contribuindo para reverter práticas inadequadas hoje reconhecidas como violência obstétrica e para que aconteça uma mudança cultural que garanta o bem-estar, a segurança de boas práticas e os direitos da mulher e da criança no momento do parto e nascimento. É o desejo que um bom começo se estenda pela vida.

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2.7.Tentativa de suicídio: um agravo crescente na AP 5.2 Aline Almeida da Silva Beti Jeane de Oliveira Brisse Rangel Bruna Assad Nakano Cleusa Barbosa de Lima Juliana Seabra Fontoura

RESUMO O presente artigo é resultado da inquietação do Grupo Articulador Regional da Área Programática de Saúde 5.2, frente ao incremento das tentativas de suicídio em sua área de abrangência nos últimos anos. As tentativas de suicídio surgem no cenário mundial como um grave problema de saúde pública em função da complexidade de problemas delas resultantes, tais como os de natureza emocional, econômica e social. Buscou-se dar visibilidade à temática, objetivando chamar atenção para esta problemática. Utilizou-se a base de dados extraída a partir das fichas de notificação de violência interpessoal/autoprovocada, através da análise das variáveis sexo, faixa etária, meio de agressão, unidade notificante e lesão autoprovocada, ocorridas noperíodo de 2009 a 2015 entre os residentes da AP 5.2. Foi possível identificar o incremento das tentativas nesse período, com predominância no sexo feminino e na faixa etária adulta jovem. O principal meio utilizado foi o envenenamento, com destaque para substâncias medicamentosas controladas. Foi possível também perceber que muitas das vítimas já haviam tentado o suicídio antes (69%), evidenciando a necessidade de acolhimento oportuno das equi-

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pes de atenção primária e acionamento e integração dos diversos setores envolvidos na rede de apoio. Palavras-chaves: tentativa de suicídio, integralidade em saúde, saúde pública. Abstract This article is the outcome of the Local Articulation Group (GAR) from AP 52 Health District concerned about the increaseament of suicide attempt in the last years. Suicide attempts rises in the world as a serious public health problem due the complexity of the problems resulting therefrom, such as the emotional, economic and social nature.It tried to give visibility to the theme. GAR used the database extracted from the reporting forms of interpersonal / self-harm violence, through the analysis of gender, age, means of aggression, notifying unit and self-harm, which occurred from 2009 to 2015 among residents AP 5.2.It was possible to identify the attempts increasing in this period, especially in females and in the young adult age group. Poisoning was the more used self-harmed violence, mainly controlled drug substances. It could also realize that many of that victims had already attempted suicide before (69%), highlighting the need of quickly primary care. It also points to the urgency of intersectoral health actions in network support. Key-Words: Suicide Attempted,Integrality in Health, Public Health

Introdução As violências figuram no cenário mundial como um grave problema de saúde pública. A violência está relacionada a questões de natureza social, política, cultural e atinge diretamente o direito à liberdade e ao res-

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peito tanto na esfera individual quanto na social, perpassando a dimensão emocional e relacional e refletindo-se nas organizações sociais, trabalhistas, econômicas e culturais. Segundo Minayo¹( 2011, p. 42):

(...) entende-se que a violência, pela sua natureza complexa, envolve as pessoas na sua totalidade biopsíquica e social, de forma dinâmica. Porém o locusde sua realização é o contexto histórico-social, onde as particularidades biológicas encontram nas idiossincrasias de cada um e se redefinem nas condições emocionais e sócio-culturais. (...). Tem consistência a idéia de multicausalidade da violência, com ênfase no imbricamento dos fatores históricos, contextuais, estruturais, culturais, conjunturais, interpessoais, mentais e biológicos. Considera-se que sempre existirão elementos gerais e especificidades nas formas de apresentação e de reprodução desse fenômeno.

O aumento de casos de tentativas de suicídio na Área de Planejamento 5.2 (AP) trouxe à tona a necessidade de dar maior visibilidade às mesmas, pois se trata de um agravo à saúde que causa grande impacto não apenas na vida da vítima, quanto de toda a família. No que diz respeito às lesões autoprovocadas, conforme descrito por Kaplan e Sadok²( 2002), o suicídio compreende a tentativa ou a resolução de uma situação que está causando imenso sofrimento associado a fatores como: angústia, tristeza, desesperança e estreitamento das alternativas, ou seja, entende que o fim da vida seria a resolutividade para todos os seus problemas. Segundo Krug³(2002), o suicídio constitui-se no ato humano de tirar a própria vida. A tentativa de suicídio diz respeito ao ato de buscar a própria morte, sem que a intenção se consuma. Dentre as formas de violências autoprovocadas, as mais notificadas da AP 5.2 são as tentativas de suicídio e as automutilações, estas sem a intenção de cessar a vida. Monteiro4 (2014) afirma que a autoagressão compreende atos de

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mutilação, englobando formas leves, como arranhaduras, cortes, mordidas e casos graves como mutilações. No presente artigo, não serão analisadas esses tipos de agressões. Serão abordadas as tentativas de suicídio, ocorridas entre os residentes da AP 5.2, que se configura num agravo silencioso, que vem ganhando destaque por sua curva crescente. Compreende-se que as tentativas de suicídio se configuram como agravo de difícil abordagem junto ao usuário e aos profissionais do sistema de saúde em função da complexidade da temática e dos múltiplos fatores relacionados, como os tabus, questões emocionais, religiosas, políticas, econômicas e sociais. As tentativas de suicídio se configuram como problema de saúde pública, em especial ao se atentar a observação de Vidal (2013) informando que para cada caso de suicídio há a estimativa de pelo menos dez tentativas prévias, o suficiente para requerer cuidados médicos e um olhar acurado da saúde pública. Estima-se que as tentativas de suicídio sejam até quarenta vezes mais frequentes do que os suicídios consumados. Para cada tentativa documentada, existem outras quatro que não são documentadas5. Este fato aponta para a necessidade de direcionamento do olhar detalhado e individualizado da saúde para estes indivíduos, buscando minimizar os impactos da tentativa em suas vidas e promovendo fortalecimento para evitar novas tentativas. Do ponto de vista da estruturação do sistema de informação, o Ministério de Saúde, a partir de 2006, adotou a estratégia de unidades sentinelas para a vigilância das violências e em 2009 a ficha de notificação foi incorporada no Sistema Nacional de Agravos de Notificação SINAN. Na primeira metade de 2011, a portaria Nº 104 de 25 de Janeiro de 2011 inclui as violências na lista de agravos de notificação compulsória, sendo considerado um marco na universalização da notificação compulsória em todo o território nacional. Reconhece-se que a partir desse

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fato houve maior sensibilização dos profissionais para o agravo, mas foi somente a partir de 2012 que observou-se um incremento destas notificações na A.P 5.2. Em junho de 2014 houve uma nova publicação ( Portaria Nº 1271) definindo a violência sexual e autoprovocada de notificação imediata, ou seja, até 24 horas, possibilitando resposta rápida para otimização das intervenções no âmbito do território local. Atualmente, a portaria em vigor é a 204 de 17 de Fevereiro de 2016. O Grupo Articulador Regional (GAR) da Área Programática 5.2 faz parte do Núcleo Municipal de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências (NPSPV) instituído pela Resolução p” SMSDC nº 1.507 de 20 de outubro de 2009, composto pela Divisão de Vigilância em Saúde e Divisão de Apoio aos Programas de Saúde, tem como objetivos promover suporte às equipes de saúde da família, urgência, emergência e as unidades privadas, no tocante a qualificação do viés clínico e epidemiológico das violências; sensibilização dos profissionais do território para a identificação e acolhimento dos casos; monitoramento junto aos profissionais de saúde; ações intersetoriais da prevenção das violências. O GAR 5.2 identificou como grande desafio a elaboração das intervenções locais que previnam novas tentativas de suicídio. Para subsidiar estas ações, o presente artigo tem como objetivo principal apresentar o perfil das tentativas de suicídio como importante problema de saúde pública em crescimento na área 5.2. Metodologia Para a construção deste artigo, foi analisada a base de dados do SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) alimentado com as fichas de notificação de violência interpessoal/ autoprovocada dos residentes da AP 5.2, no período compreendido entre 2009 e 2015. Buscou-se analisar a magnitude deste agravo na área, bem como descrever as variáveis: meios de

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agressão, faixa etária, sexo e unidades notificantes por meio de números absolutos e proporcionais. O ano de 2009 foi excluído da análise, uma vez que não apresentou registros de tentativas de suicídio entre os residentes da AP 5.2. Utilizou-se como ferramentas para a análise da base o programa Tabwin 32 Versão 3.6 beta. As variáveis avaliadas foram originárias do campo 54 ( A lesão foi autoprovocada” com seleção da opção 1-sim ) , campo 56 ( “tipo de violência” com seleção da opção outros: 1-sim com registro do termo tentativa de suicídio) e campo 61( vínculo/grau de parentesco com a pessoa atendida com seleção da opção 1-sim própria pessoa) da Ficha de notificação da violência interpessoal e autoprovocada versão 5.1 do SINAN. Análise e discussão dos dados A área programática em saúde 5.2 (AP) está localizada na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, dividida em duas Regiões Administrativas (RA): a 18ª RA que compreende os bairros de Campo Grande, Vasconcelos, Santíssimo, Inhoaiba e Cosmos. Possui características urbanas, com crescimento desordenado da população, problemas de trânsito, acidentes, entre outros. A 26ª RA, que compreende os bairros de Guaratiba, Pedra de Guaratiba e Barra de Guaratiba, conservam características rurais, com grandes sítios, plantações e criação de animais. Esta RA, está também sujeita a alagamentos e outros problemas de saúde ligados à vigilância ambiental. Os equipamentos de saúde existentes na AP compreendem: 34 Unidades de Atenção Primárias a Saúde UAPS; 2 Centro de Atenção Psicossocial CAPS (18ª RA); 1 Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil CAPSI (18ª RA); 2 Unidades de Pronto Atendimento 24h Estaduais (18ª RA); 1 Hospital Municipal (18ª RA). A população estimada a partir do Censo de 2010 para o ano de 2015 é de 700.835 habitantes, distribuídos em 305 Km2.

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Devido a grande extensão territorial da AP e malha viária complexa, encontramos alguns problemas no tocante a evasão de usuários pertencentes ao território da 5.2 para as AP vizinhas, no caso 5.1 (Bangu e adjacências) e 5.3. (Santa Cruz e Adjacências). Dentro deste cenário, é importante ressaltar que a AP 5.2 não dispõe de 100% de cobertura de Estratégia de Saúde da Família (ESF) e, embora o território da 26ª RA tenha mais que 80% do território coberto por ESF, não há equipamento de urgência e emergência, provocando o deslocamento dos usuários para a AP 5.3 e até mesmo para a AP 4.0 (Recreio, Barra e adjacências). Esta constatação é perfeitamente possível quando avaliamos as principais unidades notificantes das violências (interpessoal/autoprovocada) dos residentes da AP 5.2 e identificamos uma Unidade de Pronto Atendimento 24h, UPA Sepetiba, da AP 5.3 como a segunda unidade que mais notifica violências dos residentes da AP 5.2, nos anos supracitados, num total de 317 casos, ficando atrás apenas do Hospital Municipal Rocha Faria com 876 casos. Importante ressaltar que esta informação se refere a todos os tipos de violências interpessoal/autoprovocada). Avaliando-se a base de dados de violência, disponibilizada no dia 19/09/2016, observa-se um total de notificações crescentes na AP, como é descrito a seguir: • Ano de 2009: Apenas 1 caso; não houve caso notificado no SINAN de violência autoprovocada em residente da AP 5.2; • Ano de 2010: 88 casos de violências sendo 4 de autoprovocada, representando 4.5% do total de notificações; • Ano de 2011: 199 casos de violências sendo 6 de autoprovocada, representando 3% do total de notificações; • Ano de 2012: 330 casos de Violências sendo 37 de autoprovocada, representando11% do total de notificações; • Ano de 2013:400 casos de Violências sendo 33 de autoprovocada, representando8.2% do total de notificações; • Ano de 2014: 616 casos de Violências sendo 36 de autoprovo-

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cada, representando 5.8% do total de notificações; • Ano de 2015: 950 casos de Violências sendo 99 de autoprovocada, representando 9.4% do total de notificações; • Total no Período ano 2009 ano 2015 : 2584 casos de Violências sendo 205 de autoprovocada. representando 7.9% do total de notificações; A partir dos dados supracitados, é possível perceber um aumento em números absolutos das notificações de violências como um todo e também da violência autoprovocada, em número absolutos e proporcionais, principalmente a partir do ano de 2014, o que evidencia o impacto positivo no incremento de treinamentos/sensibilizações feitas pelo GAR 5.2 com a implantação da notificação imediata das tentativas de suicídio ( Portaria 1271, jun/14) . Entende-se que existam subnotificações, devido aos diversos problemas existentes na rotina de um serviço, desde a informação do próprio paciente, perpassando pelas questões profissionais. A distribuição de faixa etária evidenciou com concentração mais expressiva entre os adultos jovens, dos 20 aos 39 anos de idade, em todos os anos avaliados.

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Grafico 1 - Fonte SINANNET Pactch 5.1 / Tabwin 32 versão 3.6 Beta


No que diz respeito ao sexo observou-se um número mais elevado de tentativas de suicídio entre as mulheres em todos os anos avaliados, exceto em 2010. A vulnerabilidade existente no sexo feminino apresenta-se maior, no entanto, é importante ressaltar as dificuldades da busca por serviços de saúde por parte dos homens, por motivos diversos, inclusive culturais. Uma das hipóteses pensadas pelo Grupo também, é a possibilidade de ocultação da informação para o profissional de saúde, gerando subregistro deste agravo.

Grafico 2 - Fonte SINANNET Pactch 5.1 / Tabwin 32 versão 3.6 Beta

Entre os residentes da AP, observa-se que o principal meio utilizado nas tentativas de suicídio é o envenenamento. Analisando a variável “Envenenamento” através da rotina de trabalho, é possível afirmar que em torno de 80% dos casos, a substância mais utilizada são os medicamentos. Esse fato chama a atenção para o uso abusivo e sem critérios de medicamentos controlados, o que pode indicar também a medicalização da assistência. Os dados apresentados chamam atenção do GAR 5.2, no tocante ao aumento do número de casos que, por um lado reflete o impacto do incremento em treinamentos, reuniões, sensibilizações para os profissionais deste território, independente do nível de atenção ou perfil de acesso. Por outro lado, é possível acompa-

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nhar a evolução desta problemática, que fica evidente no gráfico nº 3 apresentando os meios de agressão nas tentativas de suicídio. Ao longo dos anos, variadas formas foram inseridas. O meio mais frequente, que se apresenta em todos os anos analisados, é o envenenamento, que evidencia incremento em 2015. Esse fato sugere a necessidade de que se debruce sobre esta problemática a fim de levantar os determinantes e condicionantes da medicalização excessiva no cuidado ao indivíduo.

Grafico 3 - Fonte SINANNET Pactch 5.1 / Tabwin 32 versão 3.6 Beta

Outra importante observação diz respeito ao campo 53 na ficha de Violência Interpessoal/Autoprovocada, que informa se a violência Ocorreu outras Vezes. Diante disso, foi possível observar um crescimento, em especial no ano de 2015. No gráfico nº 4, que traz a variável Ocorreu outras vezes, observa-se o acréscimo desta situação em que indivíduos chegam aos equipamentos de saúde, tendo referido tentativa de suicídio ao menos uma vez previamente, chegando a atingir 69% em 2015. Tal fato evidencia a necessidade de maior vigilância para estes eventos, buscando evitar tentativas futuras.

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Vale destacar que a falta de informação na base de dados, dificulta a análise. Neste contexto, em torno de 54% das informações sobre ocorreu outras vezes estavam IGNORADO/ EM BRANCO. Face a isto é possível depreender que existe a necessidade de intensificar esforços para a garantia da qualificação das informações nas fichas de notificação e posteriormente o banco de dados. O profissional que realiza o atendimento deste paciente, precisa estar sensível para o acolhimento e anamnese.

Grafico 4 - Fonte SINANNET Pactch 5.1 / Tabwin 32 versão 3.6 Beta

Considerações Finais A Política Nacional de Atenção Básica introduziu conceitos de fortalecimento e ordenação das Redes de Atenção. Ela deve ser acolhedora, resolutiva, e ordenadora na gestão e coordenação do cuidado do usuário. A atenção básica caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde

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visandodesenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas, bem como nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades. Sendo ela a principal porta de entrada e de comunicação da Rede de Atenção com o usuário, tendo como princípios universalidade, acessibilidade, vínculo, continuidade do cuidado, integralidade da atenção, responsabilização, humanização, ela tem papel fundamental na prevenção das tentativas de suicídio. Diante desse cenário, é imperiosa a necessidade de educação permanente dos profissionais não apenas da atenção primária. As tentativas de suicídio na AP 5.2 vem aumentando consideravelmente, o que nos chama atenção para diversos aspectos como a fragilidade da rede de apoio de Saúde Mental, a mudança de perfil social e econômico da população, dentre outros. Essas violências podem gerar impactos importantes na vida do indivíduo e sua família, como sequelas permanentes, dificuldades de reinserção no meio social e laboral. Entende-se que ainda existam subnotificações desses casos, por motivos diversos, tais como a rotatividade de profissionais, a dificuldade na compreensão acerca dos fluxos e processos de trabalho que envolvem a captação do caso até a alta para uma referência. O desconhecimento do aspecto epidemiológico, a dificuldade do profissional de saúde em lidar com o paciente, vítima de tentativa de suicídio, bem como a banalização da temática, assim como a dificuldade da vítima em falar sobre o acontecido são outros fatores dificultadores para as notificações desse agravo. Ainda que o GAR 5.2 identifique o desafio de realizar maior sensibilização dos profissionais de saúde, com vistas à redução das subnotificações, é possível notar o impacto positivo dos incrementos em sensibilizações já realizados a partir do segundo semestre de 2014. O desafio se torna mais complexo quando se percebe necessária a atuação de forma intersetorial. Neste contexto, a presença

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do Núcleo de Apoio a Saúde da Família - NASF, se faz imprescindível no território, bem como o fortalecimento de toda a rede de apoio como CRAS, CREAS, CRE, Conselho Tutelar, entre outros. No âmbito da ESF, estimula-se a discussão dos casos pela equipe, visando um diagnóstico territorial acerca da problemática e pensando estratégias para intervenções possíveis e eficazes, multidisciplinares, individuais e coletivas. Recomendações Dada a complexidade do tema, foi possível perceber a necessidade de aprimoramento do acolhimento, escuta e fortalecimento de vínculo com os usuários de saúde, tanto no âmbito da atenção primária, como nas unidades de emergência e urgência objetivando qualificar o atendimento e acompanhamento do usuário e de seus familiares. Faz-se mister um maior estreitamento entre os níveis de complexidade de atenção à saúde, buscando otimizar a acolhida deste usuário no território de saúde em tempo oportuno. Evidencia-se também a imperiosidade de estreitamento entre os diversos atores/setores envolvidos na atenção ao paciente, visando a garantia do cuidado integral. Em relação aos profissionais dos equipamentos de Saúde fica evidente a necessidade de maior sensibilização para a temática da tentativa de suicídio. O desenvolvimento da empatia do profissional de saúde com as vítimas, de forma a percebê-las como pacientes necessitados de cuidados e compartilhamento com toda a rede de apoio. Bem como a reflexão sobre a medicalização excessiva entre esses pacientes. Evidencia-se também a imperiosidade de estreitamento entre os diversos atores/setores envolvidos no cuidado ao paciente, visando a garantia do cuidado integral. Para o Sistema de Informação, recomenda-se maior rigor na qualificação da informação, principalmente no tocante às infor-

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mações relativas a endereço, uso da lista de bairros em todos os casos digitados no SINANNET, visando diminuir as diferenças entre o banco de dados e as tabulações feitas em Tabwin e Epiinfo com vistas a facilitar o acesso à informação com fidedignidade. Também é recomendado maior investimento na qualificação do registro da violência autoprovocada em todas as AP, com intuito de distinguir facilmente os casos de automutilação e as tentativas de suicídio, tendo em vista a versão atual da ficha do MS que não dispõe de um campo específico para a diferenciação das tipologias das violências autoprovocadas, ou mesmo uma mudança no instrumento de coleta de dados que permita inserção de maneira mais distinta dessas violências. Referências 1. Minayo, MCS et al. Violência sob o olhar da saúde: infrapolítica da contemporaneidade brasileira. 2ª ed.Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011. 2. Kaplan HI, Sadock B, grebb J. Compêndio de Psiquiatria: ciências de comportamento e psiquiatria clínica. 7.ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002. 3. Monteiro RA, Bahia CA, Paiva EA, Sá NNB, Minayo MCS. Hospitalizações relacionadas a lesões autoprovocadas intencionalmente - Brasil, 2002 a 2013. Ciênc.saúdecoletiva. 2015 Mar. 20 (3): 689 - 699. 4. Krug EG et al., eds. World report on violence and health. Geneva, World Health Organization, 2002. 5. Vidal, ECL, Gontijo, ECDM, Lima, LA. Tentativas de Suicídio: fatores prognósticos e estimativa do excesso de mortalidade. Cad. Saúde Pública. 2013 Jan.29(1): 175-187. 6. Ministério da Saúde. Portaria nº 104, de 25 de Janeiro 2011.

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Define as doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional e estabelece fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde. Diário Oficial da União de 25 de Janeiro 2011. 7. Ministério da Saúde. Portaria nº 1271, de 06 de Junho de 2014. Define a lista de Nacional de Notificação Compulsório de doenças, agravos e eventos de saúde públicos e privados em todo o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências. Diario Oficial da União 6Jun 2014. 8. Ministério da Saúde. Portaria nº 204, de 17 de Fevereiro de 2016. Define a lista de Nacional de Notificação Compulsório de doenças, agravos e eventos de saúde públicos e privados em todo o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências. Diario Oficial da União 17Fevereiro 2016. Referências consultadas

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Fora de Ordem Caetano Veloso Vapor barato Um mero serviçal Do narcotráfico Foi encontrado na ruína De uma escola em construção... Aqui tudo parece Que era ainda construção E já é ruína Tudo é menino, menina No olho da rua O asfalto, a ponte, o viaduto Ganindo prá lua Nada continua... E o cano da pistola Que as crianças mordem Reflete todas as cores Da paisagem da cidade Que é muito mais bonita E muito mais intensa Do que no cartão postal... Alguma coisa Está fora da ordem Fora da nova ordem Mundial...(4x) Escuras coxas duras Tuas duas de acrobata mulata Tua batata da perna moderna A trupe intrépida em que fluis... Te encontro em Sampa De onde mal se vê Quem sobe ou desce a rampa Alguma coisa em nossa transa É quase luz forte demais Parece pôr tudo à prova

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Parece fogo, parece Parece paz, parece paz... Pletora de alegria Um show de Jorge Benjor Dentro de nós É muito, é grande É total... Alguma coisa Está fora da ordem Fora da nova ordem Mundial...(4x) Meu canto esconde-se Como um bando de Ianomâmis Na floresta Na minha testa caem Vem colocar-se plumas De um velho cocar... Estou de pé em cima Do monte de imundo Lixo baiano Cuspo chicletes do ódio No esgoto exposto do Leblon Mas retribuo a piscadela Do garoto de frete Do Trianon Eu sei o que é bom... Eu não espero pelo dia Em que todos Os homens concordem Apenas sei de diversas Harmonias bonitas Possíveis sem juízo final... Alguma coisa Está fora da ordem Fora da nova ordem Mundial... (várias vezes)


3. Reflexões sobre a violência Os artigos a seguir estão originalmente publicados na Revista Saúde em Foco online.

3.1. A experiência do Grupo Articulador Regional da Área Programática 2.1: sensibilização de profissionais de saúde para atuação nos casos de violência doméstica no território de abrangência The experience of the Regional Articulator Group Programmatic Area 2.1: health professional awareness action in cases of domestic violence in the territory covered Camila Coelho Marques1 Djalma Pedro da Silva Filho2 Emanuely Santos de Carvalho3 Laís Martins Costa Araujo4 Marcelle Nolasco Gomes Rodrigues5 Roberta Lemos Gadelha da Silva6 Simone de Souza Pires7 Resumo O presente relato apresenta o trabalho de sensibilização sobre violência doméstica realizado pelo Grupo Articulador Regional, ao longo do ano de 2015, nas unidades de atenção primária da AP 2.1, no

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município do Rio de Janeiro. As oficinas de sensibilização tiveram o objetivo de instrumentalizar os profissionais de saúde na identificação, abordagem e desdobramento dos casos de violência doméstica dos residentes do território de abrangência. Foram realizadas doze oficinas, com a participação de duzentos e dez profissionais de saúde. Durante as oficinas ficou evidente como o tema “violência” atravessa o cotidiano e mobiliza os profissionais de saúde, no entanto ainda são encontradas dificuldades para identificação, notificação, bem como condução dos casos de violência doméstica. Palavras-chave: Violência doméstica; saúde pública; vigilância em saúde Abstract This report presents the awareness work on domestic violence conducted by the PA 2.1 Regional Articulator Group, throughout the year 2015, primary care of the PA 2.1, in the city of Rio de Janeiro. The awareness workshops were intended to enable health professionals to identify, approach and in the deployment of cases of domestic violence of the residents of territory covered. Twelve workshops were held, with the participation of two hundred and ten health professionals. During the workshops, it became clear as the theme violence goes through everyday life and mobilizes health professionals, some difficulties in identification, reporting and management of cases of domestic violence are still found though. Keywords: Domestic violence; public health; health surveillance ¹Especialista em Saúde da Família. E-mail: camilacoelhoas@gmail.com.DAPS. CAP 2.1. SMSRIO. ²Especialista em Vigilância em Saúde Ambiental. E-mail: djalmapedropsi@yahoo.com.br.DVS. CAP 2.1. SMSRIO. ³Especialista em Gestão da Atenção Básica. E-mail:emanuelycap21@gmail.com.DAPS.CAP2.1.SMSRIO. 4 Especialista em Serviço Social e Saúde. E-mail:lais_mca@hotmail.com.VivaRio 5 Mestre em Enfermagem. E-mail: marcellengr84@gmail.com.DVS.CAP 2.1.SMSRIO. 6 Especialista em Saúde Pública. E-mail: robertalemosgadelha@gmail.com.DVS. CAP 2.1. SMSRIO. 7 Mestre em Serviço Social. E-mail:simonepiresas@gmail.com.DAPS.CAP3.1.SMSRIO.

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Introdução, histórico e contextualização A violência é um fenômeno global, ocupa constantemente nosso cotidiano e, por mais que possa parecer uma ideia incomoda, está intimamente ligada à condição humana. Tal fenômeno deve ser abordado considerando as especificidades do contexto social e histórico no qual se apresenta, pois possui múltiplas faces e pode se apresentar explicitamente ou por vias sutis (Minayo, 2010). A violência enquanto objeto de atenção do campo da saúde, é recente historicamente. Em 1992, na Conferência de Atenção Primária em Saúde de Santa Fé, a Organização Mundial da Saúde (OMS) adiciona o tema pela primeira vez à sua agenda de prioridades. Posteriormente, durante a Conferência de Jacarta em 1997, a violência passa a ser tratada como um problema de saúde pública pela instituição (Cabral et al,2012). No Brasil a relevância do tema violência em saúde é evidente, considerando que na década de 1990 mais de um milhão de pessoas morreram por violência e acidentes. Dentre essas, o homicídio foi a causa da morte de cerca de 400 mil (Minayo, Souza, 2003). Diante desse cenário, o Ministério da Saúde (MS) lançou a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, através da Portaria MS/GM n.º 737 de 2001, passando a incorporar esse novo agravo ao seu escopo de ações (Brasil, 2005). Cabe ressaltar que a política define propósitos, estabelece diretrizes e atribui responsabilidades institucionais e apresenta, como pressuposto básico, a articulação intrasetorial. Em sequência com a parceria com as secretarias estaduais de saúde é definido também um instrumento de notificação às autoridades competentes, de casos suspeitos e ou confirmados de violência (Portaria MS/GM nº 1.968, de 25 de outubro de 2001) que permite conhecer as dimensões, formas, perfis das pessoas em situação de violências e agentes da violência, possibilitando o planejamento e desenvolvimento de políticas públicas atentas à prevenção e assistência a esses grupos mais susceptíveis.

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Para além do sistema de notificação de violência, o MS em parceria com o poder executivo e legislativo, institui um conjunto de normas legais que versam sobre a obrigatoriedade da notificação em casos de suspeita ou confirmação de violência contra crianças e adolescentes, mulheres e idosos, e pretende ainda estimular a criação de uma rede de serviços sociais que garantam um atendimento integral e qualificado deste usuário, tendo como base a compreensão do usuário em sua totalidade social, estando inserido na complexa rede de relações sociais que interferem no seu processo de saúde-doença. É sabido que os caminhos percorridos para legitimação da questão da violência dentro das práticas em saúde se dão de maneira complexa, sobretudo porque requer um “esforço teórico metodológico e político” que repense a compreensão do que seria a saúde para o próprio setor (Minayo, 2007). Mesmo após a ocorrência de marcos importantes já citados, compreender a questão da violência e suas repercussões para a saúde em nível individual e coletivo, ao ponto de trazer o tema para dentro da agenda do setor e para o cotidiano dos serviços, tem sido um processo árduo e ainda em construção, até mesmo porque o modelo biomédico ainda representa hegemonia ao se pensar ações em saúde (Brasil, 2001; Minayo, 2007). Nesse sentido se faz importante pensar estratégias para superação do paradigma estabelecido. O modelo de atenção primária à saúde vigente define enquanto uma das competências, o desenvolvimento de ações que tenham como objetivo a garantia de espaços voltados para educação permanente dos profissionais de saúde (Brasil, 2011). O quadro desenhado revela a necessidade de qualificar os profissionais para atuarem na prevenção de violências, levando em consideração o território e toda a sua dinâmica, pois historicamente problemas relacionados a esses agravos acabam tornando-se evidentes apenas na atenção terciária (Brasil, 2011).

