Revista APO - Número 1 - Ano 1

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Análise Psico-Orgânica

Ano 1  Número 1 Janeiro a Junho de 2014 Revista de Análise Psico-Orgânica | 1


Conselho Editorial: Ana Luisa Baptista Edgard Sobreira Juan Carlos Raxach Silvana Sacharny Diretoria da ABRAPO: Presidente: Edgard Sobreira Secretaria Geral: Elen Conteratto Diretor administrativo: Daniel Ossório Diretora Financeira: Delfina da Conceição Pimenta Diretora de eventos científicos-culturais: Moema Linberg Conselho fiscal: Juan Carlos Raxach Priscilla de Alburquerque Shirley Saporito CEBRAFAPO: Equipe de formadores: Ana Luisa Baptista Delfina da Conceição Pimenta Denise Kaiuca Edgard Sobreira Maria Roggia Mirtha Ramirez Silvana Sacharny Tradução: Adriane Ferreira Cristiana Serra Felisa Mirtha Ramirez Luis Paulo Venancio Silvana Sacharny Diagramação e Editoração: Juan Carlos Raxach Moema Linberg Imagem da Capa: Moema Linberg

A Revista de Análise Psico-Orgânica é uma criação da parceria entre a ABRAPO – Associação Brasileira de Análise Psico-Orgânica e o CEBRAFAPO – Centro Brasileiro de Formação em Análise Psico-Orgânica. Visa apresentar artigos, relatos de experiências, entrevistas, estudos de casos e outros registros em Análise Psico-Orgânica, mostrando como se configura o arsenal teórico, técnico e prático desta abordagem. Esta publicação tem por finalidade compartilhar e divulgar diferentes produções em Análise Psico-Orgânica no Brasil e no mundo, colaborando assim para a informação e troca entre psicoterapeutas formados por esta escola, outros profissionais das áreas de Saúde e Educação e demais interessados no trabalho psico-corporal.

Visite-nos! CEBRAFAPO: http://www.cebrafapo.com.br/eq.form.html ABRAPO: http://associacaobrasileiradeapo.wordpress.com/ Acompanhe-nos no facebook! CEBRAFAPO: https://www.facebook.com/centrobrasileiro.analisepsicoorganica ABRAPO: https://www.facebook.com/abrapo.atendimentoclinico?fref=ts

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Editorial SOBRE O CENTRO BRASILEIRO DE ANÁLISE PSICO-ORGÂNICA (CEBRAFAPO) O Centro Brasileiro de Formação em Análise Psico-Orgânica (CEBRAFAPO), fundado em 1998 e coordenado por Silvana Sacharny, é vinculado à Escola Francesa de Análise Psico-Orgânica (EFAPO). Tem como finalidade formar psicoterapeutas em Análise Psico-Orgânica. O objetivo é essencialmente a transmissão do conjunto dos princípios e métodos elaborados por Gerda e Paul Boyesen. A Análise Psico-Orgânica é um método reconhecido pela Associação Européia de Psicoterapia – EAP – em Viena, Áustria. A Análise Psico-Orgânica, elaborada por Paul Boyesen na década de 70, amplia a proposta da abordagem da Psicologia Biodinâmica, criada por Gerda Boyesen. Aliando intimamente o trabalho corporal ao analítico, a Análise Psico-Orgânica procura estabelecer inter-relações entre a linguagem somática, emocional e psíquica, buscando conexões entre o verbo, a produção de imagens e os movimentos energéticos do corpo. Site: http://www.cebrafapo.com.br

SOBRE A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANÁLISE PSICO-ORGÂNICA – ABRAPO A Associação Brasileira de Análise Psico-Orgânica – ABRAPO é uma entidade nacional, que congrega os profissionais da área de psicoterapia analítica com mediação corporal que adotam a teoria e o método da Análise Psico-Orgânica. Os Membros Associados são pessoas físicas que completaram a formação de base em Análise Psico-Orgânica sob a direção de Paul Boyesen, criador do Método, ou das escolas a ele vinculadas, e que atendem os critérios estabelecidos pela Associação Europeia de Análise Psico-Orgância – EAPOA. Através do movimento associativo os membros da ABRAPO se propõem a defender os princípios da Análise Psico-Orgânica e da Psicologia Biodinâmica, promover pesquisas, aprofundar conhecimentos e incentivar o intercâmbio de experiências profissionais entre as várias abordagens psicoterapêuticas nacionais e internacionais. Já inserida no panorama que integra as demais Associações que aderem os princípios da Associação Europeia de Análise Psico-Orgânica - EAPOA, membro da Associação Europeia de Psicoterapia - EAP, a ABRAPO busca fortalecer sua identidade social trabalhando em prol da evolução e do desenvolvimento pessoal

e profissional de seus membros, respeitando e protegendo a ética no exercício de sua prática profissional. A Revista de Análise Psico-Orgânica têm como objetivo abrir um espaço de comunicação, apresentação de temas, entrevistas e articulações entre saberes para todo o público que tenha interesse no campo terapêutico e humano. Trata-se de um espaço que busca incentivar a criação por meio da palavra escrita possibilitando a transmissão com base no pensamento da Análise Psico-Orgânica, método criado por Paul Boyesen. Este primeira revista contempla uma jornada de quinze anos da fundação do Centro Brasileiro de Formação em Análise Psico-Orgânica – CEBRAFAPO, vinculado à Escola Francesa de Análise Psico-Orgânica – EFAPO, que vem formando psicoterapeutas nesta abordagem. Com o enraizamento e amadurecimento deste trabalho criou-se a Associação Brasileira de Análise Psico-Orgânica – ABRAPO, que vem difundindo o pensamento e a prática clínica da Análise PsicoOrgânica. Agradecemos a todos os colaboradores com as suas preciosas contribuições e particularmente ao Paul Boyesen por nos conceder um artigo de sua autoria, sempre nos incentivando na criação e comunicação através da palavra escrita. Desejamos que este Caderno seja o primeiro de uma série onde novos colaboradores possam dar continuidade se engajando neste processo. Esperamos que os leitores desta revista usufruam desta leitura para agregar as suas trajetórias novos saberes. Boa leitura, Conselho Editorial

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SUMÁRIO:

Editorial Ana Luisa Baptista e Silvana Sacharny

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O inconsciente é situacional: da verbalização ao corpo da palavra Paul Boyesen

Toque e simbolização: do corpo ao verbo Silvana Sacharny

Massagem biodinâmica Delfina Pimenta

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Limites e fronteiras: o nascimento psíquico Denise Kaiuca

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A leitura diagnóstica através do círculo psico-orgânico Maria Roggia

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Contribuições da análise psico-orgânica para a leitura do espaço gráfico em arteterapia Ana Luisa Baptista

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A dor: compromisso somático Mirtha Ramirez

Experiência clínica – Os sonhos não dormem: os sonhos como via de acesso ao inconsciente Cristiana Serra

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Entrevista: Silvana Sacharny A chegada da analise psico-orgânica no Brasil

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O inconsciente é situacional: da verbalização ao corpo da palavra Paul Boyesen Resumo: No setting terapêutico, é de suma importância acessar as linguagens do inconsciente e permitir que venham à tona. Para o psicoterapeuta, tais linguagens são a parte mais interessante, pois a soma delas constitui a realidade vivida pela pessoa. São concepções estruturais com potenciais diversos, e a realidade torna-se a forma pela qual esses potenciais efetivam-se. Por serem interativos, o processo e os resultados são importantes: uma pedra no rio afeta o rio, e o rio escoando sobre a pedra afeta a pedra. Palavras-Chave: Inconsciente, Linguagens, Corpo. Resumen: En el set terapéutico es de suma importancia accesar los lenguajes del inconsciente y permitir que afloren. Para el psicoterapeuta, tales lenguajes son la parte más interesante porque la suma de ellos constituye la realidad vivida por la persona. Son concepciones estructurales con potenciales diversos y la realidad se torna la forma por la cual esos potenciales se concretizan. Por ser interactivos, el proceso y los resultados son importantes: una piedra en el rio afecta el rio, y el rio corriendo sobre la piedra afecta a la piedra. Palabras Clave: Inconsciente, lenguajes, cuerpo. Abstract: In a therapeutic setting, it is of utmost importance to access the unconscious languages and to allow them to arise. To the psychotherapist, such languages are the most interesting part, for their sum constitutes the reality lived by the person. They're structural conceptions with multiple potentials, and reality becomes the way by which such potentials are rendered effective. Since they interact, both the process and the results matter: a stone in the river affects the river, as the river flowing over the stone affects the stone. Key words: Unconscious, Languages, Body.

Dados sobre o autor: Fundador da Análise Psico-Orgânica, co-fundador da Escola Francesa de Análise Psico-Orgânica e Presidente da Fundação Boyesen. Tendo uma larga experiencia internacional (Europa, América e Austrália) no campo da psicologia humanista. Coordena desde 1975, na Europa, equipes de formadores na Psicologia Biodinâmica e na Analise Psico-Orgânica. Desde 1998, cria junto com a EFAPO a parceria com o Centro Brasileiro de Formação em Análise PsicoOrgânica (CEBRAFAPO), sendo este filiado à EFAPO. Presidente da EAP (European Association ler Psychotherapy) de 2003 a 2005. Autor do livro "Pour qui je me réveille le matin?" (Para quem eu acordo de manhã?). (Les Éditions Adire) e numerosos artigos.

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O inconsciente é situacional: da verbalização ao corpo da palavra

O inconsciente é mais vasto que nossos sonhos. Mas os sonhos são uma das linguagens do inconsciente. Nossos sonhos nunca dormem, somos nós que dormimos.

P.B. “Os sonhos são a via suprema rumo ao inconsciente”, disse Sigmund Freud. Proponho então estudarmos o sonho que um de meus pacientes, um homem de quase quarenta anos, teve há vários anos atrás. Durante uma sessão, ele descreveu um sonho de algumas noites antes. “Eu estava na cela de uma prisão. Era um porão com chão de pedra. Eu podia ver o guarda por entre as grades da porta fechada. Havia um grande espaço onde ele perambulava ou ficava sentado. Havia também uma escada que subia em direção a uma luz, evocando a luz do dia. Eu não sabia o que havia feito, mas estava lá há muito tempo. Pedi ao guarda para ver um juiz, mas ele me respondeu que eu já o havia visto e ele nada podia fazer. Então, acordei.” Meu cliente estava muito intrigado com o sonho, que lhe recordava sentimentos familiares – sentimentos que tinha quase desde sempre, e que tinha ainda então. Mas, sobretudo, perguntava-se o que poderia ter feito. Na sessão seguinte, disse-me que o sonho havia voltado e que ele se vira andando a passos largos pela cela, sentando-se, para logo em seguida levantar-se e voltar a andar. Nesse momento ele tivera um meio despertar e tivera realmente a impressão de estar preso. Indagara-se então por que deveria estar preso naquela cadeia. O que havia feito? Sentia que estivera confinado por toda a vida e não podia sair. De sua cela olhava com frequência o corredor e aquela escada que subia em direção à luz. O guarda continuava ali. Perguntou-lhe: “Quanto tempo ficarei aqui?” - ao que o guarda respondeu: “Normalmente, muito tempo”. Propus a meu cliente que revivesse seu sonho e explorasse cada uma de suas partes. Poderia fazer livremente todas as associações e expressar todos os sentimentos ou reações corporais que se apresentassem. Ele sentia toda a força vital que retinha em si e sua forte atração em direção à luz, que para ele simbolizava entrar no mundo. Sentia também o quanto sofria com o isolamento entre aquelas paredes de pedra, bem como o remorso que o corroía por aquilo que havia feito, sem nem mesmo saber o que foi. Ao 6

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término da sessão estava muito perturbado com a ardente sensação de força vital que retinha em sua prisão, sem saber se deveria resignar-se ou lutar. Meu cliente chegou à sessão seguinte com um grande sorriso de alívio nos lábios e contou que o sonho havia voltado, mas que algo extremamente importante tinha acontecido: “Eu estava sentado no banco de minha cela e olhava por entre as grades. Podia ver o guarda sentado do outro lado, assim como a luz e a ponta da escada. O estranho, dessa vez, é que o guarda estava sentado na mesma posição que eu. Olhei para a porta e, para minha grande surpresa, vi que estava aberta. De fato, aquela porta até então sempre fechada agora estava entreaberta. Levantei-me e dirigi-me até ela. Tinha medo de que se fechasse, mas não. Eu a atravessei, abrindo-a um pouco mais. O guarda levantou-se e fui em sua direção, dizendo-lhe: “Estou livre!” “Mas você não pode ir embora!”, ele respondeu, muito nervoso. “Mas você não pode ir embora!” repetiu. “Se você for, o que farei?” “Eu não sei, mas vou embora”, retruquei. Olhei para ele, que me encarava com ar desamparado. Explicou-me que era um guarda e, como tal, deveria ficar; caso eu partisse... Como poderia ser guarda sem prisioneiro? Eu o olhei e, para minha grande surpresa, vi meu próprio rosto! Foi então que compreendi que era eu o guarda e havia anos estava imobilizado ou perambulando no mesmo lugar, controlando uma parte minha que estava presa. Passei orgulhosamente diante do guarda para ir em direção à luz e sua voz atrás de mim dizia: “Mas o que vou fazer?” Vi o rosto de meu paciente iluminar-se ao dizer: “A voz do guarda foi enfraquecendo à medida que eu subia a escada sem virar para trás”. Desnecessário dizer que esta “descoberta” teve consequências em sua vida cotidiana. Vou aqui descrever brevemente certos acontecimentos que levaram aos sonhos de meu cliente. Ao buscar a psicoterapia, seu principal problema consciente era ter-se tornado passivo. Não conseguia mais sentir-se um homem, disse. Sentia-se cada vez mais como uma mulher, identificando-se com ela, e acabara tornando-se violento contra essa parte de si mesmo, na tentativa de sair desse estado fusional de identificação. Não sabia porquê. De fato, parecia to-


