A divina arte das artes

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I PARTE (séculos XV-XVII) ADIVINA ARTE DAS ARTES


A Arte typographica, vulgarmente chamada de imprimir, de todas talvez a mais util, se bem que a mais trabalhosa, é a que mais honra faz, tanto ao genio, como á paciencia dos que a inventaram. José Filipe, 1847


1. Gutenberg e a mecanização da escrita

O recuarmos no tempo até à invenção dos caracteres móveis, inevitavelmente deparamos com um assunto que mereceu da parte dos artistas gráficos do século XIX e parte do século XX um destaque que se reflectiu no grande número de artigos de imprensa, traduções de biografias, ensaios e muitos poemas. E neste conjunto de intervenções, depois de repetida quase até à exaustão, fica registada a convicção de que Gutenberg é o verdadeiro «pai» da descoberta da mecanização da escrita e o responsável pelo início da produção em série de livros. Disso nos dá conta Norberto de Araújo* , quando refere que “não há gráfico algum que não tenha dentro do mais recôndito da sua alma” o nome de Gutenberg, ou seja, o nome

* Como refere Alexandre Vieira, em O Gráfico, n.º 61 de Setembro de 1955, “em Portugal têm-se confundido com os tipógrafos, trabalhando lado a lado com este, individualidades que brilharam na Literatura”. E uma dessas individualidades foi Norberto Moreira de Araújo. Conhecido como o jornalista que, com José Pacheco, terá animado a célebre ideia de decorar A Brasileira do Chiado com pinturas dos, então, chamados modernistas, este tipógrafo deixou uma significativa obra dedicada à cidade de Lisboa, envolveu-se com a crítica da arte e, para além das várias conferências sobre a arte tipográfica, em 1912, de parceria com o também tipógrafo Artur Pereira Mendes, apresentou-se ao concurso Memória Histórica e Descritiva sobre a Imprensa Nacional – integrado nos Festejos do 2.º Aniversário da República Portuguesa – com um texto inédito sob a divisa Fiat Ars. Apesar de ter ficado classificado em 2.º lugar, a Imprensa Nacional acabaria por editar o trabalho em 1914.

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daquele que, apesar de “escondido, rodeado de lenda e de perfume”, “representa no espírito do mais humilde obreiro do livro a encarnação límpida e iniludível” do génio que inventou a tipografia 1. Norberto de Araújo; Artur Pereira Mendes – Aspectos da tipografia em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1914. 1

conferência realizada na Imprensa Nacional de Lisboa, em 6 de Abril de 1913.

Libânio da Silva – Manual do Typographo: Bibliotheca de Instrucção Profissional. Lisboa: Imp. Libanio da Silva, [s. d.], p. 5. 2

Apesar de tudo, no âmbito das múltiplas opiniões dos autores que se debruçam sobre esta questão não existe unanimidade. Alguns, como é o caso de Libânio da Silva, no seu Manual do Typographo, preferem não contestar aquilo que consideram estar de uma forma geral estabelecido e aceite, ou seja, que terá sido João Gensfleich, ou Gutenberg, quem pensou e racionalizou um processo mecânico regular para multiplicar “ao infinito as cópias de qualquer obra, substituindo o trabalho longo, dispendioso e muitas vezes incorrecto dos copistas”: [...] Tres cidades, Moguncia, Strasburgo e Harlem, disputam a honra de lhe ter sido berço, e cada uma attribue a um seu filho a sublime invenção, sendo a epocha da descoberta attribuida geralmente a meados do seculo XV. Ha, porém, taes controversias, são tão diversas as supposições de auctor para auctor que, crêmos, nunca se poderá chegar á verdade provada sobre o local onde a imprensa viu a luz e quem foi o seu inventor. 2

De resto, opinião que Alexandre Herculano havia defendido já em 1837, quando, apesar de confessar que era extremamente provável que a gravura, e sobretudo a gravura de estampas acompanhadas de explicações, “suscitasse a primeira ideia da tipografia”, admitia que “uma grande multidão de documentos, o testemunho dos mais respeitáveis escritores contemporâneos, ou quasi contemporâneos”, deveria fazer-nos crer, que o “método” que dá origem à arte tipográfica terá ocorrido pela primeira

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vez a Gutenberg, durante a época em que esteve estabelecido em Estrasburgo, de 1424 até 1445 3. Do mesmo modo, por falta daquilo que considera serem provas convincentes, o tipógrafo e poeta Joaquim dos Anjos recusa a teoria do francês Pierre-Simon Fournier*, que atribui a Lourenço Coster a paternidade da imprensa, e limita-se a apoiar a ideia de que, apesar de algumas reservas, Gutenberg terá sido inventor da tipografia: [...]