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É nessa perspectiva, tendo por pressuposto as Políticas Nacionais referidas anteriormente instituídas pelo Ministério da Saúde, a análise a nível municipal e as orientações da Secretaria Municipal de Saúde – RJ, que o GAR desenvolve estratégias e ações que estejam em consonância com o contexto epidemiológico e social das áreas programáticas em que está inserido. O Grupo Articulador Regional – GAR Como estratégia central para fortalecer o acompanhamento das situações de violência ocorridas na cidade do Rio de Janeiro, em consonância com as diretrizes do Ministério da Saúde, em 2009 a Secretaria Municipal de Saúde criou o Núcleo de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências (NPSPV), através da Resolução “p” N°1507. No início de 2010 o NPSPV, estimulou a criação dos Grupos Articuladores Regionais de Violência (GAR) em cada área programática da cidade, que passou a se configurar como estratégia local para implantação de ações efetivas que garantam a qualidade do atendimento aos casos de violência, o fortalecimento das equipes que atuam nas unidades de saúde, a promoção de ações intersetoriais efetivas na prevenção das violências e acompanhamento dos casos, a sensibilizações para a identificação dos casos, dentre outras ações. Contextualizando a Área Programática 2.1 A AP 2.1 compõe uma das dez áreas programáticas de saúde do município do Rio de Janeiro e está situada na zona sul da cidade, possuindo população estimada de 638.050 habitantes. Está dividida em 4 grandes territórios: Dois Irmãos, Arpoador, Rebouças e Redentor, que abrangem 12 unidades de atenção primária. Os critérios adotados para divisão consideraram o perfil demográfico e epidemiológico, além da distribuição de unidades. Cabe ressaltar que se trata de um espaço urbano segregado que abrange realidades socioeconômicas bem distintas. Ao mesmo tempo em que o territó-

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rio possui o bairro com maior IDH do município (Gávea/ IDH= 0,970), também possui 20 favelas, dentre elas uma que também se configura como bairro ocupando 120º posição (Rocinha/ IDH= 0,732) dentre as 126 colocações (IBGE, 2010). É importante destacar que a noção de violência não é única. Tem um caráter múltiplo, sua definição é fluida e é também uma construção social. Concebê-la como uma definição fixa e simples “é expor-se a reduzi-la, a compreender mal sua evolução e sua especificidade histórica” por isso se faz importante entender as diversas realidades e a maneira como a violência em sua forma multifacetada tem inferido em determinantes sociais do processo saúde-doença nos diferentes territórios (Brasil, 2005,p.14). Metodologia Trata-se de um relato de experiência construído a partir do trabalho desenvolvido pelo GAR no ano de 2015. Este relato busca relacionar a experiência profissional com o referencial teórico e as políticas de saúde associadas ao tema violência pelo prisma da saúde pública. Foram realizadas oficinas de sensibilização para os profissionais de saúde com a parceria da OS Viva Rio8, com objetivo de aproximar e problematizar a temática da violência, em especial a doméstica, do cotidiano dos serviços de atenção primária. O presente relato foi desenvolvido de modo que na primeira parte podemos conhecer detalhadamente o trabalho de educação permanente desenvolvido pelo GAR em parceria com o Viva Rio no sentido de preparar os profissionais para o atendimento integral às pessoas em situação de violência doméstica. Em sequência é traçado um diálogo entre as observações obtidas com as oficinas e os referenciais teóricos e legais que conceituam a discussão. Porfim, após a análise dos resultados e discussões apresentadas é possível conhecer algumas conclusões a cerca do debate. O Viva Rio é uma Organização Social comprometida com a pesquisa, o trabalho de campo e a formulação de políticas públicas com o objetivo de promover a cultura de paz e a inclusão social. A saúde é uma das

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principais áreas de atuação do Viva Rio que, através de contratos de gestão administra, em parceria com a prefeitura e o governo do Estado do Rio de Janeiro, unidades básicas de saúde nas Áreas Programáticas 2.1, 3.1 e 3.3, além de Unidades de Pronto Atendimento e Centros de AtençãoPsicossocial.

Resultado O trabalho do Grupo Articulador Regional de violência da AP 2.1 e a parceria com o Viva Rio A partir de 2014 o GAR da AP 2.1, tornou-se um grupo de trabalho que articula as ações da Divisão de Vigilância em Saúde (DVS) e da Divisão de Ações e Programas de Saúde (DAPS), composto por uma equipe multiprofissional, e que conta com a parceria da Organização Social de Saúde (OS) Viva Rio. Esta parceria se desenvolveu, sobretudo no sentido de desenvolver ações para prevenção a violência doméstica e promoção da saúde e cultura de paz. E se deu considerando duas etapas. A primeira foi a aproximação com o território por meio das rodas de conversa com moradores e profissionais de saúde com o propósito de identificar as realidades dos territórios em relação à violência como agravo de saúde. A segunda foi a elaboração do material educativo (cartilha) cujo tema: violência doméstica, foi subsidiado pela experiência da etapa anterior. Esse processo deu origem ao Projeto de Prevenção a Violência Doméstica, desenvolvido pela OS junto ao GAR, que tinha como objetivo sensibilizar profissionais da ESF sobre a importância de uma abordagem qualificada às famílias em situação de violência doméstica atendidas pelas unidades de atenção básica à saúde. Através da parceria estabelecida e do trabalho desenvolvido foi possível elaborar um material educativo importante no desenvolvimento de ações de educação permanente na temática de violências: “Construindo Juntos: profissionais e usuários da Estratégia de Saúde da Família lidando com a Violência Doméstica”. Essa cartilha foi utilizada como um dos materiais didáticos na execução das oficinas de sensibilização.

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Desde então, são realizadas ações no sentido de qualificar o atendimento as pessoas em situação de violência moradoras do território de abrangência. Dentre as ações desenvolvidas pelo GAR da 2.1, focaremos aqui na experiência nas oficinas de sensibilização. As oficinas foram realizadas nas próprias unidades de saúde com carga horária de 8 horas/aula, divididas em dois momentos com objetivo de qualificar as equipes de saúde da família na identificação, acolhimento, condução e notificação do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) para os casos de suspeita e/ou confirmação de violência doméstica. A atividade era conduzida por um trio de facilitadores que iniciaram a oficina com uma dinâmica de apresentação dos participantes. Em seguida, era introduzida nas discussões questões sobre a construção do SUS; a concepção ampliada de saúde; as relações existentes entre saúde e violência; os impactos da violência na saúde; conceitos e tipologias das violências nos diferentes ciclos de vida; mitos e crenças populares que fundamentam noções errôneas sobre as relações violentas e a importância da notificação dos casos de violência e do trabalho em rede para o atendimento integral às pessoas em situação deviolência. Após a exposição mais teórica, os facilitadores convidavam os profissionais a se dividirem em grupos para em conjunto discutirem um caso de violência doméstica. Vale destacar que os casos selecionados para discussão, eram de situações reais identificadas na atenção primária. Na discussão promovida, eles deveriam desenvolver a notificação compulsória e planejar o processo de acompanhamento do caso através de um instrumento de sistematização/monitoramento apresentado pela equipe GAR/AP 2.1, chamado de Intervisão9. Em seguida, os grupos apresentavam as condutas propostas e todos discutiam novas percepções permitindo a troca de experiências e visões. 1 A Intervisão é um instrumento cuja finalidade é auxiliar a tomada de decisão e contribuir na sistematização das equipes para o acompanhamento dos casos de violência/negligência. Tal ferramenta foi construída pela equipe GAR/AP 2.1 tendo sido baseada e adaptadaapartirdosmodelosutilizadosparaaconstruçãodeProjetoTerapêuticoSingular–PTS.

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Até o final de 2015 foram realizadas doze oficinas de sensibilização, assim todas as unidades de atenção primária à saúde da área foram contempladas o que totalizou duzentos e quinze profissionais participantes. Desse total, 155 foram agentes comunitários de saúde e 55 profissionais de nível técnico e superior. Podemos identificar que o público da atividade foi composto majoritariamente por agentes. Isso pode ser justificado por essa categoria ser a de maior número na composição das equipes. Através desse primeiro contato, foi possível identificar aspectos que contribuiriam para ausência de notificações, seriam esses: • A falta de segurança naabordagem • Contexto de violência urbanalocal • Desconhecimento de estratégias e instrumentos de intervenção, acompanhamento e notificação dos casos de violênciadoméstica. Discussão O conceito de violência doméstica adotado neste relato se refere aos conflitos familiares transformados em intolerância, abusos e opressão. A agressão física, o abuso sexual, a violência psicológica e a negligência são tipos de violência doméstica que podem ocorrer no âmbito familiar, sendo praticadas por um ou mais autores. As pessoas em situação de violência doméstica possuem laços de parentesco consanguíneo ou por afinidade (vínculo conjugal formal ou informal, vínculos afetivos e/ou relações de poder). Pode ocorrer dentro ou fora do domicílio (Minayo, 2009). Embora a equipe GAR tenha identificado durante as oficinas que a violência doméstica faz parte do cotidiano das comunidades atendidas pelas unidades de saúde da família, dados da Divisão de Vigilância em Saúde da CAP 2.1 e da SMS, nos anos de 2014 e 2015, apontavam que estas unidades de saúde eram as que menos notificavam casos de suspeita e/ou confirmação de violência doméstica, como podemos ver no quadro abaixo:

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Quadro 1 – Notificações de violências realizadas na área da AP 2.1 nos anos de 2014 e 2015 por tipo de unidade de saúde

Unidade de notificação

Ano da notificação

Ano da notificação

2014

N

2015

%

N

%

Unidades hospitalares e de Urgência e Emergência

679

91,9

719

89,7

Unidades de Atenção Primária

60

8,1

83

10,3

Total

739

100

802

100

FONTE: Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), 2016

Ressaltamos que o quadro 1 não apresenta apenas os dados referentes à violência doméstica, no entanto, é possível mensurar que as notificações de todas as violências e consequentemente também da violência doméstica, foram realizadas a partir das unidades de atenção primária em apenas 8 % dos casos em 2014 e 10 % dos casos no ano de2015. Vale destacar que a atenção primária à saúde é considerada espaço propício para uma série de atuações, desde a identificação dos casos de violência doméstica, acolhimento, notificação até o acompanhamento dos casos. A construção de vínculo com a unidade de saúde e com os demais serviços da rede, são uma possibilidade de fortalecimento do usuário, em meio a um contexto de certa tolerância social no que diz respeito as situações de violência doméstica, o que muitas vezes acaba contribuindo para que estas mantenham-se ocultas (Brasil,2011). Longe desses espaços estarem isentos de casos de violência, o cotidiano e a experiência observada revelou a ineficácia do processo de vigilância em saúde na realização das notificações dos agravos de violência. Para além da subnotificação em agravos de violência representar um problema para os serviços de vigilância em saúde no que tange à qualidade do dado e do cuidado em saúde, ela aponta para a fragilidade técnica dos profissionais de saúde e evidencia “receios,

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incompreensões e atravessamentos de toda ordem que os interpelam quando confrontados com as violências” (Kind L et al, 2013, p.1812). Além da subnotificação, a equipe GAR observou durante a realização das oficinas que as situações de violências eram naturalizadas nos discursos de alguns profissionais participantes, que imprimiam juízo de valor e preceitos morais na abordagem e condução dos casos trazidos para discussão. Muitas falas refletiam leituras feitas via senso comum justificando e/ou naturalizando práticas violentas. De acordo com Castro e Cardoso (2005), outra condição para a prevenção é o entendimento com o qual a equipe técnica trabalha o fenômeno da violência. Portanto, se faz necessário estabelecer um consenso mínimo, pois como já foi dito, muitos profissionais tendem a naturalizar algumas práticas abusivas e ou atuar sobre o fenômeno de acordo com suas percepções pessoais, resultantes de violências vividas. Ressalta-se a necessidade de o profissional de saúde ter um posicionamento isento de julgamentos de cunho moral e pessoal ao abordar usuários que estejam inseridos em um contexto social alheio ao seu. A postura do profissional deve refletir uma atuação baseada em princípios éticos, que para além dos regimentos profissionais possibilite “convivência de ajuda e respeito mútuos” (Brasil, 2010, p.22). Por fim, durante as oficinas ficou evidente como o tema violência atravessa o cotidiano e mobiliza esses profissionais, considerando o envolvimento e a participação ao longo da atividade. Essa se dava frequentemente de forma tímida no início da atividade, e constantemente crescia à medida que o tema era aprofundado, alcançando momentos de grande participação do grupo, exaltações acaloradas, relatos pessoais e debates de opinião. A mobilização apresentada pelos grupos, nos remete a necessidade de um espaço institucional de escuta/fala como aponta Bagatini et al (2006). Demanda que se impõe à administração dos serviços de saúde com objetivo de atender o sofrimento psíquico produzido no cotidiano do trabalho, sobretudo aos agentes comunitários de saúde, visto a especificidade de suas atribuições, como defende Souza e Freitas (2011, p.103): “Os

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agentes têm vivenciado situações de risco, que os adoecem e os desmotivam ao trabalho.” Considerações finais O trabalho desenvolvido através das oficinas de sensibilização ao longo de 2015 reforçou para a equipe GAR a importância de dar continuidade à realização destas atividades a partir das características singulares de cada território que compõe a AP 2.1. Outro aspecto identificado como estratégico é o estímulo, junto às equipes de saúde da família e equipes NASF, para a utilização do instrumento de Intervisão. Consideramos o incentivo a utilização desta ferramenta como uma possibilidade de colaborar para o planejamento e a ação das equipes no que diz respeito ao cuidado em saúde aos casos deviolência. Ao longo das oficinas, tornou-se perceptível o quanto a temática mobiliza os profissionais e revela posicionamentos e falas que apontam para a moralização e culpabilização das pessoas em situação de violência doméstica. A identificação destes elementos nos faz refletir sobre a importância de problematizar e avançar no debate de tais questões, desconstruindo posicionamentos e condutas dos profissionais que possam prejudicar o acompanhamento destas famílias. É diante deste cenário que ressaltamos a necessidade de articulação dos profissionais de saúde com outras instituições da rede intra e intersetorial / formal e ou informal, possibilitando a ampliação de estratégias protetivas através da troca de informações, saberes e do reconhecimento do escopo de atuação de cada serviço. Referência bibliográfica 1. Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz,2010. 2. Cabral CMT, Maia EMC. O SUS e a rede de garantia de direitos: estado da arte sobre as publicações científicas concernentes à implantação de serviços de acolhimento a crianças e adolescentes

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vítimas de violência. Mudanças - Psicologia da Saúde, v. 20, p. 8188,2012. 3. Minayo MCS, Souza ER (Org.). Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz,2003. 4. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Brasília: MS,2001. 5. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria Nº 1.968, de 25 de outubro de 2001. Brasília: MS, 2001. 6. Minayo MCS. A inclusão da violência na agenda da saúde: trajetória histórica. Ciência & Saúde Coletiva,11(Sup):1259-1267,2007. 7. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: MS,2011. 8. Brasil. Resolução P nº 1507 de 20 de outubro de 2009. Regulamenta o Núcleo de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências no Município do Rio de Janeiro. Diário Oficial, 2009; 20out. 9. Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - Censo IBGE2010. 10. Minayo MCS. Conceitos, teorias e tipologias de violência: a violência faz mal a saúde. In. Impactos da Violência na Saúde: Rio de Janeiro,2009. 11. Kind L et al. Subnotificação e (in) visibilidade da violência contra mulheres na atenção primária à saúde. Cad. Saúde Pública, 2013 set; v. 29, n. 9:1805-1815. 12. Castro ALC, Cardoso CMC. Prevenção da violência: estratégias e compromissos. In. Enfrentando a Violência na Rede de Saúde Pública. Brasília: Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, 115 p. – (Série B. Textos Básicos de Saúde),2005.

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13. Brasil. Caderno de Textos: Cartilhas da Política Nacional de Humanização,2010. 14. Bagatini T, Selli L, Rivero NEE. O sofrimento psíquico do profissional de saúde na perspectiva do cuidado. Revista Bioética 2006; 14 (2):193-217. 15. Freitas MCSC, Souza LJ R. O agente comunitário de saúde: violência e sofrimento no trabalho a céu aberto. Revista Baiana de Saúde Pública 2011; v.35, n.1, jan. / mar. 96- 109. 16. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Brasília, 2007. 17. Relato recebido em 31/05/2016. Relato aceito em 07/06/2016.

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3.2. A experiência do Grupo Articulador Regional da Área Programática 3.2 do município do Rio de Janeiro no enfrentamento às situações de violência: um grande desafio The experience of the Regional Articulator Group Programmatic Area 3.2 of the city of Rio de Janeiro in dealing with situations of violence: a challenge Jeanne Carvalho Aveiro1 Rosani Salles de Jesus2 Aline Goulart Ferreira3 Marina Mácia Ribeiro Ferreira4 Fernanda Tosta de Alcântara Portugal5

Resumo Trata-se do relato da experiência desenvolvida pelo Grupo Articulador Regional da Coordenadoria de Saúde da Área de Planejamento 3.2 da cidade do Rio de Janeiro. Relatada de forma descritiva, aponta as etapas do processo de construção da rede de apoio às pessoas vítimas de violência, visando à constituição de espaços de reflexão, diálogo e construção de estratégias no enfrentamento aos casos notificados, visto que não havia articulação intersetorial para condução dos casos e demandas do território. Com essas parcerias, foram realizadas atividades de discussão na forma de oficinas. Este trabalho revela que a articulação intersetorial se mostrou efetiva no aumento do número de notificações dos casos de violência, principalmente por parte da atenção básica da saúde, mas também identificou diversas fragilidades. Palavras-chave: Violência; atenção à saúde; ação intersetorial

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Abstract This is the account of the experience developed by the Health Coordinator of the Regional Articulator Group Planning Area 3.2 of Rio de Janeiro city describing the stages of the construction process of the support network for victims of violence in the territory aiming at the creation of spaces of reflection, dialogue and building strategies in addressing the reported cases, since there was no inter-agency coordination for the management of cases and demands of the territory. With these partnerships, discussion activities were carried out in the form of workshops. This work shows that the intersectoral approach was effective in increasing the number of notifications of cases of violence, particularly by the Basic Health Care, but also identified a number ofweaknesses. Keywords: Violence; health care; intersectorial action 1

Médica Pediatra. Especialista em Gestão em ESF. Chefe do Departamento de Ações Programáticas em Saúde. E-mail: jcaveiro@gmail.com 2 Assistente Social. Especialista em Socioterapia. Departamento de Ações Programáticas em Saúde. E-mail: ninasajes@yahoo.com.br 3 Assistente Social. Especialista em Promoção da Saúde e Desenvolvimento Social. Divisão de Vigilância em Saúde da CAP 3.2. E-mail: alineservicosocialuff@gmail.com 4 Médica Pediatra. Mestre em Saúde Coletiva. Departamento de Ações Programáticas em Saúde CAP 3.2. E-mail: marinarf@ig.com.br 5 Enfermeira. Residente em Saúde Coletiva. Departamento de Ações Programáticas em Saúde CAP 3.2. E-mail: fefeportugal@hotmail.com

Introdução Este é um trabalho que trata da experiência dos profissionais que compõem o Grupo Articulador Regional (GAR) da Coordenadoria de Saúde da Área de Planejamento 3.2 (CAP 3.2), na condução do cuidado às vítimas de violência dos residentes de territórios sob sua responsabilidade sanitária. A partir de um diagnóstico situacional da violência na AP 3.2, foi elaborado um plano estratégico para apoio na condução dos casos notificados pelos equipamentos de saúdelocais. Para fins de organização da assistência à saúde, a cidade do Rio de Janeiro foi dividida em dez APs. São elas: AP 1.0; AP 2.1; AP 2.2; AP 3.1;

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AP 3.2; AP 3.3; AP 4.0; AP 5.1; AP 5.2 e AP 5.3. A AP 3.2, referência deste estudo, engloba os seguintes bairros: Abolição, Água Santa, Cachambi, Del Castilho, Encantado, Engenho da Rainha, Engenho de Dentro, Engenho Novo, Higienópolis, Inhaúma, Jacaré, Jacarezinho, Lins de Vasconcelos, Maria da Graça, Méier, Piedade, Pilares, Riachuelo, Rocha, Sampaio, São Francisco Xavier, Todos os Santos e Tomás Coelho. Em 2009, foram implantados a ficha de notificação de casos de violência e os Grupos Articuladores Regionais, que têm por objetivo apoiar as unidades de saúde, frente às demandas de violências e contribuir na construção dos projetos terapêuticos singulares (PTS). O GAR é composto por representantes da Divisão de Vigilância em Saúde (DVS) e da Divisão de Ações e Programas de Saúde (DAPS). Essa parceria é fundamental para a compreensão do quadro local e propostas de ações. O GAR da AP 3.2 realizou um diagnóstico da situação de violência na área através da análise do banco de notificações (SINAN) e reuniões com os serviços de saúde do território. Foram identificadas fragmentação e desarticulação das redes intra e intersetorial, no que se tange ao fenômeno violência. Como prova disso, apresentamos um baixo registro de notificações de casos de violência pela atenção primária (menos de 10% dos casos notificados) e um grande número de casos notificados pelas emergências (mais de 80% dos casos notificados), além do preenchimento inadequado das fichas de notificação de violência. A partir desta análise, evidenciou-se a necessidade de fortalecimento da rede de cuidado e construção de espaços para discussão dos casos de violência ocorridos na AP 3.2. Os objetivos destes espaços foram: integrar profissionais da rede de saúde e dos equipamentos de outros setores, revisar o fluxo de acolhimento e qualificar o processo de trabalho na condução dos casos de violência da AP 3.2. Desta forma, este trabalho tem como objetivo relatar a vivência do GAR da AP 3.2 e suas parcerias intersetoriais no manejo correto dos casos de violência e redução das graves consequências decorrentes deste fenômeno.

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Metodologia Este relato descreve a experiência dos profissionais do GAR da AP 3.2, na abordagem aos casos de violência notificados pelos equipamentos da área, de 2010 a 2014. Através dos relatos dos integrantes do GAR, serão descritas as etapas da idealização e realização das oficinas mensais, como fórum legítimo para organização da rede de saúde e articulação com os parceiros de outros setores. Elegemos como ponto de partida a legitimação de uma oficina de discussão de casos de violência, tendo como diretriz o Manual de Linha de Cuidado para Atenção Integral à Saúde da Criança, Adolescentes e suas famílias em situação de violência lançado em 2010 pelo Ministério da Saúde, com apoio da 9ª Promotoria da Infância e da Juventude, através de sua representante. O trabalho teve como foco a definição de competências dos setores da educação, assistência social, conselho tutelar, delegacias, e instituições do judiciário. Resultado e discussão Após a realização do diagnóstico situacional da área, como descrito anteriormente, foi idealizada a realização de encontros periódicos, cuja finalidade foi reunir os profissionais das unidades de saúde e de outros setores, para reflexão e elaboração de estratégias conjuntas. O aumento do número de notificações pela atenção básica foi um dos resultados mais objetivos desta ação. A partir desta situação, foi realizado um encontro para apresentação deste panorama, com a 9ª Promotoria da Infância e da Juventude, que iniciou um inquérito civil, cujo desdobramento foi a criação de um documento com recomendações para as instituições públicas do território, executoras de políticas sociais e assistência em saúde. Estas recomendações englobavam a abordagem, o compartilhamento e a resolutividade nos casos de violência contra crianças e adolescentes. Neste documento, também foram sinalizadas fragilidades no processo de trabalho destes equipamentos. Foi acordado um prazo de sessenta dias para comprovação do cumprimento das recomendações e convocação dos envolvidos, ao

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final deste período, para que fossem apresentados relatórios com as providências tomadas. A participação da 9ª Promotoria, através das recomendações na condução dos casos, foi fundamental para consolidação desta articulaçãointersetorial. A participação da DVS da CAP 3.2 também foi importante nesse processo. Neste período, foi realizado um monitoramento das notificações de violência por nível de complexidade da atenção em saúde, com diversos recortes como tipo de violência, gênero, faixa etária, raça, dentre outros, auxiliando na verificação dos resultados das estratégias desenvolvidas pela CAP3.2. Assim, foi revelado que a AP 3.2 apresenta um maior número de notificações de pessoas do sexo feminino, segundo gênero, e violência física, quanto ao tipo. Estes resultados são compatíveis com os resultados do restante do município do Rio de Janeiro, assim como de outras cidades como Belém, por exemplo, revelado por estudo realizado em 201310. Quanto ao tipo de violência por faixa etária, a negligência predominou como evento notificado na faixa etária de 0 a 10 anos, no período analisado entre 2009 e 2014, sinalizando um olhar diferenciado dos profissionais das unidades básicas de saúde na percepção da fragilidade da linha de cuidado da criança. A partir da execução das competências de cada serviço e do fortalecimento do canal de comunicação entre estes, foi observado um aumento de notificações pela Atenção Primária de casos de violência doméstica, além da integração entre os profissionais da saúde, conselheiros tutelares, promotorias, delegacias, escolas/creches e lideranças comunitárias com o GAR. De acordo com o banco de dados da DVS, no ano de 2010 foram notificados, pelas unidades de atenção básica da AP 3.2, apenas dez casos de violência, já em 2014, noventa e um casos foram notificados. Isso mostra que a parceria intersetorial encorajou os profissionais que lidam com essa questão no cotidiano do processo de trabalho a notificarem os casos, visando a uma integralidade no cuidado, visto que funciona como local-sentinela na condução e prevenção de possíveis fatalidades do fenômeno violência.

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A articulação intersetorial supera a fragmentação do conhecimento, favorecendo a resolução de problemas sociais complexos, uma vez que permite a interação entre os sujeitos de setores sociais diversos e, portanto, de saberes, poderes e vontades11. Em estudo em Salvador considerando as dificuldades encontradas no cotidiano de profissionais que lidam com questões da violência, ficou evidenciado, através de declarações prestadas pelos mesmos, que encontros e reuniões sistemáticas são imprescindíveis, no sentido de superar as deficiências de comunicação intersetorial. Este estudo sugeriu que estas estratégias de comunicação favorecem o fortalecimento da rede de atenção às pessoas vítimas deviolência12. Considerações finais A experiência do GAR da AP 3.2 vem sendo gratificante no sentido da construção e fortalecimento da rede de atenção às pessoas em situação de violência em nosso território, porém, ainda observamos muitos nós críticos, como por exemplo, a atuação de alguns conselheiros tutelares que ainda apresentam dificuldades no trabalho articulado com o restante da rede de atenção. Além disso, ainda são identificadas muitas fragilidades na identificação e condução das vulnerabilidades, principalmente as vulnerabilidades psicossociais, que podem evoluir para situações de violência graves. Muitos profissionais naturalizam determinadas situações, dada a frequência com que ocorrem em nossos territórios de abrangência e que revelam marcas profundas da desigualdade social, em que a violência se insere de todas as formas possíveis na convivência entre as pessoas e instituições. O GAR da AP 3.2 reconhece ainda que, por mais que a articulação intersetorial tenha sido intensificada, foi necessária uma ação do setor Judiciário para normatizar as ações das diversas instituições envolvidas na condução dessa linha de cuidado, quanto ao atendimento às crianças e adolescentes, nos territórios da AP 3.2. As oficinas mensais para discussão dos casos de violência continuam sendo realizadas com articulação intersetorial, envolvendo cada vez mais os setores que possam contribuir para a melhoria desse pro-

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cesso. Temos observado uma participação mais ativa, com apresentações de casos para discussão, de modo a compartilhar e elaborar as estratégias de acompanhamento para tais problemas. Os espaços vêm sendo ocupados de forma construtiva, otimizando o trabalho darede. Dessa forma, continuaremos promovendo espaços de reflexão e discussão com a certeza de que com uma gestão compartilhada, conseguiremos promover intervenções exitosas no manejo dos casos de violência de nosso território, garantindo a integralidade da assistência e colaborando para a diminuição da incidência de agravos por conta da mesma. Além disso, acreditamos que os resultados deste estudo possam servir de subsídios para reflexão, facilitando e ampliando discussões teórico-práticas para o enfrentamento de dificuldades semelhantes. Referência bibliográfica 1. OMS. Informe mundial sobre la violência y salud. Genebra; 2002. 2. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. World report on violence and health. Geneva, World Health Organization,2002. 3. Minayo MCS. A difícil e lenta entrada da violência na agenda do setor saúde. Caderno de Saúde Pública2004,20(3):646-647. 4. Ruckert T R,Lima MADS, Marques GQ, Garlet ERP, Acosta AM.Assistência em unidades básicas de saúde às vítimas de violência na concepção de enfermeiras. Revista Ciência cuidado e Saúde 2008; 7(2):180-186. 5. BRASIL. Ministério da Saúde/Secretaria de Atenção à Saúde/ Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Comunicação e Educação em Saúde. Série F. Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde. Brasília, p.104,2008.

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6. Brasil. Ministério da Saúde/ Secretaria de Vigilância em Saúde. Textos Básicos de Saúde. Série B. Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília, p.340, 2005. 7. Brasil. Ministério da Saúde, 2001. Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por acidentes e Violências: portaria MS/GM nº 737 de 1605/01, publicada na DOU nº: 96 seção 1e, de 18/05/01 – Brasília. 8. RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Saúde. Superintendência de Vigilância em Saúde. A Vigilância em Saúde na Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: SMS, 72 p. (Série B. Normas e Manuais Técnicos),2014. 9. Sena LA, Cavalcanti RP, Pereira IL, Leite SRR. Intersetorialidade e ESF: limites e possibilidades no território de uma unidade integrada de Saúde da Família. Revista Brasileira Ciência e Saúde 2012; 16(3):337-342. 10. Veloso MMX, Magalhães CMC, Dell’Aglio DD, Cabral IR, Gomes, MM. Notificação da violência como estratégia de vigilância em saúde: perfil de uma metrópole do Brasil - Ciência e Saúde Coletiva 2013;18(5):1263-1272.

