Jornal APUSM edição Junho 2017

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Publicação mensal da Associação dos Professores Universitários de Santa Maria

Junho 2017

Fotografia

“Manhã de sábado, Calçadão, 1981” Luiz Gonzaga Binato de Almeida – Arquiteto e professor universitário aposentado

R

ecém aqui radicado, projetei o Calçadão desta cidade. Consciente de tocar em ponto sensível do usuário da eterna “Primeira Quadra”, procurei consagrar a tradição: passeio, comércio e encontro de pessoas. Inaugurada em maio de 1979, a obra sofreu degradação contínua. Em inícios deste século, um novo projeto destruiu o que havia do original. Nada restou. Agora, do primeiro Calçadão, só em fotos ou na memória dos que o conheceram. Deformações e descasos à parte, nosso maltratado Calçadão persiste como vívido espaço democrático. Não vê cor, credo, partido ou categoria. Para tal o concebi e, nisso, permanece. Há quase quatro décadas. Essa fotografia, de 1981, registra um especial encontro no Calçadão que projetei (obra ainda nova, com no máximo dois anos). Era manhã de sábado (alvoroça-se o Calçadão em tais manhãs). Celebridades, próximas à Galeria do Comércio: Cláudio Cardoso (“Claudinho”), Iberê Camargo, sua esposa Maria Coussirat Camargo, Edmundo Cardoso e Gaspar Miotto. Iberê Camargo, ícone da arte brasileira, filho dos ferroviários Adelino e Doralice, estudou em Santa Maria. Dos doze aos treze anos, foi aluno na Escola de Artes e Ofícios, da Cooperativa. Hospedava-se na casa de Francisca Badke Pedroni, sua avó pelo lado materno. A residência, muito desfigurada, ainda existe. Fica na rua Visconde Ferreira Pinto 961 e 963, bairro Itararé. O acervo do artista

dio da aludida Escola. Mariza Carpes, artista amiga de Iberê, intermediou meu pedido para esse ex-aluno declarar seu amor pelo edifício ameaçado. De pronto, ele firmou mensagem. Do próprio punho. Lacônica. Contundente. Satisfeito, recebi o precioso trunfo. Imprimi cópias e logo as distribuí, durante o 4.º Encontro Estadual de Faculdades de Arquitetura, sobre Patrimônio, cá ocorrido em 1987. O mote principal do evento era a dita salvaguarda. Iberê sempre Fotografia: analógica , Santa Maria, 1981, autoria Ceurevisitava esta terra Fernandes, P&B, 13 x 18 cm, acervo da fotógrafa ra. Com o amigo Edmundo Cardoinclui desenhos de interiores desta so, quase irmão, a quem chamava morada. “Cozinha da Vó Chiqui- de “Edo”, revia gentes e cenários nha”, de 1941, é um dos títulos. da meninice. Mesmo a ama, “Dona Na referida Escola, Iberê re- Currucha” (Maria Olivia de Olicebeu iniciação em desenho com veira), continuou alvo dos seus mios professores Frederico Lobe mos, aqui. (1927) e Salvador Parlagrecco Quanto à Maria Coussirat Ca(1928). Como testemunho, mui- margo, também artista, protegeu to posterior, da breve passagem a produção, a vida e o nome do pela Artes e Ofícios, pintou seu marido. Viúva em 1994, detentora autógrafo, ainda legível, em uma de um legado magnífico, lidera, a parede da antiga capela dessa Es- partir do ano seguinte, o germinar cola. Funciona ali, agora, uma ca- da Fundação que perpetua e demofeteria, a Dom Pierre (O sagrado cratiza a obra de Iberê. Para essa deu lugar ao profano.). entidade, doa sua coleção, comAinda lembro o apoio dessa su- posta por mais de 5.000 obras de midade à campanha, à qual eu me arte, além de documentos. Coube integrara, pela salvaguarda do pré- o projeto da sede da Fundação a

Álvaro Siza Vieira, expoente da arquitetura contemporânea portuguesa. O fato insere Porto Alegre no circuito internacional de trabalhos desse consagrado luso. (O projeto recebeu o “Leão de Ouro”, na 8.ª Bienal de Arquitetura de Veneza, em setembro de 2002.). Tantos gestos de lucidez, dedicação e desapego enobrecem a esposa do artista, a qual faleceu em 25 de fevereiro de 2014. Também fotografados, o polifacético intelectual Edmundo Cardoso e seu filho Cláudio constituem marcas indeléveis no quotidiano de Santa Maria. O Calçadão, sem “Claudinho”, seria o mesmo? Popular, atencioso, sempre com novidades e a entabular conversas, denota educação de berço. Um “gentil homem” (tem a quem puxar). A foto mostra, ainda que de costas, o jornalista e professor Gaspar Miotto. Sua esposa, Ceura Fernandes, é presença por detrás da câmara. Registrou a cena. Sou grato a ambos pelo convite para colaborar com o A Razão. Primeiro, contribuí através de artigos; depois, na coluna “Imagens da História”. Sem restrição ou censura, por quase um decênio, redigi textos-legendas sobre fotos referentes à memória, sobretudo de Santa Maria. Aprofundei, assim, meus saberes sobre esta urbe. Na dinâmica das cidades, mudam as pessoas, as tecnologias, os hábitos. Certos territórios, todavia, permanecem constantes em seu uso. É o caso do nosso Calçadão, onde sinto tanto prazer ao encontrar amigos. Basta um cumprimento, um alô fugidio, às vezes um espichado diálogo, para me sentir vivo. Animado. Pulsante.


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