Artfliporto 2015 (novo formato)

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As naves insanas de KRAMER e FELLINI Texto ANDRÉS VON DESSAUER

Stanley Kramer

Federico Fellini

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O

humanista alemão Sebastian Brant, com seu satírico poema ‘Das Narrenschiff’ (‘A Nau dos Insensatos’) e Hieronymus Bosch, precursor do surrealismo, com o quadro ‘A Nave dos Loucos’, se tornaram fonte de inspiração de inúmeros artistas, filósofos e escritores. Mas, foi no século XX, que esses ícones desencadearam uma verdadeira reação em cadeia, já que, em alusão às referidas obras, Katherine Anne Porter publicou, em 1962, o romance ‘A Ship of Fools’, o qual motivou o cineasta americano Stanley Kramer a montar o filme ‘A Nau dos Insensatos’ (1965) e, por sua vez, impulsionou, em 1983, a filmagem de ‘La Nave Va’ de Federico Fellini. Vale destacar, todavia, que enquanto os loucos da embarcação de Bosch são conduzidos para fora da civilização, como em uma

A NAU DOS INSENSATOS— Ship of Fools (1965)

espécie de pena de ostracismo ateniense, o avanço da medicina e, em especial, da psiquiatria no século passado, tornou possível o convívio com a loucura—até porque de ‘louco todo mundo tem um pouco’. Assim, por mais excêntricos que pareçam, os passageiros retratados nas naves de ambos os cineastas não são considerados insanos, mas, pelo contrário, representam um microcosmo das sociedades que antecederam as duas guerras mundiais. A NAVE italiana, ambientada em 1914, retrata uma sociedade estritamente ligada à cultura, com uma finalidade especifica. Já a NAU alemã é composta por um grupo heterogêneo, com objetivos diversos. Apesar disso, as duas naves têm semelhanças, que vão desde seus nomes femininos (GLÓRIA ‘N’ e VERA), à extrema relevância da música que, por vezes, ganha vida própria, e parece conduzir o roteiro.

Na NAVE o embarque se dá com arrolamento de todos os passageiros em um movimento de ascensão, aproveitando a subida de uma longa escadaria, em meio ao canto lírico, já que estamos no mundo da ópera. O filme se inspirou na morte da cantora Maria Callas, cujas cinzas foram jogadas, em 1977, no mar Egeu. Os embarcados tinham, assim, um propósito pré–determinado: o funeral de uma famosa cantante lírica. Mas, o que vai a pique é a aristocracia européia, pois, com a primeira guerra mundial essa sociedade perde, para sempre, seu poder político. E, com a dissolução dos reinados e impérios vai abaixo todo um mundo ligado às Belas Artes. O filme, em questão, foi rodado, integralmente, no famoso Studio 5 da Cinecitá. Feito que revolucionou o jeito de fazer cinema e, que hoje parece se repetir diante da substituição do estúdio pela computação gráfica. Na NAU os passageiros são apresentados após o embarque, mas, sua individualização propriamente dita só ocorre em seu destino, no porto de Bremerhafen, onde a vida apresenta uma nova bifurcação para cada um. Aliás, como estamos em 1933, os degraus descendentes do desembarque poderiam ser recepcionados como um mau presságio político, já que, nesse mesmo ano, a Alemanha de Weimar se encontrava em dissolução e o partido nazista subia ao poder. O narrador de Fellini sobrevive, de forma surreal, ao naufrágio da NAVE dividindo um bote salva– vidas com um rinoceronte—animal que, desde a xilogravura de

Albrecht Duerer (1515), é sinônimo de autoridade, tenacidade e vigor. Nesse passo, fica quase evidente a mensagem subliminar de que a Arte sobrevive a qualquer guerra. Já o judeu–anão da NAU não é um sobrevivente, mas, uma testemunha da despreocupação de uma sociedade pré–guerra, que pensa, essencialmente, de forma egoísta. E, ao concluir que nada daquilo que foi apresentado é relevante, a obra sublinha o sentimento de alienação da época. A ironia é o fio de ouro que conduz as duas obras. E, a indiferença da classe dominante, para com os menos abastados, é a tesoura que separa, em partes desiguais, o tecido social. O povo passa a ser, por si, uma ameaça. Assim, na NAVE, qualquer interferência externa é recebida como algo negativo, mesmo que se trate de uma inofensiva gaivota na sala de jantar. Na NAU, de igual forma, essa aversão fica clara na exclusão de passageiros judeus da mesa do capitão, composta, exclusivamente, por alemães anti–semitas e um cão. Em resumo, a obra de Fellini é essencialmente estética. Até porque a ‘cultura’ atua como um mecanismo capaz de alçar a âncora possibilitando o deslocamento de um verdadeiro gigante. Tem–se, assim, uma clara metáfora para a força da música que, se impõe sobre as picuinhas pessoais– sociais–políticas. De outra banda, na obra de Kramer, ‘A NAU DOS INSENSATOS’, menos vinculada às notas musicais, a mensagem resta sintetizada na afirmação de que, ‘a alienação e a indiferença são as portas de entrada da insensatez’.  65


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