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3.3. A importância da atenção primária no acompanhamento dos casos de violência doméstica: relato de experiência da gestão de processo de trabalho na AP 3.1 The importance of primary health care in monitoring cases of domestic violence: experience report of work process management in 3.1 Programmatic Area (PA) Simone de Souza Pires1 Laís Martins Costa Araujo2 Telma Guerço Fernandes3 Fátima Virgínia Siqueira de Menezes Silva4 Lucélia dos Santos Silva5 Resumo O presente trabalho apresenta a importância da gestão do processo de trabalho em saúde na atenção primária, na perspectiva da melhoria da qualidade da assistência prestada à população, como forma de prevenir riscos e agravos, especificamente, no que se refere aos casos de violência doméstica, a partir da experiência de trabalho desenvolvido numa Coordenação de Atenção Primária em Saúde, visando a educação permanente dos profissionais de saúde no que tange os casos de violência. Palavras-chave: Violência doméstica; intersetorialidade; saúde da família

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Abstract From the working experience developed by the Primary Health Care Coordination aimed at continuing education of health professionals regarding cases of violence, this paper studies the importance of managing work process in primary health care towards improving the quality of care provided to the population, preventing risks and hazards, specifically in respect to cases of domestic violence. Keywords: Domestic violence; intersectoral approach; family health care 1

E-mail: simonepiresas@gmail.com E-mail: lais_mca@hotmail.com E-mail: tguercof@gmail.com 4 E-mail: fatimavirginiams@gmail.com 5 E-mail: luceliasantos.cap31@gmail.com 2 3

Introdução e contextualização Este relato foi produzido em um contexto de reflexão acerca do fenômeno da violência doméstica, cada vez mais comum na sociedade, e que tem afetado diretamente a qualidade de vida das famílias brasileiras. No Brasil, a necessidade de tratar o tema da violência como problema de saúde pública foi oficializada pela Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. O documento foi aprovado pelo Ministro da Saúde em 2001 e afirma que a violência deveria ser enfrentada por meio de estratégias de promoção da saúde e qualidade de vida. Vivenciamos um movimento de superação do modelo assistencial biomédico hospitalocêntrica em direção ao modelo de saúde biopsicossocial, com foco na Atenção Primária à Saúde (APS). A Estratégia Saúde da Família (ESF) é a proposta para esse tipo de modelo, focado na unidade familiar e construído operacionalmente na esfera comunitária.

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Sendo assim, o fenômeno da violência doméstica está diretamente ligado ao cotidiano dos profissionais de saúde, sobretudo os que trabalham na ESF, por terem nessas famílias o foco de suas ações e atuarem diretamente nos territórios onde elas residem. Nessa perspectiva, em 2009, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-RJ) institui o Núcleo de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências (NPSPV), através da Resolução “p” N° 1507, como estratégia central para fortalecer o acompanhamento das situações de violência ocorridas na cidade em consonância com as diretrizes do Ministério da Saúde (MS), concomitante com a implantação da Ficha do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Já no início de 2010 o NPSPV, estimulou a criação dos Grupos Articuladores Regionais de Violência (GAR) em cada Coordenação de Atenção Primária6 (CAP), que passou a se configurar como estratégia local para implantação de ações efetivas que garantam a qualidade do atendimento aos casos de violência, o fortalecimento das equipes que atuam nas unidades de saúde, a promoção de ações intersetoriais efetivas na prevenção das violências e acompanhamento dos casos, sensibilizações para a identificação dos casos, dentre outras. No presente relato pretende-se apresentar a experiência desenvolvida em parceria entre o GAR/AP 3.1 e a Organização Social (OS) Viva Rio7, através do Projeto de Prevenção a Violência Doméstica. Pensar o GAR como estratégia de gestão local de processo de trabalho que possibilita uma aproximação do território para garantia da melhoria da assistência à saúde da população, especificamente nos casos de violência é o objetivo desse trabalho. Violência, tenção primária e processo de trabalho em saúde Ao realizarmos uma pesquisa bibliográfica de artigos que abordam a temática da violência, encontramos inúmeras publicações que vão contribuir com a reflexão dessa problemática na atualidade. Na base

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de dados da SciELO, uma das principais fontes de referência para consulta de artigos científicos, em pesquisa realizada em 06 de maio de 2016, encontramos 2.639 artigos com a temática da violência. Ao refinarmos a pesquisa com a expressão saúde da família, encontramos 23 artigos. Ao relacionarmos violência e atenção primária não foram encontrados artigos científicos, já utilizando as palavras violência e atenção primária, encontramos 3 artigos. Para contribuir na reflexão que nos propomos, estabelecemos a relação entre violência e processo de trabalho e encontramos dois artigos científicos. Cabe observar que os dois artigos desenvolvem argumentações relacionadas ao processo na APS: “O objeto, a finalidade e os instrumentos do processo de trabalho em saúde na atenção à violência de gênero em um serviço de atenção básica” (Almeida, Silva, Machado; 2014) e “Violência no trabalho em saúde: análise em unidades básicas de saúde de Belo Horizonte, Minas Gerais” (Batista, Campos, Reis, Schall). Num outro cenário, ao relacionarmos violência e hospitais, encontramos 30 publicações e ao usarmos a expressão processo de trabalho para refinar a busca não encontramos referências. Isso nos dá algumas pistas e podemos afirmar que historicamente a atenção hospitalar tem seu papel no atendimento aos traumas decorrentes de violências tidas como causas externas, por isso um número mais significativo de publicações, mas não muito superior à pesquisa relacionada à expressão saúde da família que podemos perceber que vem ganhando destaque com sua ampliação no cenário nacional. Já as expressões atenção primária e atenção básica promovem um debate mais conceitual, o qual não nos deteremos aqui. 6

A partir da lógica da descentralização, a SMS-RJ atua com 10 Coordenadorias de Atenção Primária divididas em Áreas Programáticas da cidade. Cada coordenadoria acompanha o trabalho das equipes de saúde a partir de setores técnicos estratégicos.

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O Viva Rio é uma OS comprometida com a pesquisa, o trabalho de campo e a formulação de políticas públicas com o objetivo de promover a cultura de paz e a inclusão social. A saúde é uma das principais áreas de atuação do Viva Rio que, através de contratos de gestão administra, em parceria com a prefeitura e o governo do Estado do Rio de Janeiro, unidades básicas de saúde nas AP 2.1, 3.1 e 3.3, além de Unidades de Pronto Atendimento e Centros de Atenção Psicossocial. Disponível em: http://vivario.org.br/

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Não temos aqui como sugerir que a atenção hospitalar não possui uma preocupação com processo de trabalho, seria necessária uma revisão bibliográfica mais sistemática de tais artigos para essa afirmação que também não cabe aqui. Contudo, há que sinalizarmos que historicamente encontramos na atenção primária uma discussão mais sistemática de processo de trabalho em saúde a partir do trabalho multiprofissional na perspectiva interdisciplinar, enquanto na atenção hospitalar as práticas ainda têm uma característica voltada para a pratica multidisciplinar. O projeto de prevenção à violência doméstica O projeto tem como objetivo promover ações de cuidado integral à pessoa, à família e à comunidade, permitindo uma relação aproximada entre os variados campos de saberes. Trata- se de ações voltadas para a educação permanente, direcionadas aos profissionais da APS que lidam diretamente com casos de violência doméstica. Visa promover espaços de debates e reflexão com os profissionais de todas as categoriais (tais como: médicos, enfermeiros, assistentes sociais, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde, entre outros), sobre a questão da violência doméstica e o papel do profissional de saúde diante da violência estrutural, sustentada pelas desigualdades sociais oriundas do modo de produção vigente. Esses espaços são promovidos nas próprias unidades de saúde, em formato de oficinas, fóruns ou workshops. Ainda tem como objetivo sensibilizar os profissionais na identificação dos casos de violência que ocorrem no seu território adscrito, capacitar e estimular o uso da Ficha de Notificação do SINAN como instrumento epidemiológico de vigilância em saúde e qualificar o acompanhamento das pessoas em situação de violência provocando uma reflexão para além da esfera policial e punitiva, na perspectiva de se promover espaços saudáveis.

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Desde 2013, essa parceria firmada entre o Viva Rio e o GAR/AP 3.1 se estabeleceu por meio de cooperação e conjunção de ideias, e todas as ações têm sido planejadas conjuntamente pelas profissionais da OS e da CAP 3.1, como apresentaremos no próximo item. Estratégias para o acompanhamento das situações de violência no território da AP 3.1: o Grupo Articulador Regional e o projeto de prevenção às violências. Desde 2013, na perspectiva de garantir a sistematização das ações de enfrentamento às violências e apoio ao planejamento do território da AP 3.1, foram planejadas as seguintes frentes de trabalho: Curso de Capacitação para o Enfrentamento à Violência Doméstica O curso de enfrentamento à violência doméstica foi realizado no período de agosto de 2013 a novembro de 2014. E teve como objetivo capacitar e instrumentalizar profissionais da ESF sobre como identificar, atender, acolher e notificar compulsoriamente os casos de suspeita e ou confirmação de violência doméstica envolvendo todos os ciclos de vida. A carga horária do curso foi dividida por relevância de cada temática, sendo composta por quarenta horas de aulas teóricas e módulo prático de elaboração e desenvolvimento de projetos para cultura da paz, visando à prevenção a violência nas unidades de saúde da família. O conteúdo teórico do curso foi ministrado por profissionais qualificados e especialistas nas temáticas específicas. Além disso, as aulas foram monitoradas continuamente e avaliadas pelos alunos ao final. No ano de 2013 foram realizadas 6 turmas do Curso de Enfrentamento à Violência Doméstica envolvendo aproximadamente 140 profissionais que atuam nas unidades de saúde básica dos territórios Penha e Vigário Geral. Em 2014, ocorreram outras 9 turmas do curso, envolvendo aproximadamente 275 profissionais de saúde que atuam nas unidades administradas pelo Viva Rio nos territórios Ilha do Governador, Alemão e Maré. No total foram capacitados 415 profissionais de saúde,

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das mais diversas categoriais, dentre essas: agentes comunitários de saúde, médicos, enfermeiros, dentistas, auxiliares, entre outros. Fóruns Intersetoriais para Prevenção da Violência Doméstica Na tentativa de sanar as dificuldades apontadas pelos profissionais que participaram do curso, foi desenvolvido os Fóruns para Prevenção da Violência Doméstica envolvendo diferentes instituições da rede intersetorial que prestam atendimento às famílias em situação de violência doméstica no território da AP 3.1. Entre os anos de 2013 e 2014, foram realizados sete fóruns intersetoriais que reuniram aproximadamente setenta instituições que compõem a rede de proteção social envolvendo as áreas de saúde, segurança, justiça, educação, defesa dos direitos humanos, movimentos sociais, dentre outras. Esses fóruns tiveram como objetivo fortalecer e potencializar as ações e serviços da área, estreitando laços de colaboração e compromisso, na busca de promover nova atitude em direção à cultura de paz, possibilitando a troca de experiências, o debate e a apresentação dos fluxos de atendimento aos casos de violência doméstica. Porém, foi observada, nesta atividade, a pouca frequência dos profissionais das unidades de saúde da família. Os fóruns eram realizados bimensalmente e para cada encontro era convidada uma instituição que compõe a rede de proteção social. A cada encontro era elencado pelos participantes o assunto a ser tratado no fórum seguinte. Ao final de 2014, como produto dos fóruns intersetoriais, foi lançado o “Diálogo de saberes e práticas: Guia de Recursos Sociais para Enfrentamento a Violência Doméstica da AP 3.1”. O conteúdo deste guia descreve os equipamentos sociais de referência para esta área com o objetivo de instrumentalizar os profissionais e atores sociais envolvidos na identificação, acolhimento, atendimento e encaminhamento (quando necessário) visando incentivar o debate, a reflexão e o enfrentamento dos desafios no cuidado às pessoas em situação de violência doméstica.

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Workshop para prevenção da violência sexual contra crianças e adolescentes Como forma de atender a demandas dos profissionais, com base em avaliações realizadas em diversas ações do projeto de prevenção a violência doméstica e no fato de que no território da AP 3.1 existe número significativo de casos de violência doméstica contra criança e adolescente, especialmente violência sexual, no ano de 2015, foi planejado o workshop para prevenção da violência sexual contra crianças e adolescentes, em articulação com o Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira – IPPMG/UFRJ. O objetivo desta ação foi o aprimoramento da identificação, acolhimento e atendimento às pessoas em situação de violência sexual no território da AP 3.1. Cada turma teve a carga horária de 8 horas/aula, sendo divididas em conteúdo teórico e articulação prática através da metodologia de estudos de caso no qual foi de suma importância que os participantes elencassem os casos de violência sexual contra criança e adolescente, atendidos no serviço de saúde onde atuam para discutirem com os demais profissionais participantes. Uma metodologia foi complementar a outra, portanto, a participação dos profissionais de saúde nas duas datas supracitadas foi fundamental para que o atendimento às pessoas em situações de violência sexual esteja de acordo com a linha de cuidado preconizada pelo MS. A primeira turma foi destinada aos profissionais responsáveis técnicos, médicos e enfermeiros, das unidades de APS. No total, tivemos quarenta e um profissionais participantes de diversas categorias. A segunda turma tinha como público alvo os profissionais destinados aos profissionais dos Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASF), Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e hospitais gerais, além dos responsáveis técnicos médicos e enfermeiros que não puderam participar do primeiro evento. Tivemos quarenta e seis profissionais participantes de diversas categorias. Foram certificados mais de cinquenta profissionais de nível técnico superior, para serem multiplicadores do conhecimento apreendido durante o evento.

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Oficinas de estudo de casos: conversando sobre conhecimento, atitude e prática diante de casos de violência Ainda no ano de 2015 foram realizadas oficinas em CMS, que são unidades que tem equipes de saúde da família, mas não atende todas as áreas do território de abrangência. As oficinas tiveram como objetivos discutir com os profissionais que atuam nestas unidades, a partir de casos de violência doméstica por eles notificados/identificados, conceitos, formas de atuação multidisciplinar e as dificuldades encontradas na abordagem destas situações. As oficinas tinham também o objetivo de promover a reflexão quanto aos possíveis espaços de diálogo entre as instituições que compõem a rede de proteção social, visando o atendimento intersetorial às famílias em situação de violência. Ao final das oficinas, os profissionais preencheram uma avaliação, para que os mesmos pudessem expressar suas opiniões sobre a atividade e sugerir melhorias ou novos assuntos a serem discutidos. Resultado do trabalho Diante da incorporação mais sistemática da notificação dos casos de violência doméstica a partir da implantação da ficha do SINAN em nível nacional, vem sendo possível a análise epidemiológica dos casos notificados, apesar de ainda observarmos subregistros dos casos, por vários motivos que merecem um outro estudo. Paralelo a isso, no município do Rio começa a se dar a ampliação da ESF como forma de ampliação do acesso da APS e melhoria da atenção à saúde da população. Nessa perspectiva, dados do SINAN em relação às notificações de violência no território da AP 3.1, demonstram que entre o período de 2011 à 2014 houve um aumento gradual no número de notificações nas unidade de atenção primária com uma pequena queda em 2015. Na atenção hospitalar percebemos uma relativa estabilidade no núme-

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ro de notificações no mesmo período em relação à atenção primaria, contudo de forma inversa, houve um aumento em 2015, conforme gráfico a seguir.

Fonte: SINAN/NET 2016.

Com base na iniciativa nacional inscrita na Política Nacional de Atenção Básica, a APS deve se constituir como porta de entrada da Rede de Atenção à Saúde (RAS). Nessa perspectiva, apontamos que a identificação precoce dos casos de violência na APS, pode se constituir como fator importante para prevenção dos agravos em decorrência dela. Já a maior identificação das violências na atenção hospitalar sugere que as ações precisam ser repensadas na APS, no que se refere ao apoio aos profissionais de saúde para lidar com a problemática em questão. É nesse sentido que damos neste artigo, visibilidade ao GAR e ao Projeto de Prevenção à Violência Doméstica. Considerações finais Diante de um cenário adverso no cotidiano dos serviços de saúde, nos quais são permeados pela violência urbana concomitante à violência doméstica com as quais os profissionais de saúde precisam lidar todos os dias, fica evidente que só é possível lidar com a temática da violên-

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cia com apoio institucional, estabelecendo parcerias na rede intersetorial, criando estratégias de intervenção e abordagens diferenciadas. Pudemos observar que as unidades de atenção primária à saúde estão mais sensíveis a questão da violência, entendem a notificação do SINAN como forma de compreender epidemiologicamente o seu território e percebem a importância do trabalho em rede. Ainda há que se avançar nesses aspectos e para isso o planejamento do GAR da CAP 3.1, em parceria com a OS Viva Rio envolve para 2016, como forma de continuidade do trabalho já desenvolvido, a construção de um fluxograma de orientação para atendimento aos casos de violência, a realização de grupos de trabalho para estudo das fichas notificadas e o monitoramento dos casos notificados através de uma planilha de acompanhamento dos casos. Estas são algumas estratégias delineadas e que vão sendo constantemente reavaliadas, na perspectiva de garantir a melhoria do acompanhamento das situações de violência, entendendo o impacto que a redução desse panorama pode incidir na qualidade da saúde da população. Agradecimentos Agradecemos a CAP 3.1 e a OS Viva Rio, em especial ao Dr. Leonardo Graever (coordenador da CAP) e ao Sandro Costa Santos (subcoordenador da área de Segurança Humana – Viva Rio), que possibilitaram e incentivaram a realização do trabalho de prevenção a violência doméstica no território da AP 3.1, viabilizando assim, a execução do experimento aqui relatado. Agradecemos também às profissionais que participaram ativamente de todo o processo de trabalho relatado, sendo essas: Assistente Social Vilma Diniz, Assistente Social Lidiane Malanquini, Enfermeira Sanitarista Edna Santos, Enfermeira Lívia Alencar e Psicóloga Josiane Santiago. Sem essa articulação multiprofissional, que se deu em vários arranjos, os resultados apresentados não teriam sido alcançados.

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Referência bibliográfica 1. Brasil. Resolução P nº 1507 de 20 de outubro de 2009. Regulamenta o Núcleo de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências no Município do Rio de Janeiro. Diário Oficial, 2009. 2. Batista CB, Campos A de S, Reis J do C, et al. Violência no Trabalho em Saúde: Análise em Unidades Básicas de Saúde de Belo Horizonte, Minas Gerais. Trabalho, Educação e Saúde. Rio de Janeiro, vol. 9. 2011. Acesso em 06/05/2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S198177462011000200008&lng=pt&nrm=iso. 3. Alencar L, Araújo LMC, DINIZ V, organizadores. Diálogo de saberes e práticas: Guia de Recursos Sociais para enfrentamento a violência doméstica da AP 3.1. 1ª edição - Rio de Janeiro: Viva Rio, 2014. 64p. 4. De Almeida LR, Da Silva ATMC, et al. O objeto, a finalidade e os instrumentos do processo de trabalho em saúde na atenção à violência de gênero em um serviço de atenção básica. Interface: Comunicação em Saúde. Acesso em 06/05/2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141432832014000100047&lng=pt&nrm=iso 5. Pires S. de S. A política de saúde em tempo de capital fetiche: um estudo sobre a implantação das Clínicas da Família na cidade do Rio de Janeiro e a mudança no modelo de atenção primária no contexto de privatização da saúde Dissertação [Mestrado]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade do Estado Rio de Janeiro; 2014.

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3.4. Aprendizado intergeracional de violência por parceiro íntimo: desvendando a história de vida de mulheres que foram mães na adolescência Intergenerational learning of intimate partner violence: unraveling the life story of women who were mothers in adolescence Aline de Carvalho Martins1 Géssica Martins Mororó2

Resumo Este artigo visa analisar a presença de violência na infância e suas repercussões junto ao parceiro íntimo. Pesquisa qualitativa, realizada a partir de entrevistas semiestruturadas com mulheres com idade inferior a 17 anos na data do parto acontecido em maternidades públicas do SUS. Foram construídas três categorias de análise: violência na infância: questões e repercussões”, “violência entre parceiros íntimos: uma prática socialmente aprendida? ” e “paternidade seletiva: o cuidado infantil como uma escolha do homem”. Conclui-se que a vivência de uma hierarquização de gênero na infância contribui para uma naturalização da violência por seus parceiros íntimos e que a participação seletiva do pai nos cuidados com os filhos, constitui uma forma de violência aprendida na infância e reproduzida junto ao parceiro íntimo. Palavras-chaves: violência - parceiros íntimos; maus tratos infantis; gênero e saúde

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Abstract This article aims to analyze the presence of violence in childhood and its effects with the intimate partner. Qualitative research based on semi-structured interviews with women. Three categories of analysis were constructed: “Violence in childhood: issues and implications”, “Violence between intimate partners: a practice socially learned” and “selective Fatherhood: child care as a choice of man.” We conclude that the experience of a gender hierarchy in childhood and contributes to a naturalization of experience of violence by intimate partners and the selective participation of the father in the care of the children, is also a form of violence learned in childhood and reproduced with the intimatepartner. Key words: intimate partner violence; child abuse; gender and health 1 2

E-mail: rjalinemartins@yahoo.com.br E-mail: gessica.1000@hotmail.com

Introdução A violência é um fenômeno presente nas diversas sociedades, que possui uma natureza multicausal¹ e atinge especialmente seus membros com menor capacidade de defesa. Especial atenção se deve ter à violência vivenciada durante a infância, pelos danos que esta gera nas biografias individuais, mas principalmente por seu potencial reprodutivo na vida adulta². Um dos tipos de violência com grande capacidade de reprodução intergeracional é a violência de gênero, em especial aquela perpetrada por parceiros íntimos²;¹. Condições socioeconômicas adversas – embora de maneira não linear – podem se mostrar associadas à violência. A hipótese é que o estresse relacionado à não garantia de condições básicas de subsistência se desdobraria na utilização da violência de gênero e na valorização das relações de poder tradicionais como recursos para lidar com as dificuldades cotidianas¹.

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Desse modo, o presente artigo tem como objetivo resgatar no discurso da história de vida das mulheres que foram mães na adolescência, a presença de violência no período da infância e refletir sobre a possibilidade da reprodução de um modelo de violência junto a seu parceiro íntimo, incluindo uma relação de paternidade pouco participativa junto aos filhos, mostrando a adesão masculina aos modelos tradicionais de gênero, primando pela manutenção do seu status hierárquico na sociedade. Violência por parceiro íntimo: uma expressão da violência de gênero A vivência na infância de relações hierarquizadas e violentas de gênero constitui um aprendizado para a vida. De fato, gênero é importante fator identificador da condição social de um indivíduo³, e não atinge a população de maneira uniforme. Outros fatores socialmente relevantes como raça/cor, condição de classe, escolaridade e renda, interagem entre si, localizando um indivíduo na estrutura social4. Indicadores sociais adversos estão ligados a alguns grupos específicos como o gênero feminino, a cor da pele preta e a ausência/insuficiência de renda, o que facilita a exposição destas pessoas de maneira mais intensa aos eventos violentos, dada a sua identificação de subordinação na dinâmicasocial. A violência entre parceiros íntimos não se restringe aos casais heterossexuais, nem a violência de gênero constitui uma violência de homens contra mulheres, sendo significativo o número de violência entre os grupos homo/bissexuais5. Entretanto, em termos absolutos, dada a identificação da maioria das mulheres com o gênero feminino, é neste grupo (e em relação ao gênero masculino) que a violência entre parceiros íntimos atinge a sua maior proporção. A perspectiva de gênero deve ser utilizada ao se avaliar a motivação da violência. Mulheres tendem não utilizar a violência em situação de autodefesa6. Já para os homens, a violência constitui um recurso acessado pelo gênero masculino na busca de intimidar a parceira, para restaurar o seu poder ou para prevenir o questionamento de sua auto-

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ridade 6;5. É preciso relembrar que o poder e autoridade são signos da identidade masculina com os quais os homens são socializados desde a infância7. Estas condições tendem a ser reiteradas em contextos socioeconômicos desfavoráveis e na ausência de políticas públicas para a superação deste contexto. O delineamento da pesquisa Foram selecionadas para o estudo adultas jovens moradoras de diferentes áreas programáticas da cidade do Rio de Janeiro, que tivessem idade inferior a 17 anos na data do parto e cujo parto tenha se dado em maternidades públicas da rede própria do SUS. O estudo teve característica retrospectiva em função dos limites éticos. O espaço temporal médio foi de quatro anos após o parto, por se considerar que o início da vida apresenta uma grande quantidade de demandas urgentes da criança pelos cuidados de um adulto, que em geral impacta em uma maior sobrecarga das mulheres. Considerou-se ser importante este intervalo, para avaliar como a gestação e a maternidade se apresentavam neste percurso, avaliando continuidades, variações e rompimentos nos relacionamentos. Foram incluídas somente mulheres com gestações únicas, em que a criança ainda se encontrasse viva no momento da entrevista, sem deficiência ou necessidade especial. A pesquisa realizou sete entrevistas, com base na técnica da saturação de informações8;9 onde as entrevistas são encerradas quando a coleta de dados parou de produzir novos dados. Todo o material foi transcrito submetido à revisão e submetido às três fases previstas por Bardin10, a saber: pré-análise, exploração do material e tratamento/análise dos dados obtidos. Durante a pré–análise foi feita uma leitura flutuante do material a fim de identificar o contexto das falas, as categorias presentes, as unidades de contexto e os trechos significativos de cada entrevista. Nesta fase foi possível ordenar os dados e organizar os aspectos relevantes das entrevistas, a fim de

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que este material, na fase da análise, pudesse ter seu conteúdo desvendado para além da fala manifesta. Nesta etapa foram construídas três categorias de análise. As entrevistadas estão identificadas pelo número de ordem de realização de entrevistas. Eventuais referências aos nomes de outras pessoas feitas durante a entrevista, foram substituídas por nomes fictícios para garantir o sigilo da identidade e o anonimato dos envolvidos. Finalmente, buscamos apresentar conclusões e propostas, com base no resultado do estudo refletindo sobre o potencial das políticas públicas enquanto mecanismos possíveis para sua prevenção e superação. O material analisado é parte de uma pesquisa exploratória, de natureza qualitativa com mulheres que foram mães na adolescência, na cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa/SMSCD- RJ, recebendo o número CAAE - 0220.0.314.325-10. Resultados e Discussão Os resultados aqui apresentados estão baseados na construção de três categorias de análise distintas: A primeira delas foi denominada “Violência na infância: questões e repercussões” - onde se resgata a vivência de observação de violência entre seus adultos de referência, a vivência do cuidado por adultos com dependência química de álcool e a negligência no cuidado infantil. A segunda categoria de análise denomina-se “Violência entre parceiros íntimos: uma prática socialmente aprendida? ”. Nela resgatamos a experiência da violência entre parceiros íntimos vivenciada pela própria adolescente, tanto no sentido físico, quanto no sentido de efetivações (ou tentativas) de imposição de um relacionamento afetivo pautado na supremacia do gênero masculino.

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Finalmente, a categoria “Paternidade seletiva: o cuidado infantil como uma escolha do homem”, busca trabalhar as questões de hierarquia de gênero como uma expressão da violência que repercute no cuidado da criança, filho de mãe adolescente e incorpora potencial de reprodução deste ciclo. Estes achados foram problematizando à luz da literatura científica brasileira, de forma a dar- lhes densidade e dialogar com outras pesquisas. Violência na infância: questões e repercussões Já está suficientemente documentado na literatura o potencial negativo da violência vivenciada no período da infância1. As abordagens sobre os efeitos nocivos da violência tendem a se centrar nos casos onde a criança é atingida diretamente pela violência, quer seja esta física, psicológica, sexual ou negligência. A negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, presente nos casos de violência direta tende a apresentar um potencial ofensivo – imediato e futuro – de grande intensidade 11. Sua superação está relacionada tanto à possíveis mudanças de posturas dos adultos de referência, quanto pela rede de apoio ou pelos recursos internos próprios do sujeito. Se algumas violências – como a sexual – tem impacto inegavelmente nocivo, dado seu potencial desencadeador de adoecimentos mentais, tentativas de suicídio, entre outros12, nem sempre é avaliado com a mesma seriedade a exposição da criança a um ambiente de violência entre seus adultos de referência. Nestes casos, embora a criança nem sempre seja fisicamente atingida, a violência psicológica associada a este fato e a experiência cotidiana da hierarquia de gênero, podem contribuir tanto para traumas e questões imediatas quanto para uma naturalização (e reprodução) destasexperiências.12

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D’Oliveira et al1 em um estudo realizado com mulheres residentes no município de São Paulo e da Zona da Mata de Pernambuco, que sofreram violência perpetrada por parceiro íntimo, identificaram que a violência física conjugal entre os pais da mulher apresentava-se como um fator de prevalência3, para a violência futura desta mulher com seu próprio parceiro. Essa violência perpassa gerações. Crianças que presenciaram cenas de violência entre os adultos de referência apresentam uma tendência a reproduzi-la durante a sua vida adulta2. As meninas tornam-se propícias a consentir tal fato, por reter em si lembranças que as impeçam de acreditar em uma solução, ou por acreditar neste modelo que vivenciaram13. De fato, vivenciar a violência entre seus adultos de referência sempre constitui uma violência para a criança, ainda que esta não se manifeste direta e fisicamente em seu corpo. Entre o conjunto das entrevistadas, esta questão apareceu de forma direta. Violência, você já viu dentro da sua casa? Já. Como é que foi? Péssimo“ (Entrevistada 01) “Eu lembro também que a minha mãe brigava muito com o meu pai” (Entrevistada 03) “É... mas quando a minha mãe ficou grávida, aí eles brigaram – sei lá o queaconteceu – aí a minha mãe terminou com ele. Aí não ficaram mais juntos” (Entrevistada 07).