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talmente não violento. Sua história veio à tona. Lembranças sofridas apareceram e reapareceram, mas, no meu entender, não era aquilo que havia provocado a mudança. Sua história era como um parágrafo de um livro que ele havia fechado. Ele havia virado a última página e queria começar a escrever um novo capítulo, mas cada nova página insistia em referir-se às anteriores – e ele tinha medo de olhar para elas. Havíamos trabalhado diversas vezes sobre sua resignação, sua agressividade e suas frustrações. Ele teve a oportunidade de expressar suas sensações e emoções, a negação de si mesmo, suas esperanças, e isso, na minha opinião, fazia parte da dinâmica da mudança. A escolha das palavras e a expressão de seus sentimentos e sensações levaram-no a um certo sentido de si mesmo. Seu mundo fora o de uma criança que vivia em um pequeno apartamento com o padrasto, a mãe e a irmã; um mundo em que o padrasto, com a cumplicidade da mãe, abusava sexualmente de sua irmã de 12 anos. À noite, ele ouvia sua mãe entrar no quarto que dividia com a irmã e obrigála a ir para o quarto ao lado, onde o padrasto entregava-se às suas posturas sexuais na presença da mãe. Mas do que ele era culpado? Ele parou de sentir. Estava paralisado porque havia vivido uma realidade que não coincidia com seus próprios valores. Aquele homem poderia ter matado se lhe houvessem dado o direito, ou se o tivessem provocado. Tudo o que tentava fazer era esquecer, mas seu inconsciente lembrava. Rever tudo isso outra vez teria sido reviver o insuportável, o inaceitável. Seu inconsciente havia então encontrado formas aceitáveis para que pudesse seguir adiante e, graças à gradual liberação dessas imagens protetoras, pôde libertar-se dos acontecimentos traumáticos e das negações daí decorrentes. Seu mundo interior, como o mundo interior de qualquer um, era extremamente complexo. Não temos como ver tudo – e, mesmo quando uma pequena parte aparece, “fabricamos” imagens representativas para podermos nos aproximar daquilo que nos tocou ou toca profundamente. Estes sonhos eram a linguagem de seu inconsciente, e as próprias imagens continham uma linguagem – mas deveria haver, por certo, muitas outras imagens em seu inconsciente que ele não “viu”, assim como muitas coisas que ele não lembrava de ter

“visto”. Seu sonho “recorrente” apenas havia escolhido as imagens que, de forma delicada e gradativa, poderiam ser aceitas pelo seu consciente. O que podemos ressaltar nesse caso é que havia elementos escondidos, desconhecidos, mas normais na situação do sonho, como o guarda, por exemplo. A partir do trabalho proveniente do inconsciente e do apoio terapêutico, um outro ponto de vista pôde aparecer. Parece-me também que a resposta ao sonho já estava no próprio sonho desde o início, embora conscientemente não fosse vista. O sonho não fazia alusão à época ou à idade de quem sonhava, como se se passasse a um só tempo – no passado, no presente e no futuro, em um “nãotempo”. Tampouco se referia a uma situação real específica, embora apresentasse questões fundamentais para o sonhador. Creio que isso é comum nos sonhos. O sonhador sabia o sentido de seu sonho, mas havia esquecido que sabia... Até que a lembrança voltou. Nada havia de aterrador no sonho de meu paciente, comparado às inúmeras situações insuportáveis que havia vivido e que me descrevera em sessões anteriores. Não queremos conscientemente reviver situações reais dolorosas – e, se for esse caso, preferimos que seja a conta-gotas. Mas os sonhos são muito mais que isso. O sonho não se refere apenas a situações reais, a representações protetoras ou ainda a acontecimentos “compensatórios imaginários”, mas também a um sujeito muito mais amplo, a possibilidades hipotéticas. A meu ver, essas possibilidades hipotéticas regem a nossa evolução e nosso desenvolvimento pessoal graças à representação de situações imaginárias de anseios e desejos. Essas situações são estruturadas no inconsciente como uma resposta aos impactos exteriores e aos valores inerentes mais fundamentais do ser humano (ou seja, ao seu conteúdo espiritual). Descreverei mais adiante esse tipo de situação em termos de uma “energia consequencial”. O homem sonha há milhões de anos. Indagamos com frequência aonde vamos ao dormir, pois podemos viajar por tudo um pouco e ver acontecimentos, formas, pessoas, paisagens, objetos estranhos e desconhecidos. Mas podemos também ver rostos, acontecimentos e lugares familiares; no entanto, não os vemos exatamente como são, mas de uma maneira

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tal que às vezes nega a realidade ou mesmo desafia as leis da física tais como as compreendemos a partir da nossa experiência. Podemos voar e até morrer – e, mesmo assim, acordarmos vivos na manhã seguinte. Às vezes, podemos ter sonhos que se repetem como uma novela ou uma história cuja continuação ignoramos, mas que ainda assim apresentam um roteiro cujas partes, como acabamos entendendo depois, são escritas e reescritas por algo ou alguém que desconhecemos. Podemos nos perguntar, e há quem o faça, se o “inconsciente” existe mesmo, como se apenas o que vemos existisse. Várias imagens podem ilustrar o inconsciente. Por exemplo, a correnteza de um rio. Não a vemos, mas ela se movimenta; a forma como as pedras se dispõem no leito do rio vai determinar como o rio corre, sua profundidade, seus meandros etc. Tudo isso afeta sua rapidez, sua força e até, em parte, sua direção. Não sabemos o que determina esses diferentes elementos, mas constatamos os efeitos. Vemos os resultados, embora sem dúvida sempre haja camadas que não alcançamos... Nota-se que cada sonho apresenta dois momentos distintos: aquele em que o vivemos e outro em que o descrevemos. O primeiro constitui uma experiência complexa, em que se dá a impressão das situações impostas pelo sonho, provocando reações no sonhador. Em seu livro Sleep, Luce e Segal descrevem muito bem suas pesquisas nessa área, sobretudo as diferentes fases do estado onírico. A parte mais conhecida refere-se à atividade do cérebro por eles denominada REM (Rapid Eyes Movement, ou Movimento Rápido dos Olhos), durante a qual o sujeito vive e responde de maneira ativa às imagens de seu “estado onírico”. Nos anos 60, estudos feitos nos Estados Unidos mostraram que a privação da fase REM induzia a um estado psicótico. Da mesma forma, a privação total de sono por um período superior a seis dias provoca em qualquer pessoa um estado psicótico, com sintomas pré-psicóticos surgindo desde o terceiro dia – o que demonstra a importância tanto do sono quanto do período de sonho. Os estudos de Luce e Segal mostram bem: todos sonhamos quando dormimos, embora não necessariamente nos lembremos. Denotada particularmente pelas pesquisas do pro-

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fessor Jérôme Liss, a correlação entre o sistema nervoso simpático e o parassimpático é muito interessante. Jérôme Liss demonstrou por meio de duas curvas opostas que, quando o sistema nervoso simpático estava ativo, o parassimpático estava em repouso, e vice-versa. Conforme surgem as associações livres, o material inconsciente é trazido à superfície e passamos do estado de relaxamento (parassimpático) ao de atividade (simpático). Um segundo tempo é aquele em que falamos sobre os sonhos. É o que fazemos, por exemplo, em psicanálise ou em psicoterapia. O cliente verbaliza os acontecimentos, sensações, pensamentos etc. presentes no sonho ou que a este se referem. A distinção entre “presente no sonho” ou “que se refere ao sonho” é importante, pois no primeiro caso referimonos a algo que estava no sonho, ao passo que, no segundo, falamos do que sentimos no momento presente (aqui e agora) com relação ao que se passou no sonho. O cliente usa palavras para descrever tudo isso. De nossa parte, porém, não podemos esquecer que as palavras são uma linguagem do consciente. Em uma língua, as palavras são construídas pela sociedade a fim de descrever algo, a fim de comunicar o que é ou pode estar em referência ao conhecido em comum. O desconhecido, portanto, não pode ser descrito. Por outro lado, nessa linguagem consciente existe também todo um mundo inconsciente. Toda pessoa com experiência em trabalho psicoterapêutico sabe que as palavras podem ser um importante meio de acesso ao inconsciente, assim como podem permitir ao inconsciente falar. De Freud a Lacan, um grande número de psicanalistas e psicoterapeutas mostrou o caminho. A psicanálise e a psicoterapia verbal mostraram não somente o caminho mas também os limites dessa forma de trabalho com o inconsciente. Hoje, profissionais continuam a explorar outras vias de acesso, sobretudo acessos corporais e emocionais. Como já sugeri, não existe uma linguagem, mas Em L’inconscient est situationnel1 e Le corps des mots2 descrevo o que chamo de Pensamento Comparativo, ou seja, uma teoria relacionando palavra e matéria, corpo e sentido. O inconsciente não é algo mágico, mas um mundo interior de múltiplas realidades, lembranças e potenciais. Não posso aqui descrever todo o trabalho analítico de meu cliente, mas no contexto da experiência


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de vida de uma pessoa é possível acrescentar um grande número de análises às diferentes interpretações de um sonho. O importante não é o entusiasmo intelectual suscitado pela incrível lógica do inconsciente, mas que a pessoa alcance uma transformação positiva em sua vida. Quanto ao inconsciente, não penso que devamos trabalhar com a realidade, mas sim com os diferentes níveis de verdades. Uma palavra não dita ou uma ação não realizada não constitui uma realidade, mas para uma pessoa uma palavra não dita ou uma ação não realizada é bem real – e elas vão continuar a falar ou a se expressar após a concepção de uma nova realidade. Outro ponto a observar é que os elementos do sonho de meu cliente pertenciam todos ao mundo intrapsíquico – que não descrevia a realidade normal, mas utilizava um cenário hipotético (imaginário) para descrever a experiência de uma realidade; a cena representava provavelmente várias situações diferentes de sua vida. É preciso observar também que as sensações ou sentimentos do sonho eram-lhe familiares, o que nos permite supor que as imagens em questão representassem também outras situações reais. Foi particularmente a liberação destes sentimentos e a sua familiaridade com os mesmos que possibilitaram uma transformação em seu sonho. Não foi apenas pelo fato de haver falado de seu sonho que estas transformações ocorreram, mas também pelo reconhecimento consciente de que seu conteúdo o afetava em termos de uma experiência vivenciada corporalmente. Podemos até supor que seus sentimentos eram reais, mas não seu sonho, e que o objetivo do sonho seria reencontrar seus verdadeiros sentimentos recalcados e não expressos até então (o verdränkt freudiano). Há uma grande diferença entre recalcado e não expresso. Talvez esteja aqui a maior barreira entre a psicanálise e as novas psicoterapias, tais como eu as concebo. É sobretudo a ligação entre esses dois conceitos que pretendo fazer na Análise Psico-Orgânica. Falar o recalcado pode ser um acesso em direção ao material escondido, mas isso nada revela sobre o modo como o recalcado age ou reage. Ele pode muito bem continuar recalcado, apesar de ter obtido a permissão de ser dito. É improvável que o recalcado se limite a utilizar uma linguagem verbal de comunicação social.

Quase cem anos após o nascimento da Psicanálise, minha experiência de psicoterapeuta me leva a crer que o recalcado busca expressar-se através de linguagens complexas que incluem o verbo, e não apenas a verbalização. O inconsciente procura expressá-lo, embora não tenha o direito de fazê-lo – o que algumas vezes leva a reações inapropriadas na realidade do dia a dia. No setting terapêutico, é de vital importância acessar as linguagens do inconsciente e permitir que venham à tona. Para o psicoterapeuta, essas linguagens são a parte mais interessante, pois a soma delas constitui a realidade vivida pela pessoa. São concepções estruturantes com uma multiplicidade de potenciais, e a realidade torna-se a forma como esses potenciais se concretizam. Por serem interativos, tanto o processo quanto os resultados são importantes: uma pedra no rio afeta o rio, e o rio escoando sobre a pedra afeta a pedra. Duas questões inevitáveis devem ser abordadas. A primeira é que o pensamento em si segue uma reação em cadeia de associações. Por exemplo, não concebo utilizar o termo “inconsciente” sem remeter-me a Sigmund Freud, “descobridor do inconsciente”, mas é meu próprio pensamento que segue essa direção. Como as associações de pensamento são pessoais, culturais e profissionais, a palavra “inconsciente” possui diferentes significados para diferentes pessoas. Para um psicanalista, pode indicar uma certa compreensão do ponto de vista freudiano e, por conseguinte, um termo usado em psicanálise. Para outra pessoa, pode ter um sentido psicanalítico... que ela não compreende. Para outras ainda, remeteria apenas a histórias infundadas que denotam uma negação da realidade. A segunda questão refere-se aos efeitos do inconsciente. É preciso considerar, aqui, dois fatores importantes: um, normalmente o mais evidente, é saber como as coisas aparecem, ou seja, como elas surgem no que chamamos de realidade. Os efeitos de toda ação ou não ação constituem uma realidade que podemos perceber e, portanto, “tocar”. Outro fator é o mundo intangível das “sensações” ou “impressões” (qualquer que seja a palavra que prefiramos utilizar). É aqui que a “qualidade” da experiência humana apresenta-se: como uma pessoa vive a experiência de si mesma em um mundo definido como real? Por

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exemplo: a realidade é que a pessoa está sentada em uma poltrona. Isso nada diz sobre a qualidade de sua experiência ou do valor que possui para ela estar sentada em uma poltrona. Nas ciências experimentais o valor pode ser medido em quilogramas, quilômetros, volts etc. Mas, em termos humanos, bom, ruim, não muito bem ou agradável são avaliações intra-subjetivas da realidade que a pessoa está vivendo. Suponhamos que você deseje sentir-se bem e decida que se sentir bem significa ter uma casa grande e com um belo jardim. Então você trabalha duro e obtém essa casa ou, ao contrário, você não a obtém. Agora, ou você se sente bem por tê-la obtido, ou sente-se mal por não possuí-la. Mas você pode também achar que não é necessário possuir essa casa grande para poder sentir-se bem. Pode até mesmo achar que não é tanto a realidade que afeta seu bemestar, mas a maneira como você enxerga as coisas, ou a maneira como as experiencia – e pode ficar extremamente contente satisfazendo apenas suas necessidades básicas. A “qualidade da experiência” é provavelmente um dos fatores mais importantes a se considerar, pois é a forma pela qual vivenciamos nossa experiência e nos sentimos, então, a nós mesmos, em um mundo constituído de valores ocultos sob a aparência de uma realidade física. Se não houvesse valores não haveria nem significação nem sentido, e as sensações não possuiriam outro valor que o de nos pôr em contato com uma realidade na qual seríamos uma mera função. Nada sentir seria a negação de nossa humanidade e poderia também ser a recusa de valores espirituais. Mas sentir-se bem quando alguém sofre seria deformar os valores e negar a coexistência humana. A “escolha da experiência” é outra consideração de importância vital, normalmente ignorada em nossos comportamentos e experiências pessoais e sociais cotidianas. Normalmente agimos como se não escolhêssemos o que fazemos, como se algum elemento externo nos impusesse nossas ações. Podemos, por exemplo, ficar nervosos porque alguém nos irritou ou isso nos “caiu do céu”. Esta pode ser a maneira como vivemos determinada situação, mas o que ignoramos é que fomos nós, ou talvez deva dizer eu, que me irritei. A irritação pode ter sido uma reação contra o outro, mas isso não impede que tenhamos