1.1

Os habitantes de Harleim affirmam que um dos seus conterraneos, Lourenço Koster, que exercia o mestér de sacristão, inventára a imprensa pelo anno 1430, e que, na

1.1 Johannes Gutenberg – gravura em madeira.

(Fonte: Vicente Martínez Sicluna – Teoría y Prática de la Tipografia. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, S. A., 1945)

occasião em que elle tinha ido a uma egreja, o seu collaborador Guttenberg lhe subtrahíra todas as ferramentas e fugíra para Moguncia, onde passou por ser o inventor da arte. Esta asserção pecca por falta absoluta de provas; mas nem por isso em Harleim se deixa de celebrar todos os seculos uma festa em honra da supposta descoberta de Koster.

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Teoria com a qual, na prática, Manuel Canhão** concorda quando admite que “não é fácil destroná-lo da posição de * Joaquim dos Anjos demonstra estar a par da tese de P.-S. Fournier, defendida nas obras L’Origine et les progrès de l’art de graver en bois, pour éclaircir quelques traits de l’Histoire de l’imprimerie et prouver que Guttenberg n’en est pas inventeur e Dissertation sur l’origine de l’Imprimerie, ambas editadas em Paris, respectivamente em 1758 e 1759. ** Como operário fundidor da Imprensa Nacional, Manuel Canhão desenvolveu importantes trabalhos no âmbito da história dos caracteres móveis e, em 1951, com uma bolsa de estudo do Instituto de Alta Cultura, viajou

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Alexandre Herculano – «Origem da Tipografia: tipografia portuguesa». O Panorama. Lisboa: Typographia da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis, vol. I, n.º 4, 27.05.1837, p. 30, col. 1. 3

Joaquim dos Anjos – Manual do Typographo. Lisboa: David Corazzi-Editor, 1886, p. 3-4. 4


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Manuel Canhão – Os caracteres de Imprensa e a sua evolução histórica, artística e económica em Portugal. Pref. de António Gomes da Rocha Madahil. Lisboa: Grémio Nacional dos Industriais de Tipografia e Fotogravura – Lisboa, Porto e Coimbra, 1941, p. 10. 5

Eleutério Cerdeira – «A Imprensa I». In História de Portugal: edição monumental. Dir. lit. Damião Peres. Barcelos: Portucalense Editora, 1932. Vol. 4, p. 305. 6

Tito de Noronha – Ensaios sobre a Historia da Imprensa. Lisboa: Typographia Franco-Portugueza, 1857. 7

principal impulsionador, o que certamente lhe dá a fama de que se reveste o seu nome em todo o mundo” 5 e Eleutério Cerdeira* não aceita nem deixa de aceitar quando, depois de uma análise quase exaustiva de todos os argumentos a favor ou contra, afirma concordar com a teoria do crítico e escritor francês Victor Philarète Chasles, que, de uma forma genérica, resolve o problema afirmando que a tipografia se tratou, simplesmente, de uma invenção do Homem 6 – de resto argumentos “e outros tantos absurdos” também invocados por Tito de Noronha, nos seus Ensaios sobre a Historia da Imprensa, que o levam a defender Gutenberg como o pai da chamada arte maravilhosa 7. Porém, o tipógrafo Pedro Freitas, através da discussão sobre a definição do vocábulo «tipografia», procura determinar o seu verdadeiro inventor, mas acaba por não ultrapassar as angustiantes questões que coloca no início do artigo publicado no jornal A Imprensa, em 1887: [...] Foi Gutenberg com effeito o inventor da sublime arte de imprimir? Foi Moguncia, como se affirma, o berço da typographia? Com que direito se arrogam então os hollandezes a reivindicar para um dos seus compatriotas a prioridade da invenção, e a fixarem em Haarlem o local em que na Europa primeiro se imprimiu? por vários países da Europa, onde visitou alguns dos mais evoluídos centros impressórios e sobre os quais apresentou vários relatórios de interesse para a indústria tipográfica portuguesa. * Para além dos vários estudos e artigos que publicou sobre a história da imprensa em Portugal, Eleutério Cerdeira, como director artístico, foi um dos responsáveis pela edição da História de Portugal, impressa em 1932, em Barcelos, e como professor dedicou parte da sua vida ao ensino das artes gráficas na Escola Industrial Infante D. Henrique, no Porto.