Observar a mãe ser agredida por seu parceiro íntimo expõe a mulher a violências futuras, tanto pela naturalização da violência como um fenômeno constitutivo dos relacionamentos amorosos, quanto pelo pouco apoio familiar para a superação destaviolência1. A literatura informa ainda que muitas vezes, quando se trata de violência cometida por parceiro íntimo, o alcoolismo se encontra muitas vezes associado1;12.

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O alcoolismo é uma doença que acomete os homens muito mais intensamente do que as mulheres3, embora mulheres que sofram violência tenham declarado o uso do álcool4. O uso abusivo de álcool pelas mulheres está associado a um aumento de chance de a mesma sofrer violência física grave6. Para os homens, o uso abusivo de álcool constitui um impeditivo para o exercício dos signos identitários importantes da cultura masculina como o papel do provedor ou do trabalhador, que são fundamentais para sua definição social3. O alcoolismo tende a ter um papel importante na sociabilidade do indivíduo, quer pelo comprometimento da autoestima do sujeito14, quer pela diminuição da censura associada a eles, o que facilita a utilização da violência como forma de resolução de conflitos. Tanto o consumo do álcool como a violência são formas de pessoas com poucos recursos econômicos demostrarem poder 14, por isso o álcool se constitui um fator preditivo para que um homem possa praticar violência15. Outras vezes, este mesmo alcoolismo apresenta-se como desculpas para comportamento violento ou é apontado como desencadeador do mesmo, nos casos em que o homem acusa a mulher de interferir nos seus hábitos12. É preciso estar atento ao conteúdo que estas experiências tendem a imprimir na trajetória dos sujeitos. As entrevistadas apontam fortemente um padrão de violência de parceiros íntimos em suas famílias de origem e sua associação com o álcool. “Minha mãe. Ela vivia... ficava muito bêbada” (Entrevistada 03) “Meu pai e a minha mãe usam álcool, bastante. Drogas eu acho que o meu pai usa. (...) Acho que ele bebe desde quando ele se conhece por gente” (Entrevistada04)

Nos contextos onde uso abusivo de álcool e violência aparecem nos adultos de referência, verifica-se além da violência psicológica, a negligência no afeto e no cuidado que as crianças demandam para o seu desenvolvimento16. Algumas entrevistadas, apesar de não relatarem violência física, vivenciaram um padrão de descuidado que foi marca intensa em sua trajetória, ficando clara a falta de um adulto atento às suas necessidades básicas.

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3 A pesquisa indicava que escolaridade igual ou inferior a oito anos de estudo, abuso sexual na infância, cinco ou mais gestações e “problemas com a bebida”, eram considerados como fatores relevantes para exposição à violência por parceiro íntimo, revelando a natureza multicausal deste fenômeno, como é característica dos diversos tipos de violência (D’Oliveira et al,2009).

“Não. Eu falo que quem me criou, fui eu, não foi ninguém, não. Eu nunca tive ninguém do meu lado. Sempre tive o dinheiro deles [dos pais]. Nunca tive a presença deles, não. Quem me criou, fui eu. (...) [meu pai] Ele não suporta muito a família, não. Para demonstrar alguma coisa ele... ele não demonstra. Não demonstra” (Entrevistada 04) “Por que ele ficou preso, também. Aí eu sei que eu fui visitar ele – minha avó me levou para visitar ele [na cadeia]. (...) É muito sofrimento. Chegava lá dentro, eu via ele lá. Eu queria ficar com ele e não podia, tinha que vir embora. Aí todo mundo sentado, assim, na hora de comer... ah, é horrível. E revista... tem que se abrir... eu acho... Não gostei. E era muito sofrimento. Por que eu já não tinha ele presente, quando eu tive... aí ele morreu. [...] Ele nunca foi presente... Ah, eu queria, sabe, que ele não fosse desta vida, que não tivesse acontecido isso... para poder me dar as coisas... Por que tudo é ela [a mãe], o meu avô e a minha avó aqui. É muito ruim...” (Entrevistada 07)

Estas questões são importantes tanto pelas marcas que deixam diretamente, quanto pelo aprendizado de um modo de sociabilidade, que pode ser reproduzido futuramente, quando as crianças que vivenciaram estas experiências alcançam independência e autonomia. Violência entre parceiros íntimos: uma prática socialmente aprendida? Assim como a violência contra a criança, a violência praticada por parceiros íntimos vem se constituindo um relevante tema para a saúde pública2;17. 4 A questão da justificativa para o assassinato de mulheres por seus maridos, foi construída inicialmente com base no Código Penal brasileiro de 1890, que, em seu artigo 27, § 4º afirmava que não cometiam crimes “Os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no acto de commetter o crime;” 20 Com base nesta legislação foram construídos argumentos para justificar os crimes passionais, que passaram a ser atribuídos ao comportamento das próprias vítimas (na maior parte das vezes o motivo era a infidelidade). Esta tese foi utilizada para inocentar homens que cometiam assassinatos contra suas esposas. Os homens, agindo em estados passionais, estariam privados de seus sentidos e, portanto, seriam inimputáveis. No Código Penal de 1940, este parágrafo foi suprimido, porém, os crimes passionais passaram a ser justificados com base no artigo 25, que afirma: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem “21 de onde passou a surgir a tese da Legítima Defesa da Honra. Muitos assassinatos de mulheres foram inocentados com base nestas teses, no Brasil. Embora este seja um debate “em aberto”, há que se ressaltar alguns argumentos jurídicos utilizados para invalidar esta tese. O primeiro argumento é que a honra é personalíssima (ou seja, ninguém pode ser mais honrado ou

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desonrado, em virtude do comportamento de outrem), o segundo argumento é de que o direito de honra de uma pessoa não pode sobrepujar o direito à vida de outra pessoa e o terceiro argumento é de que a lei se pauta no uso moderado dos meios necessários para repelir a injusta agressão, ou seja, não é uma lei destinada a oficializar a pena de morte, pelo simples desejo do agressor.

Como as crianças, as mulheres foram historicamente vistas na sociedade brasileira como propriedades de seus maridos, lhes sendo garantido dispor de suas mulheres, inclusive de suas vidas, sob a tese da “Legítima Defesa da Honra”4. Com base nesta tese, assassinatos de mulheres foram justificados e inocentados perante os tribunais em uma clara legitimação do patriarcalismo brasileiro. Esta questão ganhou visibilidade em virtude dos esforços dos movimentos de mulheres da década de 80 do século passado, que solicitavam fim da impunidade masculina e o enfrentamento da violência contra as mulheres como uma questão de justiça e de saúde pública, que necessitava de intervenção estatal e políticas públicas12. Se, no âmbito legal, conquistas importantes foram feitas a partir da vigência tanto a lei “Maria da Penha”18, (que dispõe sobre o enfrentamento da violência contra a mulher), quanto pela “lei do feminicídio”19, (que criminaliza e qualifica como hediondo os assassinatos de mulheres por seus parceiros, bem como a execução das mulheres pelas condições próprias do gênero feminino) do ponto de vista da prática cotidiana, esta questão se encontra longe de ser superada. Já apontamos que embora a violência por parceiro íntimo não seja exclusivamente violência de homens contra mulheres, esta vem sendo a expressão mais comum na sociedade brasileira. Trata-se de uma violência que contém múltiplas expressões, muitas vezes com diversas interações, que incluem violência física, psicológica, sexual, moral, patrimonial, entre outras18. A questão da centralidade masculina na vida social não parece estar superada no Brasil – tal como ocorre em diversos países do mundo. Com diferentes nuances e intensidades a mulher continua sendo percebida como objeto masculino e a violência tem sido, de forma recorrente, uma estratégia utilizada pelos homens para garantir sua domi-

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nação5;7, o que reafirma a violência perpetrada por parceiros íntimos como uma questão relevante nos dias atuais12. Chama a atenção, principalmente o fato das próprias mulheres incorporarem em seus discursos, o direito dos homens à utilização de seus corpos e o reforço da responsabilidade das mulheres em atenderem seus desejos. “De vez em quando eu sei que sou chata, que às vezes eu não quero namorar e tal. E aí ele fala “Rayane, você tem que namorar comigo. Sabe por que? Para não despertar o desejo de eu ter outra”. Qual é o homem que faz isso com uma mulher? Não tem hoje em dia. Eu tento preservar. Eu observo as coisas que ele fala para mim” (Entrevistada03)

A naturalização desta fala e a violência simbólica que perpassa o seu conteúdo, nos remete aos processos de socialização – aprendidos na infância – que vem se repetindo na aceitação da dominação de um gênero pelo outro. Outras vezes, o relato – e a violência – são mais diretos, e se iniciam desde a adolescência, mesmo sem cohabitação do casal. Se em tempos passados o homem se entendia dono da mulher devido ao fato de sustenta-la financeiramente, na atualidade, nem esta prerrogativa se faz necessária para que o homem se sinta apto a dispor da utilização de mecanismos de violência. “O pai do meu filho já me bateu muito quando a gente namorava. Que idade você tinha? Quatorze. Quando eu namorava ele eu tinha treze anos, eu acho. Você tinha treze e ele? Dezenove. E ele te batia por que? Ciúmes. Ciúmes, principalmente. Ele me batia muito” (Entrevistada 04)

Nos relatos das entrevistadas continua a prevalecer a dupla moral: se o homem tem o direito de se utilizar da violência como instrumento de

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“correção”, das mulheres, em virtude de seus comportamentos, para ele, firmam-se os privilégios da sexualidade pouco contida, principalmente, em contextos de filhos pequenos, que exigem muita atenção das mulheres. De fato, os resquícios da vivência do patriarcalismo se mostram bastante presentes na sociedade brasileira. Deste modo, sentimentos de posse, moralismo e ciúme dos homens sobre suas mulheres, são reivindicados pelos homens com justificativa para comportamentos controladores e violentos como exercer a escolha de suas roupas, amizades, direito de trabalhar e dispor do uso da violência física com correção para comportamentos considerados inadequados12. Como a questão posta é a do controle e da dominação, também se observam formas de controle não físicas, mas que garantam a limitação da socialização feminina, ampliando o seu tempo de permanência no âmbito doméstico como a recusa da contribuição nas atividades domésticas, no cuidado com os filhos e na reivindicação de liberdades para que o homem – e somente a ele – esteja livre para o exercício de atividades extraconjugais. “Aí começou a briga, por causa de negócio de mulher... Por que? Ele é mulherengo? Ele saía e eu ficava em casa, por que o Felipe era pequeno. Minha mãe trabalhava e não tinha como olhar ele. E eu que tinha que olhar ele... ele era pequenininho. Se ele fosse grande – já maiorzinho, né? – dava prá eu ir. Mas aí ele ficava... Ia, saia para o baile e eu ficava em casa. Aí sempre tinha aquelas brigas... Negócio de mulher. Aí eu fui e mandei ele [ir] embora. Aí ia e voltava, ia e voltava. Nessa época do Felipe quando era pequenininho, era muito ruim, muito chato. Por que aí as mulheres ligavam para o telefone dele, entendeu? Aí eu não podia fazer nada por que eu tinha que ficar dentro de casa... olhando o Felipe... era assim.”(Entrevistada07)

Nestas entrevistas, fica claro que o filho constitui mais um elemento a reforçar a condição desigual de gênero, que a expõe a situações de violência e é utilizada pelos homens como reforço de seus privilégios. Se esta violência acontece com as mulheres, com as crianças, ela tenderá a se reproduzir.

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Paternidade seletiva: o cuidado infantil como uma escolha do homem Se a paternidade vem sendo um elemento identificador da masculinidade (a capacidade de ser viril e reprodutivo ainda se mantém como um valor atual), um filho desencadeia responsabilidades das quais os homens escolherão se desejam participar ou não. Deixar os filhos exclusiva, ou principalmente, sob os cuidados das mulheres, constitui uma estratégia de reforço de poder masculino – portanto violento – reivindicada sistematicamente, principalmente sob o pretexto de um outro elemento identificador masculino: otrabalho. “É, ele quase não pega [o filho para cuidar] justamente por conta disso. Por que ele fica lá em cima. Aí ele “Poxa, tô trabalhando... não dá pra mim ficar com ele, não”. É essa a nossa conversa. (Entrevistada 04)

De fato, a questão do trabalho remunerado e da venda da força de trabalho como geradora da condição de provedor, esteve sempre associado a um status masculino. O acesso à remuneração geradora do poder de consumo na sociedade capitalista vem sendo um elemento que faz o homem muitas vezes priorizar o trabalho ao cuidado com os filhos. Entretanto, findas as reponsabilidades laborais, vê-se que, muitas vezes, o filho continua sendo negligenciado em prol de um estilo de vida que visa somente reforçar as conquistas de gênero masculinas. Como o cuidado das crianças vem sendo identificado socialmente como responsabilidade do gênero feminino, muitos homens, buscando reforçar sua vinculação ao gênero masculino, se afastam dos cuidados diretos com a criança, evitando estas associações7. Preservar os privilégios de gênero parece ser uma estratégia dos homens para garantir a manutenção de sua centralidade no cenário social, reforçando este aspecto da violência degênero. Muitas vezes – principalmente quando o casal tem uma relação perpassada pelo uso abusivo do álcool, este é utilizado como mais um

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elemento de reforço das condições de hierarquia de gênero, seja através da desresponsabilização com os cuidados domésticos, seja através da associação da criança aos cuidados femininos. Deste modo, será reforçado o caráter eventual e opcional da participação masculina nos cuidados da criança, contribuindo para a reprodução do ciclo de descuidado infantil, ou de seu cuidado à revelia da atenção paterna. “Ah, [quando o companheiro bebe] ele não fica agressivo, ele não perturba. Mas fica bêbado. É uma coisa que eu não gosto. Fica falando besteira. Cheio de palavrão. Às vezes até desrespeita a palavra dos outros. (...) chega tarde às vezes em casa. Quer ficar bebendo, bebendo, bebendo... então perde a hora, não tem hora para chegar. Tem dias que perde muito dinheiro... por que ele é viciado naquelas máquinas, sabe, de caça níqueis? Édifícil...

Ele trabalha. Tem hora para sair de casa – 7:30 da manhã, quando o menino está dormindo – e não tem hora para chegar. Hoje [sábado], hoje mesmo ele tá trabalhando. Então quando ele chega, eu falo “Chega e dá atenção para ele”. Por que ele sente falta do pai. Aí, às vezes, não. Eu sei que ele está cansado. Tá, mas brinca um pouquinho com ele. Mas às vezes, não. Chega e vai para o bar. Aí fica lá no bar. Ou então, às vezes fica com ele quando eu digo “leva ele para jogar bola”. Aí quando eu olho, vejo que ele levou o menino para o bar. Aí ele [o filho] fica sozinho lá brincando, com os colegas, lá dentro do bar. Eu até gosto [do marido]. Ele não deixa faltar nada para ele [o filho], mas eu queria que ele fosse um pai mais presente. Por morar com ele[filho], eu acho ele[pai] muito ausente, com ele[filho]” (Entrevistada06)

Chama atenção, neste discurso, o fato de que mesmo incomodada com a postura do companheiro, não há um estranhamento de seu comportamento, o que pode sugerir, que tanto as experiências vivenciadas diretamente ou observadas no entorno social de uma criança são geradoras de conteúdos denaturalização. A desnaturalização e a percepção de violência tendem a ser mais percebidas quando a violência física (ou sua ameaça) pode atingir diretamente a criança, ou está motivada pelo fato da criança não estar sendo cuidada de modo considerado como satisfatório. Problemas relacionados aos filhos como tentativas de protegê-los de agressões e o não pagamento de pensão são eventos desencadeadores de violência física que resultam em registro junto às delegacias, assim como as questões de hierarquia de gênero, uso de drogas e divisão de bens12.

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Conclusão A violência perpetrada por parceiros íntimos está diretamente relacionada à aceitação das hierarquias de gênero que facultam ao gênero masculino o direito de controle sobre os comportamentos e sobre os bens femininos1;7;12. As repercussões da violência entre parceiros íntimos na saúde se relacionam diretamente com a saúde mental. O aumento da violência observado durante a tentativa da mulher em romper a relação é uma estratégia masculina utilizada para intimidar a mulher, fazer com que ela desista do rompimento e continue a submeter à violência. Nestas situações, as mulheres podem se sentir inseguras, desvalorizadas e humilhadas, condições mentais que podem se desdobrar em somatizações, depressões ou tentativas desuicídio12. É preciso refletir sobre o fato de que estas relações de conjugalidade são relações construídas socialmente. Portanto, foram aprendidas e podem ser modificadas. A idade da primeira gestação está associada ao abandono escolar e a um maior número de filhos durante a vida22, embora o maior número de filhos durante a vida possa ser mais uma consequência, do que causa da violência entre parceiros íntimos1. Entretanto, estes dois fatores acabam por aumentar a dependência das mulheres, que volta a agravar a inserção destas nas condições adversas de gênero e na exposição à violência por parceiros íntimos. A pesquisa em questão aproximou-se destes achados, uma vez que estamos tratando de maternidade na adolescência e é bastante comum o início da vida sexual antes dos 15 anos. Neste contexto, cabe ressaltar a centralidade das políticas sociais como elementos de direcionamento de práticas de equidade de gênero, através da difusão de valores e oportunidades concretas para a existência de condições de igualdade entre pessoas. A importância da política pública deve ser ressaltada nos casos em que a violência já está instalada, pois mulheres que possuem mais

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acesso à renda, programas de cuidados com as crianças e de apoio à superação das situações de violência possuem mais condições de romper com o ciclo de violência contra parceiros íntimos do que as mulheres que contam apenas com seus recursos para isso. As ações imediatas de redução da violência entre parceiros íntimos, prevenção do abuso sexual1, valorização da equidade de gênero e políticas públicas de suporte às crianças tem potencial inegável para a redução imediata e futura das violências contra as mulheres. Há que se ressaltar o papel de prevenção e de criação de condições para que as pessoas não sejam acometidas pela violência, pois as políticas sociais fundamentam-se na garantia de melhores condições de vida para a população. Políticas públicas de prevenção à comportamentos violentos, tanto no interior das famílias, quanto no âmbito da sociedade, tem potencial para alterar estes dados no futuro. Nesse sentido, desenvolver projetos e programas que versem sobre as condições de gênero e que atinjam lugares destinados a todas as crianças, como as escolas e os serviços de saúde básica, são capazes de refletir as questões aqui trabalhadas, quer junto aos pais, quer junto às próprias crianças. Deste modo, podem ser problematizados temas como paternidade, cuidados com a criança, papéis tradicionais de gênero, entreoutros. Pensando o focar das políticas públicas, junto a grupos específicos, verifica-se que outras questões fundamentais a serem trabalhadas com as mulheres desde a infância são os direitos sexuais e reprodutivos. A literatura tem demonstrado que fatores relacionados à violência perpetrada por parceiro íntimo são a idade inferior a 15 anos na primeira relação sexual, baixa escolaridade, consentimento na primeira relação sexual e o maior número de filhos1;5. Finalmente cabe ressaltar que, como uma questão de gênero, a violência por parceiro íntimo jamais será superada se a reflexão sobre sua existência e desdobramentos forem trabalhadas somente com as mulheres12. É preciso incluir os homens nos trabalhos de reflexão

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sobre o tema, e o mesmo deve ser feito desde a infância, quando os papéis de gênero não estão totalmente consolidados para as crianças. Os programas de cuidados para o homem devem ser valorizados. É preciso que o homem seja promovido, orientado e cuidado em detrimento aos chamados apenas por sua punição. Ilustrativo disto é a questão do álcool. O alcoolismo expressa uma realidade de desproteção: o fato de ter baixa autoestima, não contar com uma rede de apoio social, são fatores relacionados ao abuso de álcool e à violência14, o que nos remete à questão de políticas de prevenção e valorização de outras formas de masculinidades como elementos importantes para a proteção dos homens e daqueles com quem eles estabelecem relações afetivas cotidianas. Deste modo, reafirmamos a importância de se promover bons tratos com as crianças desde o período pré-natal, bem como atentar para uma cultura de paz entre parceiros íntimos desde o namoro, considerando as questões de reprodução presentes neste grupo. Referência bibliográfica 1. D’Oliveira AFPL, Schraiber LB, França-Junior I, Ludermir A B, Portella A P, Diniz C S et al. Fatores associados à violência por parceiro íntimo em mulheres brasileiras. Rev. Saúde Pública [periódico na Internet]. 2009 abr. [acesso em 01 de maio 2016]; 43(2): 299-311. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102009000200011&lng=pt. 2. Teixeira, SVB et al. Violência perpetrada por parceiro íntimo à gestante: o ambiente à luz da teoria de Levine. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 2015, v. 49, n. 6, p. 882- 889. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/reeusp/article/view/108364>. Acesso em: 12 de abril2016. 3. Zanello V. Silva, René MC. Saúde mental, gênero e violência estrutural. Revista Bioética. 2012; 20(2): 267-79. Disponível em: http://

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3.5. As ações de promoção da solidariedade/cultura de paz e prevenção à violência à criança e adolescente na AP 5.1 sob à ótica da saúde The actions to promote solidarity / culture of peace and violence prevention to children and adolescents in AP 5.1 on the perspective of health Adelaide F. Demétrio Mercês

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Adriana do Carmo Mendes Ana Paula Celestino Lúcia Maria Santos Brandão Simone Pires e Silva 2

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Resumo A violência como fenômeno complexo requer ações intersetoriais, integrais de atenção à saúde, no desafio da construção de ambientes mais saudáveis. No relato de experiência identificou-se as ações de promoção da saúde e prevenção da violência na atenção primária, desenvolvida pelos profissionais, a partir das oficinas de capacitação sobre violência e promoção da solidariedade impulsionada pelo Grupo Regional da AP 5.1. A análise mostrou ações voltadas para a prevenção da violência e promoção da solidariedade e cultura de paz, com rodas de conversa e grupos de discussões, seja de profissionais da saúde e educação, pais, alunos ou jovens promotores da saúde. É necessário ampliar e fortalecer as ações existentes devido às possibilidades de atuação nos três níveis deprevenção. Palavras-chave: Promoção da saúde; educação em saúde; ação intersetorial

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Abstract Violence as a complex phenomenon requires intersectoral actions, wholly health care, in the challenge of building healthier ambience. In the experience report were identified health promotion actions and prevention of violence in Primary Health Care, developed by professionals, from training workshops about violence and promotion of solidarity stimulated by the regional group of the programmatic area 5.1. The analysis has shown actions aimed at the prevention of Violence and Promotion of Solidarity and Culture of Peace , with conversation circles and discussion groups, whether health and education professionals, parents, students or young health promoters. It’s necessary to expand and consolidate the existing practices due to possibilities of action in the three levels ofprevention. Key words: health promotion; health education; intersectoral actions 1

Enfermeira. Grupo Regional de Promoção da Saúde e Prevenção de Violência. CGA 5.1. E-mail: garcap5.1@gmail.com 2 Assistente Social. GAR 5.1. Coordenação NASF. E-mail: nasfcap5.1@gmail.com 3 Assistente Social. GAR 5.1, CGAP 5.1. E-mail: garcap5.1@gmail.com 4 Dentista. GAR 5.1. PSE. E-mail:garcap5.1@gmail.com 5 Psicóloga. GAR 5.1. Assessoria de Saúde Mental. E-mail: saudementalcap5.1@gmail.com

Introdução Neste relato de experiência apresentamos as ações de prevenção da violência desenvolvidas numa área programática (AP) do município do Rio de Janeiro. A preocupação ao longo dos anos em prevenir atos de violência e suas consequências em todos os ciclos de vida se faz presente nas oficinas promovidas pelo Grupo Articulador Regional de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências (GAR), desde2012. Para o setor saúde atuar na perspectiva de criação de ambientes favoráveis, da cultura de paz e mediação de conflitos visando estabelecer-se relações interpessoais mais harmoniosas responde ao fato de que a paz é considerada um dos pré-requisitos para que tenhamos in-

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divíduos e cidades saudáveis (Carta de Ottawa, 1986). E neste sentido torna-se necessário capacitar os profissionais de saúde propiciando reflexões sobre a temática da violência que os empodere para atuarem nos seus territórios de abrangência na ótica da promoção da saúde e prevenção de agravos. Este trabalho tem como objetivo identificar as ações de promoção da saúde e prevenção da violência no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS), com vistas a situar o panorama das atividades desenvolvidas e também fornecer elementos que possam servir aos demais profissionais responsáveis por diversas linhas de cuidado e programas. Os abusos e/ou maus tratos se apresentam de diversas formas, sendo de difícil identificação, pois um sintoma ou sinal isolado não permite afirmar sua existência. E a continuação sucessiva de atos violentos, tem em sua extremidade os casos de violência física, psicológica, sexual e/ou negligência. Estes, além de efeitos na integridade física, deixam danospsicológicos que afetam o crescimento e desenvolvimento de crianças eadolescentes. O setor saúde desempenha um importante papel ao contribuir para a prevenção da violência familiar e, em se tratando de um fenômeno multicausal, precisa de conhecimentos e habilidades específicas das diferentes categorias profissionais. Estas devem ser necessariamente intersetoriais e envolver as instituições da área de educação, as instituições sociais, as governamentais e não governamentais bem como de outras instâncias de proteção como o judiciário, o conselho tutelar. O olhar da promoção sobre algumas políticas e plano de ação frente às situações de violência no Brasil O Ministério da Saúde tem impulsionado e financiado ações voltadas para a prevenção da violência e acidentes e promover a cultura da paz. Em 2001 foi publicada a Política de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violência (MS, 2002). Este documento torna-se um marco na política pública voltado para este tema, por também incluir a pro-

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moção da saúde no planejamento das ações nos três níveis de gestão. Em 2002, o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil, do Ministério da Justiça, se constituiu em diretriz nacional de referência para as políticas públicas nos níveis federal, estadual e municipal (MJ, 2002). Nos eixos estratégicos estão entre outros: garantir à família, o atendimento especializado e em rede; instituir ações preventivas; promover o protagonismo juvenil, como sujeito ativo em defesa de seus direitos (Deslandes; Mendes, 2011). Outro marco importante foi a promulgação da Portaria GM/MS nº 936, de 18/05/2004 sobre a estruturação da Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde e a Implantação e Implementação de Núcleos de Prevenção à Violência em Estados e Municípios (Brasil, 2004). Em 2006, a Política Nacional de Promoção da Saúde, apoia ações efetivas para a prevenção de acidentes e violências, para o estímulo a cultura de paz, a partir da atuação sobre os fatores de proteção e de risco e sobre os determinantes sociais e econômicos, recomendandoa promoção de ambientes saudáveis e seguros, por parte da população, com adoção de estratégias intra e intersetoriais, interinstitucionais, interdisciplinares (MS, 2006). Como visto acima, em termos do aparato legal para o monitoramento e redução das situações de violência contra crianças e adolescentes, importantes avanços ocorreram desde a promulgação do Estatuto da Criança e Adolescente em 1990. Entretanto, os desafios ainda continuam em relação à implantação, acompanhamento e avaliação das diferentes ações previstas nas políticas públicas. O apoio do GAR na AP 5.1: uma proposta da Secretaria Municipal de Saúde – SMS A fim de nortear as políticas municipais de enfrentamento da violência, a SMS, iniciou em 2009 com a participação de profissionais de re-

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ferência o Núcleo Municipal de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências. Em 2010, foi constituído em cada AP, uma equipe de trabalho, com a participação de diversos profissionais dos setores da vigilância, ações e programas em saúde, saúde mental e serviço social, inicialmente com o esforço de ampliar o uso da ficha de notificação SINAN NET, mas também impulsionar as ações integradas e apoio às unidades de saúde notificadoras na expectativa de articulação das redes de cuidado/proteção/vigilância (SMS, 2010). No que se refere à violência armada, destaca-se a cooperação estabelecida com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha no ano de 2009 e que deu origem aos programas saúde mental e violência e acesso mais seguro, cuja participação de alguns profissionais do GAR se fez presente e atuam como multiplicadores e apoio aos profissionais da ESF e NASF. Estas oficinas visam dar suporte aos profissionais da atenção primária frente às situações de violência armada que ocorrem nos territórios e minimizar os riscos aos quais estes são expostos. O programa saúde mental e violência tem como objetivo potencializar e ampliar as estratégias de cuidado em saúde mental, através de oficinas de capacitação em saúde mental e violência para os profissionais de saúde da família, a fim de identificar e prestar atendimento às pessoas que apresentam sofrimento psíquico em decorrência de situações de violência. Outra atuação vem através do PSE, cuja política intersetorial tem como um dos seus principais objetivos: promover a saúde e a cultura de paz, reforçando a prevenção de agravos à saúde (MS, 2009). No Rio de Janeiro, tem a denominação de PSE Carioca e envolve as secretarias de saúde, educação, desenvolvimento social e casa civil, com atuação de profissionais no nível central e regional do município, com reuniões locais entre estes setores, cuja finalidade é identificar as necessidades, planejar as atividades e avaliar as ações específicas e essenciais de seus respectivos territórios.