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sido nós mesmos que nos irritamos. Nós escolhemos ficar nervosos. A escolha não é totalmente consciente, pois constantemente ficamos descontentes com a escolha que fizemos – a qual, em todo ou em parte, pertence à “escolha inconsciente” da pessoa. O típico exemplo para descrever a escolha da experiência é o seguinte: alguém pisa no seu pé. Você pode gritar, ficar calado, morder os lábios ou mesmo pedir desculpas ao outro. O que quer que você faça, você escolheu fazê-lo. Caso você morda os lábios, pode até acusar o outro por tê-lo mordido; ao que este retrucaria: “Não! Eu não mordi seus lábios, só pisei no seu pé”. Muitas dessas escolhas são feitas no inconsciente. A meu ver, o inconsciente é um mundo no qual vivemos e sentimos, mas que não podemos perceber. Posso ilustrar com a imagem de um iceberg: vemos a parte de cima, o consciente, mas podemos apenas imaginar que essa parte de cima deve ter uma parte de baixo, ou seja, toda a parte submersa do iceberg. Claro que, caso haja um impacto na parte superior do iceberg, todo ele reagirá; sua totalidade será afetada. Da mesma forma, se houver um impacto abaixo da superfície, haverá também um efeito global. Sabemos que a parte submersa é maior que a parte visível. Sabemos também que o vento suave não interfere praticamente em nada no movimento do iceberg, comparado à influência das correntes submarinas. Creio que o mesmo se passa com nosso inconsciente. Os impactos sobre a superfície, sobre nosso consciente, nos afetam, mas as correntes subjacentes nos afetam ainda mais – e nós experienciamos, mesmo não o percebendo. Vemos o resultado dos impactos e reações apenas como simplificações de uma experiência consciente que tentamos formular em um contexto de compreensão conceitual. É o que costumamos denominar de “realidade”: a forma como percebemos e concebemos a superfície de um mundo que se coloca diante de nós, deixando-nos apenas com uma vaga noção das camadas internas que se expressam através de diversas linguagens, que podemos apenas tentar compreender no contexto da meta-realidade que nos envolve. Sigmund Freud utiliza as associações livres e os sonhos para descrever o mundo que ele denominou de inconsciente. A princípio, usa a palavra vorbewusst (pré-consciente) para indicar que esse estado de consciência antecede imediatamente à consciência


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normal. A palavra alemã para inconsciente é unbewusst e significa não consciente ou desconhecido (nichtbewusst). Em geral, utilizamos vários níveis dos termos de referência: consciente, pré-consciente e inconsciente. Inconsciente pode significar não-consciente, o que implica que algo não é consciente. Quando usamos o termo “estar inconsciente” num contexto médico ou físico, dizemos que a pessoa está em um estado de ausência de consciência – como, por exemplo, quando ocorre uma perda de consciência devido à parada de certas atividades cerebrais. Falar sobre o inconsciente equivale a falar sobre o “desconhecido”, ou ainda sobre o “não consciente”. É objeto de acaloradas discussões entre cientistas, filósofos, psicanalistas, psicoterapeutas – enfim, todas as pessoas que se interessem pela natureza ou pelo comportamento humanos. Há tanto desconhecido que finalmente esse “tanto” pode ser chamado “inconsciente”. Acho impossível acreditar que todos os atos e comportamentos humanos sejam premeditados e, por conseguinte, possam ser considerados de forma consciente à luz de nossos sistemas identificáveis de pensamento. Da mesma forma, me é impossível crer que a palavra inconsciente seja uma palavra que possa referir-se apenas à psicanálise. Um grande número de nossos atos e quase todas as nossas funções orgânicas são governados pelas camadas mais profundas de correntes subjacentes das quais pouco sabemos. São inconscientes, embora vivamos seus efeitos de maneira consciente. Não determinamos que nosso coração bata, da mesma forma que não solicitamos aos nossos reguladores bioquímicos que aumentem ou diminuam a quantidade de tal ou tal hormônio. Tudo é feito através de atividades inconscientes de cujos efeitos percebemos apenas uma ínfima parte. Da mesma forma, mesmo desejando ser os mestres, somos atravessados por pensamentos que nos regulam. Um exemplo simples ilustrará: uma pessoa tranquilamente sentada em uma poltrona, pensando a respeito do dia que passou, vêse assaltada por um pensamento desagradável, que não deseja. Conscientemente, gostaria de concentrar-se em coisas agradáveis, mas os pensamentos desconfortáveis penetram-lhe a mente. Ela bem que tenta desvencilhar-se, mas esses pensamentos fixamse. A fuga parece impossível. A pessoa decide negar

esses pensamentos indesejáveis, e pensa “eu não quero pensar isso”, e é o que pensa. Mas continua sendo afetada por esses pensamentos, ainda que agora de outra forma – pela negação. Com efeito, ela tem agora dois tipos de pensamento: os que não deseja (que vêm de alguma parte que a pessoa não controla) e os que pode controlar (decidindo não querêlos). Resultado: ela pensa que não quer assim pensar e isso se torna seu pensamento. Outro exemplo. Uma pessoa sentada em uma poltrona, cheia de pensamentos agradáveis, é interrompida pela conversa desagradável de alguém. Após dois ou três minutos analisando a conversa dessa pessoa, tenta voltar a seus pensamentos agradáveis. Mas o impacto já se fez sentir: ela agora é incapaz de desvencilhar-se de suas reações à interrupção, mesmo muito tempo depois de o outro parar de falar. Pode até ficar durante uma meia hora tentando sentir-se bem, quando na verdade sente-se mal. Pode também não querer mais ficar sentada, pois sente-se irritada, e então se levanta e sai de casa. A experiência e a observação mostram claramente que não podemos nos programar para ter, pela simples vontade consciente, pensamentos positivos e sensações agradáveis. Existe uma maior complexidade, e independentemente do “princípio de realidade” (o que ocorre na realidade imediata), chegamos ao “inconsciente”. Carl Gustav Jung muito se interessou pelo estudo dos sonhos em diversas culturas. Seu trabalho sobre o inconsciente coletivo e o simbolismo despertou o interesse por um inconsciente que, para além dos traumas de infância e dos meandros intrapsíquicos, conduz ao Self (Eu Superior) e à espiritualidade. Freud e Jung contribuíram ambos, de maneira fundamental, para o acesso ao inconsciente e ao seu conteúdo, cada qual com sua linguagem e conceitos próprios. Uma vez que reconhecemos a existência do inconsciente, nada mais é do que uma questão de linguagem. É difícil encontrar uma única linguagem ou modelo para descrever algumas das linguagens do inconsciente. Uma linguagem deve constituir-se de palavras que comuniquem em âmbito social e criar conceitos que descrevam e ilustrem certas atividades, mas não é assim tão simples no que concerne ao inconsciente, pois não pode existir linguagem se não houver refe-

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rências comuns. Já existem diversos termos de referência para o inconsciente, mas a maioria é proveniente de definições elaboradas por Sigmund Freud e adotadas mais tarde por escolas que seguiram seus ensinamentos. Essas referências são igualmente problemáticas, pois ao acessá-las somos afetados pelo sistema de crenças, ou seja, acreditamos em algumas coisas, mas não em outras. Escolas de pensamento desenvolveram-se, algumas confirmando-se e estabelecendo-se. Sem aderir a qualquer uma delas, gostaria de desenvolver meu ponto vista... Para continuar a discussão é necessário estabelecer um ponto de referência. Em física existem leis estáticas e leis dinâmicas, e umas referem-se às outras. O ponto que denominarei A refere-se ao estático e o ponto B refere-se ao dinâmico relativo ao ponto A. O estático evidentemente é algo que não se movimenta, ao passo que o dinâmico é algo que se movimenta. Nosso mundo é feito de interações entre o estático e o dinâmico. Por exemplo, para que algo se movimente deverá movimentar-se em relação a algo imóvel. Falar do que se movimenta não é a mesma coisa que se movimentar, ou seja, verbalizar um movimento potencial não significa movimentar-se. Falar do que se movimenta em mim pode ser muito importante, mas deixar falar o que se movimenta em mim é deixar o verbo expressar suas linguagens. Mesmo que compreendamos apenas algumas dessas linguagens, todos as vivemos. A palavra define o estático e o verbo da palavra define o dinâmico potencial. A ação ela mesma é o movimento do verbo. Uma de minhas definições do inconsciente é que é um mundo que não é percebido, mas é sentido. Uma outra, que prefiro por acreditar mais científica, postula o seguinte: o inconsciente é um espaço em que, graças a múltiplas linguagens, são concebidas as funções similares da matéria, tendo a matéria o potencial de manifestar-se em uma conclusão consciente da soma de todos os seus elementos. Resumindo, podemos experienciar uma tal definição graças às palavras “noutro lugar”, “algum lugar” e “fora”. Não é aqui. Utilizamos constantemente variantes destas palavras; é tudo o que não está aqui. O paradoxo de tal inconsciente é que, quando o vemos, ele nunca está presente, mas ele sempre está presente quando não o vemos. Nomeá-lo é perdê-lo. Não nomeá-lo é criá-lo. Sendo assim, o inconsciente

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é tudo o que não é. Trazer aqui o que está em outro lugar significa perdê-lo – mas ganhamos a realidade. Aquele que se diz “realista” pode não acreditar no inconsciente, do mesmo modo como não acredita no que não está presente. Algumas pessoas, como o “sonhador”, vivem em “outro lugar” para não viverem onde estão. É como se de algum modo vivessem em algum lugar do seu inconsciente – e isso não se tornará, nem poderá jamais se tornar, real. Para o “realista”, “outro lugar” incomoda por tudo que não está onde ele mesmo está. Sem abordar por completo o trabalho sobre “os cinco passos para o real”3 vou simplificar aqui essas cinco etapas fundamentais em dois componentes importantes: a concepção e o verbo. Espero que as razões de minha escolha se façam claras após o que se segue. A concepção é o início do verbo. Tudo começa por ela. A concepção possui uma imagem simbólica, uma situação não-real que é seu projeto, sua ideia ou o que, em linguagem científica, chamamos de sua função. Nada pode ocupar um espaço sem antes ser concebido. O que é concebido é uma imagem do ser que é previsto. A concepção conduz à realização graças ao verbo. Certamente, ela pode também jamais se tornar o que foi previsto; qualquer que seja o plano original, a ideia, o projeto, a função, a concepção pode ser estancada, desviada ou deformada no momento de seu encontro com a realidade. O verbo carrega concepções. Freud falava em trieb e drang como sendo o que chamamos de elã ou pulsão. Nossas concepções conscientes são constantemente impedidas ou desviadas em nossos pensamentos (concepção/conceito) sob o efeito da invasão da realidade, e isto bem antes que tentemos evocá-las. Infelizmente, algumas pessoas duvidam de seus pensamentos, de suas ideias etc. – e isso antes mesmo de tentarem trazê-los à realidade ou a uma forma qualquer de criação, como se não tivessem o direito de possuir seus próprios pensamentos. O mundo das concepções é múltiplo. Não sabemos se as concepções provêm do sentido, do nãosentido, do acaso ou do acidental, mas cada ação e acontecimento forma-se na realidade graças ao mundo múltiplo das concepções. Lemos em uma Bíblia francesa: “No princípio era o Verbo, e o Verbo virou carne (corpo)”. Em inglês, lemos: “No princípio,