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[...] Acostumados a venerar em Gutenberg o auctor da maravilhosa invenção, é para nós devéras penoso vermo-nos constrangidos, em homenagem á verdade, a abalar lhe o glorioso pedestal que numerosos e fidedignos historiadores lhe erigiram; e sentimo-nos hesitantes, como se estivessemos prestes a commetter uma profanação, ao expormos ao exame dos que se interessam em assumptos typographicos as duvidas que se levantam em nosso espirito, ácerca da origem da imprensa e do seu verdadeiro inventor. 8

Mais tarde, com uma perspectiva diferente, outros retomam o debate, apresentando documentos como, por exemplo, a Crónica de Colónia, impressa em 1499, por Ulrico Zell, um dos discípulos de Gutenberg, que dão a entender que “a invenção da imprensa fora feita em Mogúncia, mas que a ideia viera da Holanda”. Acrescentando a esta tese a ideia de que a chamada «Bíblia das 42 linhas», não terá sequer sido o primeiro livro impresso, já que, ainda nos anos quarenta, depois de algumas folhas soltas, de um poemeto sobre o «Juízo Final», de um Calendário, e das «Cartas de Indulgência» – do próprio Gutenberg –, mais obras, como os Donatos, de Lourenço Coster, terão sido publicadas e impressas em letra de forma: [...] Como se pôde conceber algum dia que uma obra relativamente tão perfeita como é a Bíblia de Guthemberg tivesse sido o primeiro livro impresso no mundo? Custa crer que assim tivessemos pensado alguma vez; mas a verdade é que todos o pensámos. [...]. 9

Por outro lado, e sobretudo com base na obra do francês Henri Delaborde, outros argumentos surgiram na imprensa portu-

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Pedro Freitas – «Laurens Janszoon Coster e a origem da tipografia II». A Imprensa. Lisboa: Imprensa Nacional, n.º 32-33, [s. d.] (Março-Abril) de 1888, p. 61, col. 1. 8

«O que se diz não é verdade». Anais das Bibliotecas e Arquivos. Lisboa: Biblioteca Nacional, s. II, vol. I, n.º 1, Janeiro-Março, 1920, p. 53-54. 9


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Campos Lima – «Foi ou não Gutenberg quem descobriu a impressão por meio de caracteres móveis?» Revista Gráfica. Porto: Imprensa Moderna – LDA.: Liga das Artes Gráficas do Pôrto, A. V, n.º 50, [Outubro] de 1934, p. 2-3. 10

guesa*, como foram os utilizados por Campos Lima, que, em 1934, chegou a dissertar sobre se a tipografia terá sido uma invenção ou uma descoberta e não teve dúvidas quando, referindo-se ao aperfeiçoamento técnico dos incunábulos de Gutenberg, defendeu a inevitabilidade de outros trabalhos tipográficos menos perfeitos terem sido impressos antes de 1440: [...] Gutenberg não fêz mais do que aproveitar e aperfeiçoar uma descoberta já anteriormente realizada. Outros o continuaram nesses aperfeiçoamentos e os caracteres tipográficos que com Gutenberg eram ainda de madeira e gravados cada um por sua vez, só passaram a ser metálicos com Schoeffer, o primeiro que empregou uma matriz e os fundiu, utilizando, para isso, primeiro o chumbo e depois uma liga bastante resistente. 10

Mas, a esta polémica juntaram-se outras dúvidas a propósito dos próprios conceitos. E uma delas levanta uma questão interessante: teria Gutenberg inventado a tipografia ou a imprensa? Enquanto para Joaquim da Costa Carregal, no seu discurso Gutenberg e a civilização, em 1940, “ ele é o inventor da tipografia, e só desta”, tudo o resto se resume a “devanear sobre as numerosas tentativas feitas para esclarecer a mais que discutida prioridade da invenção e, por fim, ficar ignorando se foi ou não Gutenberg quem teve a maravilhosa ideia da * Com base num largo e interessante conjunto de argumentos que fizeram escola, o visconde Henri Delaborde, no seu estudo sobre La Gravure: précis élémentaire de ses origines, de ses procédés et de son histoire, com várias edições em francês e inglês, defende a possibilidade de ter sido Lourenço Coster o primeiro a utilizar os caracteres móveis.

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1.2. O problemático Gutenberg: modesta recordação na passagem do V centenário da sua invenção (1440-1940), de Casimiro Augusto Morais. Porto: Editorial Império, 1940.

1.2

Tipografia” 11; para o compositor tipográfico Casimiro Augusto Morais, que transcreve as palavras do Nouveau Larousse Illustré, também já citado por Libânio da Silva, em 1908, O problemático Gutenberg “não inventou, como tanta vez se assevera, a tipografia, já conhecida antes do seu nascimento”, embora admita ter sido ele o responsável pelo aperfeiçoamento da prensa e da utilização dos caracteres móveis, ou seja, o

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Joaquim da Costa Carregal (filho) – Gutenberg e a Civilização: separata do n.º 151 da Indústria Portuguesa. Porto: Grémio Nacional dos Industriais de Tipografia e Fotogravura, 1940. 11

Conferência em 18 de Agosto de 1940, na sede da Associação dos Tipógrafos, Litógrafos e Ofícios Correlativos do Distrito do Porto, aquando das solenidades comemorativas do seu quarto aniversário.