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A cultura de paz e direitos humanos faz parte do projeto político pedagógico das unidades escolares, porém é um desafio para o setor saúde atuar para além das avaliações clínicas, ou de temáticas como saúde alimentar, doenças sexualmente transmissíveis, saúde bucal, dentre outras. Estas, mais ligadas às condições físicas e ao estilo de vida. Acrescentamos ainda o programa rede de adolescentes e jovens promotores da saúde (Rap da Saúde). Trata-se de um curso para adolescentes/jovens entre 14 e 24 anos de idade com foco no protagonismo juvenil e na participação em espaços de controle social. Metodologia As ações de prevenção da violência e promoção da saúde desenvolvidas na AP 5.1 foram identificadas a partir de três estratégias. Sendo a primeira estratégia a compilação dos relatórios das oficinas realizadas pelo NASF, cujo público alvo foi profissional de saúde das unidades da APS. A segunda estratégia foi obtida através do sistema de informação do PSE Carioca, que são registradas no Sistema Integrado de Monitoramento, Execução e Controle do Ministério da Educação (SIMEC). E, como terceira estratégia utilizada, o plano de oficinas realizadas na CAP 5.1 para os adolescentes/jovens, promovidas pela SMS, no 2º semestre de 2015 e 1º semestre de 2016. Resultado Na análise dos relatórios no ano de 2015, das oficinas promovidas pelo NASF foram capacitadas 264 ACS, 25 profissionais de nível superior, entre estesmédicos. Em relação às ações do setor saúde junto ao PSE Carioca estão demonstradas no Quadro 1. Como pode ser visto as ações desenvolvidas abordaram diversas temáticas voltadas para o respeito ao próximo e estímulo à cultura de paz, com a participação de pais, alunos e profissionais que atuam nestes espaços. Cada instituição escolar está

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referenciada a uma unidade de saúde, porém pela divisão territorial ou número de equipes existentes algumas acabam com um número maior de escolas no seu território. O que para alguns, foi um desafio a mais, visto um número maior de atividades executadas e em mais de uma linha deação. Em relação às ações do PSE, os dados nos mostram que 32 unidades escolares municipais foram cobertas, ao longo do ano letivo, com ações do PSE relacionadas à prevenção da violência e promoção da solidariedade e cultura de paz desenvolvida por profissionais de saúde, o que corresponde a 17,77% do total de 180 unidades escolares municipais incluídas na pactuação doPSE/2015. A unidade de saúde com maior número de ações realizadas foi a Clínica da Família Nildo E. Aguiar. Destaca-se que outras unidades da APS com maior número de ações foram o CMS Masao Goto e o CMS Henrique Monat. Estas últimas são unidades do tipo B com somente parte do território coberta por ESF. Quadro 1 – Ações voltadas para prevenção da violência e promoção da solidariedade e cultura de paz no programa saúde na escola e na creche (PSE Carioca) / ano 2015

NOME DA UNIDADE ESCOLAR

UNIDADE DE SAÚDE DE REFERÊNCIA

LINHAS DE AÇÃO (vide legenda)

Ubaldo de Oliveira Edson Carneiro Austragésilo de Athayde

CF Fiorello Raymundo

A, D e E

Guimarães Rosa

CMS Buá Boanerges da Fonseca

A, C

Henrique de Magalhães

CMS Waldyr Franco

E

Raphael Almeida Magalhães

CMS Athayde José da Fonseca

D

Creche Célia Alencar Baronesa de Saavedra

CF Faim Pedro

D

CF Nildo E. Aguiar

A, B, C, D, E

CIEP Henrique Teixeira Lott Villa Lobos Euzébio de Queiroz EDI Professora Zena Elian Corintho da Fonseca Creche Meimei Engenheiro JoãoThomé

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Marechal Mascarenhas de Moraes Condessa Pereira CMS Masao Goto

A, B, D

CF Rosino Baccarini

A

EDI Tania Maria Larrubia Gomes

CMS Alexander Fleming

A

Anna Amélia Roquete Pinto

CMS Manoel Guilherme da Silveira Filho

A, D

CMS Henrique Monat

A, D

CF Maria José de Sousa Barbosa

A, D

Lauro Muller Rosa da Fonseca Campos dos Afonsos Joaquim da Costa Ribeiro

Jorge Zarur Joana Angélica CIEP Vila Kennedy Creche Prof.ª Regina Maria da M. Montezano Rubem Berta EDI Maria do Carmo Sousa Piran Creche José Félix

CMS Silvio Barbosa

D

CIEP Padre Paulo Corrêa de Sá

CF Olímpia Esteves

A

FONTE: Sistema de Informação do PSE Carioca

LINHAS DE AÇÃO A. Promoção da cultura de paz e direitoshumanos. B. Promoção da saúde mental no território escolar: criação de grupos de famílias solidárias para encontros e trocas de experiências, com mediação da creche/escola e/ousaúde. C. Promoção da saúde mental no território escolar: criação de grupos entre pares para fomento e estímulo ao protagonismo de adolescentes e jovens para administrar conflitos no ambienteescolar. D. Promoção da garantia de direitos, fortalecendo os vínculos familiares ecomunitários. E. Formação de profissionais para prevenção de violências. Quanto aos relatórios das atividades desenvolvidas para o RAP da Saúde, foram identificados os temas “mediação de conflitos” e “refletindo sobre as violências e gentilezas”. E também, numa articulação da SMS, instituição filantrópica e através da Rede Não Bata Eduque

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ocorreram às oficinas de “rodas de diálogo sobre educação positiva” que valoriza a participação infanto/juvenil e o fim de castigos corporais e humilhantes. Participaram das oficinas respectivamente, 18, 16 e 10 participantes, sendo alguns deles com deficiência auditiva e que integram um dos grupos de RAP atuantes na AP5.1. Após as oficinas, os adolescentes de um dos pólos de atuação do Rap, em construção compartilhada, elaboraram um projeto para implementação das rodas de diálogo. Num primeiro momento tiveram como público alvo adulto e idoso do Programa Academia Carioca, com propostas para o segundo momento com adolescentes e jovens da comunidade. Discussão Ao chamar a atenção para o aumento da violência e suas consequências, a Organização Mundial de Saúde (OMS), publica seu Relatório Mundial sobre Violência e Saúde – RMVS, em uma referência ao enfrentamento da violência a partir de ações preventivas (Krug, et al, 2002). As oficinas de capacitação dos profissionais da ESF, NASF e Rap da Saúde, compreendem as ações voltadas para a sensibilização a respeito das medidas de prevenção da violência e permite uma atuação no campo da educação e informação junto a outros grupos e comunidades, o que segundo o relatório, o primeiro nível Individual, abrange as características pessoais, hábitos e comportamentos individuais, história anterior de vivência em ambientes de violência e agressão cuja ocorrência aumenta a probabilidade da perpetração da violência. As discussões realizadas na escola para os grupos de pais e responsáveis chama a atenção para as relações familiares e parceiros íntimos, pois o segundo nível relacional, nos relata que a convivência diária em relações conflituosas pode ser um campo para a ocorrência de mais tratos eabusos.

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Estas capacitações em violência promovida pelo GAR e parceiros, às articulações intersetoriais e a própria demanda das unidades escolares por questões de conflitos locais podem ter contribuído para um maior número de ações em alguns territórios em detrimento de outros. As articulações intersetoriais se fazem necessárias, principalmente para que se aprimore o olhar para as sutilezas dos atos de violência e se pense em formas de estruturar o serviço, a fim de contemplar os grupos que muitas vezes estão fora da Unidade de Saúde, da Escola, mas são alvos dos mais diversos tipos e natureza das violências. Por outro lado, à estratégia de cuidado em saúde mental já implementada pelos NASF, proporciona também um atendimento integral que visa não apenas o tratamento e encaminhamentos adequados à rede de atenção, mas permite a estes profissionais o uso de técnicas de abordagens mais adequadas às pessoas que apresentam sofrimento psíquico em decorrência de situações de violência (CICV, 2013). A parceria intersetorial educação e saúde possibilita a discussão junto à comunidade, na perspectiva de ambientes saudáveis e solidariedade entre vizinhos (terceiro nível – comunitário). A promoção da saúde desses jovens e a intersetorialidade favorece a integração entre a escola comunidade e outras instituições de proteção à criança e adolescente. No quarto nível, o social, a violência é favorecida pelas desigualdades sociais em função do desemprego, pelo baixo nível de escolaridade; pelos fatores culturais que aceitam a violência como tática lícita para resolução de conflitos e normas que valorizam o poder do homem sobre mulheres e crianças. As discussões junto aos mais variados grupos, como foi realizado nas escolas, tem a perspectiva de apreender e reformular o conhecimento tornando o indivíduo com habilidades para melhorar a sua qualidade de vida. Ou seja, é necessário fortalecer os fatores que possibilitem interromper a sequência de perpetração da violência, incentivar práticas de promoção e cuidados que possibilitem a vida digna e o respeito ao outro e favorecer as ações integradas e articuladas onde a responsa-

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bilidade e atuação compete a cada instância, mas os objetivos têm o caráter de atingir a coletividade (Ferreira,2009). Conclusão Este trabalho nos permitiu conhecer algumas ações desempenhadas pelos vários profissionais que atuam na AP 5.1, a partir de documentos encontrados na CAP e SMS. Num segundo momento esta aproximação das atividades voltadas para a promoção da solidariedade e cultura de paz, nos traz desafios, pois precisam envolver diferentes contextos e serem ampliadas para também outras unidades de saúde e demais espaços para envolver cada vez mais indivíduos que sofrem ou cometem a intolerância, os conflitos e/ou agressões. Cabe a saúde também a criação de ambientes saudáveis. Assim, estas estratégias apresentadas, nos permitem refletir sobre a crescente caminhada para uma atuação intersetorial, integrada que possibilite ainda mais o fortalecimento das atuações já desempenhadas. Espera-se, em especial, que a capacitação dos jovens do Rap da Saúde para atuarem entre pares contribua para a redução de comportamentos de risco, construção da cidadania e aproxime-os dos adultos ou jovens pais, possibilitando-os formas de pensar em educar sem uso de violência, respeitando o direito da criança e adolescente de expressar sua opinião e plena consciência dos seus direitos e deveres. Agradecimentos Os autores agradecem aos profissionais da Coordenação da AP 5.1 Tatiane Caldeira e Erivelto Medeiros pelo apoio e confiança no trabalho desenvolvido pelo GAR.

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3.6. Caracterização das vítimas de violência doméstica, sexual e/ou outras violências no Brasil – 2014 Characterization of victims of domestic violence, sexual and / or other violence in Brazil – 2014 Raniela Borges Sinimbu Márcio Dênis Medeiros Mascarenhas Marta Maria Alves da Silva 1

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Mércia Gomes Oliveira de Carvalho Morgana Rodrigues dos Santos Mariana Gonçalves Freitas

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5

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Resumo A violência é um fenômeno sociohistórico que afeta a saúde individual e coletiva. Este artigo tem por objetivo descrever os casos de violência doméstica, sexual e/ou outras violências notificados por meio do Sistema de Vigilância de Violência e Acidentes (VIVA). Trata-se de estudo descritivo, retrospectivo, realizado com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), abrangendo notificações realizadas no ano de 2014 no Brasil. A violência física foi a mais notificada. Na maioria dos casos a violência ocorreu na própria residência e o agressor tinha relação de proximidade com a pessoa em situação de violência. As maiores proporções de casos notificados foram identificadas entre adultos e adolescentes, em ambos os sexos, porém em todas as faixas etárias há predomínio no sexo feminino. Palavras-chave: Violência; violência doméstica; lesões autoprovocadas; epidemiologia

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Abstract Violence is a socio-historical phenomenon that affects the individual and collective health. The article aims to describe the cases of violence reported by the Violence and Injury Surveillance System. It is a descriptive, retrospective study with the Notifiable Diseases Information System data, including reports of violence carried out in 2014 in Brazil. Physical violence was the most notified. In most cases the violence occurred in their own home and the abuser had close relationship with the victim. The highest rates of reported cases have been identified among adults and adolescents, in both sexes, but in all age groups, there is a predominance in females. Keywords: Violence; domestic violence; self-harm injuries; epidemiology 1

Enfermeira. Especialista em Terapia Intensiva. E-mail: ranielasinimbu@gmail.com. Universidade Federal do Piauí. 2 Enfermeiro, Doutor em Ciências Médicas. E-mail: mdm.mascarenhas@gmail.com. Universidade Federal do Piauí. 3 Médica. Mestre em Saúde Coletiva. E-mail: marta.silva@saude.gov.br. Secretaria de Vigilância em Saúde. Ministério da Saúde. 4 Fisioterapeuta. Mestre em Ciências da Nutrição. E-mail: mercia.carvalho@saude.gov.br. Secretaria de Vigilância em Saúde. Ministério da Saúde. 5 Assistente Social. E-mail: morgana.santos@saude.gov.br. Secretaria de Vigilância em Saúde. Ministério da Saúde. 6 Farmacêutica-Bioquímica. Mestre em Epidemiologia-Saúde Pública. E-mail: mariana.freitas@saude. gov.br. Secretaria de Vigilância em Saúde. Ministério da Saúde.

Introdução O fenômeno da violência é um processo multicausal caracterizado pelo uso de força física ou poder contra um indivíduo, grupo ou comunidade, que resulte em sofrimento, morte, dano psicológico, prejuízo ao desenvolvimento ou privação. Pode expressar-se de variadas formas e atingir qualquer indivíduo independentemente de faixa etária, do sexo, da posição social ou da etnia. Apresenta raízes históricas, culturais, econômicas e sociais1,2. É fundamental conhecer as características de um problema de saúde pública tão desafiador como é o caso da violência. Assim, o presente artigo tem como objetivo descrever os casos de violência notificados nos serviços de saúde por meio do Sistema de Vigilância de Violência e Acidentes (VIVA), o qual dá visibilidade ao tema,

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possibilitando a criação de Políticas Públicas voltadas à prevenção da violência, da promoção da saúde e da cultura depaz. Contextualização da violência como problema de saúde pública A violência pode ser classificada em: física, psicológica/moral, sexual e negligência ou abandono1,2. De maneira geral crianças, mulheres e pessoas idosas são as vítimas mais frequentes por serem consideradas populações vulneráveis3. Cabe ressaltar, que com a transição demográfica e o envelhecimento populacional a violência contra a pessoa idosa acompanhou a tendência crescente. Em muitas situações os atos de agressão são naturalizados, por isso muitas pessoas não os identificam como violência. Casos de violência contra a mulher, em geral, são banalizados, em função de aspectos culturais, devido à herança de uma sociedade machista e patriarcal. Na maioria das situações, os atos são praticados por agressores conhecidos ou mesmo membros do ciclo familiar da pessoa que sofre violência4. Outros segmentos populacionais, como crianças e pessoas idosas também são vítimas de violência e omissões que resultam em sofrimento desnecessário, violação dos direitos humanos e redução na qualidade devida5. O fenômeno se configura como um dos problemas mais relevantes na sociedade atual. Pode ser encontrado em todas as classes sociais, desde as classes mais baixas até as mais abastadas no País. Conforme a Pesquisa Nacional de Saúde, a prevalência de violência cometida por pessoa conhecida na população adulta no Brasil em 2013 foi de 2,5% (IC95%: 2,3-2,7), significativamente maior entre as mulheres - 3,1% (IC95%: 2,8-3,5) - quando comparadas aos homens - 1,8% (IC95%:1,6-2,1)6. A violência, por ser um fenômeno sociohistórico acompanhado de experiência da humanidade, torna-se problema de saúde pública porque afeta a saúde individual e coletiva, e para sua prevenção e tratamento, exige formulação de políticas específicas e organização de práticas e de serviços peculiares ao setor4.

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Além disso, a violência onera o sistema de saúde devido às despesas com cuidados hospitalares, a redução dos anos de vida produtiva, a possibilidade de deixar sequelas às vítimas e o aumento da mortalidade. Percebe-se ainda que não só a vítima sofre com a agressão; a família, os cuidadores e profissionais de saúde também são envolvidos4. No Brasil, o início da década de 1980 teve uma forte mobilização sobre a temática - violência contra a mulher. Sua articulação em movimentos próprios e uma busca por parcerias com o Estado para a resolução desta problemática, resultaram em várias conquistas. Um fato que representou o marco histórico a essa luta foi aprovação da Lei Maria da Penha de nº 11.340, que entrou em vigência no dia 22 de setembro de 2006, depois de ter sido amplamente discutida7. As Leis 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) e a 11.340/2006 (Maria da Penha) trouxeram resultados positivos em vários aspectos para esses grupos vulneráveis, mas o enfrentamento da violência é ainda um grande desafio da sociedade brasileira, que deve ser sensibilizada na tentativa de coibir todos os tipos de violência com intuito de prevenir esses atos agressores7-9. Apesar do tema violência figurar no cenário das políticas sociais como um importante problema de Saúde Pública no Brasil, há escassez de estudos que permitam a identificação de sua magnitude na população em geral. Alguns estudos existentes dimensionam o problema em seguimentos populacionais específicos10-12, em áreas geográficas de abrangência limitada ou apenas em serviços selecionados13, mas não exploram a distribuição do evento em dimensãonacional. Atualmente, a Vigilância de Violência e Acidentes (VIVA) do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) está implantada em apenas de 60% dos municípios brasileiros e tem como objeto de notificação a violência doméstica/intrafamiliar (física, psicológica/moral, financeira/econômica, negligência/abandono) sexual, autoprovocada, tráfico de pessoas, trabalho escravo, trabalho infantil, tortura, intervenção legal contra mulheres e homens de todas as idades. Para melhor qualificar o registro das informações, o Instrutivo de Notificação

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de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências14 destaca os seguintes conceitos: • Violência física (sevícia física, maus-tratos físicos ou abusofísico) Atos violentos, nos quais se faz uso da força física de forma intencional, não acidental, com o objetivo de ferir, lesar, provocar dor e sofrimento ou destruir a pessoa, deixando, ou não, marcas evidentes no seu corpo. • Violênciapsicológica Toda forma de rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito, cobrança exagerada, punições humilhantes e utilização da pessoa para atender às necessidades psíquicas de outrem. • Tortura Ato de constranger alguém com emprego de força ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental com a finalidade de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa, provocar ação ou omissão de natureza criminosa, em razão de discriminação racial ou religiosa. • Violência sexual Qualquer ação na qual uma pessoa, valendo-se de sua posição de poder e fazendo uso de força física, coerção, intimidação ou influência psicológica, com uso ou não de armas ou drogas, obriga outra pessoa – de qualquer sexo – a ter, presenciar, ou participar, de alguma maneira, de interações sexuais ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, com fins de lucro, vingança ou outraintenção. • Tráfico de seres humanos Inclui o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento de pessoas, recorrendo à ameaça, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade, ao uso da força ou a outras formas de coação, ou à situação de vulnerabilidade, para exercer prostituição, ou trabalho sem remuneração, escravo ou de servidão, ou para remoção e comercialização de órgãos, com emprego ou não de força física.

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• Violência financeira (econômica) Ato de violência que implica dano, perda, subtração, destruição ou retenção de objetos, documentos pessoais, bens e valores de outrem. • Negligência(abandono) Omissão pela qual se deixou de prover as necessidades e os cuidados básicos para o desenvolvimento físico, emocional e social de outrem. • Trabalho infantil É o conjunto de ações e atividades desempenhadas por crianças (com valor econômico direto ou indireto), inibindo-as de viver plenamente sua condição de infância e adolescência. • Intervenção legal Ato violento praticado durante intervenção por agente legal público, isto é, representante do Estado, polícia ou de outro agente da lei no uso da sua função. • Outros Qualquer outro tipo de violência não contemplado nas categorias anteriormente citadas.

Metodologia Estudo descritivo, retrospectivo, realizado com dados obtidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação – versão Net (Sinan Net) abrangendo as notificações de violência doméstica, sexual e/ou outras violências no Brasil realizadas no período de 01 de janeiro a 31 de dezembro de 2014. Para os fins de notificação no Sinan Net, a violência é considerada como “o uso intencional de força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade que resulte ou tenha possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação”15.

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Segundo diretrizes do Ministério da Saúde14, compõem o objeto de notificação de violência no Sinan Net, os casos suspeitos ou confirmados de violência doméstica / intrafamiliar (física, psicológica/ moral, financeira/econômica, negligência/abandono,) sexual, autoprovocada, tráfico de pessoas, trabalho escravo, trabalho infantil, tortura, intervenção legal contra mulheres e homens de todas as idades. No caso de violência extrafamiliar/comunitária, somente serão objeto de notificação as violências contra crianças, adolescentes, mulheres, pessoas idosas, pessoas com deficiência, pessoa com transtornos mentais, indígenas e população identificada como lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT). Os dados deste artigo foram captados por meio da Ficha de notificação/ investigação individual de violência doméstica, sexual e/ou outras violências, que contém variáveis sobre: vítima/pessoa atendida, ocorrência, tipologia da violência, consequências da violência, lesão, provável agressor, evolução e encaminhamentos. A ficha é preenchida nos serviços de saúde e outras fontes notificadoras e os dados são digitados no Sinan Net no nível municipal e transferidos para as esferas estadual e federal para compor a base de dados nacional. As notificações de violência foram divididas em quatro grupos, quais sejam: crianças (0 a 9 anos), adolescentes (10 a 19 anos), adultos (20 a 59 anos) e pessoas idosas (≥60 anos). Em cada um desses grupos, os dados foram analisados segundo: características demográficas das vítimas (sexo, raça/cor da pele, escolaridade, presença de deficiência ou transtorno); características da ocorrência (local, violência de repetição, natureza da lesão, parte do corpo atingida, evolução); tipo de violência e meio de agressão; características do agressor (sexo, tipo, suspeita de consumo de bebida alcoólica). Os registros foram importados do Sinan Net, tabulados e analisados por meio dos programas Excel e Stata versão 11 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos).

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Os dados aqui apresentados fazem parte das grandes bases de informação do Sistema Único de Saúde (SUS), amplamente divulgadas e disponibilizadas no sítio do DATASUS, sem permitir o conhecimento da identidade das vítimas cujos registros constam dos bancos analisados. Desta forma, não foi necessário submeter o protocolo deste estudo à apreciação de um Comitê de Ética em Pesquisa. Foram garantidos o anonimato e a confidencialidade das informações nos registros para preservar a identidade dos indivíduos que compunham a base de dados analisada, conforme diretrizes da Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde. Resultados Na presente análise foram considerados os dados do ano de 2014 do VIVA, quando foram realizadas 197.156 notificações. Destas, 53.708 ocorreram entre homens e 143.448, entre mulheres. Em relação à faixa etária, 30.240 (16%) dos casos foram registrados entre crianças de zero a 9 anos de idade, 53.821 (27%) dos casos ocorreram entre adolescentes de 10 a 19 anos, 100.798 (51%) dos casos atingiram adultos de 20 a 59 anos, 12.297 (6%) foram de idosos com 60 ou mais anos (Figura 1). A caracterização das vítimas de violência notificadas no Brasil em 2014 encontra-se descritas nas tabelas 1 e 2. Em relação à raça/cor da pele, houve predomínio de pardos e brancos em todas as faixas etárias e ambos os sexos. Quanto aos anos de escolaridade, verificou-se que do total das notificações, 15% eram crianças com zero a quatro anos de estudo. Entre os adolescentes, 28,8% tinham de 5 a 8 anos de estudo e 19,11%, de 9 a 11 anos. Entre as pessoas idosas, figuram em maior proporção de acometidos por violência aquelas que tinham menor escolaridade(34,2%). Figura 1 – Distribuição proporcional das notificações de violência doméstica, sexual e/ou outras violências segundo grupo etário da vítima. Brasil, 2014

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Fonte: Ministério da Saúde (MS), Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA).

No que diz respeito ao local de ocorrência da violência, mais da metade das vítimas sofreram agressões no domicílio, seguido por agressões ocorridas em via pública, em todas as faixas etárias. Proporções no domicílio e via pública: pessoas idosas com 70,4% e 10,1%, adultos com 65,7% e 14,3%, adolescentes com 48,6% e 22,5% e crianças com 65,7% e 6,1%. As violências contra crianças e adolescentes apresentaram uma proporção considerável quando se analisa o ambiente escolar: crianças com 3,2% e adolescentes com 4,4%. Quanto ao atendimento prestado às pessoas que sofreram violência, predominou a necessidade de assistência às vítimas de violência física: crianças (29,9%), adolescentes (64,4%), adultos (80,0%) e idosos (62,0%). Em relação às outras formas de violência, destaca-se a violência psicológica/moral e violência sexual: crianças (16,9% e 27,4%), adolescentes (23,1% e 24,1%), adultos (33,1% e 6,0%) e pessoas idosas (28,2% e 2,1%), com predomínio para vítimas do sexo feminino.

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Os atos de negligência mostram-se mais expressivos quando acometem crianças (51,6%) e pessoas idosas (26,4%), neste último grupo etário chama atenção também a ocorrência da violência financeira (7,4%). Cabe destacar que em relação à violência de repetição, as pessoas idosas representam 36,3%, os adultos 37,8%, os adolescentes 28,4% e as crianças 25,5%. Destaca-se importante proporção do não registro das variáveis raça/cor, escolaridade, bem como a falta de informação no que diz respeito ao local de ocorrência da violência. Quanto aos dados do provável autor da violência, na maior parte das notificações, tratava-se de pessoa com relação de proximidade com a vítima. Entre as crianças os prováveis autores mais relatados foram: a mãe (44,2%), o pai (27,8%) e amigos/conhecidos (10,2%); quanto aos adolescentes: amigos/conhecidos (18,9%), desconhecidos (15,0%), a mãe e o pai (11,1% e 10,4%); nos adultos: cônjuge (27,5%), própria pessoa (17,5%), ex-cônjuge (9,8%) e nas pessoas idosas: filho (28,4%), cônjuge (9,0%), amigos e desconhecidos (10,1% e 10,9%), ressalta-se ainda nessa faixa etária, irmão (3,0%) e cuidador (2,8%). Chama atenção a elevada proporção da violência contra a própria pessoa (autoprovocada) nas diferentes faixas etárias: nos homens adultos (47,5%), nas mulheres adultas (16,4%), nas adolescentes (14,7%), e homens idosos (12,4%), nos adolescentes (10,6%) e mulheres idosas (10,5%). Observou-se, por parte do provável autor da agressão, a suspeita de ingestão de bebida alcoólica: em pessoas adultas (32,2%), em pessoas idosas (22,9%) e em adolescentes (17,7%). Ressalta-se o número de casos que evoluíram para óbito pela violência: crianças (0,5%), adolescentes (1,2%), pessoas adultas (1,5%) e pessoas idosas (2,9%). Ainda há elevada proporção de não preenchimento desta variável nas diferentes faixas etárias: crianças (44,1%), adolescentes (32,3%), adultos (35,9%) e pessoas idosas(39,55%). Tabela 1 - Caracterização das vítimas de violência doméstica, sexual e/ou outras violências entre crianças e adolescentes segundo sexo. Brasil, 2014.

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Fonte: Ministério da Saúde (MS), Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA). a

Não corresponde a 100%, pois se trata de uma questão de múltipla escolha.

Tabela 2 - Caracterização das vítimas de violência doméstica, sexual e/ou outras violências entre adultos e pessoas idosas segundo sexo. Brasil, 2014

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Fonte: Ministério da Saúde (MS), Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA). a

Não corresponde a 100%, pois se trata de uma questão de múltipla escolha.

Discussão Considerando os dados apresentados pode-se afirmar que as maiores proporções de casos notificados foram identificadas entre adultos e adolescentes, em ambos os sexos, porém em todas as faixas etárias há um predomínio para o sexo feminino, sendo mais expressivo nas mulheres adultas e adolescentes. Sendo a violência física a mais notificada em 2014, tendo como provável autor da agressão um conhecido ou alguém que possui uma relação de proximidade com avítima. A população adulta é mais acometida nos atos violentos, mas vale destacar a violência perpetrada por parceiros íntimos contra as adolescentes e mulheres adultas, causando grande impacto para sociedade e família, esses achados revelam as desigualdades de gênero e dominação de homens em relação às mulheres nas relações afetivas, consequentes à naturalização dos atos de violência pela sociedade brasileira12,17. Em relação às variáveis raça/cor da pele, o elevado percentual de “sem informação” pode indicar que tal informação não foi priorizada pelos profissionais da saúde. Destaca-se a importância deste dado para mensurar as desigualdades sociais e sua associação com ocorrência da violência.

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As características da ocorrência de violência demonstram que a residência foi o lócus mais frequente, seguido da via pública, corroborando com outros estudos12,17 que afirmam que os casos de violência costumam ocorrer onde vive, trabalha, estuda e se diverte a população comum10,16. Conforme observado, a violência doméstica contra a criança frequentemente acontece no seio familiar, podendo ocorrer por fatores externos, políticos, sociais e morais. Configura- se por meio de constrangimentos e abusos praticados por pais ou parentes, responsáveis ou não, pela criança ou adolescente5. Os atos de negligência estão presentes em maior proporção nos grupos vulneráveis: crianças, adolescentes e pessoas idosas, pois eles não têm condições de fazer a denúncia ou notificação formal3,12. Além de se considerar o predomínio das relações de poder, os aspectos culturais e socioeconômicos. A violência contra a mulher tem raízes profundas que estão situadas ao longo da história, traz em seu seio as relações mediadas por uma ordem patriarcal predominante na sociedade, a qual atribui aos homens o direito a dominar e controlar suas mulheres, podendo em certos casos, atingir os limites da violência18. No sexo feminino, a violência doméstica ocorre principalmente na fase adulta, e essa correlação positiva entre o aumento da idade e a notificação da violência pode ser explicada pelo melhor acesso das mulheres que residem nos centros urbanos aos serviços sociais, legais e de saúde. Entretanto, ainda existem casos de subnotificação, aspecto que pode ser explicado pela invisibilidade da violência pela sociedade12,17, além da necessidade de aprimorar a qualificação do profissional de saúde para identificar as várias faces da violência que podem estar presentes em seus atendimentos e desta forma selecioná-los como casos para notificação O enfrentamento ao fenômeno da violência contra mulher é de responsabilidade de todos: Estado e Sociedade Civil precisam seco-responsabilizar.