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era a Palavra”. O verbo então foi concebido, e adveio a realidade. A maior parte das concepções de uma pessoa é inconsciente. O inconsciente concebe situações que não concebemos conscientemente. Tais situações podem ser simbólicas, ou seja, fundamentais e em fase de formação e, por conseguinte, profundamente localizadas nas necessidades primordiais de nosso inconsciente. Ou podem ser situações reais, o que significa que a pessoa tem, através de impressões de uma realidade definida (experiência encarnada, etc.) uma certa experiência da realidade. Podem ainda ser imaginárias, o que significa que elas se formaram em uma linguagem que compreende imagens de uma “certa” realidade que era bem real, mas que doravante é um potencial em um mundo hipotético de não-realidade, acreditando ainda provavelmente que esse mundo poderá tornar-se real. Por exemplo, podemos imaginar que a comida que deixamos sobre a mesa da cozinha continua lá. Podemos imaginar também que alguém a pegou, e não sabemos se é real ou não. Mas podemos também imaginar o impossível, ou seja, a comida voando – o que é claro que, na realidade que conhecemos, é impossível, por mais que queiramos acreditar. Devemos utilizar imagens da realidade para ilustrar o imaginário quando queremos descrever ou comunicar uma concepção impossível definida. Mas podemos também utilizar o imaginário para forjar uma opinião sobre como o real é ou poderia ser. Portanto, a imaginação pode ser criativa ou ilusória, conforme o que fizermos. O que talvez seja muito mais difícil é imaginar o que seja o simbólico. A meu ver, o simbólico é a pré-forma, ou seja, a forma mais arcaica na concepção de valores e necessidades fundamentais. Em outras palavras, o simbólico é o início das concepções espirituais e naturais de nosso inconsciente. A semente de uma flor possui simbolicamente a concepção da flor que irá se tornar. Não sabemos o que essa semente encontrará na realidade; ela pode tornar-se uma flor quebrada, ou mesmo nada se tornar. Logo que começa a crescer, o que ela imagina tornarse, sobretudo se alguém pisa nela no momento exato em que brotava sua primeira folha? Eu gostaria de utilizar a bela citação de François Jacob, francês agraciado com o prêmio Nobel de biologia: “o sonho de toda célula é tornar-se duas”. Para

que seu sonho ganhe forma, a célula precisa de um verbo. Da mesma forma, uma célula na posição A cuja função é deslocar-se ao ponto B necessita de um verbo. Não é pela concepção da ação que a ação se realiza. É pelo verbo que ela se movimenta. O movimento é o que poderíamos denominar uma “expressão”: uma expressão corporal, uma expressão fisiológica etc., ou seja, toda atividade que se manifesta na realidade. A concepção clarifica e escolhe a ação que deve ser realizada pelo verbo, cumprindo assim a função ou o objetivo. É graças ao verbo que ela se manifesta. O verbo é, pois, uma outra palavra para o que podemos nomear pulsão, desejo, elã etc. O verbo não é simplesmente um verbo que poderia apenas ser verbalizado. O verbo é um movimento, algo como ir de A a B, que pode ser ativado, colocado em ação. O verbo é a ação. Verbalizar significa estabelecer a possibilidade de uma ação, de uma não-ação ou de uma ação passada. A verbalização é uma linguagem que descreve o que ele faz, mas não faz o que ele diz. As palavras e os atos são fundamentais na experiência humana. Mas a palavra é um meio de comunicação conceitual construído socialmente – e como tal, como já disse, nada mais é que uma aproximação das variadas concepções de nosso inconsciente. O verbo é imediato. É uma ação concebida. A verbalização do verbo pode traduzir o passado, o presente, o futuro, o condicional etc. Pode até comunicar, mas não expressar uma ação que nunca foi ou nunca será expressa. Quando verbalizamos o verbo, conceitualizamos sua existência em um mundo imaginário através de uma linguagem social comum para que surja como existente. Uma promessa é um verbo no futuro. Por exemplo, se alguém diz “eu quero partir”, suas palavras descrevem uma ação que supostamente será realizada. Mas se por uma razão qualquer a ação não ocorre, haverá uma carga energética proveniente da ação não realizada, tanto no âmbito psicológico quanto no corporal; a pessoa deve então acomodar-se, o que se dará de no mínimo duas maneiras: primeiro, justificando a não-ação, para em seguida criar uma contra-ação (uma inibição) de modo a manter a não-ação. Isso traz enormes consequências para a experiência do sujeito.

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Imaginemos que estou aqui e digo “eu quero partir”, mas fico. Observemos como meu corpo vive essas palavras (postura etc.). Meu corpo inicia um movimento, uma outra parte dele mesmo o retém e meu pensamento (conceito) justifica minha imobilidade. Provavelmente vou pensar um pouco mais e expressar tudo isso sob a forma de palavras dizendo: “Eu gostaria de partir, mas não é possível”. Enquanto digo isso, eu vou “olhar” as situações que explicam minha impossibilidade de partir. Essas situações não serão as únicas a explicar as razões reais ou as justificativas que enuncio. Haverá também, nas diversas camadas de meu pré-consciente e de meu inconsciente, situações anteriores que determinarão a forma como vivo essa situação. Posso verbalizar um verbo como uma ação passada ou futura, o que no presente apresenta-se como uma ação formulada que ou não deveria ocorrer ou não ocorre de fato. Este não ocorrer no presente é importante porque requer uma contra-ação para bloquear, atrasar ou alterar o verbo conceitual. O futuro chegará, mas não necessariamente o verbo. Logo, o que não existe em nossa realidade existe em um mundo simbólico ou imaginário. Essa repressão é o que denomino “energia residual”, similar ao que Wilhelm Reich denominava “energias bloqueadas”. Embora muita gente não acredite na existência desse mundo, as consequências são inúmeras. Por exemplo, um desejo não expresso implicará numa atividade orgânica no nível fisiológico da pessoa, que se traduzirá em tensões, por vezes em dores, ou mesmo uma doença. Sabemos que existem numerosas reações somáticas e psicossomáticas que se referem ao não-expresso. Isso decorre, entre outros fatores, da socialização de nossos comportamentos, afetando-nos tanto para o melhor como para o pior. As repressões e injustiças também recalcaram nossas expressões naturais. Em uma sociedade, no núcleo familiar ou no interior de uma pessoa, existe um mundo complexo de impactos e reações – e, portanto, de recalcado. Todavia, independentemente das muitas referências que criamos para o que é bom ou ruim, não paramos de avaliar se um desejo ou uma pulsão é moralmente oportuno ou, ao contrário, imoral, ou ainda inapropriado, sem falar de sua legalidade ou justificativa. É provável que expressemos em determinados

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momentos sentimentos não expressos de nosso mundo interior. Isso normalmente leva a reações exageradas e, para alguns, a um comportamento patológico. O mundo da realidade não pode – e, a meu ver, não deveria – ser um trampolim “terapêutico” para nossos relaxamentos e reações negadas. Em geral, porém, tendemos a conter o não expresso sob a forma de verbos recalcados em nosso sistema psicológico e fisiológico. A retenção deste material é por si só um outro fardo. Desse ponto de vista, o inconsciente serve um pouco como “lixeira”. Entretanto, nessa lixeira existe um mundo que governa fortemente nossas ações, nossas reações e, mais ainda, nossos sentimentos. É o que tentarei demonstrar nas próximas páginas. Em psicoterapia, como no exemplo do sonho do “homem e do guarda” citado no início deste artigo, procuramos ajudar o indivíduo a encontrar um espaço onde possa se conectar com suas situações recalcadas do passado e, ao mesmo tempo, permitir que venham à tona suas expressões e consciência, a concepção humana original e fundamental da necessidade, do desejo, da autoestima e da responsabilidade (para citar apenas alguns aspectos). Esses elementos que poderíamos denominar “naturais” ou “humanos” parecem-me que pertencem à nossa espiritualidade encarnada, pois posso apenas acreditar que fundamentalmente, em sua essência, o ser humano seja bom, ainda que possa com frequência agir como um lobo ou mesmo pior4. O não-expresso não faz parte da realidade, mas é real no sentido em que vive em nós como uma pulsão não expressa rumo à realidade. Por mais que essa energia residual precise ser expressa, devemos ainda encontrar sua concepção primeira para que ela se manifeste em sua forma original, e não com as distorções resultantes de anos de deformações. Nesse ponto, pode-se supor que uma psicoterapia orientada para o corporal e integrando conceitos psicanalíticos possa ajudar numerosas pessoas. São as distorções de nossas pulsões que são perigosas, não a natureza humana fundamental. Anos mais tarde essa energia residual tem uma história em um não-tempo pronta a se manifestar a qualquer momento como uma verdade não reconhecida vinda do passado. Podemos não nos lembrar,


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mas ela se lembra de nós como se a história não pertencesse apenas ao passado, mas se tornasse um elemento constante da interação entre concepções em evolução e os novos momentos a chegar. Nossa história pessoal é um elemento da concepção de novas histórias que viveremos. Isso não pode ser consciente, senão nossa percepção do impacto da realidade imediata seria alterada; permanece então em nosso inconsciente, como um mundo rico de manifestações diversas de verdades pouco conhecidas, vindas do passado. Podemos dizer que é bom ou ruim; o que quer que seja, a transmissão rumo ao futuro está garantida. Isso pode nos levar a refletir sobre a seguinte frase: o que era é, mas o que é não era e o que deverá ser já está sendo feito. Assim sendo, o passado fala sempre ao futuro no presente, e podemos nos perguntar onde o futuro fala ao passado no presente? Sei que algumas pessoas iniciam uma psicoterapia dizendo: “Não quero falar de meu passado, está acabado, virei a página” – ao que eu sempre respondo “Sim, você virou a página, mas o livro continua aqui”. Na medida em que a História fala ao futuro, o potencial de mudança e desenvolvimento reside não apenas nos acontecimentos ocasionados pela interação de realidades, mas também nas profundezas de nosso inconsciente. O inconsciente tem a qualidade essencial de poder evoluir. Ele pode ao mesmo tempo conceber e perceber, em situações potenciais (imagens), o que advirá, embora não exista ainda na realidade. Se não fosse assim, a realidade só mudaria em decorrência de interações entre fatores conscientes – e poderíamos, então, estruturar um mundo novo à vontade. Contudo, não parece ser assim. Uma grande parte do que evolui em termos fisiológicos, psicológicos e materiais ocorre graças às diversas forças do desconhecido. Não percebemos de modo consciente as concepções de tais mudanças, salvo enquanto vagas ideias, mas percebemos o resultado de uma maneira mais ou menos precisa. É o que chamamos de nossa realidade. O futuro nos surpreende e, entretanto, em “algum lugar” dentro de nós, participamos de sua criação. O modo como as concepções conduzem a um verbo, uma ação, uma pulsão contém o sagrado. Um manancial de possibilidades de evolução está disponível no espaço simbólico que no momento não é

real. Assim como uma concepção possui um potencial de movimento, possui também um campo energético que está no princípio sagrado do verbo. É pelo verbo que a concepção torna-se uma pulsão e, portanto, um impulso de encarnação rumo ao real. Essa pulsão, como todas as pulsões, é uma energia. Quando não utilizamos tal energia ela se torna o que chamo de energia consequencial – que permanece enquanto estado potencial, reagindo no inconsciente como uma “escolha” não escolhida para ser vivida na realidade. Ela dá vida a tudo aquilo que ainda não emergiu. Quando e se ela se expressa, torna-se real e deixa de ser consequencial, com consequências tanto na realidade quanto na concepção de ações futuras. Quando uma pulsão tenta se expressar, mas é inibida por alguma razão, torna-se energia residual. Se, ao contrário, completa sua ação na realidade, tornase uma ação real. Temos assim três termos importantes: energia real, energia residual e energia consequencial. A energia consequencial está sempre presente em algum lugar em nós – mesmo que apenas ao nível do inconsciente, como um verbo tranquilo falando a linguagem daquelas partes nossas que não vivemos ainda. Essas três formas de energia podem ser extremamente úteis quando trabalhamos com o inconsciente ou na vida prática cotidiana. Um simples exemplo ilustrará com clareza: um jogador de tênis rebate uma bola com sua raquete e esta atinge a rede. Ele fica frustrado e pode, por exemplo, pegar uma outra bola e lançá-la com força em qualquer direção para liberar sua energia excessiva (o que denomino energia residual) resultante de uma ação incompleta. Mas pode também refazer levemente com sua raquete o movimento que ele tinha intenção de fazer, ou seja, repetir sua ação do modo desejado por ele. Neste caso, ele certamente perdeu um ponto, mas nele mesmo está completando sua concepção inicial graças à manifestação do verbo apropriado. Ainda assim, a evolução foi afetada. No primeiro caso, o jogador fica frustrado, rebate uma bola com força e continua a jogar num certo estado de frustração. No segundo caso, ele completa a sua ação, mesmo perdendo um ponto, e entra em contato com uma expressão apropriada; como continua a jogar, isso trará consequências para ele: seu futuro. Esta energia consequencial é uma verdadeira pulsão de

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um potencial que não é uma mera resposta a um impacto da realidade, mas o verbo das “somas” de uma concepção inconsciente profunda de valores que se manifestarão no real. Trata-se, pois, de um pedido de mudança, de evolução – sem que, porém, o passado ou a realidade imediata sejam negados. Quando algo ocorre na realidade, ao mesmo tempo alguma outra coisa deixa de ocorrer. Essa “alguma coisa” que não ocorre acontece simbolicamente na pessoa (no inconsciente). Acontece que a não-realidade (energia consequencial) fará parte das concepções que virão no próximo movimento. O próximo movimento ocorrerá no justo tempo. Mesmo quando não é expressa, a energia consequencial continua sendo um potencial de mudança, um pouco como uma fonte de alternativas que nos lembra das coisas que poderíamos fazer, mas não fizemos. Outra possibilidade é considerar que, onde quer que você esteja agora, pode pensar em todos os lugares onde poderia ter estado; ou ainda, mesmo consciente do que está fazendo, pode pensar em todas as coisas que não está fazendo agora. Ou, pior, e talvez o melhor exemplo, é quando você começa a pensar em tudo que você vem fazendo em sua vida cotidiana, para não fazer o que você de fato gostaria de fazer. Ah, sim! Todos possuímos energia consequencial. Tentarei agora traduzir, através de uma imagem, os elementos de que falei, de modo a ilustrar certas funções e aspectos do inconsciente. Dividi a experiência em três partes fundamentais: consciente, pré-consciente e inconsciente (os conceitos utilizados por Freud). Refiro-me aqui à consciência como o estado consciente, contendo afirmações conclusivas que são estruturantes para a pessoa. Imagine um iceberg, um triângulo, uma pirâmide. Teremos a seguinte imagem:

Figura 1 – Modelo básico dos níveis de consciência

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O consciente é a ponta, o pré-consciente é a parte do meio e o inconsciente ocupa a parte de baixo. O consciente considera apenas uma imagem de cada vez. É o que “vemos” ou percebemos de uma situação que é consciente. Sem dúvida a situação é composta de vários elementos, mas nós os consideramos como o “contexto” em que vivemos. Isso não é claro de imediato, mas graças a todas as nossas referências chegamos a um certo sentido, como uma conclusão, que determina nossa compreensão da situação atual. No pré-consciente existem várias situações, muito mais que no consciente. É um pouco como a tela de um computador. Pode haver, por exemplo, várias palavras na tela. Conscientemente damos conta ler apenas algumas de cada vez: isso seria o consciente. Ao mesmo tempo, porém, temos uma visão geral da tela, isto é, de muitas palavras que não podemos ler. Entretanto, percebemos vagamente o conjunto de todas essas palavras. É como quando entramos em um lugar qualquer e o olhar se dirige para alguns objetos (o consciente) e você tem uma vaga noção do resto das coisas que existem ali. Essa noção vaga é o que descrevo como o préconsciente. Outro exemplo: quando recebemos uma carta temos a tendência a dar uma olhada “por cima” para avaliar se traz boas ou más notícias. Essa impressão estimula nossas sensações e afetos. Olhamos a página para depois lermos, palavra por palavra. É possível que nosso pré-consciente interprete essa primeira impressão como sendo nossa reação à carta e que nossas reações emocionais e afetivas já sejam então determinadas, antes mesmo de termos lido em detalhes a página toda. Quanto ao inconsciente, representa o que não está disponível na página nem na tela. Se pegamos a página, isso significa todas as associações oriundas do impacto decorrente de lembranças, referências etc. e que são, de certo modo, lidas pelo inconsciente. Graças ao préconsciente, os pensamentos e sentimentos (mas não todos) começarão a emergir e ser aceitos enquanto pensamentos e sentimentos claros, tornando-se conscientes. Claro que ninguém vai permitir que todos os segredos e situações delicadas apareçam no consciente. Provavelmente eles serão filtrados pelo pré-consciente. No entanto, certos sentimentos parecem aflorar de forma incontrolável. O que aflora na consciência é formado