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responsável por aquilo que considera ter sido um importante contribuído para o desenvolvimento da imprensa: [...] Daqui partem, com certeza, a dúvida e o motivo pelo qual se interrogam os humildes continuadores dessa Arte, tornada há séculos distinta «profissão»: quem foi o inventor da Imprensa? [...] 12

Em contraponto, outros autores não têm qualquer hesitação relativamente a esta polémica, como é o caso de um anónimo que, ainda na primeira metade do século XIX, expõe as suas convicções no Universo Pittoresco: [...] Se o illustre inventor voltasse ao mundo depois do seu passamento, teria o desgosto de ver a filha de suas meditações, negando seu verdadeiro pai. Porém a justiça póde dormir, mas não morre; e mais cedo ou mais tarde faz ouvir sua voz sonora. Se aquelle grande homem teve emulos da sua gloria; se realmente Fust, Schaeffer de Mayence, e Coster de Harlem, tomaram parte nos seus trabalhos, hoje todos lhe dam o primeiro lugar na historia da arte typographica, e ninguem duvída procclamar João Gutenberg como o primeiro inventor da arte de imprimir.

1.3

1.3 Gutenberg – desenho e gravura de João Pedroso. (Fonte: A Imprensa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1885)

[...] 13

Casimiro Augusto Morais – O problemático Gutenberg: modesta recorda-ção na passagem do V centenário da sua invenção (1440-1940). Porto: Editorial Império, 1940, p. 10. 12

«João Gutenberg». Universo Pittoresco. Lisboa: Imprensa Nacional, t. 3.º, 1843-1844, p. 356-357. 13

Nem têm, como o tipógrafo Miguel Cobellos, qualquer dificuldade em colocar em causa argumentos sustentados nos manuais tipográficos estrangeiros que estão na origem das primeiras tentativas de sistematizar noções teóricas e técnicas necessárias à dinamização de uma arte que fazia algum esforço para se adaptar aos novos conceitos e às novas exigências de uma indústria ainda muito rudimentar em Portugal:

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[...] Assim entendo eu que em cousas duvidosas nos exprimâmos sempre, porque, por um trabalho que eu julgo posterior ao de M. Daunou, [...] se poderia dizer que Faust, não só não inventou cousa alguma, mas até foi um ignobil usurario que, sendo rico, especulou com o resultado das longas experiências de Guttenberg, que era pobre, e a quem a final perseguiu porque já não precisava delle, e o mesmo Schoeffer poderia muito bem ser cumplice desta vilesa. O Manual de M. Brun, porém, exprime-se de outro modo, porque, sendo brevissimo na origem da typographia, avança comtudo muito mais que o de M. Frey, visto que tira uma conclusão, como quem não admitte duvidas, mas com que eu não concordo por não ser fundamentada. Diz «que a existencia da typographia se deve unicamente a Schoeffer, porque sendo a matriz-ponção invento seu, é por ella só que se multiplicam ao infinito typos identicos, moveis e perfeitamente proporcionados; e que a Guttenberg quasi nada devemos, porque a mobilidade dos typos, conhecida muitos seculos antes delle, não lhe permittiu executar cousa alguma». Não se pode negar que a Schoeffer se deva alguma cousa, mas lançar isto ao papel, sem uma unica razão que mostre porque se tira a Guttenberg toda, ou a maior parte da sua gloria, não é sufficiente para se lhe dar credito.

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Mas, se Cobellos contradiz convictamente alguns autores franceses, o dirigente da Associação Typographica Lisbonense, José António Dias, responsável pela tradução da biografia de Gutenberg, publicada por Lamartine*, recorre a * A obra Gutenberg: inventeur de l’imprimerie, de Alphonse de Lamartine, publicada em 1854, por Hachette (Bibliothèque des chemins de fer), em Paris, teve várias reedições, a última das quais em 1997, sob a chancela das Editions Folle Avoine.