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A forte tendência mundial e brasileira de envelhecimento populacional torna importante nosso olhar à condição de vulnerabilidade social das pessoas idosas, e nesse aspecto, geram-se impactos sociais que precisam ser analisados de uma forma multidimensional. Os dados apresentados no estudo corroboram com outros estudos sobre a notificação de violência18,19, inclusive contra a pessoa idosa e sobre os fatores associados à violência doméstica contra a pessoa idosa3,10,20. O fenômeno foi mais frequente entre pessoas do sexo feminino, ocorreu predominantemente na residência, de forma repetida, e foi perpetrada por filhos (as) ou parceiros21. A violência contra pessoa idosa se propaga principalmente no ambiente familiar, por isso, muitas vezes a vítima envergonhada e com medo acaba por não denunciar, tornando esse problema subnotificado e subdiagnosticado, o que impede a adoção de medidas legais e a efetivação do Estatuto do Idoso5. Além disso, indivíduos nessa faixa etária costumam sofrer violência psicológica/moral e financeira, ambas de difícil identificação, o que corrobora para justificar, embora parcialmente, os baixos números de notificação3,10,21. Quanto ao perfil dos agressores, nos atos de violência física, psicológica/moral e sexual, o cônjuge ou ex-cônjuge são os principais possíveis agressores das vítimas entre mulheres adultas e as adolescentes. Já nas crianças, adolescentes e pessoas idosas os atos de negligência ocorreram com maior frequência sendo o principal autor da agressão a mãe ou o pai, e no caso das pessoas idosas o (a) filho(a)17. Na maioria das vezes a ocorrência de atos violentos se deve a baixa inserção socioeconômica das vítimas e baixa escolaridade, portanto, fatores socioeconômicos, culturais, dentre outros explicariam estas diferenças16. Porém, os dados do VIVA 2014 mostram que o maior número de notificações está no grupo de maior escolaridade, entre 12 anos e mais de estudo. Isto pode se justificar pelo fato de serem as mulheres adultas que mais sofrem violências e que procuram o serviço de saúde.

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Neste contexto, é fundamental que no processo de educação sejam discutidos temas transversais que abordem as relações de gênero, o respeito às diversidades, à promoção da cultura de paz e outros temas que tragam a reflexão dos direitos humanos. Ao se adotar as políticas públicas transversais, objetivando a igualdade entre homens e mulheres, encontra-se um norte a trilhar na busca de um caminho que modifique o panorama da violência em geral e a de gênero em particular. Conclusão Embora o banco de dados nacional de notificações de violência seja submetido a um processo de análise de consistência e duplicidade, ainda há de se aprimorar o processo de registro das notificações no nível local, pois os casos sem informação acarretam prejuízo na análise. Na medida em que se qualifica o banco de dados obtém-se melhores subsídios para a elaboração de políticas públicas. Com este estudo é possível considerar que a violência é um fenômeno universal que afeta diferentes grupos sociais e etários e que no Brasil, apesar de nos últimos 12 anos, terem sido elaboradas e implantadas políticas públicas para o seu enfrentamento, a complexidade do tema ainda requer esforços para identificar seus fatores de riscos e causas, no intuito de garantir a prevenção da violência, a promoção da saúde e a cultura de paz. Referência bibliográfica 1. Abath MB, Leal MCC, Melo Filho DA, Marques APO. Physical abuse of older people reported at the Institute of Forensic Medicine in Recife, Pernambuco State,Brazil. Cad Saúde Pública 2010;26(9):1797-1806. 2. Souto RQ, Araújo FKCD, Cavalcanti AL. Violência sexual: análise de dados relacionados ao atentado violento ao pudor. Rev Bras Promoç Saúde 2012; 25(2):235-242. 3. Carvajal FU, Fernádez RR, Abreu RLV. Violencia doméstica en la

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3.7. Mortalidade por agressões e lesões autoprovocadas voluntariamente: reflexões sobre a realidade brasileira Mortality by aggression and self-harm: reflections on the Brazilian reality

Aline de Carvalho Martins Camila Rebouças Fernandes 1

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Resumo O estudo aponta as mudanças no perfil de mortalidade associada às agressões e a lesões autoprovocadas voluntariamente, considerando as variáveis de faixa etária, sexo e raça/cor, na última década. Trata-se de uma pesquisa descritiva, de abordagem quantitativa, com base nos dados disponibilizados pelo DATASUS. Verificou-se um aumento nos assassinatos e suicídios durante o período analisado, o que sinaliza uma maior exposição da população brasileira à violência. A mortalidade se concentra nos adultos jovens, porém os extremos do ciclo de vida foram acometidos pelos maiores aumentos estatísticos. No que diz respeito à cor, verifica-se um extermínio da população indígena e aumento na mortalidade do grupo pardo. Quanto as mulheres, sua mortalidade está em crescimento desde o início dadécada. Palavras-chave: Mortalidade-causas externas; violência; homicídio; suicídio Abstract The study to point out the changes in mortality profile associated with aggression and self- harm, considering the variables of age, gender and race/color in the last decade. This is a descriptive and retrospective study with a quantitative approach, based on data provided by DA-

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TASUS. There was an increase in the murders and in suicides during the study period, which indicates greater exposure of the population to violence. The mortality is still concentrated in young adults, but the cycle extremes of life were affected by major statistical increases. With respect to color, there is an extinction of the indigenous population and increase in mortality in the group brown. As for women, their mortality is on the rise since the beginning of the decade. Key words: Mortality-external causes; violence; homicide; suicide 1

Assistente Social. Doutora em Política Social e Serviço Social. E-mail: rjalinemartins@yahoo.com.br

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Assistente Social. Residente no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Criança e do Adolescente Cronicamente Adoecidos. E-mail: camila-fernandees@hotmail.com

Introdução A mortalidade não atinge a pessoas de todas as cores, sexo e idade igualmente e nem toda mortalidade é uma fatalidade inevitável. Muitas mortes são evitáveis, as quais estão relacionadas às causas externas. Para fins deste artigo, nos propomos a pensar na mortalidade por causas externas em que a violência teve o objetivo de atingir uma pessoa de forma deliberada. Trata-se de pensar a ação deliberada de um sujeito para atingir uma pessoa em particular (ainda que a si próprio). Por isso, iremos analisar as mortalidades por agressões (ou seja, os assassinatos), por serem a forma mais explícita e direta da violência, e também as lesões autoprovocadas voluntariamente (os suicídios), já que estes também expressam e comportam a violência auto infligida em sua dimensão mais intensa. Estas mortes também estão associadas às políticas públicas, pois nos remetem à segurança - ou à falta dela - nos casos das agressões e também à insatisfação com a qualidade de vida – nos casos de suicídio. É possível afirmar que estas mortes constituem pautas importantes para saúde, segurança, assistência social, associando-se assim

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à forma como as políticas públicas estão organizadas no país. Seu enfrentamento demanda a formulação, a implementação, a avaliação e o monitoramento de políticas públicas específicas voltadas para os públicos acometidos por esse fenômeno. Deste modo, o presente artigo visa identificar e refletir sobre o comportamento dos óbitos resultantes de agressão e lesão autoprovocada voluntariamente na última década disponível para análise no DataSUS, ou seja, 2004-2014 3 e discriminar sua associação, segundo as variáveis correspondentes à faixa etária, sexo e raça/cor. Histórico e contextualização da violência De acordo com a Classificação Internacional de Doenças – 10ª Revisão (CID 10), como causas externas são considerados: acidentes de transportes, outras lesões acidentais, agressões, lesões autoprovocadas voluntariamente, eventos cuja intenção é indeterminada, intervenções legais e operações de guerra, complicação na assistência médica e cirúrgica, sequelas de causas externas e fatores suplementares relacionados à outras causas. No ano de 2014, no Brasil, das 1.222.381 mortes que ocorreram em todo o país, 155.610 (ou seja, 12,73%), foram mortalidades associadas a causas externas. Esta constitui a terceira causa de mortalidade no país, com números inferiores apenas aos das doenças do aparelho circulatório e das neoplasias (1). As mortes por causas externas - acidentes ou violências – se estabelecem historicamente e possuem associações diretas e indiretas com o âmbito público (2). Segundo a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, a violência apresenta enraizamentos nas estruturas sociais, econômicas e políticas, além de participações e consciências individuais, de modo que o fenômeno constitui uma relação dinâmica entre os diversos envolvidos (3) (p.1). É neste contexto que “os diversos grupos são atingidos por diferentes

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tipos de violência com consequências distintas” (3) (p.3), pois a violência expressa diferentes níveis de cidadania, à medida que atinge pessoas de forma distinta em função de sua cor, sexo ou idade. Nem toda a mortalidade por causas externas está associada à violência (vide, por exemplo, mortes decorrentes de acidentes), já que em alguns casos inexiste a intenção deliberada de atingir a pessoa falecida. Já a mortalidade associada à violência, abrange aspectos referentes aos estilos de vida e conjunto de condicionantes sociais, históricos e ambientais nos quais há biografias de vida e projeções de futuro em questão (3). É preciso identificar e compreender quais grupos estão sendo exterminados, ou estão se identificando com vivências tão desprovidas de sentido, que eliminar a vida passa a ser uma proposta viável. Os indicadores de gênero, cor/raça, geração e classe social, compõem uma síntese de indicadores utilizados para a classificação e hierarquização dos indivíduos em sociedade (4). Esta lógica de hierarquização vai reger o aniquilamento de determinados sujeitossociais. As mortes geradas pela violência e dirigidas de maneira voluntária e intencional para os indivíduos estão sempre associadas a motivações (mesmo que motivações consideradas fúteis), o que demanda identificar os grupos mais atingidos, os processos e as mudanças associadas à essas mortalidades, dada a sua possibilidade de prevenção. A violência, definida como: o uso intencional da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (5) (p.5), possui um indubitável poder de prejuízos ou danos para a saúde e este quadro se torna ainda mais trágico quando o desfecho é a mortalidade. 3

Os dados de 2014 são preliminares.

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Nos casos de mortalidade, são nítidos os prejuízos para o desenvolvimento e a riqueza do país, pois tratam-se de milhares de pessoas que morrem prematuramente, a maioria saudável e em idade produtiva. Além disso, pessoas que morrem por violência também deixam de participar do acompanhamento da educação de seus filhos, supervisão destes para melhores condições de vida, bons tratos, melhorias de suas qualificações pessoais como maior escolarização e os benefícios dela decorrentes, dentre outros, gerando prejuízo para asociedade. Os óbitos oriundos de situações de violência, seja por agressão ou por violência autoprovocada, afetam um número maior de pessoas do que aquelas que se encontram diretamente envolvidas (6). Seus efeitos extrapolam o “sofrimento individual e coletivo, incidindo na cultura e no modo de viver das pessoas” (6) (p. 1). Isso faz com que os sujeitos atingidos indiretamente devam ser alvos de atenção por parte das políticas públicas. Estes óbitos – todos eles considerados evitáveis – somam 69.442 vidas eliminadas no ano de 2014 e respondem por 5,68% da mortalidade geral brasileira no mesmo ano (1). É importante avaliar sua evolução, já que conhecer o comportamento destes óbitos permite pensar estratégias para a sua superação, principalmente pelo investimento junto aos grupos mais atingidos. Metodologia Trata-se de uma pesquisa descritiva, de abordagem quantitativa, com base nos dados disponibilizados pelo Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos – SINASC/DATASUS. Esta pesquisa tem como intuito identificar mudanças e continuidades nos indicadores de mortalidade por violência explícita e direcionada para um indivíduo em particular (mortalidade por agressão e mortalidade por lesão autoprovocada voluntariamente), relacionadas à idade, ao sexo e à raça/cor. Avaliamos como importante estes indicadores, pois os marcadores de gênero, geração e etnia, são constitutivos de melhores ou piores con-

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dições de vida e proteção nos diferentes países, e, em particular, no Brasil, considerando a grande desigualdade social do país. Elegemos para análise os dados disponíveis no DataSUS, banco de dados público, de acesso livre e com informações de alta fidedignidade, abrangendo todos os óbitos ocorridos no Brasil. As tabelas a seguir foram geradas pelo próprio DataSUS, em sua página da Internet. O espaço temporal limitou-se à última década disponível para análise, ou seja, os anos de 2004 a 2014, na base de dados referente à óbitos por causas externas. Este recorte foi feito com o objetivo de se realizar uma discussão concomitante com dados atualizados, propiciando uma leitura condizente com a realidade atual. Realizamos, então, uma associação entre os óbitos ocasionados por agressão e as variáveis de idade, sexo e raça/cor. Em um segundo momento, foi feito uma associação entre os óbitos originados por lesões autoprovocadas voluntariamente e as mesmas categorias. Vale ressaltar que os dados de 2014 ainda são preliminares, mas optamos por incorporar estes dados na análise, já que são poucas as possíveis mudanças que estes podem sofrer e entendemos que estas pequenas mudanças não alterariam as reflexões realizadas, além de comportarem o benefício de trazer para a discussão os dados mais atualizados possíveis. Posteriormente, realizamos uma análise sobre as tendências de mortalidade da última década, buscando problematizar os achados à luz da literatura brasileira. Esta análise foi realizada, articulando os estudos científicos nacionais com os dados fornecidos pelo DataSUS. Esta é uma pesquisa sem participação direta de seres humanos. Em virtude disso, não necessita de registro no Comitê de Ética em Pesquisa, conforme a resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (7). Resultado e Discussão As mortes por agressão vêm apresentando um crescimento sistemático no Brasil. Se considerarmos todas as faixas etárias, em uma década, observamos o aumento de 10 mil mortes anuais, devido às

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agressões. Cabe destaque ao aumento importante do número de mortes a partir do ano de 2012, no país em geral e de um novo salto também no ano de 2014.

Fonte: MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM

De acordo com os dados fornecidos pela tabela acima, é possível afirmar que as mortes ainda se concentram nos grupos jovens, com maior intensidade na faixa etária de 20 a 29 anos. Dos 15 aos 39 anos estão concentrados mais de 75% das mortes por agressão no Brasil, ou seja, muitos indivíduos em plena capacidade produtiva e reprodutiva. Tratam-se aqui, de mortes que tem consequências familiares (quer econômicas, quer afetivas) e de impacto na produção de trabalho e riqueza no Brasil. Chama atenção ainda, a fragilidade dos extremos do ciclo de vida. Em relação aos idosos, cabe destacar que as mortes por agressão voltadas para idosos com mais de 80 anos, aumentaram mais de 60%, as mortes por agressão de idosos entre 70 e 79 anos elevaram mais de 36% e o grupo com idade entre 60 e 69 anos registrou um aumento de quase 40%. A título de comparação, cabe destacar que a faixa com maior acometimento de assassinatos (20-29 anos) teve um aumento no período pouco superior a 10%.

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O país parece estar - apesar de legislações que garantam exatamente o contrário – desprotegendo seus grupos etários com menor capacidade de defesa. No que tange às crianças com idade inferior a um ano, observava-se um aumento sistemático ao longo dos anos, com uma subida acentuada no ano de 2012, seguida de outro aumento significativo no ano de 2013, chegando em 2013 a ser quase o triplo dos assassinatos de 2004 para esta faixa etária. Vale ressaltar que em 2014 este número teve uma redução importante, porém, ainda constitui um dado bastante expressivo e incorpora um aumento importante de 65% quando comparado com o início do período analisado. É preciso acompanhar com atenção a continuidade destes dados, pois os óbitos de criança por agressão, são, por si só, indicadores reconhecidos internacionalmente sobre o quanto elas são priorizadas em uma sociedade.

Fonte: MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM

Quando se trata de lesões autoprovocadas voluntariamente (ou seja, o suicídio), outros comentários se fazem pertinentes. Inicialmente há uma observação importante a fazer: não são registrados óbitos desta natureza no Brasil desde o ano de 2006 para crianças de 1 a 4 anos

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de idade. Esta observação, antes da melhoria das condições de vida das crianças brasileiras, parece ser uma melhoria da classificação do evento, pois nos parece muito pouco provável que uma criança com idade até quatro anos tenha a intenção de tirar a própria vida. No segmento seguinte (5 a 9 anos), este número permaneceu muito baixo e relativamente estável durante todo o período analisado. Cabe destaque ainda para o aumento de 35% de suicídios no grupo de 10 a 14 anos no ano de 2014. As maiores concentrações de suicídio ocorrem entre os 20 e 49 anos, no entanto, dentro destes grupos, encontramos comportamentos completamente diferentes. Se, quando analisamos as mortes por agressões, vemos que existe um pico indiscutível na faixa etária de 20 a 29 anos; quando avaliamos a questão do suicídio, verificamos que existe um maior acometimento na faixa etária de 30 a 39 anos, com uma pequena diferença quando comparada à faixa etária anterior. Esta é uma nova tendência que foi ganhando intensidade com um incremento de mortes em grupos mais velhos. No grupo com a faixa etária entre 20 e 29 anos, os suicídios aumentaram 13% no decorrer de uma década, já no grupo correspondente ao período de 30 a 39 anos, este aumento foi de 37% e no grupo com idade entre 40 e 49 anos, este aumento foi de 31%. Quando tratamos dos idosos e pessoas na maturidade, vemos que neste grupo, apesar de numericamente menos expressivo, mudanças acentuadas ocorreram, com o número de suicídio subindo de forma grave. Assim, observamos um aumento de 55% de suicídio no grupo com idade de 50 a 59 anos, um aumento de 47% de suicídio no grupo com idade compreendida entre 60 e 69 anos e o surpreendente número de 70% de aumento de suicídio durante o período analisado, quando se computam os idosos acima de 80 anos. São apontados pela literatura fatores que podem resultar em suicídio, independente da idade: um comportamento de imitação – ter outras pessoas próximas que cometeram o suicídio - desesperança, falta de

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atendimento das necessidades básicas, transtornos mentais como a depressão, falta de flexibilidade para a resolução de problemas, impulsividade, ausência de perspectiva de futuro e falta de vínculos sociais (8), (9), (10). Para as pessoas em idades produtivas, os piores riscos são a socialização a partir da valorização dos papéis tradicionais de gênero, associados ao empobrecimento e ao desemprego (9). Já para os idosos, o suicídio pode estar associado ao impacto econômico associado à aposentadoria, às doenças crônicas e medo de uma vida sem dignidade, já que as famílias, possuem cada vez menos tempo e condições financeiras para os cuidados dos idosos e também à morte da companheira(8). É preciso salientar que o crescente número de suicídios entre idosos também pode ser reflexo do despreparo social para lidar com o envelhecimento, gerando nos idosos a sensação de inutilidade e incapacidade para contribuir socialmente e desempenhar funções que tenham impacto. Os resultados de algumas pesquisas atentam para a imagem do idoso como decadente e negativa, refletindo a vontade social de se livrar deste grupo (11). Já no que diz respeito à cor/raça, algumas questões devem ser salientadas. Cabe destaque para o aumento do assassinato dos grupos indígenas, que superou 150%, constituindo o público mais atingido durante este período, embora numericamente pequeno. Considerando o parco contingente da população indígena e o aumento vertiginoso de seu extermínio, torna-se fundamental a adoção imediata de políticas públicas para este grupo. Este fato coloca como urgente a revisão das políticas governamentais de terras indígenas, para garantir sua sobrevivência e retomada da identidade étnica (12). Os grupos com outras cores de pele também apresentam questões que demandam atenção.

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Fonte: MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações sobre Mortalidade - SIM

Durante o período estudado, o número de pessoas de cor branca assassinadas sempre foi inferior ao número de pardos assassinados. Porém, o que ocorreu durante estes dez anos, foi o agravamento radical da questão racial no que tange o número de mortes por agressões. Nos grupos de cor da pele branca, observou-se uma queda de 16% no número de assassinatos, enquanto entre os grupos de cor de pele parda, ocorreu um aumento de mais de 50%, o que acentuou ainda mais o intervalo entre assassinatos de pessoas, no que diz respeito à cor da pele. As mortes por agressões tendem a combinar diferentes variáveis. Em estudo (13) com famílias de jovens vítimas de homicídio, identificou-se que a maioria deles era do sexo masculino e nenhum deles havia concluído o ensino médio, embora já tivessem atingido a idade para completar este nivelamento. A pesquisa também identificou que a maior parte tinha uma condição econômica precária, e eram a oriundos da população negra - pretos e pardos (13). Os autores associam a violência estrutural e o consequente aumento da taxa de mortalidade, aos jovens negros e pardos por estarem estes inseridos em contextos sociais desfavoráveis. Tratam-se de mortes referentes principalmente aos jovens moradores de bairros periféricos e empobrecidos, onde há

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menor investimento do serviço de segurança (13). Há muito tempo a literatura indica que alguns fatores, como a distribuição de renda desigual, o elevado índice de desemprego, a falta de habitação e o parco investimento na área da educação para alguns grupos, podem corroborar nas altas taxas de homicídio no país (14). O agravamento do hiato existente entre os indicadores sociais das pessoas brancas em relação às pardas, vem ainda influenciando outros aspectos da vida, como a maternidade adolescente, que diminui nos grupos de pele branca e se mantém nos grupos de pele parda (15). A violação dos direitos da população parda e a sua piora na qualidade de vida vêm se manifestando de forma flagrante no início e no fim do ciclo vital. O parco ou nulo acesso aos direitos sociais e a falta de perspectivas para o tempo presente e projetos futuros deste grupo, podem representar um problema que irá interferir diretamente no desenvolvimento e na construção dos jovens negros e pardos (13). Estes fatores constituem possíveis explicações para o suicídio entre os grupos pardos ter crescido quase 70% durante o períodoestudado.

Fonte: MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações sobre Mortalidade - SIM

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Se todos os grupos aumentam a sua taxa de suicídio nos últimos dez anos, sem nenhuma exceção, este aumento se deu de modo diferenciado. Durante toda a década estudada, as pessoas de pele branca responderam por mais de 50% dos suicídios brasileiros. As pessoas de pele branca vêm se suicidando mais do que todos os outros grupos étnicos somados, quando se trata de números absolutos. Esta tendência, entretanto, está se alterando como o já citado aumento do número de suicídios observados nas pessoas de pele parda, o que permite uma projeção de alteração do quadro nos próximos anos, se esta tendência persistir. Novamente chama a atenção a exposição da comunidade indígena, com um aumento de suicídio quase 70%. O que se observa é uma piora real na vida certos grupos étnicos, que vem se desdobrando em aumento de mortalidades por agressões e suicídios. Embora numericamente pouco expressivo, este intenso incremento nos suicídios indígenas pode significar a exterminação definitiva deste grupo. As pioras nas condições de vida da população indígena que estimulam o suicídio estão relacionados principalmente à concepção de feitiço, que se associa a imposição de crença e valores estranhos à sua cultura (12). Seu processo de confinamento compulsório e a superpopulação das aldeias também podem ser associados ao suicídio indígena (12). O segundo aumento mais relevante no que diz respeito ao suicídio foi o da parda. Como a população parda possui uma representação numérica muito superior à indígena, é provável que na próxima década a população parda seja a que mais responda tanto pelo número de mortes por agressões quanto pelas mortes originadas pelas lesões autoprovocadas voluntariamente. Quando analisamos as mortes oriundas de agressão ou por lesões autoprovocadas voluntariamente, associados à variável sexo, os dados brasileiros dos últimos dez anos encontram-se na tabela a seguir.

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Fonte: MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM

No que se refere às agressões, é possível observar o aumento de mais de 20% do número total de óbitos em uma década, e, embora o quantitativo total de mortalidade das mulheres seja muito inferior ao quantitativo total dos homens, proporcionalmente, estas tiveram um crescimento percentual de óbitos pouco maior que crescimento de óbitosmasculinos. Também cabe destaque para o fato de os homicídios de mulheres estarem sabidamente ligados à violência por parceiro íntimo, e associadas ao âmbito doméstico (16). A criação da “Lei Maria da Penha” (17) e consequente redesenho na política de prevenção, responsabilização e criação de um aparato policial-judiciário mais ágil para o tratamento da questão parece não ter sido suficiente para reverter a cultura patriarcal, que permite ao homem desrespeitar as escolhas das mulheres (16), principalmente daquelas mulheres que o homem avalia como de sua propriedade.

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Os assassinatos de mulheres expressam uma possibilidade de uma linguagem abusiva (16) utilizada pelos homens para garantir a manutenção do seu poder. A recém promulgada “Lei do Feminicídio” (18), apresenta-se como uma estratégia para dar visibilidade e responsabilização para estes casos, mas no momento, ainda não dispomos de dados capazes de avaliar o seu impacto. As taxas de feminicídio refletem o respeito social às mulheres, seu reconhecimento como sujeitos de direitos que devem ter sua vida, liberdade e escolhas respeitados. O aumento linear desta modalidade de assassinato no Brasil é preocupante, pelo que diz respeito aos direitos humanos associados aogênero. Os homens possuem relações de violência com morte muito diferente das mulheres. Eles morrem em espaços públicos, geralmente por outros homens (17) e sem uma relação de afeto íntimo anterior. Chama atenção também o aumento do número de casos de sexo ignorado, que mais que quadruplicou durante os dez anos analisados. Não podemos afirmar se este fato se deve à não valorização do dado, ou se as agressões estão sendo tão intensas, que impedindo até mesmo a identificação do sexo. Ainda assim é preciso atenção para este fato, pois esta tendência pode comprometer as futuras análises e, portanto, as formulações de novas políticaspúblicas. Quando tratamos dos suicídios, o aumento total observado na década analisada foi de 30%, não diferindo significativamente entre homens e mulheres, no que tange ao percentual encontrado. Deste modo, o crescimento paritário das mortalidades por sexo tanto nas agressões quanto nas lesões autoprovocadas voluntariamente demonstram que, embora não tenha havido um agravamento das questões de gênero, tampouco houve a implementação de qualquer ação com impacto suficiente para reverter as desigualdades de gênero secularmente instaladas em nossa sociedade.

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Em números absolutos, o suicídio acomete muito mais os homens que as mulheres. Se as mulheres planejam mais o suicídio, são de fato os homens que os efetivam (9). Se os homens são aqueles que mais morrem, eles também são os que mais matam, inclusive a eles próprios. Este fato nos faz refletir sobre a socialização masculina, que sempre vem incluindo a violência como estratégia de comunicação e resolução de conflitos para os homens. A gestão do cuidado, que é um elemento muito próprio do modo com que as mulheres são socializadas, parece constituir um fator protetor do suicídio. Responsabilidades com a família, filhos e satisfação com o cotidiano (19) são aspectos que podem evitar o suicídio entre o grupo feminino. Também vale pontuar que as mulheres tendem a contar com uma rede de proteção mais fortalecida, à medida que cultivam uma maior interação social, de modo muito mais frequente que os homens (8). Estes elementos podem ser avaliados como protetores de suicídio e se encontram mais inseridos nos contextos femininos que masculinos. Conclusão Chama a atenção a taxa de aumento global nas mortalidades associadas à violência personalizada. Se os homicídios, nestes dez anos, aumentaram mais de 21% no Brasil, o suicídio aumentou mais de 30%, o que remete à uma sociedade que, além de crescer em violência, cresceu em número de pessoas que avaliam que dar fim à própria vida é a única medida para lidar com a insatisfação de sua existência. Mortalidades por agressões e lesões autoprovocadas voluntariamente expressam exposições de determinados grupos à violência e satisfação deles com a qualidade de suas vidas. Quando desdobramos estes dados em função de grupos etários, cor da pele e sexo, verificamos que a morte não atinge a todos da mesma maneira. Os dados retratam indígenas, homens jovens e pardos sendo exterminados de maneira sistemática e de forma cada vez mais intensificada ao longo da década.

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Chama atenção também, mesmo em um contexto de tantos avanços legislativos, a violência contra as mulheres não ter diminuído e ter observado um crescimento tanto objetivo quanto um crescimento proporcional ligeiramente maior que os homens, o que mostra insuficiência dos avanços das políticas públicas para reverter estarealidade. Os fatores que podem desencadear a exposição à mortalidade através de suicídio ou assassinato se modificam ao longo do ciclo de vida do indivíduo, o que indica que é necessária uma atenção constante aos acúmulos que se somam e podem impactar negativa e gradativamente na vida das pessoas. Assim como o suicídio, o extermínio de grupos na forma de assassinato, está relacionado a aspectos arraigados culturalmente e que perpassam situações individuais. As mortes por agressão não acontecem de forma isolada, pois assolam todo um grupo, fazendo com que seus membros fiquem cada vez mais expostos. Deste modo, garantir melhores indicadores sociais a determinados grupos pode alterar este quadro à medida que as demandas dos grupos mais fragilizados com relação à violência vão conquistando maior visibilidade. É de fundamental importância construir outros paradigmas para a sociabilidade masculina. A adesão à masculinidade pautada no machismo vem se desdobrando na ideação de que a população masculina pode – e precisa - dar resolutividade aos seus conflitos através de ações violentas, o que pode colocar em risco não apenas as mulheres, idosos e crianças, mas também os próprios homens que cometem violência, uma vez que estes ficam mais expostos a esse fenômeno(20). É possível afirmar que há uma relação direta entre faixa etária, sexo, raça/cor, e escolaridade no que se refere à mortalidade e à violência. Os dados encontrados nas variáveis de sexo, cor/raça e faixa etária, permitem afirmar a existência de um elevado índice de subcidadania

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no país. Essa sub-representação nos espaços público e privado pode gerar a mortalidade (16) a partir da ideia de que as vidas de determinados grupos são descartáveis, fazendo com que o fenômeno da violência por meio de agressão ou autoprovocada, aumente de forma expressiva. A reversão deste paradigma se faz com o oferecimento de melhores condições sociais para determinados grupos e com a atenção imediata às situações de maior fragilidade. Reconhecer e evitar a desqualificação da angústia pré-morte, atendendo as tentativas malsucedidas de suicídios e realizando o acompanhamento dos casos (8) pode evitar o incremento das estatísticas de mortalidade. Oferecer sistemas de proteção às mulheres e aos indígenas (estas diretamente associados aos conflitos agrários) são instrumentos muito eficazes para prevenir mortalidade poragressão. O enfrentamento da mortalidade por violência pode ser efetivado pelas ações de promoção, prevenção, enfrentamento e combate no âmbito da política pública. Logo, também é necessário sensibilizar instâncias como governos, empresas e a sociedade civil (2) para essas questões, que podem eliminar um elevado contingente de pessoas do mundo do trabalho e descartar o curso de vidas consideradassaudáveis. Com isso, pode-se dizer que se trata de um fenômeno com múltiplas facetas, perpassado por diversos âmbitos. Assim, é preciso valorizar a atuação das políticas de forma articulada, com o objetivo de atingir melhores resultados através da visão intersetorial, interdisciplinar e multiprofissional. É preciso investir nas políticas públicas, principalmente para as minorias, visando garantir melhora das condições sociais e acesso aos direitos. Para além das políticas, a literatura aponta para a necessidade de investimento em pesquisas e intervenções,com o objetivo de construir técnicas e instrumentos para a atuação frente à realidade de determinados grupos (13).