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por situações precisas, sendo que o que resta no inconsciente é um conjunto de situações no não-tempo. A imagem do computador pode continuar ilustrando isso. O que aparece na tela é o pré-consciente, próximo ao consciente. O que lemos palavra por palavra sobre a tela é o consciente. O que está guardado nas pastas do disco rígido é o inconsciente. Observe a palavra árvore. Essa palavra estimulará em você associações e evocará imagens de árvores em particular. Isso é pessoal e ninguém, nem mesmo você, pode controlar (conscientemente). Da mesma forma, se você digita a palavra árvore no computador alguma coisa que não estava lá antes aparecerá. A grande diferença, eu acredito, entre o conteúdo de um computador e o inconsciente é que o computador conserva as pastas intactas – e, portanto, protegidas – ao passo que o inconsciente modifica seus conteúdos. Ou seja, existe uma atividade, uma espécie de diálogo entre as lembranças, as concepções, a energia consequencial, a energia residual etc. armazenadas entre o real, o simbólico e o imaginário. Essa atividade existe porque, uma vez que tudo está em um espaço de não-tempo, o inconsciente se ocupa de situações relativas ao tempo para que a evolução não evite o passado e que o passado não seja sua evolução. Vivemos seus efeitos como um momento complexo no presente e tentamos simplificá-los em conceitos reconhecíveis. A palavra se torna então tanto conclusão quanto entrada para as profundezas de nosso ser. Contudo, como já destaquei, não existe palavra sem verbo, oculto ou manifesto. Quando digo “porta” existe em mim um verbo escondido (situações reais do passado ou do imaginário) – tal como atravessar uma porta, ir na direção de uma porta, fechá-la, abri-la etc. Cada situação tem um verbo, logo cada situação é uma impressão que reclama uma expressão. Isso é da mais suma importância. Podemos agora ilustrar de forma mais complexa a representação da primeira figura:

Figura 2– Estrutura complexa de imagens

Suponhamos que haja na tela um grande número de situações do pré-consciente e cada situação possua um verbo. Algumas dessas imagens, mais que outras, podem estar associadas a afetos mais fortes (por exemplo, repulsas ou atrações), possuindo então um verbo energeticamente sobrecarregado ou subcarregado. Podemos dizer que uma pessoa está emocionalmente carregada quando ela reage a certas partes de um discurso e a outras não. Sabemos por experiência o que se passa com a raiva, no sentido de que certas coisas nos deixam com raiva e outras não. Por exemplo, uma pessoa que ouve a frase “eu te amo agora”, escuta que é amada ou escuta principalmente o “agora”, subentendendo que não era amada antes? Que situações ela vê? Que situações nós vemos no pré-consciente? Quais são as que vemos muito ou que pouco enxergamos? Quais são as imagens do consciente que tentamos não ver e vemos mesmo assim? O modo como o verbo reage às diferentes situações propostas já existe em nosso pré-consciente (ou seja, mais profundamente). Que situações sempre prontas a reaparecer como feridas antigas existem em nosso inconsciente, quando logo ao lado existem também situações de energia consequencial, do não vivido, que apenas esperam para se manifestar? O que queremos ou o que necessitamos repetir e que não vivemos quando vivemos algo? É extremamente difícil tentar descrever a complexidade dos pensamentos. Talvez apenas o poeta seja capaz de transmitir a essência do pensamento. Como disse no início deste texto, precisamos todos de uma linguagem entre as linguagens. Vou utilizar uma outra representação simplificada para ilustrar um mundo complexo e parcialmente desconhecido. Por exemplo, quando digo “eu estou em casa”, é um pensamento conclusivo. Há uma conotação de segurança, pois indica onde estou. Mas não descreve onde é a minha casa nem como ela é; isso está contido em meu pré-consciente, e nos instantes que se seguem posso precisar os diferentes aspectos que existem e que, no entanto, não estavam incluídos em meu pensamento conclusivo. Os pensamentos associados em meu pré-consciente podem chegar ao meu consciente à medida que observo os detalhes de minha casa. Por exemplo: olho o divã vermelho. Esse divã vermelho, presente de minha avó, recorda-me que

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não há ninguém sentado nele e que estou só. Mas não tenho vontade de sentir que estou só, pois tenho a certeza de que a pessoa ausente que poderia estar ali, e de fato deveria estar ali, não compreendeu que eu tinha razão algum tempo atrás quando disse que tentava esquecer que me lembrava de me sentir ferido quando ninguém compreendia como me sentia quando era mais jovem e... etc. Podemos ver então como uma simples frase, “eu estou em casa”, traz à tona um mundo complexo de experiências passadas, presentes e futuras. Mas do mesmo modo, e aqui chegamos ao cerne da questão, toda experiência humana é avaliada em termos de experiência sensorial, ou seja, pelo que nós sentimos. É impossível ignorarmos que o que quer que sejamos, pensemos, vemos ou percebamos contém sempre uma parte de experiência sensorial. Chegamos então aqui à tríade fundamental: sentimento, expressão, situação (SES). A teoria e a prática convenceram-me que os sentimentos são respostas às situações (simbólicas, reais ou imaginárias) interiores e exteriores recebidas pelo pré-consciente. As situações internas são a riqueza de nossa psique e de nossa espiritualidade primária, ao passo que as situações externas são tudo aquilo que nos envolve num dado momento. Basta um desses fatores ser tocado e todos os outros responderão e serão afetados. Essa tríade pode ser assim ilustrada:

ficado ou o objeto de nossa pulsão pode ser denominado de situação, que pode certamente ser uma situação real ou imaginária. Mas pode também ser uma situação simbólica caso refira-se a valores essenciais e profundos que não são claramente formulados. Segue-se que temos a experiência de impressões e de expressões sensoriais, o que simplifico pela palavra sentimento. Há pouca chance de que nos sintamos bem em uma situação ruim, e vice-versa.

Figura 4:– Interações entre situação, expressão e sentimento

Na figura 4 vemos que a interação de uma situação não é apenas uma questão de impacto, mas também de expressão, e que temos pouca chance de termos apenas uma resposta ou expressão – mas, ao contrário, várias no nível do consciente, do pré-consciente e do inconsciente. Por exemplo, vemos uma determinada coisa e temos uma certa impressão que nos leva a sentir algo. Ao mesmo tempo, porém, o inconsciente também reage, assim como o pré-consciente e, pouco a pouco ou de repente, nossos sentimentos mudam de acordo com os pontos tocados em nós mesmos.

Figura 3 – situação, expressão, sentimento.

A expressão pode tanto ser uma pulsão oriunda da realidade quanto uma pulsão recalcada, ou ainda uma pulsão potencial. Em linguagem energética, isso seria traduzido como energia real, energia residual e energia consequencial. Em linguagem social isso significaria que expressamos algo, que retemos algo ou que analisamos nossas outras possibilidades. O signi-

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Figura 5: Complexidade da interação SES

A figura 5 explica que não somente a situação real mas também as diversas situações internas do psiquismo afetam a pessoa: as situações reais históricas, as situações imaginárias e as situações potenciais não vividas (energia consequencial). O mundo de um ser


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é, pois, uma rica complexidade resultante de uma interação não apenas com a realidade, mas consigo mesmo e, ao mesmo tempo, com os valores fundamentais inerentes ao fato de ser um humano em uma existência coletiva e espiritual já interiorizadas. Somos obrigados a simplificar tamanha complexidade; nós o fazemos através de uma compreensão particular a cada instante. Temos assim a cada instante pensamentos conclusivos graças ao nosso consciente. Felizmente possuímos vários instantes, o que permite a esta complexidade aparecer como verdades sucessivas. Os pensamentos conclusivos têm, pois, um grande valor, pois simplificam um mundo complexo. Uma pessoa não pode ver toda a mobília de “sua casa” de uma só vez, assim como não pode associar a seu pré-consciente toda sua experiência referencial (referente aos móveis, em meu exemplo). Sem dúvida, esses pensamentos constituem uma simplificação de tudo o que é, de tudo o que era e de tudo o que poderia ser. Os pensamentos conclusivos são pois redutores, conceitualmente aceitáveis, mas excluem uma parte dos processos intrapsíquicos do inconsciente e do pré-consciente (e provavelmente também da relação interativa no diálogo com o outro, mas isso não é o tema em pauta). Entretanto, e é o que acontece o tempo todo em psicoterapia, podemos detectar, graças a pensamentos conclusivos (frases), a complexidade de linguagens múltiplas de diversas situações escondidas e que, no entanto, aparecem na linguagem simplificada. Isso significa que é possível detectar as riquezas escondidas de uma frase, ou mesmo suas contradições. Se retomarmos a figura 1 (modelo de base dos níveis de consciência) fica evidente que a simplificação dos fatos conclusivos deve estar no alto da pirâmide, porque se invertermos a pirâmide uma quantidade excessiva de complexidades virá à tona. Isso nos dá uma ilustração da psicose:

Figura 6: Ilustração de uma estrutura “impossível” (tendências psicóticas).

O inconsciente não pode estar no topo da pirâmide – como ocorre, em parte, nos estados psicóticos, quando um excesso de material vindo do inconsciente emerge na realidade. Concluindo, diria que existe um universo de imagens (as situações) que falam o tempo todo, expressam-se, funcionam etc. em nosso inconsciente. Sob o impacto da realidade nesse mundo, por meio do aparecimento de objetos ou situações, por exemplo, o inconsciente envia um universo de situações ao préconsciente em que ocorrem diálogos laterais, assim como diversas trocas. Algumas dessas situações são “aceitas” pelo consciente. É muito provável que o pré-consciente não apenas receba essas situações, mas também as perceba. As imagens/situações estão disponíveis em todo momento no pré-consciente, são afetadas, ajustadas e modificadas pelos impactos do mundo exterior e as interações entre o consciente e o inconsciente. Voltemos agora ao divã vermelho: não é o objeto que nos fala, mas o que a ele associamos e que se origina em algum lugar de nosso inconsciente. A imagem fala e refere-se ao presente, mas refere-se do mesmo modo à história do divã e àquela a ele associada. Está associada também à função simbólica do divã, pois, por exemplo, duas ou várias pessoas poderiam estar sentadas nele. Um divã não é uma poltrona: ele é feito para ao menos duas pessoas; se uma pessoa senta-se, existe ao lado dela um espaço disponível. Quaisquer que sejam as associações que se façam ou sejam evocadas pelo divã, a pessoa é tocada em sua linha de pensamento por uma experiência sensorial. Essa experiência sensorial pode ser um afeto, uma emoção, um sentimento (agradável ou desagradável), mas também o recalque de uma sensação indesejável ou de sentimentos que podem servir de base às imagens associativas de desejos, anseios, arrependimentos etc. e que ampliarão as consequências da experiência do sujeito. Pode até ser que a pessoa acabe olhando para outro objeto para evitar as associações cada vez mais profundas suscitadas pelo “divã”. Entretanto, se ela olha para uma mesa isso pode também provocar ou estimular associações do mesmo tipo. Chegamos assim a um outro ponto importante: numerosas situações diferentes de nossa

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realidade nos falam de lugares similares em nós mesmos, um pouco como se quiséssemos que elas nos falassem desses lugares específicos. Por exemplo, uma velha ferida pode escutar histórias diferentes, mas o que ela quer escutar de fato em todas essas histórias é que isso machuca. É assim que um desejo fundamental de mudança pode ser importante para a pessoa. O que quer que pensemos a propósito do inconsciente, e o que quer que pudesse ser, o fato é que nos deparamos com ele quando menos esperamos. Podemos nomeá-lo como quisermos, mas alguma coisa nos lembra sempre de algo que esquecemos, mas que não nos esqueceu, e acabamos assim lembrando que havíamos esquecido. A psicoterapia é uma das diversas maneiras que nos permitem aproximar-nos dessas questões. Minha crença é de que as respostas já existem no inconsciente para serem gradualmente descobertas, por serem valores naturais, essenciais como uma parte extraordinária de uma vida ordinária, onde cada pequena gota que somos é apenas uma parte única de um oceano maior. Quanto mais aprendemos, mais constatamos que sabemos pouco. Mas a física ensinou-me que é muito difícil nadar sem se molhar, daí a importância da experiência. Os sonhos nunca dormem, mas nós, sim.

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Notas: 1

Paul Boyesen, L’inconscient est situationnel, Manuel d’enseignement de l’EFAPO, tome 2, 2ème édition, 1996. 2 Paul Boyesen, Le corps des mots, Manuel d’enseignement de l’EFAPO, tome 3, 1997. 3 Paul Boyesen, Les cinq pas vers le réel, ADIRE n°9, 1993. 4 Thomas Hobbes, “L’homme est un loup pour l’homme”.


Toque e simbolização: do corpo ao verbo Silvana Sacharny Resumo: A Análise Psico-Orgânica dá um lugar importante ao trabalho da regressão na sua abordagem. Nesta direção, o trabalho terapêutico através do toque e da massagem biodinâmica pode ser um canal para a restauração da comunicação tátil primária insuficiente. Do corpo ao verbo, da sensação a novos sentidos, na ampliação da emergência de representações e imagens que trazem a função restauradora de feridas narcísicas. O sujeito encontra dessa forma um acesso para reinvestir seu corpo positivamente na reconexão com o prazer, construindo um envelope narcísico. Palavras chave: regressão, restauração, simbolização. Resumen: El análisis psico-orgánico da un lugar importante a la labor de la regresión en su enfoque. En este sentido, el trabajo terapéutico a través del toque y del masaje biodinámico puede ser un canal para la restauración de la comunicación táctil primaria insuficiente. Del cuerpo al verbo, de la sensación a nuevos sentidos, en ampliación de la emergencia de representaciones e imágenes que traen la función reparadora de las lesiones narcisistas. El sujeto encuentra así un acceso para reinvertir su cuerpo de manera positiva en la reconexión con el placer, construyendo un envoltorio narcisista. Palabras clave: regresión, restauración, simbolización.