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Miguel da Cruz e Cobellos – «Fragmentos para um manual tipográfico». Jornal do Centro Promotor. Lisboa: Imprensa do C.P.M.C.L., A. I, n.º 16, 04.06.1853, p. 124; onde faz referência a M. Daunou (Pierre Claude François Daunou), autor de Analyse des Opinions diverses sur L’origine de l’Imprimerie, de 1802; a M. Brun, autor de Manuel pratique et abregé de la typographie française, impresso por Fermin Didot père et fils, em 1825; e a M. A. Frey, autor de Manuel nouveau de typographie, impresso na oficina de Fain, em 1835, com uma reedição revista e aumentada, por E. Bouchez, em 1857, e uma reimpressão em fac-símile, por Leonce Laget, em 1979. 14


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[José António Dias] – «Um novo documento acerca de Gutenberg». A Imprensa. Lisboa: Imprensa Nacional, n.º 58, [s. d.], p. 75-76. 15

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Ibid.

Américo Jorge da Silveira – Johannes Gutenberg: cadernos de cultura tipográfica 1. Porto: Ed. de autor, 1963, p. 11. 17

Id. – Manual do Impressor. Semide – Coimbra: Escola Profissional Semide. Vol. I, 1947, p. 14. 18

um documento divulgado pela primeira vez por Ulrich Gering, um dos três alemães que terão sido responsáveis pela introdução da imprensa em Paris, onde se revela que “um certo João cognominado Gutenberg, fora quem primeiro, e desde muito tempo, inventara a arte de imprimir, não longe da cidade de Mogúncia” 15. E se Joaquim da Costa Carregal, ainda na primeira metade do século XX, refere que outros países quiseram disputar à Alemanha a invenção da tipografia e injustamente reivindicar essa glória, como foram os casos da Holanda e da Itália, atribuindo-a uns a Bernardo Ceninni e outros a Pampilo Castaldi e também a Giovanni Brito, para concluir que “a história acolheu-os com desdém” 16, do mesmo modo, mais de cem anos depois de publicados os «Fragmentos para um manual tipográfico», de Cobellos, numa pequena, mas interessante, cronologia dos acontecimentos e das relações entre Gutenberg e aqueles que, muitas vezes, são apontados como os verdadeiros inventores da imprensa, Américo Jorge da Silveira continua a tentar provar que ele não se teria inspirado nas informações de Coster para criar os tipos móveis em metal 17, apesar de, em 1947, no seu Manual do Impressor, ter defendido que o crédito de muitos documentos encontrados ou outros que, eventualmente, viessem a aparecer poderiam, um dia, abalar o referido consenso em torno do autor da invenção da “divina arte” 18. Outro dos temas, que resulta da discussão em torno da invenção ou descoberta da imprensa, enquadra-se na relação entre a xilografia e a tipografia, isto é, entre a gravura anterior a Gutenberg e a gravura depois de Gutenberg. O próprio Alexandre Herculano chamava a atenção para os vários métodos possíveis para “multiplicar as cópias de qualquer original, estampando este sobre superfícies planas”, para

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chegar à conclusão de que, naturalmente, nem todos fariam parte da chamada arte tipográfica. Teoricamente, “gravar em uma prancha de pau, ou de metal, os caracteres, e estes serem aprofundados ou em relevo: o reunir caracteres móveis em um quadro, e com eles assim reunidos estampar o que se pretende: serem estes caracteres de metal, ou de madeira, e no primeiro caso, fundidos ou esculpidos” 19 são processos que permitem atingir os mesmos objectivos. Porém, na prática, a sua concepção de tipografia parece deixar adivinhar a convicção da existência de uma diferença entre dois momentos que, inevitavelmente, correspondem a dois estádios de desenvolvimento da tipografia: um, mais primitivo, que tem a ver com a impressão de textos esculpidos em pranchas de madeira, e pouco ou nada com o conceito de imprensa; e outro, mais evoluído, que continua a relacionar-se com a impressão de textos, só que, neste caso, compostos em caracteres móveis, ou seja, relacionando-se com a indústria do livro e, posteriormente, dos jornais, o que está de acordo com a definição que nos é dada por Manuel Pedro, no seu Dicionário Técnico do Tipógrafo: [...] Antes da descoberta da imprensa, os primeiros livros foram manuscritos; usou-se depois a xilografia ou a impressão tabular, usada já na China desde o século VI, e na Europa depois do século XII. A xilografia vigorou até ao aparecimento da tipografia, sendo as páginas gravadas em pranchas de madeira e transportadas a uma face do papel por meio de fricção, depois de atentadas. [...]. 20

Ou seja, tendo como objectivo a multiplicação de cópias, para Manuel Pedro, a xilografia é a arte de gravar em madeira, que precede a verdadeira tipografia ou impressão em caracteres móveis, inventados no século XV por Gutenberg 21. No entanto, para Ernesto Soares, xilogravura não deve confundir-se com

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Alexandre Herculano – Art. cit. O Panorama, n.º 4, 27.05.1837, p. 29, col. 2. 19

Manuel Pedro – Dicionário Técnico do Tipógrafo. Porto: Imprensa Moderna – LDA.,1948, p. 48. 20

Id. – Gutenberg e a Arte na Imprensa. Porto: Porto: Imprensa Moderna – LDA., 1945, p. 24-25. 21

Conferência realizada no Sindicato Nacional dos Tipógrafos, Litógrafos e Ofícios Correlativos do Distrito do Porto – Secção de Braga, em 30 de Abril de 1944.