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3.8. Violência de gênero contra a mulher e a disseminação de material educativo Gender violence against women and the dissemination of educational material Ludmila Fontenele Cavalcanti Gracyelle Alves Remígio Moreira Roberta Matassoli Duran Flach 1

2

3

Raimunda Magalhães da Silva Luiza Jane Eyre de Souza Vieira 4

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Resumo O estudo teve por objetivo dimensionar a existência de material educativo veiculado na Internet pelas secretarias estaduais do Brasil envolvidas com o enfrentamento à violência contra a mulher. Realizou-se um mapeamento junto às secretarias estaduais de assistência social, educação, da mulher, saúde e segurança pública dos 26 estados do Brasil e Distrito Federal, onde foram localizados 60 materiais. Os resultados apontam: diferenças na elaboração e divulgação dos materiais entre as regiões; e insuficiência na produção e disseminação de materiais educativos, tanto na quantidade quanto na variedade de formatos. É indispensável a criação e divulgação de materiais de qualidade que favoreçam atitudes igualitárias e a valorização da cultura da paz. Palavras-chave: violência contra a mulher; material educativo; Internet Abstract The study aims to measure the existence of the educational material posted on the internet by the state departments of Brazil involved with

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the coping of violence against women. We conducted a mapping with the state departments of social assitance, education, women, health and public safety of the 26 states of Brazil and the Federal District, where 60 materials were located. The results show: the differences in the elaboration and in the dissemination of the materials between regions; and the insufficiency in the production and in the dissemination of educational materials, as well in the quantity and in the variety of the formats. It is indispensable the creation and the divulgation of materials with quality that promote egalitarian attitudes and the appreciation of the peace culture. Keywords: Violence against women; educational material; Internet 1 Doutora. Professora Associada Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2 Enfermeira. Mestre em Saúde Coletiva. Maternidade Escola Assis Chateaubriand. 3 Assistente Social. Mestre em Serviço Social. Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro. 4 Professora Titular. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade de Fortaleza. 5 Professora Titular. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade de Fortaleza.

Introdução A violência de gênero contra a mulher se constitui em uma violação dos diretos humanos e em um problema de saúde pública que influencia sobremaneira o modo de viver, adoecer e morrer das mulheres. Ao longo das últimas décadas, este tema vem ganhando visibilidade, tornando- se alvo de discussões em diferentes campos disciplinares e por entidades internacionais, o que demandou a formulação de políticas e programas para seu enfrentamento, assim como a organização de práticas e serviços especializados. A prevenção à violência contra a mulher faz parte dos eixos estruturantes da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, que prevê o desenvolvimento de ações que desconstruam os mitos e estereótipos de gênero e que modifiquem os padrões sexistas, perpetuadores das desigualdades de poder entre homens e mulheres e da violência contra as mulheres. Essa compreensão sobre a prevenção inclui ações educativas e culturais que disseminem atitudes igualitárias e valores éticos de irrestrito respeito às diversidades de gênero, raça/etnia, geracionais

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e de valorização da paz. Dentre as estratégias de prevenção, a produção e a divulgação de materiais educativos que abordam a questão se configuram em ações táticas para promover o debate, a conscientização e o enfrentamento da violência contra a mulher, a partir do esclarecimento da sociedade e da visibilidade do problema. Observa-se uma escassez de estudos sobre a produção de materiais educativos voltados à prevenção da violência de gênero contra a mulher, o que pode estar associado à recente implementação destas estratégias e às condições objetivas de produção das informações no campo da prevenção. Neste sentido, o estudo teve como objetivo dimensionar a existência de material educativo veiculado pelas secretarias estaduais do Brasil envolvidas com o enfrentamento à violência contra amulher. Metodologia Consiste em um estudo exploratório, de abordagem quantitativa, que utilizou fonte documental para obtenção dos dados. Realizou-se um mapeamento, no período de setembro de 2012 a fevereiro de 2013, junto às secretarias estaduais de assistência social, educação, mulher, saúde e segurança pública dos 26 estados do Brasil e o Distrito Federal acerca do material educativo de acesso público veiculado na Internet. Esse estudo integra as iniciativas do Projeto de Extensão Prevenção da Violência, apoiado pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Rio deJaneiro. A escolha pelas secretarias estaduais de governo justifica-se pelo protagonismo da instância estadual no Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher1. A partir desta cooperação, os estados passam a receber recursos, através de convênio firmado, para o desenvolvimento de ações que consolidem a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher e o pacto nacional2, aí incluída a produção de material educativo. Para a coleta das informações, realizou-se uma busca através dos endereços eletrônicos disponibilizados pelas secretarias estaduais sobre os temas “violência contra a mulher”, “violência sexual” e “vio-

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lência doméstica”. A busca inicial foi dirigida aos materiais educativos caracterizados como cartilha, campanha e folder. Em um segundo momento, ampliou-se a busca incluindo outras categorias como cartaz, filipeta, desenho de alunos, banner, camisa, faixa, backbus, blimp, outdoor, adesivo, ímã, vídeo e seminário. Verificou-se o dimensionamento dos materiais educativos divulgados segundo região do país, unidade da federação, secretaria estadual e tipo de material educativo; assim como caracterizou-se esses materiais considerando-se os seguintes aspectos: público-alvo, cor, conteúdo e imagem veiculada. A análise buscou articular os achados com as respostas ao fenômeno da violência de gênero contra a mulher no campo das políticas públicas voltadas ao seu enfrentamento. Resultado A busca aos endereços eletrônicos das secretarias estaduais possibilitou a localização de 60 materiais educativos acerca da violência contra a mulher. Na tabela 1 pode-se constatar a distribuição desse material por região e unidade da federação. Observa-se que a região Nordeste se destacou, apresentando o maior número de materiais disseminados. Em contrapartida, o Sudeste foi a região que menos divulgou. Na análise por unidade federativa, Pernambuco, Bahia e Sergipe (Nordeste), Mato Grosso do Sul (Centro Oeste) e Rio de Janeiro (Sudeste) apresentaram os maiores números de materiais. Enquanto, Piauí e Rio Grande do Norte (Nordeste), Distrito Federal, Goiás e Mato Grosso (Centro Oeste), Acre, Amapá e Rondônia (Norte), Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo (Sudeste) divulgaram nenhum tipo de material educativo (Tabela 1). Tabela 1. Distribuição do número de materiais educativos sobre violência contra a mulher segundo Região/UF, Brasil, 2012-2013.

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Na maior parte das regiões (Nordeste, Sul e Norte), as secretarias da mulher foram as que mais veicularam material educativo que abordava a temática, refletindo um maior quantitativo nacional. No Centro-Oeste, a secretaria de educação se sobressaiu, enquanto no Sudeste a disseminação do material foi realizada pelas secretarias de saúde e de segurança pública. Em relação ao tipo de material divulgado, houve predomínio de campanhas e folders entre as regiões do país (Tabela 2).

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Tabela 2 – Caracterização dos materiais educativos sobre violência contra a mulher segundo Região. Brasil 2012-2013

* Outros materiais educativos (filipeta, faixa, “backbus”, “blimp”, “outdoor”, adesivo, imã, vídeo, seminário) que foram encontrados de forma única.

Os materiais educativos tinham, predominantemente, como públicos-alvo a população geral e as mulheres. Vale mencionar que as secretarias de saúde e de segurança pública também direcionaram materiais para a instrumentação dos profissionais dos respectivos setores. Outros segmentos como homens e jovens ainda detiveram destaque em alguns materiais educativos. Quanto a cor do material, roxo, lilás e vermelho apareceram na maior parte dos materiais das secretarias estaduais (Quadro1). Quadro 1 – Público-alvo, cor, conteúdo e imagem veiculados nos materiais educativos sobre violência contra a mulher. Brasil, 2012-2013.

Em se tratando do conteúdo, questões sobre os mecanismos de denúncia, garantia de direitos e enfrentamento à violência contra a mu-

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lher perpassaram grande parte dos materiais. O aspecto do crime foi abordado nas secretarias de educação e de segurança pública. Chama a atenção que a mulher foi tratada como vítima em alguns materiais disseminados pela área da mulher e da saúde; e o tema cultura da paz foi abordado de forma ínfima, somente pelas secretarias da mulher e de educação. As imagens mais frequentemente veiculadas foram de homens, mulheres chorando, flores e mãos fazendo sinais de parar (Quadro1). Discussão Os resultados apontam as discrepâncias entre os estados na disseminação de materiais educativos voltados para o enfrentamento da violência contra a mulher, o que revela especificidades locais. Apesar do reconhecimento, de acordo com Martins et al3, de que os últimos doze anos foram decisivos na história das políticas públicas para as mulheres no Brasil, a capilaridade dessas políticas envolve a diversidade social, cultural demográfica e econômica existente no país. Por outro lado, a consolidação das políticas nacionais nos níveis estaduais depende da articulação entre os entes federativos e da incorporação estadual de uma agenda feminista, impulsionada pelos organismos de políticas para as mulheres. A magnitude do problema é revelada por estudos em diferentes contextos, que mostram elevada prevalência e variabilidade (15% a 71%)4,5. O Brasil encontra-se na sétima posição no ranque de homicídios femininos entre 84 países do mundo, apresentando uma taxa de 4,4 mortes por 100 mil mulheres6. Os homicídios de mulheres representam o último grau de uma escala de agressões que muitas vezes se inicia com a violência psicológica7. A literatura ainda sinaliza que esta violência ocorre principalmente no ambiente doméstico, perpetrada pelos parceiros, ex-parceiros ou familiares8,9. Com base nos registros policiais, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública10, ocorreram 50.617 casos de estupro em 2012 (26,1 estupros por grupo de 100 mil hab.), o que representa um aumento de 18,17% em relação a 2011.

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Os estados das regiões Sudeste e Centro-Oeste foram os que menos veicularam materiais educativos. Esse dado pode refletir dificuldade por parte dos estados em coibir esse tipo de violência, uma vez que Serra (ES) e Patrocínio (MG), municípios dessa região, são considerados o 7º e 8º municípios brasileiros com maiores taxas de homicídios femininos6. Da mesma forma, Formosa (GO) e Jatal (GO), ocupam a 20ª e 21ª posição na mesma pesquisa, o que pode explicar a reduzida adesão dos Estados no enfrentamento a violência contra a mulher. Por outro lado, Pernambuco, unidade federativa que mais veiculou materiais, implementou, nos últimos seis anos, ações para enfrentar a violência contra a mulher considerando os eixos de proteção, punição, prevenção, assistência e produção de conhecimento. Vale destacar que o cerne do eixo temático “prevenção” consistiu na criação e desenvolvimento de campanhas educativas, sistemáticas e de caráter permanente11. Outro ponto de reflexão é o fato de que o maior número de materiais também pode estar relacionado com as altas taxas desse tipo de crime e/ou com a força de mobilização social local. Sobre a disseminação de materiais educativos por secretarias de governo, percebe-se a concentração no desenvolvimento deste trabalho pelas secretarias da mulher. Estas secretarias estaduais surgiram a partir da criação, em nível nacional, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM), e têm como objetivos formular, desenvolver, articular, coordenar, apoiar e monitorar políticas públicas para promover a melhoria das condições de vida das mulheres12. Em contrapartida, observou-se a inexpressiva participação das demais secretarias investigadas quanto à produção de material. Considerando o importante papel que o setor saúde, educação, assistência social e segurança pública desempenham no enfrentamento do fenômeno, visualiza-se a necessidade de uma participação mais efetiva e articulada dessas secretarias, especialmente aquelas cuja atuação fundamental é no campo da prevenção.

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A violência contra a mulher por se configurar um problema complexo, multifacetado e permeado por questões de gênero requer dos diversos setores da sociedade uma abordagem intersetorial, multidimensional e a capilaridade das ações referentes à temática13. Em relação ao tipo de material, houve predomínio de campanhas associadas a datas específicas relacionadas com o enfrentamento do fenômeno. Isso decorre do protagonismo da SPM na produção de materiais e coordenação de campanhas em nível nacional. A variedade de materiais educativos é um aspecto que deve ser levado em consideração pelas secretarias de Estado, visando alcançar públicos de distintas etnias/raças, classes sociais, níveis educacionais e religiões. O II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres reconhece a função pedagógica e transformadora dos materiais educativos e estimula a sua elaboração de forma condizente com as especificidades do público alvo14. A disseminação de material educativo dirigido à população em geral, às mulheres, aos homens e jovens pode indicar uma perspectiva ampliada de informação no campo da violência de gênero contra a mulher, favorecendo processos de comunicação voltados à sua prevenção num sentido mais amplo15. Os materiais dirigidos aos profissionais de saúde e da segurança pública insere-se nas linhas de atuação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, de capacitação de agentes públicos para prevenção e atendimento, bem como nos esforços do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher de financiamento dessas ações. Os profissionais desempenham um papel estratégico na identificação e prevenção da violência de gênero contra a mulher. A violência contra a mulher, entendida como uma das expressões da violência de gênero, reflete as desigualdades de gênero na sociedade, resultado de uma assimetria de poder que, em ge-

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ral, coloca a mulher em lugar de menor empoderamento16. Nessa perspectiva, a incorporação da dominação ocorre ou é reforçada pela violência simbólica que atua através da cumplicidade involuntária dos que a ela se submetem17. Os materiais educativos funcionam como recurso no processo de ensino-aprendizagem, contribuindo para a mudança no conhecimento, nas atitudes e crenças relacionada com a violência de gênero contra a mulher, sendo assim traz desafios para a qualidade da informação veiculada de modo a atingir o público-alvo. As cores roxo, lilás e vermelho vem sendo adotadas pelos movimentos feministas no combate às violências de gênero e adequadamente pelas secretarias de governo na disseminação dos materiais educativos. No entanto, as imagens apresentadas sobre o fenômeno da violência contra a mulher enfatizam apenas uma das expressões da violência de gênero, a violência física, bem como apresentam a mulher fragilizada e no papel de vítima. A violência contra a mulher se expressa nas modalidades física, psicológica, sexual, patrimonial, moral, institucional, tráfico de mulheres, exploração sexual de mulheres e cárcere privado13. O conceito incorporado pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) aponta para esta amplitude, definindo o fenômeno como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como noprivado”18. Corroborando o estudo de Nogueira et al19, materiais educativos não devem se restringir ao aspecto meramente cognitivo, mas possibilitar a instauração de um processo reflexivo que envolva os significados, sentimentos, medos e desejos dos receptores, de modo a potencializar as ações de prevenção. Os conteúdos veiculados codifica as preocupações e os valores

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culturais a serem transmitidos no material educativo. Nesse sentido, apesar da abordagem sobre a garantia de direitos e o enfrentamento, a violência contra a mulher, abordada pelas diferentes secretarias, como um crime que vitimiza as mulheres e a denúncia como estratégia, situa o fenômeno como “caso de polícia”, já superado do ponto de vista da formulação das políticas. Os materiais educativos não abordam conteúdos relacionados às formas de prevenção da violência, às possibilidades de interrupção do ciclo da violência e às desigualdades de gênero. Cabe salientar que a falta de links específicos referentes às secretarias de governo, em diferentes estados, dificulta o acesso à informação veiculada, agravado pela falta de atualização dos sites. Conclusão A despeito do reconhecimento de que o enfrentamento da violência de gênero contra a mulher requer uma atuação intersetorial que articula as diferentes áreas de políticas públicas, os resultados apontam diferenças na elaboração e divulgação dos materiais entre os estados da região e a insuficiência na produção e disseminação de materiais educativos, através da Internet, tanto na quantidade quanto na variedade de formatos. Esta realidade pode indicar uma relativa falta de investimento da instância estadual na prevenção da violência contra a mulher, com uma atuação marcada por campanhas associadas a datas específicas. A pouca produção de material educativo pela instância estadual, utilizando-se de materiais produzidos nacionalmente, pode retratar uma abordagem do fenômeno que desconsidera suas especificidades locais. As dificuldades técnicas no acesso também apontam para a fragilidade dos estados na disseminação das ações da sua própria gestão. Considerando a grande contribuição dos materiais educativos no contexto do enfrentamento da violência de gênero contra a

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mulher e o papel desses recursos para promover a informação e discussão sobre o tema, e para favorecer a autonomia das mulheres, é indispensável a criação e divulgação de materiais de qualidade que favoreçam atitudes igualitárias e a valorização da cultura da paz. Os materiais educativos desempenham um papel-chave nas estratégias de prevenção da violência de gênero contra a mulher, tanto nas campanhas quanto no âmbito dos serviços das diferentes áreas de políticas públicas. Agradecimentos À equipe de pesquisa do Núcleo de Políticas Públicas, Identidades e Trabalho da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós- Graduação em Saúde Coletiva da Universidade de Fortaleza pela participação no desenvolvimento da pesquisa. Ao Programa Institucional de Bolsas de Extensão da Pró-reitora de Extensão da UFRJ pela concessão de bolsas de extensão. À Ivanilda Vitoriano pela coleta do material empírico. Referência bibliográfica 1. Brasil. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Enfrentamento à violência contra a mulher. Balanço de ações 2006 – 2007. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres,2007. 2. Brasil. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres,2011. 3. Martins APN, Cerqueira D, Matos MVM. A institucionalização das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as

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mulheres no Brasil. Nota Técnica. IPEA, n. 12. Brasília, março de2015. 4. Babu BV, Kar, SK. Domestic violence against women in eastern India: a population-based study on prevalence and related issues. BMC Public Health [online] 2009, 9(129): 1-15 [citado 2014-08-29]. Disponível em:http://www.biomedcentral. com/1471-2458/9/129. 5. Vieira EM, Perdona GSC, Santos MA. Fatores associados à violência física por parceiro íntimo em usuárias de serviços de saúde. Rev. Saúde Pública 2011; 45(4):730-737. 6. Waiselfisz JJ. Mapa da Violência 2012, caderno complementar: homicídio de mulheres no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari,2012. 7. Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA). Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil. [citado 2013-09-30]. Disponível em: http://www.ipea. gov.br/portal/index.php. 8. Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, Couto MT, Hanada H, Kiss LB, DurandJG, Puccia MI, Andrade MC. Violência contra mulheres entre usuárias de serviços públicos de saúde da Grande São Paulo. Rev. Saúde Pública 2007; 41(3):359-367. 9. Osis MJD, Duarte GA, Faúndes A. Violência entre usuárias de unidades de saúde: prevalência, perspectiva e conduta de gestores e profissionais. Rev. Saúde Pública 2012; 46(2):351358. 10. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Ano 7. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2013. Disponível em: http://www. midianews.com.br//storage/webdisco/2014/03/03/outros/ 343168dc26c081905 ba5cd7b640e8a62.pdf. Acesso em 02 jan.2013.

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11. Pernambuco. Secretaria da Mulher. Política de enfrentamento. [citado 2014-08-26]. Disponível em: http://www2.secmulher.pe.gov.br/web/secretaria-da-mulher/Prevencao. 12. BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Secretaria de Políticas para as Mulheres. [citado 2014-08-26]. Disponível em: http://www.spm.gov.br/ sobre. 13. Brasil. Presidência da República. Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres,2011. 14. Brasil. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres,2008. 15. Organização Mundial da Saúde (OMS). Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher. Ação e produção de evidência. Genebra: OMS;2010. 16. Schraiber LB, D’oliveira AFPL, Couto MT. Violência e saúde: contribuições teóricas, metodológicas e éticas de estudos da violência contra a mulher. Cad. Saúde Pública 2009; 25(2): 205-216. 17. Bourdieu P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil;1999. 18. Brasil. Decreto n. 1.973, de 1 de agosto de 1996. Promulga a convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, concluída em Belém doPará, em 9 de junho de 1994. [citado 2012-08-09]. Disponível em http:// www.jusbrasil.com.br/legislacao/112212/decreto-1973-96.

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19. Nogueira MJ, Modena CM, Schall VT. Materiais educativos impressos sobre saúde sexual e reprodutiva utilizados na atenção básica em Belo Horizonte, MG: caracterização e algumas considerações. RECIIS - R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde 2009; 3(4): 169-179 [citado 2016-05-30]. Disponível em http:// www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/727.

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3.9. Violência doméstica: os desafios do Grupo Articulador Regional na garantia do atendimento integral pela atenção básica de saúde da Área Programática de Saúde 3.3 do município do Rio de Janeiro Domestic violence: the challenges of Regional Articulator Group in ensuring comprehensive care for primary health care the health area 3.3 of the municipality of Rio de Janeiro. Laís Martins Costa Araujo1 Débora Melo Canedo Santos2 Eunice D’Assumpção Lima Rangel3 Resumo Este documento apresenta um relato de experiência sobre os desafios encontrados pela atenção básica à saúde no acolhimento dos casos de violência doméstica, sobretudo no que se refere à notificação compulsória desses casos suspeitos e/ou confirmados. Trata-se de um debate de natureza qualitativa sobre a prática profissional na gestão da saúde a partir da implantação do Grupo Articulador Regional da Área Programática 3.3, que possibilitou que o tema da violência como agravo de saúde fosse problematizado nas unidades básicas de saúde. Resgatar o trabalho desenvolvido pelo GAR ao longo dos últimos cinco anos, em parceria com a Organização Social Viva Rio e com base na percepção cotidiana da equipe possibilitou a elaboração do presente trabalho.

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Palavras-chave: Acolhimento; violência doméstica; atenção básica à saúde Abstract This paper presents an experience report on the challenges faced by primary health care in the reception of cases of domestic violence, particularly in regard to the compulsory notification of those suspected and / or confirmed cases. This is a qualitative discussion on professional practice in health management from the implementation of the Regional Articulator Group Area 3.3, which enabled the theme of violence as a health problem were questioned in the basic units health . So rescue the work of the articulator GAR over the past five years, in partnership with the social organization Viva Rio and based on everyday perception of the staff enabled the preparation of this study. Keywords: User embracement; domestic violence; primary health care Assistente Social. Especialista em Serviço Social e Saúde. – Viva Rio. E-mail: lais_mca@hotmail.com

1

Especialista em Serviço Social e Saúde. Apoiadora do GAR e Linha de Cuidado de Saúde do Adulto. E-mail: debcanedo@yahoo.com.br

2

Mestre em Marketing Internacional. Especialista em saúde mental. Apoiadora do GAR. E-mail: limanyce@yahoo.com.br

3

Introdução Compreendendo a complexidade do cenário no qual o fenômeno da violência está inserido atualmente na sociedade, podemos contextualizar o crescente número de casos de violência na Área Programática 3.3, desde a implantação do Grupo Articulador Regional, em 2011. Diante desses casos, se tornou muito importante a busca por estratégias que pudessem qualificar a assistência em saúde através da sensibilização dos profissionais para

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o agravo da violência, sobretudo doméstica. Dessa forma, apresentaremos a seguir alguns desafios e dificuldades em intervir nos casos de violência doméstica, por parte dos profissionais de saúde, em uma área específica do município do Rio de Janeiro. As seguintes análises puderam ser feitas, com base na observação participante do trabalho cotidiano balizadas por bibliografias acerca do tema que possibilitaram a construção desse relato, pautado principalmente em algumas frentes de trabalho que o GAR vem desenvolvendo em parceria com o Viva Rio, no sentido de instrumentalizar os profissionais que atuam na área, lidando com a questão da violência e sua notificação compulsória. Metodologia Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, voltada para discussão sobre as estratégias de ação, no campo da saúde pública, de acolhimento de pessoas em situação de violência doméstica e as dificuldades encontradas no cotidiano dos profissionais relativas à notificação compulsória dos casos. O campo escolhido para este relato foi a AP 3.3 pelo trabalho nela desenvolvido, desde 2011, através da atuação do GAR para as situações de violência no território, em cuja abrangência há aspectos particulares que podem interferir no processo de acolhimento de pessoas em situação deviolência. A AP 3.3 apresenta cenário de grande vulnerabilidade social, sendo a área onde concentra alguns dos bairros com IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) mais baixos da cidade do Rio de Janeiro. Contempla desde o bairro de Acari até Vista Alegre, na Zona Norte, numa região marcada por constantes confrontosarmados. Atualmente, com cerca de 50% de cobertura efetuada pelo Programa Saúde da Família (PSF), possui 149 equipes, uma equipe

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de Consultório na Rua, 49 equipes de Saúde Bucal e 8 Núcleos de Apoio à Saúde da Família, implantados em 26unidades. É nesse contexto que os profissionais do PSF da AP 3.3 são chamados a intervir frente aos casos de violência doméstica. Além de normas e legislações que determinam como dever do profissional de saúde notificar compulsoriamente casos suspeitos e/ou confirmados de violência doméstica, sexual, entre outrasviolências. Frente a esta demanda, o GAR em parceria com o Viva Rio, tem desenvolvido algumas atividades de sensibilização e instrumentalização dos profissionais do PSF para a identificação, acolhimento, atendimento, notificação e acompanhamento dos casos de violência. A partir desse contato com os profissionais foi possível ter acesso às informações aqui apresentadas, em consonância com o referencial teórico consultado sobre o tema, que permitiu a articulação entre a teoria existente acerca da temática e a prática profissional aplicada. Como verão a seguir, este relato de experiência abrange os seguintes aspetos: • Retrospectiva histórica sobre ações desenvolvidas pelo GAR AP3.3; • Parceria com a Organização Social Viva Rio4 para o desenvolvimento dessas atividades; • Dificuldades e desafios encontrados frente ao acompanhamento dos casos de violência peloPSF. Um pouco da política contra a violência 4 O Viva Rio é uma Organização Social comprometida com a pesquisa, o trabalho de campo e a formulação de políticas públicas com o objetivo de promover a cultura de paz e a inclusão social. A saúde é uma das principais áreas de atuação do Viva Rio que, através de contratos de gestão, administra, em parceria com a prefeitura e o governo do Estado do Rio de Janeiro, unidades básicas de saúde nas Áreas Programáticas 2.1, 3.1 e 3.3, além de Unidades de Pronto Atendimento e Centros de Atenção Psicossocial.

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Dados do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), do Departamento de Informação e Informática do SUS (Datasus) do Ministério da Saúde, apontam que, em 1998, o número de óbitos por causas externas no Brasil foi de cerca de 117 mil casos, ocupando o terceiro lugar entre os casos de morte no Brasil no corrente ano. Dados mais atualizados apontam que, em 2009, este número aumentou para cerca de 138 mil óbitos. Diante disso, o Ministério da Saúde, em parceria com as secretarias estaduais de saúde, criou um sistema de notificação de casos de violência que permite conhecer as dimensões, formas, vítimas e agentes da violência, possibilitando o planejamento e desenvolvimento de políticas públicas atentas à prevenção e assistência às vítimas, ou possíveis vítimas de violência. Para além do sistema de notificação de violência, o Ministério da Saúde, em parceria com o poder executivo e legislativo, instituiu um conjunto de normas legais que versam sobre a obrigatoriedade da notificação em casos de suspeita ou confirmação de violência contra criança e adolescente, violência contra a mulher e violência contra o idoso. Através dessas ações, pretende-se o acolhimento qualificado da demanda e os encaminhamentos cabíveis para os serviços de assistência e epidemiologia. Estratégias de ação do GAR para o acompanhamento das situações de violência no território da AP 3.3 Os GAR foram criados, pela Secretaria Municipal de Saúde, em 2009, com intuito de fortalecer o acompanhamento das situações de violência ocorridas na cidade do Rio de Janeiro, deacordo com as diretrizes do Ministério da Saúde. A partir de então, o GAR de cada AP ficou responsável por desenvolver e articular ações e parcerias que assegurem o atendimento integral em casos de violência, a promoção de ações intersetoriais efetivas na prevenção e o acompanhamento desses casos.