Dados sobre a autora: Psicóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Psicoterapeuta formada pela EFAPO (École Française D' Analyse Psyco-Orga-nyque) Paris. Especialização em Psicologia Clínica pela Universidade Sorbonne – Paris. Especialização em Psicoterapia de Casais e Análise Psico-Orgânica pela Escola Francesa de Análise Psico-Orgânica. Coordenadora e formadora do Centro Brasileiro de Formação em Análise Psico-Orgânica (CEBRAFAPO). Membro Titular da ABRAPO – Associação Brasileira de Análise PsicoOrgânica.

Abstract: The Psycho-Organic Analysis gives regression an important place on its approach. In this sense, the therapeutic work through touch and the biodynamic massage can open a path to restoring the tactile primary insufficient communication. From body to words, from sensations to new senses, expanding the emergence of images and representations that bring the restoring function of narcissistic injuries (bruises?). This way, one finds a path to reinvest the body in a positive way to reconnect with pleasure, building a narcissistic envelope. Keywords: regression, restoration, symbolization.

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A dinâmica do sistema relacional original irá participar na constituição do sujeito em uma determinada estrutura somato-psíquica, num padrão de funcionamento que lhe será útil durante anos. Este padrão, paradoxalmente, quando se torna estático, aprisiona num mesmo mecanismo que o limita, reduzindo o seu campo de expressão e ação. Partindo da unidade corporal, isto é, das imbricações entre a psique e o soma, podemos compreender o sintoma como expressão de um sofrimento que não encontra outra tradução. Dessa forma o movimento energético pode estar contrito, estagnado, retido, comprometendo a auto-regulação do organismo e as expressões criativas do indivíduo. O sujeito fica então capturado por seus sintomas, vulnerável ao sofrimento e à doença. Ele se desconecta de suas capacidades organizadoras. Neste enfoque propomos o toque enquanto instrumento terapêutico com a intenção de religar o corpo ao verbo. Toque e simbolização, o verbo conectado com a experiência corporal, articulando os sentidos, as sensações e os sentimentos. Para Paul Boyesen a questão do "por que eu vivo" é importante, mas também o "como eu vivo" e nesse como podemos encontrar a pessoa com todos os seus sentimentos, sua expressão vital e suas situações, é o que ele define por qualidade da vivência1. Falar do corpo é associá-lo ao tempo, pois o corpo é o lugar em que o tempo aparece. Nesta medida a utilização do toque no processo terapêutico é ao mesmo tempo delicada e potente, pois desperta a memória somática impressa na pele. Muito cedo, trocas importantes intra-útero se estabelecem entre a mãe e o seu bebê, toda vivência humana, desde o período pré-natal imprime no ser o que podemos chamar de memória sensorial. Com o nascimento, todo ser humano, vivencia a experiência inicial de total desamparo e dependência da mãe, ou quem ocupe esta função. O recém-nascido precisará se adaptar à sua nova vida, o tempo e a qualidade destes primeiros meses marcarão a organização somato-psíquica. Os meses que seguem o nascimento são um prolongamento da gestação e constituem um período fundamental de transição. O estado de homeostase num movimento contínuo envelopado pela parede uterina, é bruscamente interrompido e um

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outro espaço se instala; o da necessidade. Nesta díade original mãe-bebê, o bebê vive um estado de total indiferenciação, não existindo ainda a percepção de um campo externo e outro interno. A experiência da existência está inscrita no campo da sensorialidade, sendo que suas sensações são frequentemente intensas, desconfortáveis, desprazerosa, em função de necessidades completamente novas. Neste estágio, este pequeno corpo é vivido de forma fragmentada, suscitando angústias de morte, fragmentação, insegurança. Somente a mãe, ou quem exerça a função materna, através do contato corporal, poderá oferecer a proteção, a segurança e o conforto necessários para o retorno ao estado de distensão, relaxamento e prazer. A pele é o mais extenso órgão dos sentidos do corpo e o sistema tátil é o primeiro sistema sensorial a se tornar funcional. Didier Anzieu nos fala sobre o "Eu-Pele"2, baseado na importância da integridade do envelope corporal (ao mesmo tempo de ordem orgânica e fantasmática), que visa a envelopar o aparelho psíquico e exerce a função de continente. Esta função é desenvolvida através de cuidados maternos, com toques investidos de afeto. Nesta comunicação que se estabelece através da linguagem corporal, a função psíquica se apoia e se desenvolve a partir da vivência corporal. A sensação-imagem da pele como um saco é estimulada através desses cuidados com o corpo do bebê, apropriados às suas demandas. Esse contato conduz o bebê, aos poucos, a diferenciar uma interface - como uma membrana - que permite a distinção do campo externo e do interno. Nesta continuidade somato-psíquica a construção se dará na direção da unidade corporal. Este processo de evolução de uma dependência absoluta, a uma relativa e depois para a autonomia é construído na passagem do estado de indiferenciação ao registro da diferenciação. Aos poucos, uma fronteira se cria separando o mundo interno do externo, se posicionando assim a sensação de unidade e integração. Nesta evolução da organização psíquica o termo "narcisismo primário" - "é designado como uma fase precoce ou momentos básicos, que se caracterizam pelo aparecimento simultâneo de um primeiro esboço do ego e pelo seu investimento pela libido"3. Quando estas etapas são investidas de um modo


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satisfatório, o sujeito sentindo-se compreendido nas suas necessidades e reconhecido na sua existência, pode constituir um envelope somato-psíquico bem definido, favorecendo o trabalho de diferenciação e individuação. Se a qualidade desse investimento narcísico fracassa, temos como consequência um sujeito dependente do afeto do outro, deficiente na sua unidade, na sua organização, que terá mais dificuldades para suportar a tensão de conflitos. As fragilidades e feridas narcísicas, os sofrimentos experienciados permanecem impressos na memória somática, podendo ser reativados em situações de atrito. Quando este núcleo é deficiente, o trabalho de elaboração também o será, podendo então vir a ser condição de uma pré-disposição para a somatização. Qualquer sintoma carrega consigo um sofrimento e uma mensagem a ser decifrada. Aparece numa situação atual onde o sujeito se depara com um conflito de tensões que se tornam insuportáveis, levando-o assim a um processo regressivo. Toda situação de choque, perda, ruptura de uma ligação, reativa um processo de regressão orgânica, emocional ou psíquica enquanto mecanismo de defesa. A dinâmica da regressão se organiza em torno da proteção do sujeito em sofrimento, como uma busca de pontos de apoio originais. O paradoxo desta situação é no encontro das intensidades das necessidades e dos desejos não satisfeitos que também podem ser reativados. Surge então a importância de podermos abordar a regressão como um momento em movimento de progressão. Daí "a utilização dos mecanismos e dos fenômenos da regressão enquanto instrumento psicoterapêutico para criar um acesso a um processo de elaboração de experiências arcaicas inconscientes "4. A Análise Psico-Orgânica dá um lugar importante ao trabalho da regressão na sua abordagem. Nesta direção, o trabalho terapêutico através do toque e da massagem biodinâmica pode ser um canal para a restauração da comunicação tátil primária insuficiente. Quando utilizamos o toque, acompanhamos o indivíduo no reconhecimento de sua profunda existência e do seu sofrimento. Dessa forma, o sujeito também poderá acolher sua própria dor, medos e fragilidades. Este processo permite a reinstalação da ligação consigo através da ligação com o outro, permeado pelo vínculo de confiança

tecido na relação terapeuta-paciente. O toque e a massagem, com a qualidade de profundo respeito permite ao sujeito reconectar a confiança em suas sensações, sentimentos e na comunicação com o outro. A direção do trabalho é viabilizar através deste contato à emergência, liberação e expressão de manifestações corporais e emocionais. A expressão desta linguagem também abre o acesso às representações, imagens, lembranças, permitindo sua análise e integração à consciência. Neste processo o sujeito vai reconectando sua capacidade de auto-regulação, resgatando a fluidez energética entre o corpo sensorial, emocional e simbólico. O aprendizado de relaxamento, da expiração, da entrega, da distensão muscular, vai se viabilizando apoiado em novas condições que o trabalho terapêutico imprime. A linguagem da massagem e do toque com intenções precisas irá despertar qualidades como apoio, suporte, integridade, segurança, proteção. O sujeito progressivamente vai se disponibilizando e se tornando receptivo a sensações positivas, agradáveis, ao registro do prazer. Esta qualidade sensorial vai restaurando na medida do possível, a confiança no corpo, a segurança de base, abrindo o acesso a um novo investimento narcísico. As sensações são reinvestidas e acolhidas. O bem estar e o prazer orgânico são primordiais na construção da segurança ontológica do estar vivo e também da atividade simbólica. Do corpo ao verbo, da sensação a novos sentidos, na ampliação da emergência de representações e imagens que trazem a função restauradora de feridas narcísicas. O sujeito encontra dessa forma um acesso para reinvestir seu corpo positivamente na reconexão com o prazer, construindo um envelope narcísico. A partir deste contato o indivíduo pode ampliar e aprofundar suas conexões nas interações com o outro, com o mundo. Finalmente no trabalho contínuo entre a desconstrução de antigos padrões e a construção de novos posicionamentos, o indivíduo se atualiza, permitindo a circulação da energia vital para ser de fato sujeito de transformação.

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Notas 1

Boyesen,1998, " O inconsciente situacional ", in Manual de Ensinamento da EFAPO, vol. 5 2 Anzieu, D. - O Eu-pele, ed. Casa do Psicólogo. 3 Laplanche J./Pontalis.J. B. - vocabulário da Psicanálise, Martins Fontes Editora 4 Boyesen J. - "regressão e simbolização", in Manual de Ensinamento da EFAPO- vol. 7. Bibliografia Anzieu, D. - "O Eu-Pele" - Editora Casa do Psicólogo Boyesen, Gerda: "Entre a Psique e o soma - introdução à psicologia Biodinâmica", Summus Editorial Laplanche J./Pontalis J. B. - Vocabulário da psicanálise, Martins Fontes Editora Manual de ensinamento, vol. 5 - Escola Francesa de Análise Psico-Orgânica.Manual de ensinamento. Vol 7 - Escola Francesa de Análise Psico-Orgânica.

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Massagem Biodinâmica Delfina Pimenta Resumo: Mediante o estabelecimento do diálogo tônico entre terapeuta e cliente, a Massagem Biodinâmica desenvolve uma linguagem profunda, delicada e sutil, através de um toque que desbloqueia padrões musculares/somáticos, que favorece o relaxamento, a descarga vegetativa e o restabelecimento da circulação da energia do corpo. Palavras chave: massagem biodinâmica, descarga vegetativa, circulação da energia. Resumen: A través de la apertura de un diálogo tónico entre el terapeuta y el cliente, el masaje biodinámica desarrolla un lenguaje profundo, delicado y sutil con un toque que abre los patrones musculares y viscerales, que promueve la relajación, la descarga vegetativa, y la restauración del flujo de energía del cuerpo . Palabras clave: masaje biodinámica, descarga vegetativa, circulación de energía. Abstract: Through the establishment of tonic dialogue between therapist and client, the Biodynamic Massage develops a profound language, delicate and subtle with a touch that unlocks muscle patterns / somatic, which promote relaxation, the vegetative discharge and restoration of flow of body energy. Keywords: Biodynamic massage, vegetative discharge, energy flowing.

Dados sobre a autora: Psicóloga CRP 05/6434 – formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 1977. Mestrado em Psicologia, pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Rio de Janeiro, em 1986. Psicoterapeuta Corporal em Análise Psico-Orgânica, formada pela Escola Francesa de Análise Psico-Orgânica, Rio de Janeiro, em 2001. Especialização em Psicomotricidade pelo Instituto Brasileiro de Medicina e Reabilitação (IBMR), Rio de Janeiro, em 1991; pelo Anthropos, Rio de Janeiro, em 1994; pelo Espaço Néctar, Rio de Janeiro, em 1998. Membro Titular e Diretora Financeira da ABRAPO – Associação Brasileira de Análise Psico-Orgânica (1ª, 2ª e 3ª gestões).