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1.4 Gutenberg – litografia de Enrique Casanova, 1885.

1.4

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gravura em madeira ou de madeira. Isto porque, quando se refere à ilustração do livro, este estudioso classifica de xilogravura toda a gravura em madeira anterior ao século XIX e denomina de gravura a topo a gravura posterior ao século XIX 22. O que nos leva a concluir que, ao longo dos tempos, as várias terminologias utilizadas tanto por artistas gráficos como por historiadores têm naturalmente sustentado opiniões diversas e até divergentes no âmbito das definições e conceitos que dizem respeito às artes gráficas. Neste contexto, talvez possamos acrescentar que a gravura primitiva em madeira, a que se dá o nome de xilogravura, e que tem a ver com a impressão de estampas e ilustrações, fez o seu percurso acompanhando a evolução lenta da tipografia, mantendo uma definição gráfica muito limitada à estrutura da própria madeira e continuando a ser impressa à parte da composição tipográfica. Na prática, corresponde à francesa gravure sur bois de fil, utilizada até ao final do século XVIII. Quanto à chamada gravura a topo, que não é mais do que a tradução da gravure en bois de bout, e que resulta de uma nova técnica de corte e incisão da madeira, cujas pranchas passam a ter uma altura que permite a incorporação na composição dos textos e a impressão simultânea, enquadra-se no período em que a imprensa sofre o grande impulso da indústria gráfica, razão pela qual passou a ser conhecida por gravura tipográfica. Feito este parêntesis, que consideramos importante tendo em conta o conteúdo do nosso trabalho e o número de vezes que teremos necessidade de utilizar estes termos, podemos retomar a ideia de que é mais ou menos indiscutível que, no ocidente, a xilografia tem um ciclo de vida que termina com a invenção dos caracteres tipográficos e, a este respeito, já em 1907, a Revista das Artes Graphicas publicava um artigo que, em defesa do

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1.5

1.5 Prensa de Gutenberg – reconstituição existente no Museu Mundial da Imprensa, em Mogúncia.

Ernesto Soares – «A Ilustração do Livro». In Barreira, João de (dir) – A Arte Portuguesa: as artes decorativas. Lisboa: Edições Excelsior, [1951]. Vol. II, p. 165-166. 22


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1.6 Primeira página do Inter Sodales – número comemorativo da festa da Associação Tipográfica Lisbonense e Artes Correlativas, Lisboa: Imprensa Nacional, 1914. (col. JP)

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“glorioso autor da imprensa”, considerava que o conhecimento das lâminas, gravadas uns trezentos anos antes de Cristo; que o conhecimento da impressão das cartas de jogar, datado do final do século XIV; e o conhecimento da gravura em madeira, desde 1421, não passavam de simples detalhes que em nada desmereciam a imagem de Gutenberg e “a obra grandiosa que

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permitiu difundir os escritos, multiplicando as cópias e facilitando a aquisição destas” 23. Mas, mais do que participar nas polémicas e nas disputas sobre a paternidade do processo tipográfico que permitiu o nascimento da imprensa, os textos dos tipógrafos e, em geral, dos homens das letras, que se referem às artes gráficas em Portugal no século XIX e parte do século XX, testemunham dois aspectos de extraordinária importância: por um lado, a necessidade de afirmar Gutenberg como a referência fundamental das artes gráficas e da imprensa e, por outro, a necessidade de sustentar a ideia de que com Gutenberg «fez-se luz». De resto, afirmar Gutenberg como uma referência, corresponde ao orgulho dos próprios tipógrafos se reunirem em torno do seu mestre, a «sentinela» que lhes garante a autoridade e o prestígio que as exigências da indústria vão comprometendo. Percebe-se que, «entre companheiros», afinal, exaltar a memória do inventor da arte tipográfica significava dar maior relevo ao génio de um homem a quem a Humanidade “jamais poderá pagar a imensa dívida de gratidão que com ele contraiu” 24 e significava também a necessidade de recordar que os seus discípulos tinham direito ao crédito da sociedade para a qual consideravam continuar a contribuir de forma inestimável.