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Nesse sentido, a partir de 2011, com a implantação do GAR AP 3.3, foram instituídos encontros com profissionais das unidades básicas de saúde (UBS) e outros dispositivos da área para debatermos sobre a violência doméstica, surgindo assim, o fórum intersetorial que permaneceu até 2013. Em 2012, em parceria com a OS Viva Rio, foi iniciada a pesquisa de campo junto a profissionais da estratégia de saúde da família e rede de proteção social sobre violência doméstica, tendo como objetivo conhecer a realidade de trabalho dos referidos profissionais e os principais obstáculos para o acolhimento e notificação dos casos de violênciadoméstica. Ao longo de 2013, a partir da reflexão conjunta entre a Viva Rio, o GAR, a CAP 2.1 e a Secretaria Municipal de Saúde, foi desenvolvida a cartilha Construindo Juntos: profissionais e usuários da Estratégia de Saúde da Família lidando com a Violência Doméstica. Esse material serviu como um dos instrumentos norteadores para os cursos de sensibilização sobre a temática, voltados para os profissionais de saúde. Ao final de 2013 e ao longo de 2014, foram realizados cursos de sensibilização para violência doméstica, voltado para instrumentalização dos profissionais da atenção básica a saúde no que diz respeito ao atendimento integral às situações de violência doméstica identificadas no território da AP 3.3. Neste curso, foram sensibilizados para o tema aproximadamente 200 profissionais multiplicadores de todas as UBS, dentre eles médicos, enfermeiros, gerentes de unidade, assistentes sociais, agentes comunitários de saúde, entre outros. Em 2015, foram promovidos encontros nas UBS, criando espaços para discussão sobre os casos reais de violência identificados e atendidos nas próprias unidades de saúde. Ao final do ano, todas as unidades de atenção básica a saúde da AP 3.3 receberam ofi-

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cinas e duzentos e noventa e sete profissionais de diversas categorias, participaram dasatividades. Diante da análise crítica do material colhido nos anos anteriores, somado com o resultado das oficinas de estudo de caso, ocorridas ao longo de 2015, foi possível identificar na prática alguns desafios e dificuldades que os profissionais de saúde podem vivenciar no atendimento às pessoas em situação de violência doméstica, sobretudo no que diz respeito à notificação compulsória dessescasos. Apesar de os profissionais terem sido sensibilizados para a questão da violência, muitas vezes, além de não notificarem, não conseguem prestar o acolhimento adequado às pessoas em situação de violência, apresentando também dificuldade em acessar a rede formal ou intersetorial de proteção social. Logo, podemos dizer que ainda há resistência e receio dos profissionais em intervir diante dos casos de violência doméstica e, especialmente, em utilizar a ficha denotificação. Porém, devemos considerar que, como já dissemos anteriormente, o território adstrito da AP apresenta um quadro de violência estrutural particular, que possibilita uma breve análise sobre as dificuldades implicadas na notificação dos casos de violência doméstica, com base em algumas referênciasteóricas: • Primeiro, com relação à violência estrutural e seus impactos para a intervenção da saúde; • Segundo, com relação a não compreensão efetiva sobre a importância do documento de notificaçãocompulsória. Violência estrutural: dificuldade em notificar por medo da repressão do tráfico de drogas A violência estrutural é expressa pelo quadro de miséria, pela má distribuição de renda, pela exploração dos trabalhadores, pela

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falta de condições mínimas para a vida digna, pela falta de assistência social, saúde e educação. Nesse sentido, a privação de direitos tem um efeito determinante sobre a violência, de modo que os sujeitos privados estariam expostos a um risco maior de sofrer ou cometerviolências. Em ambientes em que a violência é constante e amplamente disseminada, as pessoas naturalizam seu uso, desde que determinadas regras sejam respeitadas, e interiorizam valores que tornam isso possível. Assim, a legitimidade social oferecida a certos atos de violência funciona de forma independente dos códigos formais ou penais (Cano, 2007:43) De tal forma, a violência, enquanto fenômeno naturalizado por grande parte da sociedade brasileira encontra-se acirrada, sobretudo nas camadas menos favorecidas da população. Para Cano (2007), em algumas comunidades, a violência pode ser compreendida como uma ferramenta de construção de identidade dos “excluídos socialmente”. Existe uma socialização, uma pedagogia de violência, aprende-se e ensina-se a violência. De acordo com Misse (2011), no Brasil, a comercialização de drogas ilícitas cresceu de forma vertiginosa durante a década de 1980 e no Rio de Janeiro, mais especificamente, a partir de meados da mesma década, o crime organizado ocupou espaços significativos nas comunidades, conhecidas culturalmente como favelas. Localizam-se, majoritariamente, em favelas conflagradas pela violência cotidiana promovida pela organização de narcotraficantes rivais que disputam por territórios e em contrapartida são reprimidos pela ofensiva policial, as unidades de atenção básica à saúde da área programática que estamos analisando. No território adstrito da AP 3.3, sabem-se da existência de pelo menos cinco agrupamentos de favelas conhecidos popularmente como complexos. Todos são influenciados e organizados através da lógica ditada pelo “poder paralelo”, que toma por

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base de negociação a violência estrutural mantida pelo modo de produção vigente. Então, é nesse contexto adverso que os profissionais da atenção básica à saúde são chamados a intervir diante dos casos de violência. Em territórios que vivenciam cotidianamente situações de violência urbana, os profissionais da estratégia de saúde da família se sentem oprimidos,imponentes e coagidos frente às situações de violência doméstica, pois muitas vezes essas envolvem pessoas ligadas ao tráfico. Nesse sentido, os profissionais alegam que instrumento da notificação pode se tornar uma ameaça a sua vida e, mais especificamente no caso dos agentes comunitários de saúde, pode representar uma ameaça à vida do profissional e de sua família que, por exigência contratual com a organização social, devem residir no território de atuação. Por essa razão, eles afirmam que, se notificarem (subentende-se “denunciarem”) os casos de violência, arcarão com a resposta ofensiva do poderparalelo. Sendo assim, podemos dizer que as constantes violações de direitos humanos permanecem, em sua maioria, invisíveis e/ ou impunes, especialmente quando sofridas pelas classes populares. A ineficácia em garantir um Estado de direito dificulta o fortalecimento da legitimidade do governo democrático como promotor de cidadania. Notificação de violência doméstica, sexual e/ou outras violências: dificuldade em diferenciar notificação e denúncia Em algumas situações, ocorre a predominância da herança profissional dos técnicos, que permanecem compreendendo a saúde somente enquanto ausência de doença, mantendo sua atuação vinculada à assistência médica curativa e, portanto, não entendem violência como um problema de saúde, pois não há prescrição e tampouco medidas curativas imediatas. Assim, não consideram a notificação compulsória como instrumento de trabalho e a comparam com denúncia.

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Como afirma Phebo (2007), a notificação se qualifica enquanto documento para registros que evidenciarão a violência, tirando-a da invisibilidade. Esse documento não deve ser usado para fins judiciais ou policiais investigativos. O registro qualificado dos casos, a partir das fichas de notificação, gera informações fundamentais para a prevenção, servindo para orientar o planejamento e avaliação de políticas, além de possibilidades (nem sempre reais, face aos inúmeros e complexos desafios) de promover o trabalho intersetorial e o fortalecimento da rede de atenção, o que também é fundamental para o acompanhamento dos casos de violência. Tratando-se de pessoas em situação de violência, sabemos que a notificação é apenas uma das etapas do cuidado integral que deve ser prestado. De acordo com a Linha de cuidado para atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde (Ministério da Saúde, 2010), os casos de violência doméstica devem ser abordados de acordo com a complexidade específica de cada situação, porém existem alguns passos que podem ser seguidos na maioria dos casos. Compreendem-se como parte da linha de cuidado os seguintes momentos: a identificação, o acolhimento, o atendimento, a notificação e o acompanhamento do caso pela rede de atenção. Ou seja, a notificação deve ser realizada como um instrumento de proteção, não de punição. Não tem objetivo de culpar, mas fortalecer o lugar saudável de cada um na família. Além disso, o encaminhamento (...) não deve ser feito com vistas a livrar-se da situação. Deseja-se ao contrário, garantir e compartilhar cuidados, a fim de minimizar e/ou cessar a violência naquele caso especifico. (Phebo,2007:32) No Brasil, o Sistema de Informação Nacional de Agravos de Notificação (SINAN) foi implantado de forma gradual, a partir de

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1993, e regulamentado efetivamente em 1998. Refere-se a um sistema de investigação de casos e epidemias e tem por objetivo confirmar o diagnóstico, determinar as características epidemiológicas da doença e/ou agravo, identificar as causas do fenômeno e orientar as medidas de controle e prevenção. Podemos dizer que a ficha de notificação para os casos de violência teria como objetivo proteger as pessoas em situações violentas e fornecer informações para o Ministério da Saúde (MS), através do SINAN, possibilitando a criação de políticas públicas voltadas para a prevenção dos casos mais recorrentes/emergentes de violência. Contudo, alguns profissionais desconhecem a real finalidade da notificação compulsória (assim como sua efetividade), o que acarreta a subnotificação dos casos. Não podemos atrelar a subnotificação à ausência de cuidados às pessoas em situação de violência, pois existem outras questões que permeiam o fato das violências e agravos não serem notificados como preconiza o Ministério da Saúde. Também existem outras etapas que são tão importantes ou mais que a notificação e devem ser desenvolvidas pelos profissionais (e gestores) de saúde na busca pelo cuidado integral às pessoas em situação deviolência. Conclusão Como se sabe, o processo de saúde e doença, tanto individual como coletivo, é de origem diversificada, dependendo, portanto, de vários fatores reconhecidos como determinantes de saúde e de doença. Dentre eles, existem aqueles que dizem respeito às coletividades, às cidades e às regiões, tais como: nível de desenvolvimento social e econômico, infraestrutura e grau de desigualdade de renda. Nesse sentido, podemos dizer que violência doméstica interfere nesse processo, pois perpassa por todos os ciclos de vida e deveria envolver toda rede intra eintersetorial.

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A liderança do setor saúde na articulação dessa rede intersetorial é particularmente importante, sobretudo nas áreas mais vulneráveis, carentes ainda de bens públicos que as protejam das patologias e dos riscos de origem social. Portanto, as ações do GAR AP 3.3 visam envolver políticas públicas de diversas naturezas como uma estratégia integradora que possa aumentar a eficácia na resposta aos determinantes gerais do processosaúde/doença. Diante todo exposto, pudemos afirmar que apesar dos desafios e dificuldades enfrentadas cotidianamente pelos profissionais de saúde, ocorreram avanços no aumento das notificações compulsórias dos casos suspeitos e/ou confirmados de violência doméstica pelos serviços da atenção básica na AP 3.3. Por fim, acreditamos que somente através de ações intersetoriais, é que se pode criar uma rede de serviços sociais que garantam um atendimento integral e qualificado deste usuário, tendo como base a compreensão do paciente em sua totalidade social, estando inserido na complexa rede de relações sociais que interferem no seu processo de saúde-doença, conceito este reiterado pela Reforma Sanitária e pelo Sistema Único de Saúde. Referência bibliográfica 1. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Curso de Formação de Facilitadoresde Educação Permanente em Saúde. Unidade de aprendizagem: Análise do contexto da gestão e das práticas de saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,2005. 2. Organizacion Mundial de La Salud. Informe Mundial sobre La Violência y La Salud: resumen. Washington, DC: OMS,2002 3. Ministério da Saúde (BR), Lei n 10.778, de 24 de novembro de

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2003. Estabelece a Notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Diário Oficial da União. Brasília: DF, 25 de novembro,2003. 4. Dahlberg LL & Krug EG. Ciência & Saúde Coletiva, 11(Sup): 1163-11782007. 5. Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,2010. 6. Phebo L. Vigilância em saúde e a violência contra adolescentes. In: Violência Contra a mulher adolescente/jovem, Rio de Janeiro: EdUERJ, p. 31 - 35,2007. 7. Misse M. Crime Organizado e Crime Comum no Rio de Janeiro: Diferenças e Afinidades. In. Revista Sociologia Política, Curitiba, v.19, n.40, p. 13-25, out.2011. 8. Cano I. Violência estrutural e suas repercussões na juventude. In: Violência Contra a mulher adolescente/jovem, Rio de Janeiro: EdUERJ, p. 43 - 47,2007 9. Ministério da Saúde (BR). Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Portaria GM/ MS, Nº 737, de 16/05/01. Acessado em: 30 de abril de2016 Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/ acidentes.pdf. 10. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de atenção à saúde. Departamento de ações programáticas e estratégicas. Linha de cuidado para atenção integral para a saúde de crianças e adolescentes e suas famílias em situação de violência: orientação para gestores e profissionais de saúde. Brasília: 2010. Acessado em: 30 de abril de 2016. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/linha_cuidado_criancas_ familias_violencias.pdf

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11. Secretaria Municipal de Saúde do Rio Janeiro. Subsecretaria de Atenção Primária, Vigilância e Promoção da Saúde. Construindo juntos: profissionais da estratégia saúde da família e usuários lidando com a violência doméstica. 1ª edição - Rio de Janeiro. SMS, 2013 [Série E. Comunicação e Educação em Saúde]90p.

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3.10. Violência institucional contra a mulher em situação de abortamento e a assistência de enfermagem Priscila Figueiredo Cezario da Silva1 Camila Sixel Cordeiro2 Tânia Maria Almeida da Silva3

Resumo Estudos relatam que as mulheres que buscam atendimento hospitalar devido às complicações pós-aborto saem insatisfeitas com o atendimento recebido nos serviços de saúde, visto que o consideram como desumano e discriminatório. Com base nessa afirmação este estudo busca discutir a violência institucional e a assistência de enfermagem oferecida às mulheres em situação de abortamento. Foi utilizada abordagem descritiva de caráter qualitativo e objetivou- se verificar se as mulheres em situação de abortamento sofrem alguma violência institucional, bem como identificar as características da assistência de enfermagem voltada para essas mulheres. Através das entrevistas percebeu-se a existência de violência exercida nos serviços de saúde, por omissão, falta de acesso, baixa qualidade dos serviços e o comportamento desatencioso e negligente por parte dos profissionais de saúde. Palavras-chave: Abortamento; cuidados de enfermagem; violência contra mulher Abstract Studies have been reported about women who seek hospital care due to abortion complications and it is revealed dissatisfaction

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with health services, because they are considered by its patients as inhuman and discriminatory. Based on these findings, this paper discuss the institutional violence and nursing care service offered to women undergoing abortion, it uses descriptive qualitative approach to determine if women undergoing abortion suffer some institutional violence, as well as identify the characteristics of the nursing care. Through interviews it was noticed in health services institutional violence through omission, lack of access to attendance, low quality of services and unobservant or negligent professional behavior. Keywords: Abortion; nursingcare; violence against women 1

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: pfcezario@gmail.com Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: camilasixel@ymail.com 3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: tanialmeida5@hotmail.com 2

Introdução Este artigo é um recorte de trabalho de pesquisa intitulado Violência institucional contra a mulher em situação de abortamento e a assistência de enfermagem para a conclusão de curso de graduação. A motivação para esse trabalho surgiu pela percepção de falas dialógicas de mulheres participantes de um projeto de extensão voltado para a promoção da saúde da mulher, vinculado à faculdade. Dentro deste projeto universitário ocorreu um levantamento de dados sociais no qual se observou número elevado de abortamentos juntamente com a expressão da violência institucional sofrida pelas mulheres frequentadoras do projeto. As complicações do abortamento são uma das principais causas de morte materna direta, em sua maioria evitável e cujos níveis de cobertura são baixos, além de ocorrer a omissão de seu registro em cartório (sub-registro). Ocorrem cerca de 1,5 milhão de abortos no Brasil, sendo os abortos inseguros a quarta maior causa de mortalidadematerna.

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As complicações do aborto, induzidos ou não, estão entre as quatro principais causas de morte materna em todo mundo. Um padrão clássico que varia proporcionalmente com maior ou menor ocorrência (ou informação) de eclampsias, hemorragias e infecções². Estudos relatam que as mulheres que buscam atendimento hospitalar devido às complicações pós-aborto saem insatisfeitas com o atendimento recebido no serviço de saúde, visto que o consideram como desumano e discriminatório. Dentre os profissionais que assistem a mulher em situação de abortamento, a equipe de enfermagem aparece como um dos grupos da área de saúde que se encontra mais presente no cuidado direto à mulher. Por vezes a equipe de enfermagem exerce suas funções com falta de atenção ou cuidado, pautando-se em inobservância de deveres e obrigações, deixando de praticar atos ou não determina atendimento compatível com o recomendado pelo código de ética de enfermagem, o que é caracterizado como negligencia4, 5. Com base nessas afirmações, este estudo tem como tema a violência institucional e a assistência de enfermagem. Nosso objeto de estudo trata da violência institucional contra a mulher em situação de abortamento e a assistência de enfermagem. O objetivo geral foi investigar a ocorrência de violência institucional entre as mulheres em situação de abortamento. Os objetivos específicos foram verificar se a mulher em situação de abortamento sofre alguma violência institucional, conhecer a percepção das mulheres em relação a este tipo de violência e identificar as características da assistência de enfermagem voltada para o atendimento de mulheres em situação de abortamento. Metodologia Como o estudo envolve percepções relacionadas a valores, cultura, vivências pessoais, considera-se adequado optar por um

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estudo qualitativo, pois essas questões envolvem a dimensão subjetiva, isto é, remontam a expectativas, sonhos, aspirações, leituras particulares do mundo em que estão inseridos6. A pesquisa qualitativa, segundo Minayo6, responde a questões muitos particulares, com um nível da realidade que não pode ser quantificado, ou seja, com “o universo dos significados, motivações, aspirações, crenças, valores e atitudes [...] dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”. Este estudo também é de natureza descritiva e exploratória. A pesquisa descritiva ajuda a compreender a realidade estudada, pois a descrição tem por objetivo aprofundar determinada realidade, descrevendo com exatidão os fatos e fenômenos do que se deseja investigar. E o estudo exploratório “destina-se desvendar as várias maneiras pelas quais um fenômeno se manifesta, assim como os processos subjacentes”7. A coleta dos dados ocorreu no primeiro semestre de 2014 por meio de um processo no qual, em primeiro lugar, as mulheres foram esclarecidas acerca dos objetivos do estudo, e convidadas a participar. As mulheres interessadas e dispostas a colaborar assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE em sinal de concordância, como requisito previsto pelo Conselho Nacional de Saúde, tornando-se assim depoentes. Foram realizadas X entrevistas no total. Uma das três depoentes, por decisão própria, escolheu um pseudônimo como forma de garantir o anonimato. As entrevistas ocorreramem local reservado, com auxílio de um aparelho eletrônico mp3.

Após o término das entrevistas foi realizada a transcrição das gravações para que depois fosse feita a análise e apresentação de resultados. Participaram deste estudo três mulheres domiciliadas na cidade do Rio de Janeiro, participantes usuais das atividades de extensão universitária realizadas num bairro da zona norte da cidade

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do Rio de Janeiro. Analisaram-se as três entrevistas segundo o modelo de Bardin8. Diante disto, surgiram 04 categorias: • Qualidade da assistência recebida • Atitudes dos profissionais da instituição • Formas de violência institucional identificadas pelas pesquisadoras • Sentimentos das mulheres em relação ao atendimento recebido Neste artigo focamos nossa discussão com base na terceira e na quarta categoria. O processo de realização desta pesquisa ocorreu de acordo com as requisições éticas previstas pela Resolução CNS nº 466/12 (BRASIL, 2012) que estabelecem as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Este processo teve como ação prévia a apresentação e o cadastramento na Plataforma Brasil, e posterior encaminhamento, aprovação e liberação pelo Comitê de Ética que gerou o número do CAAE: 30956314.9.0000.5282. Resultado e discussão Nas entrevistas realizadas apenas uma das entrevistadas escolheu um pseudônimo, as outras escolherem utilizar seus próprios nomes referindo não haver problema em serem identificadas. Contudo, utilizaremos apenas as iniciais dos seus nomes. Diante da análise das entrevistas constatou-se que as três mulheres procuraram atendimento em serviços de saúde de caráter privado durante o processo de abortamento. Nestes casos, todas as mulheres relataram terem sido atendidas primeiramente por profissionais enfermeiros, porém percebe-se por alguns depoimentos que, ao se referirem à categoria enfermeiro incluíam também técnicos e auxiliares de enfermagem.

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A Constituição Federal9, em seu artigo 196 assegura a saúde como direito de todos, sendo o Estado responsável pela garantia desse direito, que deve ser aplicado de forma universal e igualitária nas ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde. Ou seja, independente de se tratar de um serviço privado ou público todo usuário ou usuária deve ter a garantia de um serviço de qualidade, com equidade e de forma integral. Em geral, as entrevistadas relataram que o atendimento não foi adequado às suas necessidades. Em algum momento do atendimento os profissionais, sejam médicos ou da equipe de enfermagem, agiram de forma “fria” e “estúpida”, segundo essas mulheres. Na categoria 3 – Formas de violência institucional identificadas pelas pesquisadoras, foi possível constatar que todas as mulheres depoentes sofreram algum tipo de violência institucional em algum momento do atendimento em serviços de saúde recebido, sejam eles de caráter público ou privado, ocorrendo antes, durante ou após os procedimentos realizados devido à situação de abortamento pelas quaispassaram. Nesse contexto, duas das entrevistadas relataram terem sentido dor durante o procedimento de curetagem: “então eles fazem aquela curetagem sem anestesia sem nada” disse Dona J. Assim como M.T., que quando questionada sobre o atendimento afirmou: “[...] é horrível, dói muito, parece que você sente [...] anestesia, não tem nada”. Neste caso, a realização de um procedimento sem bloqueio da dor, proporcionando sofrimento a estas mulheres seria uma forma de violência física. Segundo a Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que surgiu através de um esforço coletivo dos movimentos das mulheres e poderes públicos, a violência física contra a mulher é definida como “qual-

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quer conduta que ofenda a sua integridade ou saúde corporal” 10. Observa-se que houve, além desse tipo de violência, a violação do direito do tratamento adequado descrito pela Art. 3°, parágrafo único, da Portaria n°1.82011, onde está relatado que o usuário de serviço de saúde deve ter “acesso à anestesia em todas as situações em que for indicada”, bem como o “uso de medicações e procedimentos que possam aliviar a dor e o sofrimento”. Além da violência física, observou-se que por vezes as mulheres sofreram violência moral que é entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injuria11. Nos casos das entrevistadas ocorreram situações onde os profissionais de saúde, no momento em que as mulheres procuraram atendimento, levantaram suspeitas sobre a conduta destas e também duvidaram da palavra dasdepoentes. M.T. afirmou não ter provocado o aborto, porém disse que ao chegar no hospital privado no qual foi atendida, os profissionais de enfermagem duvidaram de sua palavra. Quando questionada sobre esse fato ela disse: “A princípio, quando eu cheguei lá, elas (as enfermeiras) até acharam que não era um tombo [...]” e o que a levou a tal conclusãofoi: A cara delas! a cara delas! Ainda mais que eu cheguei com meu pai, não cheguei com meu marido [...] Mas como eu percebi isso foi a cara de desconfiança, delas (das enfermeiras). A pessoa não precisa falar, é o olhar, é a cara, é a forma de receber [...] não dessa forma (grosseira), mas com um arzinho assim de desconfiança e você percebe nitidamente. Ademais, J. relatou que: Porque na hora ele ficou falando né. Que as mulheres pensam que abortar não tá sendo crime, mas é um crime e aquelas coisas que eles vão falando acusando a gente né, mas eu não fiz propositalmente, eu pensei que estava com um atraso e aconteceu que eu já estava grávida.

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Nestas colocações podemos perceber que quando existem sinais e sintomas de abortamento os profissionais de saúde pressupõem que o abortamento foi provocado, mesmo a mulher afirmando quenão. Na categoria 4 - Sentimentos das mulheres em relação ao atendimento recebido, foram descritos os sentimentos das mulheres relacionados ao atendimento recebido e onde será discutida a presença da violência psicológica. Quando questionadas sobre o atendimento que receberam e as consequências deste para suas vidas, as entrevistadas relataram seus sentimentos relacionados ao abortamento, demonstrando que o processo de abortamento é um acontecimento que muitas vezes é traumático para a mulher que passa por ele. Os profissionais de saúde, os quais as mulheres se referiram, mostraram-se distantes e as trataram de forma diferente da qual esperavam causando nelas sentimentos negativos: “(me trataram) como se fosse um bicho na verdade [...] tratava a gente como uma coisa [...] me deixou muito mal [...] me senti como um bicho” (G.). Através destas falas observou-se que o distanciamento no tratamento e a ausência de vínculo emocional do profissional de saúde com a mulher, teve como conseqüência sentimentos de despersonificação e mal-estar por parte dela. Conclusão Durante a realização deste estudo houve a dificuldade em achar participantes que concordassem em falar sobre a situação do abortamento e ao subseqüente atendimento. Notamos que das mulheres que se dispuseram a participar das entrevistas, nenhuma referiu ter abortado recentemente, guardando uma grande distância temporal do ocorrido. As depoentes eram todas mulheres mais velhas, com faixa etária acima de 31 anos. Desse modo, notamos que as mulheres conseguiram falar de modo

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mais natural sobre esse tipo de evento a partir da existência de uma distância temporal do fato narrado. Por se tratar também de um acontecimento vinculado a traumas, tristezas, culpa e outros sentimentos negativos, além do medo de juízos de valor por parte de outras pessoas, o distanciamento temporal facilitou a narrativa. Através da análise das entrevistas e com apoio da literatura especializada sobre violência conseguimos perceber como a violência institucional tem acontecido de maneira invisível e banalizada, isto porque as participantes, apesar de terem sentimentos negativos relacionados ao atendimento e reconhecerem a necessidade da melhoria da assistência, não consideraram e/ou verbalizaram em momento algum terem sofrido violência. Ademais, através das análises das entrevistas e da discussão dos relatos destas mulheres podemos notar o estado de vulnerabilidade que a mulher apresenta quando está em processo de abortamento. A situação crítica de saúde dessas mulheres é um agravante à sua vulnerabilidade diante dos profissionais de saúde, impossibilitando-as de reagir de alguma forma quando confrontadas com um atendimento inadequado. Pode-se identificar esse tipo de violência presente nos relatos na forma de: ausência de escuta, privacidade e até mesmo atendimento para os usuários; frieza, rispidez, falta de atenção, cuidados inadequados. Percebemos a violência institucional como um tipo de violência exercida pelos serviços públicos aos usuários, por ação ou omissão, abrangendo abusos cometidos em virtude das relações de poder desiguais entre os usuários e profissionais dentro das instituições. É importante ressaltar que vimos que violência Institucional é cometida principalmente contra os grupos mais vulneráveis, como no caso das mulheres em situação de abortamento.

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Por todos esses motivos o tema “violência institucional contra a mulher em situação de abortamento” torna-se um assunto interessante e ao mesmo tempo difícil de ser debatido, pois muitas mulheres recusam-se a falar sobre este tema, quando este envolve a si própria. Referência bibliográfica

1. Adesse L, Almeida LCR. Questões relativas à prestação de serviços: utilizando princípios de direitos humanos para promover qualidade nos serviços de aborto no Brasil. Questões de Saúde Reprodutiva. Rio de Janeiro; 2006. p.114-7. 2. Valongueiro S. Mortalidade (materna) por aborto: fontes, métodos e instrumentosde estimação.Anais ABEP;2000. 3. Bispo DBC, SouzaVC. Violência institucional sofrida por mulheres internadas emprocesso de abortamento. Rev. Baiana de Enferm. 2007. 21(1): 19-30. [acessado em 2013 Nov 05] Disponível em:http://www.portalseer.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/3909/2875 4. Conselho Federal de Enfermagem. Resolução 311, de 8 de fevereiro de 2007. Aprova a Reformulação do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Brasília: COFEN,2007. 5. Dicionário jurídico. Negligência. Atualizado em 24 jan. 2013. [acessado 2014Jan26]. Disponível em:<http://www.direitonet. com.br/dicionario/exibir/725/Negligencia>

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MEU FUTURO ESTÁ ATRASADO* Maria Rezende e se não fosse o seu filho? se fosse outro como eu? Matei porque pude, porque deu não é um revide, uma vingança não é pra calar o que doeu É como o mundo é - como o meu mundo é ganhar na força o que se quer sem “por favor” nem “obrigado” o meu futuro já tá muito atrasado O que eu ia ser não conta mais não dá mais tempo tem mil balas encravadas na minha idade eu sou essa cidade, convulsão e sol na cara Não adianta nem tentar quem eu sou já tá firmado o meu futuro agora é coisa do passado

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4. Formatura dos adolescentes e jovens do Rap da Saúde: uma tarde para celebrar saúde, cultura e direitos. Rafael Cavadas No dia 13 de julho de 2016, pouco depois do almoço (pra quem ainda almoça ao meio dia, é claro), uma joia do centro histórico do Rio de Janeiro, o Teatro Municipal Carlos Gomes, abriu suas portas para receber a formatura da Rede de Adolescentes e Jovens Promotores da Saúde (RAP da Saúde). Eram exatos 158 cariocas, nascidos e criados. Eram 158 promotores de saúde, entre 14 e 24 anos – nem mais, nem menos. Eram só eles, um curso de formação concluído, o palco e a Saúde. Os 158 adolescentes e jovens do RAP da Saúde chamaram mais 158 conhecidos. Então, viraram 316, mas não gostaram do número e convidaram mais pessoas. Assim, chegaram mais 168 e viraram 484, acredita? 484 jovens, amigos e familiares reunidos numa tarde de trânsito no centro da cidade, com direito a obra e engarrafamento. Mas era mentira! Tinha mais que isso. Tinha gente em pé, gente do lado de fora confraternizando, gente por todo o teatro… Gente do tipo: primo, amigo, vizinho, gestor, profissional de saúde, namorado, namorada, filho… Um monte de gente! Eram mais de 500 – ou só 500, como preferir. Não tinha bandeira, nem partido; não tinha “Fora Temer” ou “Tchau, Querida”, mas tinham 158 protagonistas juvenis dentro do Teatro Carlos Gomes promovendo saúde, fazendo arte e mos-

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trando a sua cultura. Teatro de Revista? Chanchada? Shakespeare? Que nada! Respeitamos a História, mas eram jovens das dez áreas programáticas da cidade, que passaram um ano realizando capacitações e ações nas unidades de saúde e territórios; para a rede de promoção da saúde do Rio de Janeiro, e que estavam ali para comemorar a sua formatura do seu jeito. Eram 158 novas almas pesadas. Almas potentes, cheias de conteúdo de saúde e desejos de mudar seu território para melhor. 158 novas oportunidades de ressignificar o mundo. Todas acompanhadas de “música, letra e dança”; com faixas, cartazes, textos, psicodrama e vídeos… Todos pedindo: • • • • • •

Não à violência! Não ao feminicídio! Não à homofobia! Não à discriminação racial! Não à violação de direitos! Mais Saúde!

Você, aqui, não vai saber o que houve naquela tarde, no Carlos Gomes, mas acredite: foi coisa de primeira grandeza. Eram só 158 jovens. Poderiam ser 1.580 ou 15.800, mas eram só 158, cheios de luz própria, com suas histórias e realidades, comemorando, dançando e cantando por mais Saúde, menos violência e mais direitos para todos nós. Uma verdadeira lição de protagonismo juvenil. Em tempo: A Rede de Adolescentes e Jovens Promotores da Saúde é uma iniciativa da Secretaria Municipal de Saúde da Cidade do Rio de Janeiro, por meio da Superintendência de Promoção da Saúde, que mantém turmas regulares, todos os anos, desde 2007. Atualmente, o projeto está em processo seleção dos novos adolescentes e jovens para 2016.

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