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Massagem biodinâmica

Desenvolvida nos anos cinquenta por Gerda Boyesen a Massagem Biodinâmica consiste de um conjunto de manobras, que se traduz por um acervo que prima pela delicadeza e pela profundidade. Massagem é uma linguagem não verbal que transmite uma mensagem através das mãos. A massagem comunica pelo toque, e o toque trabalha pelo tato o contato com o outro. O tato é uma percepção sensorial. “Massagem é uma técnica esquematizada, facilmente reproduzível, centrada no soma enquanto que a noção de toque, sempre presente na massagem, é mais difícil de ser captada objetivamente e leva em conta a psiquê do cliente em relação com o terapeuta” (Jacqueline Besson). Então, a Massagem Biodinâmica é terapêutica, uma vez que considera a qualidade do tocar, não é suficiente o conjunto de estratégias da massagem, o fundamental é o tipo de intenção, isto é, o gesto focalizado do terapeuta em relação à pessoa. No terapeuta a intenção é consciente, embora possa haver alguma porção inconsciente em seu gesto. “Ele não é neutro nessa relação; quando muito, ele tem uma consciência mais aguda do que seu cliente de seus próprios afetos. Mas, apesar disso, é impossível evitar de deixá-los passar nos seus gestos” (Jacqueline Besson). Assim, não se pode deixar de falar sobre o aspecto relacional e a presença dos afetos, pois nenhuma das partes é neutra. “O cliente também emite sinais inconscientes que ressoam orgânica, emocional e energeticamente no corpo e na psiquê do terapeuta. Este diálogo de inconscientes é uma fonte de riqueza imensa ou uma armadilha, segundo a capacidade de discernimento do terapeuta” (Jacqueline Besson). Através então de um diálogo tônico entre cliente e terapeuta estabelece-se na Biodinâmica um contato com delicadeza, com cuidado, com cautela. O toque é sensível, é sutil, não provocativo, não pressiona. Trata-se de favorecer a diluição, o que difere de um toque mecânico, uma vez que mobiliza, acorda a memória do corpo desde a experiência do contato no ambiente intrauterino. Quando nasce, a pele do bebê viabiliza o primeiro contato imediato com o exterior, através do toque, assim, sensações antigas que revelam certa qualidade de experiência psíquica e emocional emergem na profundidade do toque, e podem traduzir antigos bloqueios emocionais através de uma perda de fluidez da energia, que então retida fica

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impedida de seguir naturalmente o seu fluxo. O trabalho de diluição pela massagem, viabiliza uma abertura na direção do relaxamento profundo, orgânico, para que se dê a consequente restauração do fluxo energético no corpo. O padrão muscular de contração equivale ao sintoma, e é respeitado pela Biodinâmica. A massagem vai dissolver, diluir, respeitando o tempo orgânico, onde o corpo vai cedendo, a respiração vai cedendo, na direção do relaxamento. A Massagem Biodinâmica visa a abertura de espaço no corpo, para que o processo de restauração se dê e o organismo volte a se auto-regular, através do que Gerda denominou de micro-regulação. É por meio de uma ação suave que os bloqueios se liberam, e então a energia vital é mobilizada, “acordando” o contato com a energia primária. A restauração é propiciada pela condição de relaxamento, quando é mobilizado o “psicoperistaltismo”, expressão de Gerda Boyesen para traduzir a atividade peristáltica com função de digerir as tensões psíquicas. O peristaltismo consiste dos movimentos involuntários dos intestinos, sob comando do sistema nervoso autônomo parassimpático. Esses movimentos funcionam no estado de relaxamento para promover a digestão de alimentos. O psicoperistaltismo é a atividade peristáltica que realiza a digestão das tensões nervosas. O toque da Massagem Biodinâmica é uma linguagem de sensibilidade e de contato sutil, não verbal, e representa uma troca de inconscientes, onde o corpo da pessoa vai dando sinais através da sensorialidade, pela musculatura, pela energia do corpo. O terapeuta é receptor e, nesta condição, abre ampla escuta para entender o que o corpo e a palavra dizem. Essa escuta está na ordem de uma linguagem sensível. Se a recepção do terapeuta não é ampla, as resistências da pessoa ficam acirradas e a ressonância tão fundamental fica comprometida. A recepção só é possível se há disponibilidade do terapeuta para o contato através do tato, da respiração, do seu conforto através de uma boa postura para a realização do trabalho, do contato visual. O ritmo do toque do terapeuta deve estar ajustado ao ritmo da pessoa, à necessidade do momento dela. É na fluidez do terapeuta que vai estar presente o convite para a pessoa se soltar, respirar.


Massagem biodinâmica

A Massagem Biodinâmica lida com a unidade psicossomática: afetivo/emocional/psíquico e somático/orgânico/físico. Assim, ao tocar no corpo, o terapeuta toca também na história da pessoa: suas satisfações e suas frustrações caminham com atitudes tônicas determinadas. Quando toca, a Massagem Biodinâmica foca o corpo físico, afetivo e simbólico, propiciando que a pessoa se beneficie com a consciência de seus processos somáticos.

Bibliografia Besson, J. Toque Maternal, Toque Paternal. Adire-revue de l’Association d’Analyse Psycho-Organique, n.6, avril 199l, pgs. 67-76

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Limites e fronteiras: o nascimento psíquico Denise Kaiuca Resumo: O artigo faz uma reflexão sobre a constituição dos limites primários, delimitadores de fronteiras e marcadores do sentido de si, buscando em Freud o respaldo teórico para a constituição e o funcionamento do aparelho psíquico. Discorre sobre o que acontece quando há falhas na constituição desses limites, na inscrição das representações e suas consequências patológicas. Apresenta, como instrumento terapêutico da Análise Psico-orgânica, a tríade: sensação/ sentimento/sentido. Palavras chave: limites, corpo, trauma, inscrição, representação. Resumen: El artículo reflexiona sobre la constitución de los límites primarios, delimitadores de fronteras y marcos del sentido de si mismo, buscando en Freud el soporte teórico para la constitución y el funcionamiento del aparato psíquico. Describe lo que sucede cuando existen lagunas en establecimiento de estos límites, en la inscripción de las representaciones y sus consecuencias patológicas. Presenta, como herramienta terapéutica delAnálisis Psico-orgánico la tríada: sensación / sentimiento / sentido. Palabras clave: límites, trauma, cuerpo, registro, representación Abstract: The article reflects on the constitution of the primary limits, border delimiters and sense of self markers, seeking Freud in the theoretical support for the establishment and operation of psychic apparatus. It discusses what happens when there are gaps in establishment of these limits, the inscription of representations and their pathological consequences. It presents, as a Psycho Organic Analysis therapeutic tool, the triad: sensation / feeling / meaning. Keywords: limits, body, trauma, registration, representation.

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Dados sobre a autora: Psicóloga CRP: 18436/05. Psicoterapeuta psicanalista. Psicoterapeuta de casal. Formadora do Centro Brasileiro de Formação em Análise Psico-Orgânica (CEBRAFAPO). Formada pela École Française de Analyse Psyco-Organique (EFAPO). Coordenadora e supervisora do Projeto de Atendimento Clínico da Associação Brasileira de Análise Psico-orgânica (ABRAPO). Psicanalista pela Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro (SPCRJ).


Limites e fronteiras: o nascimento psíquico

Este trabalho surge a partir da reflexão sobre os limites, problemática muito frequente na clínica atual. O que distingue o limite como fronteira e continente do limite enquanto barreira e impedimento? Em que momento cada um se dá? Quais as consequências das falhas em sua fundação? Primeiramente a distinção proposta provém da função de cada um: o limite enquanto fronteira, continente, está ligado à função materna, à questão existencial, à constituição egóica e narcísica do sujeito, ao pré-edípico, à diferenciação, à questões relacionadas ao vínculo e às ligações. O limite enquanto barreira relaciona-se à função paterna, associado às leis, ao complexo de Édipo, às neuroses, à relação mediada, à capacidade de postergar, de ir para o mundo. Focalizarei os limites que estão associados às patologias que podem ser denominadas de patologias limite ou de ligação, pois se referem à constituição primária do sujeito. Muito comuns na clínica atual, os casos-limite referem-se à situações clínicas marcadas pelo excesso pulsional, isto é, pelo traumático. No texto “Além do princípio do prazer” (Freud, 1920), podemos encontrar a exigência de modificação teórica, resultado em grande parte, dos impasses que a clínica colocava a Freud. A impossibilidade de significar expressa pelo corpo passa a ser alvo de sua investigação, no lugar do corpo histérico, entendido até então como um lugar de representações, cujo retorno se dá através de sintomas (Cardoso, 2007). A teoria freudiana até este momento não se mostrava capaz de explicar as manifestações resultantes das experiências traumáticas que não se inscreviam na ordem simbólica, portanto incapazes de serem representadas. Freud, em “Os instintos e suas vicissitudes” (1915), designa a pulsão como sendo uma energia que move o aparelho psíquico. Este conceito é definido como aquele “situado na fronteira entre o mental e o somático, representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como medida de exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo”. (Freud, 1915, p.142). Essa exigência de trabalho feita à mente pode ser realizada ou não, e o cumprimento desta tarefa é função do aparelho psíquico. Em “Além do princípio do prazer” (Freud,

1920), o aparelho psíquico é comparado a uma vesícula viva, submetida ao impacto incessante de estímulos externos. Este organismo desenvolve uma camada protetora, que funciona como escudo contra estes estímulos. No caso do aparelho psíquico, as excitações são provenientes não apenas do exterior como também do interior do organismo, sendo que, neste caso, não há possibilidade de se erguer um escudo protetor, logo outras defesas precisam ser desenvolvidas. O trabalho que o aparelho psíquico consegue realizar é vincular essas excitações, no sentido psíquico, tendo com isso a finalidade de então delas poder se desvencilhar. A transformação de energia livremente móvel em energia vinculada é o trabalho do aparelho psíquico. Ao desempenhar essa função, o aparelho psíquico obedece ao princípio do prazer, produzindo uma diminuição das pressões de excitações. Em se tratando de excitações excessivamente intensas, o escudo protetor se torna ineficaz ou incapaz de se formar. O conceito de trauma está ligado a essa concepção. No texto “Além do princípio do prazer”, o conceito de trauma passa a ser entendido como excesso pulsional, excesso de energia livre, sem que o ego tenha meios de ligá-la, de elaborar psiquicamente essas excitações. Portanto, a função do aparelho psíquico é enlaçar, capturar a pulsão, tecendo um fio de representações. E o que faz este enlace é o investimento libidinal que se recebe. A princípio tudo é energia desligada, livre, dispersa e caótica, o que Freud denomina de pulsão de morte. Paulo César Junqueira, em seu texto “Winnicott e a pulsão de morte” (1991), apresenta o conceito de pulsão de morte como sendo “um estado de não ligação de energia” (p.136). Nesse sentido podese pensar que morte é um não psiquismo, e que o anorgânico freudiano seria um retorno a um estado de energia não ligada. Esta é a condição inicial do bebê, e a função materna é promover a ligação, “oferecer objetos para algo que é disperso se objetivar, instalar a ordem sexual, erotizar... tirar do caos”. “A função materna seria processar, temporariamente os derivados da pulsão de morte” (Junqueira, 1991, p.136). A ligação da pulsão de morte com a libido gera uma modificação na lei de funcionamento da pulsão

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de morte. O princípio do prazer é resultado desta modificação. Freud designa o momento em que se opera essa junção como fusão pulsional. Já a fundação egóica parece ser possível somente através da libido. Freud nos aponta o ego como sendo um ego corporal, “...o ego deriva em última instância das sensações corporais, principalmente daquelas que têm sua fonte na superfície do corpo. Assim pode ser considerado uma projeção mental da superfície do corpo e, além disso, ele representa a superfície do aparelho mental” (Freud, 1923). Tereza Pinheiro explica que é a unidade corporal que dá a projeção de limite de superfície. É esta noção ou idéia de limite e a representação da imagem corporal que fundariam o ego. Essa representação de uma unidade corporal garante a noção de alteridade, e “desta noção de alteridade e investimento das figuras parentais sobre a imagem corporal é que nasce o ego. Narcisismo e ego estão atrelados ...” (Pinheiro,1995, p. 24) A partir do movimento da libido de apropriar-se de tudo, de a tudo unir-se, de transformar o estranho em familiar é que o psiquismo se manifestaria pela primeira vez. Essa força libidinal viria responder à luta pela vida e pela morte com que se depara o recémnascido; seria o reverso da pulsão de morte. A partir desta construção narcísica é que podemos posteriormente aceitar a castração. “Representar, fantasiar, identificar-se seriam dispositivos de que dispomos para tapar a falta e o desamparo. Troca-se a coisa pela representação, o horror do desamparo pela quimera” (Pinheiro, 1995, p.23). O traumático é indissociável dessa questão relativa aos limites da representação, aos limites entre corpo e psiquismo. Marta Rezende Cardoso aponta que as marcas traumáticas incapazes de serem inscritas como representações psíquicas e interiorizadas com significado, “tendem a ser exteriorizadas pela via do ato e do corpo” (Cardoso,2007), e são apresentadas através de fenômenos veiculados pela compulsão a repetição. “O corpo então passa a ser veículo, não de um processo de representação, mas de uma apresentação, pela via sensória, motora, visceral, de elementos que, por terem permanecido retidos como impressão, ficaram fixados num outro tipo de memória sem ser a representacional” (Cardoso,2007). Segundo Cardoso, o ato é a apresentação daquilo

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que não se faz representar. Isso acontece como uma resposta limite do sistema que se vê ameaçado de um possível transbordamento provocado pelo excesso pulsional. Essa força livre, abundante e não ligada tenderá a invadir o espaço egóico, configuração de uma situação traumática. Grandes quantidades de excitação conseguem ser subtraídas do processo de pensamento através do ato que conduz a uma descarga direta pela via da motricidade. Não há nesse processo uma efetiva contenção, já que esse movimento de ato descarga não pressupõe um sistema de ligação. Nesse sentido, quando há falhas na constituição das fronteiras narcísicas e elas não conseguem se fechar, isso as torna excessivamente porosas. Como consequência, há um estado de permanente abertura do espaço egóico ao outro; assim, fica comprometido o espaço de dentro e de fora, os limites entre o eu e o outro. A precariedade dos mecanismos de elaboração psíquica resulta num imediatismo como modalidade de resposta. Os processos psíquicos se apresentarão sob o aspecto de impulsão, considerando o caráter súbito e irruptivo das pulsões. Nas patologias chamadas de casos limites ou estados limites, o objeto é insistentemente procurado no exterior, via compulsão a repetição. Há uma precariedade de uma dialetização do espaço do dentro e do fora, assim como do real e da fantasia. A experiência interna é de que “a perda do outro, o seu desaparecimento, corresponderia à perda de si.” (Cardoso, 2007). A dificuldade dessa experiência nos aponta a impossibilidade de manter o outro como objeto interno. Na base de toda essa vivência há a precariedade da constituição dos limites primários, delimitadores de fronteiras, marcadores do sentido de si. A problemática narcísica, embora careça de sentido representacional, está carregada de uma atmosfera dos sentidos. “Passar desta problemática para a problemática edípica é passar do tátil, do gustativo, do olfativo, do respiratório ao visual; já que os cenários edipianos como a maioria das fantasias, são visuais” (Anzieu, 1989, p.224). Segundo Anzieu, na clínica nos deparamos também com um tipo de transferência que se distingue da edipiana. Podemos encontrar nas personali-


Limites e fronteiras: o nascimento psíquico

dades narcísicas a transferência em espelho e nos estados limites uma transferência idealizante. Conforme o pensamento de André Green, citado por Ivanise Fontes, nos pacientes em que há um transbordamento na elaboração psíquica, com falhas na inscrição das representações e que utilizam como recurso frequente somatizações e atuações; “a análise cessa de ser um trabalho sobre as representações e se torna, em certos casos, um trabalho da representação” (Fontes I, 2002, p.106). Esse corpo repleto de marcas, impressões, carece de sentido e representações; e o papel fundamental da clínica é contribuir para nomear o inominável, fazer representar aquilo que está fora do campo simbólico do sujeito, ligar sensações e sentimentos ao sentido. Sob este viés a Análise Psico-orgânica contribui para este processo de significação por ser uma abordagem analítica com mediação corporal. Possui como instrumento terapêutico a tríade sensação, sentimento, sentido, procurando a conexão e a articulação desses aspectos, buscando integrá-los à possibilidade de expressão. As marcas do sujeito inscritas ao longo de sua existência, suas sensações e sentimentos encontram na palavra a forma de ligação e expressão. A sensação emerge a partir da experiência corporal, dos diversos sentidos (olfato, visão, paladar, audição e tato), que se liga a qualidades afetivas. O sentimento é uma vivência interna, um experimento, é o domínio da subjetividade, do mundo interior. A palavra representa o simbólico, a busca de sentido, a faculdade de encontrar um significado, de conhecer, elaborar, de analisar. Através do aprofundamento da percepção sensorial, as marcas podem emergir através de imagens, sensações, sentimentos, que serão significados, nomeados e contextualizados na história do sujeito. A palavra é viva porque é encarnada, não é vazia de pulsação energética, nem destituída de carga emocional, porém, quando assim se apresenta, o trabalho terapêutico atua integrando esses aspectos em desconexão. O mesmo se dá no registro das sensações e dos sentimentos, ou seja, busca-se a situação a eles associados, as representações e o universo simbólico que possam traduzir e se conectar àquela experiência sensorial. É uma proposta de sempre estar vinculando o sujeito àquilo que ele suprime e tem dificuldade de entrar em contato.