Por outro lado, na sua perspectiva, Gutenberg havia-lhes legado aquela que consideravam “a maior e a mais sacrossanta das heranças”, o que significava também que a responsabilidade de se conduzirem conscienciosamente e “serenamente pela estrada rutilante do progresso” impunha-lhes o dever de não se deixarem “ir vergonhosamente na corrente do marasmo” 25.

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«A Descoberta da Imprensa». Revista das Artes Graphicas. Lisboa, Typographia da Empreza da Historia de Portugal, A. II, n.º 2, Janeiro de 1907, p. 6. 23

Joaquim Gomes Pinto – «Gutenberg». Inter Sodales. Lisboa: Imprensa Nacional, n.º comemorativo, 1914, p. 1. 24

Artur Inês – «Os precursores de Gutenberg». Revista Gráfica. Porto: Cooperativa Gráfica: Liga das Artes Gráficas do Porto, A. VII, n.º 3, 03.09.1916, p. 3, col. 1. 25


A divina Arte das Artes

Z. Consiglieri Pedroso – «Conquistas da Civilização». A Imprensa e a Associação. Lisboa: Imprensa Nacional, n.º único, 1883, p. 2-3. 26

Sousa Viterbo – A Trilogia dos grandes inventores. Lisboa: Imprensa Nacional, 1894. 27

Vieira da Silva Júnior – «Arte Tipográfica». Jornal do Centro Promotor. Lisboa: Imprensa do C.P.M.C.L., A. I, n.º 15, 28.05.1853, p. 113, col. 2. 28

Preocupação esta que é permanente ao longo dos seus discursos e que tem dois objectivos fundamentais: por um lado, estimular a autoridade inerente à competência que é exigida a uma classe de artistas e homens letrados e, por outro, reforçar os seus argumentos no âmbito da luta operária. Quanto à ideia de que com Gutenberg «Fiat Lux», essa é, no teatro da maioria das homenagens, o cenário que se repete eternamente. A invenção da escrita, a invenção do alfabeto e a invenção da imprensa, representam as três mais importantes conquistas da civilização. Por isso, na opinião de Zophimo Consiglieri Pedroso, ter-se-ão de há muito apagado da memória das gerações os nomes dos Césares e Alexandres, memoráveis em cem batalhas felizes, mas brilhará cada vez mais luminosa a auréola que cerca o vulto de Gutenberg 26. Enquanto para Sousa Viterbo, aquela personagem histórica, ao fixar, perpetuar e transmitir, de século em século, de geração em geração, o pensamento humano, fez da tipografia o principal veículo do progresso 27. [...] Se Guttemberg não destruisse o velho systema da communicação do pensamento, leriamos ainda hoje a historia dos feitos e das descubertas da humanidade no papyrus, ou no livro de pedra dos mosteiros. 28

Esta é a certeza do tipógrafo e jornalista Francisco Vieira da Silva e a convicção de Afonso Vargas* quando afirma que a descoberta da imprensa significou a fundação de um poder

* Ligado a vários projectos jornalísticos dedicados às artes gráficas, Afonso Vargas, em 1885, assumirá a direcção literária da revista A Imprensa, uma publicação editada com o apoio da Imprensa Nacional e redigida por vários dos seus empregados, o que nos leva a crer que ele próprio estaria ligado à referida instituição, como compositor ou como tipógrafo/revisor.

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novo, um poder que mudou completamente a velha ordem das coisas ao universalizar a própria consciência da humanidade, através do livro, do panfleto e depois do jornal 29, ideia que repetirá, três anos depois, quando, solicitado por Alberto Bessa, o director de A Semana, no número prospecto desta publicação, dedicado à imprensa e à invenção da tipografia, voltou a publicar um texto sobre Gutenberg e «a descoberta da imprensa» 30. Por outras palavras, na opinião de muitos tipógrafos que colaboraram em muitas das homenagens a Gutenberg realizadas na segunda metade do século XIX, a imprensa estava destinada a proclamar os direitos do homem, contrariando todos os despotismos e proclamando a igualdade 31. Por isso, um anónimo critica os homens do seu tempo que não souberam avaliar nem compreender aquele espírito lúcido que, aliando a ideia à arte, criou a tipografia e “operou uma das mais formidáveis e benfazejas revoluções que os povos têm visto na sua vida culta e no campo sempre crescente do seu progresso moral e material das letras, das artes, da ilustração, da civilização e finalmente de todas as classes sociais” 32; pelas mesmas razões, o tipógrafo portuense Serafim da Silva proclama a necessidade do inventor da imprensa ser glorificado pela sua obra 33; e Libânio da Silva, com a afirmação de que “a descoberta da tipografia constitui o sucesso mais importante da história da Humanidade”, inteligentemente desdramatiza a falta de provas documentais definitivas sobre onde e quem a terá inventado: [...] E se não se pode conhecer uma data precisa, se não se pode, sem temor de errar, atribuir a descoberta a tal ou qual país, a

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Afonso Vargas – «A descoberta da imprensa». Guttenberg. Lisboa: Typographia e Lythographia Portugueza, A. I, n.º 1, 01.08.1882, p. 1. 29

Afonso Vargas – «A descoberta da Imprensa: Gutenberg». A Semana. Porto: Typographia Universal de Nogueira & Caceres, n.º prospecto, 16.12.1885, p. 4-5. 30

«A tipografia I: história antiga – perseguições». A Arte Typographica. Lisboa: Typographia do Commercio: Associação de Classe dos Compositores e Impressores de Lisboa, A. I, n.º 2, 01.05.1898, p. 3, col.1. 31

«A classe tipográfica». O Typographo. Covilhã: Typographia Echo Herminio, A. I, n.º 1, 21.10.1908, p. 1-2. 32

A. Serafim da Silva – «A Imprensa». Typographia Portugueza. Porto: Typographia de A. J. da Silva Teixeira, A. I, n.º 2, Outubro de 1887, p. 2, col. 2. 33


A divina Arte das Artes

tal ou qual inventor, o nome de Gutenberg, ou representando um homem, ou sintetizando o trabalho de muitos, continuará sendo reverenciado como piedoso dever.  34

Manuel Pedro – Op. cit. 1945, p. 22-26. 35

[...] 34

Libânio da Silva – Op. cit. P. 30.

Mas, se muitas das críticas dos tipógrafos fazem enfoque nas dúvidas que alguns têm relativamente ao primado de Gutenberg, outras, mais contundentes, resultam dos vários tipos de reacção que a invenção da imprensa terá produzido na sociedade quatrocentista. Manuel Pedro*, por exemplo, refere que o copista, cuja arte “tocara o apogeu da perfeição”, ao ver-se arredado das tarefas que, durante séculos, fizeram dele o único artífice do livro, protesta contra os desafios da “nova arte”, e move “uma luta sem tréguas ao genial Gutenberg e aos seus colaboradores” 35; e Manuel Pedro (filho), alinhando pelo mesmo diapasão do pai, denuncia as calúnias de que Gutenberg foi alvo, nomeadamente com o objectivo de denegrir a sua imagem e evitar que a tipografia pusesse em causa o trabalho dos copistas: [...] Perseguindo-o com acusações falsas e, portanto, nada honestas, alcunhando-o de bruxo e de feiticeiro, para que as autoridades pusessem termo às suas pretensões de inventor, pretensões que não tinham outro fim que não fosse o bem da Humanidade e o progresso de todas as Ciências, travaram-se então duras pelejas, muito especialmente na Alemanha, entre os copistas e os novos operários tipógrafos.

* Com uma vasta obra dedicada às artes gráficas e como tipógrafo ligado ao movimento associativo portuense, Manuel Pedro, na primeira metade do século XX, constituiu uma das mais importantes referências da classe tipográfica.

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Gutenberg e a mecanização da escrita

1.7 Gutenberg – pormenor de desenho à pena de Isolino Vaz.

(Fonte: Manuel Pedro (filho), Estudos sobre técnica de composição tipográfica, Porto, Oficinas Gráficas da Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis, 1964)

1.7

Apesar de tais lutas, batalhando contra tudo e contra todos, os progressos da tipografia iam-se acentuando, havendo atingido o seu ponto culminante no ano de 1455, quando saiu da oficina do genial inventor a primeira obra de vulto, composta com caracteres tipográficos [...] 36

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Manuel Pedro (filho) – «Breve resenha histórica da Tipografia: de Gutenberg até aos nossos dias».Cícero. Lisboa: Gráfica Monumental. A. IV, n.º 37-38 (especial de homenagem a Johannes Gutenberg), Junho/Julho de 1963, p. 6, col. 1. 36


A divina Arte das Artes

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Ver nota 30.

Do mesmo modo, ainda no século XIX, conforme recorda um colaborador da revista A Arte Typographica, a estas guerras de interesses ter-se-ão juntado as vozes de uma parte do clero e da nobreza que viam na imprensa um inimigo muito perigoso e capaz de prejudicar os seus interesses sociais: [...] Admiravam interiormente aquella demonstração do saber humano; mas temiam-n’a ao mesmo tempo, porque conhecendo os vassallos a sua verdadeira situação com respeito a seus senhores, previam estes ultimos que um dia chegaria em que lhes pediriam estrictas contas como causa primaria da sua miseria material e intelectual. [...] 37

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