É de fundamental importância, portanto, o trabalho de nomear marcas e impressões através do corpo e suas sensações, ligando-as com o sentido. Faz parte do processo de elaboração e construção de representação. A partir do contato com sensações e sentimentos, cria-se a possibilidade de distingui-los, construindo a base da construção de limites e consequentemente a sensação de si. Citando Fontes: Freud, num momento preciso de sua teoria, admitiu estarmos por vezes no campo energético. Como psicanalistas, porém, temos que procurar quais as representações desse energético, mesmo que se torne necessário construir essas representações. O energético ainda não chega à linguagem. Estabelece-se sob forma intralinguageira, como entonações, ritmos, cores, até mesmo linguagem, referindo-se a uma experiência física, imagens em que há fronteiras, relações: dentrofora, quente-frio... Evidentemente, tudo isso se converterá em palavras e, a partir delas, e apesar delas, será preciso falar ao paciente dos estados intralinguísticos, tentando recuperar o que é sensorial, nomeando-o (Fontes, I. 2002).

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Bibliografia Anzieu D. O Eu pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989 Cardoso M.R. A impossível “perda” do outro nos estados limites: explorando as noções de limite e alteridade. Psicologia revista v.13, n 2, Belo Horizonte, 2007. ________ A servidão ao “outro” nos estados limites. Psyque, v.9, n. 16, São Paulo, 2005 Freud S. (1920) Além do princípio do prazer. Rio de janeiro: Imago, 2006. ______ (1915) Os instintos e suas vicissitudes. Rio de Janeiro: Imago,1974. Edição standart brasileira das obras completas.vol XIV. ______ (1923) O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago,1974, Edição standart brasileira das obras completas, vol. XIX. Fernandes M.H. Corpo. São Paulo, Casa do psicólogo, 2003. Fontes I Memória corporal e transferência. São Paulo, Via Lettera,2002 Garcia-Roza L.A. Acaso e repetição em psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1986. Green A. Metapsicologia dos limites. rio de janeiro, Imago, 1990. Junqueira, P. C. Winnicott e a Pulsão de morte: um impasse in Cadernos de psicanálise, SPCRJ, ano 9, n 12, 1991. Pinheiro T. Algumas considerações sobre o narcisismo, as instâncias ideais e a melancolia in Cadernos de psicanálise,SPCRJ, vol 12, n 15, 1995. Schwartzman R. S. O conceito de recalcamento e a busca de uma metapsicologia para as novas patologias in Cardoso M.R.org Limites, São Paulo, Escuta, 2004

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A leitura diagnóstica através do círculo psico-orgânico Maria Roggia Resumo O Círculo Psico-Orgânico é um modelo teórico-prático da Análise Psico-Orgânica que contém as etapas da estruturação intrapsíquica, e interrelacional em seus aspectos orgânicos, psicológicos e energéticos. Esta estrutura é dinamizada pela constante interação entre as partes, e, devido ao pensamento circular, possibilita a leitura simultânea nos diferentes níveis, o que favorece tanto a elaboração de um diagnóstico dinâmico quanto o encontro de direções de trabalho, e ainda a análise da dinâmica transferencial da relação terapêutica. Palavras chaves: diagnóstico, psico-orgânico, dinâmica, estrutura, círculo. Resumen: El Circulo Psico-Orgánico es un modelo teórico práctico del Análisis Psico-Orgánico que contiene los pasos de la estructuración intra-psíquica e inter-relacional en sus aspectos orgánicos, psicológicos y energéticos. Se trata de una estructura dinamizada por la interacción constante entre las partes, y por fuerza del pensamiento circular, permite la lectura simultánea en los diferentes niveles, lo que favorece tanto a la elaboración de un diagnóstico dinámico cuanto el encuentro de direcciones de trabajo, y asimismo el análisis de la dinámica de la transferencia de la relación terapéutica. Palabras claves: diagnóstico, psicorgánico, dinámica, estructura, círculo.

Dados sobre a autora: Psicóloga - CRP 05/29847. Psicoterapeuta Somática e em Análise Psico-Orgânica. Especialização em Análise Psico-Orgânica e Terapia de Casal pela EFAPO. Formadora do Centro Brasileiro de Formação em Análise Psico-Orgânica. Coordenadora e supervisora do Projeto de Atendimento Clínico da Associação Brasileira de Análise Psico-Orgânica. Membro titular e presidente da Associação Brasileira de Análise Psico-Orgânica – ABRAPO (1ª e 2ª gestões).

Abstract: The Circle Psycho-Organic is a convenient theoretical model of Psycho Organic Analysis containing the stages of intra-psychic and interrelation framework in its organic, psychological and energetic aspects. It is a dynamic structure by the constant interaction between the parties and, due to circular thinking, allows the simultaneous reading at different levels that favours the development of a dynamic diagnosis, the finding of direction of work, and the analysis of dynamics of transference in therapeutic relationship. Keywords: diagnosis, psycho-organic, dynamics, structure, circle.

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A leitura diagnóstica através do círculo psico-orgânico

A proposta deste artigo é apresentar o Círculo PsicoOrgânico, uma das estruturas de apoio da Análise PsicoOrgânica, dando enfoque à sua dinâmica e suas possibilidades enquanto referência para compreender a problemática da demandas, fazer o diagnóstico dinâmico no campo das neuroses, e para abrir direções ao trabalho terapêutico juntamente com a análise da dinâmica transferencial. A Análise Psico-Orgânica é um método específico que se define como psicoterapia analítica com mediação corporal e que flui nos domínios da palavra, da imagem e do corpo. Tem sido desenvolvida desde o início dos anos setenta por Paul C. Boyesen, que se inspirou em Sigmund Freud, Carl Gustav Jung, Wilhelm Reich e ampliou o legado de Gerda Boyesen buscando assim integrar os conceitos da psicanálise com as experiências das psicoterapias corporais. Com uma ética específica de intervenção, “a Análise Psico-Orgânica não dá somente importância ao sentido da experiência e à sensação da experiência, mas ao verbo que as liga” Boyesen (1994, p.11). No encontro terapêutico a atenção é voltada ao movimento da energia no corpo, à produção de imagens, e também à escuta da palavra, ao verbo que liga os diferentes níveis, como enunciado por Boyesen, (1996, p. 28): “O verbo é portador de sentido e significação”. O desenho do círculo, amplamente utilizado pela tradição oriental como representação da totalidade, e por C.G. Jung como representação simbólica da psique, mantém, para Paul Boyesen, o princípio da unificação, pois

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propicia a integração da experiência energética do trabalho orgânico - corpo das sensações -, com a linguagem verbal na significação da experiência sensorial conforme expresso por Boadella (1997, p.31): “[...] seu trabalho busca reintegrar a linguagem vegetativa do corpo aos padrões comportamentais da expressão, com a riqueza simbólica da linguagem”. De acordo com Boyesen (2007, p.11): “Os fundamentos do Círculo Psico-Orgânico baseiam-se nos princípios do ”eu existo” rumo ao “nós existimos”, simultaneamente na dimensão intrapsíquica e na interrelacional”. O modelo do Círculo foi então elaborado para representar o homem de uma forma integrada. Fundado na respiração (inspiração/expiração) e baseado na circulação energética, é dinamizado pelo movimento contínuo, em espiral, onde cada ciclo finalizado dá início a um novo movimento num processo evolutivo. Os nove pontos nele inscritos – Necessidade, Acumulação, Identidade, Força, Capacidade, Conceito, Expressão, Sentimento e Orgonomia - são interdependentes e representam estágios de igual importância no processo de desenvolvimento e estruturação psíquica. Do indiferenciado, lugar do eros no ponto 1, ao ponto 6, “a energia se concentra separando-se do objeto de amor; a pessoa constrói sua identidade, apoiada pelo desejo, mas diferenciando-se” Besson e Brault (l994, p. 66). Em seguida o movimento segue em direção ao mundo e ao encontro do novo objeto de amor, e por fim a união com o cosmos.


A leitura diagnóstica através do círculo psico-orgânico

O Círculo Psico-Orgânico pode conter uma única respiração, ou uma vida inteira com suas complexidades – da concepção à morte. A dinâmica de cada ponto possibilita compreender a utilização dessa estrutura na a elaboração de um diagnóstico dinâmico, nas direções do trabalho terapêutico, e na análise da transferência numa relação de posições assimétricas indispensáveis à ação terapêutica.

Ponto 1 – A necessidade Para a entrada na circulação do Círculo Psico-Orgânico há que ter havido um “sim” para aceitação da forma encarnada – sim ao corpo -, e muitas questões já se apresentam nessa passagem, na forma como isso se deu, se foi da ordem do desejo, ou não. A partir do nascimento, a primeira etapa é vivida no registro do indiferenciado, da simbiose, da dependência total, que leva à consciência das necessidades, à aceitação da fragilidade, do vazio, e da falta. É a fase do enraizamento oral onde o bebê entra na experiência da segurança ontológica a partir da nutrição, do acolhimento e do vínculo, onde a comunicação se dá pela linguagem do corpo. As carências muito severas por falta de enraizamento oral dão origem à depressão fundamental. Se nunca houver uma resposta, uma sa5

se experimenta e se reconhece a dependência”. O processo terapêutico é o espaço propício para regressões reparadoras e asseguradoras como possibilidade de restauração dos vínculos através da atitude sensível e da qualidade de presença do psicoterapeuta na transferência positiva.

Ponto 2 – Acumulação Inicia-se o processo de separação e diferenciação, a construção dos limites constitutivos do envelope corporal e psíquico para conter a energia recebida a partir do narcisismo primário. Corresponde à fase anal do controle, das problemáticas do acúmulo em excesso, do apego e da fixação que dificultam a circulação e a troca. O aprisionamento na onipotência perverso-polimorfa, que impede a passagem para a fase genital, dá origem às problemáticas sadomasoquistas de poder e submissão, onde a única forma de existir, com o outro, é ser o mais forte. Nessa fase também se situa a dificuldade de reter, na bulimia, e também na histeria onde prevalece o movimento centrífugo da energia, a dispersão, conforme Reich (1995, p. 199): “[...] o histérico é sobrecarregado com uma tensão sexual não-absorvida. 6

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9 Acumulação

Necessidade tisfação, a demanda também vai deixar de existir dando lugar à apatia. Na Análise Psico-Orgânica, segundo Boyesen (2004, p.312): “o trabalho com a regressão permite reinstalar a ligação consigo mesmo através da ligação com o outro”. Esse reconhecimento também é confirmado por Winnicott (1988, p. 163): “A regressão tem uma qualidade curativa, pois é possível reformular experiências precoces através da regressão, havendo algo de verdadeiramente repousante quando

1 Na passagem entre os pontos 1 e 2 encontram–se as problemáticas relativas à fusão/separação (dificuldade de sair da fusão, invasão da mãe), presença/ausência, satisfação/falta, continente/conteúdo. A partir de um envelope poroso podem se configurar vivências de invasão/evasão (estados limítrofes); e a impossibilidade de separar o dentro e o fora diz respeito às estruturas psicóticas, com mecanismos de foraclusão, ou negação. A anorexia (recusa) traduz uma dificuldade na formação do vínculo. Fundamental nessa fase é a construção do es-

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A leitura diagnóstica através do círculo psico-orgânico

quema corporal, da segurança de ligação, e da aceitação do “não” para encontrar o “sim”. A criança aprende a dizer não quando o adulto é capaz de colocar o não e o sim claramente. Para lidar com tais conteúdos, as qualidades mobilizadas no psicoterapeuta, pela transferência são: a percepção dos próprios limites e a mobilidade interna para conter e abrir espaço; manter a estrutura tornando-se apoio para sustentar a saída da fusão, e também dar continente até que o cliente aprenda a conter sua própria energia, suas emoções e sensações. O cliente é contido pelo setting, pelo horário, pela sistemática, pela frequência, pelo pagamento regular das sessões.

Ponto 3 – Identidade Fase de apropriação da energia acumulada, da emergência do eu, da afirmação através do brincar, do lúdico e do prazer nas descobertas e na exploração do território. É o início da fase genital, da construção narcísica, do reforço do ego e da necessidade de limites claros e firmes, fundamentais ao processo de estruturação. A individualidade e o self dependem de fronteiras e limites aceitos. Tais fronteiras asseguram a fixação de sentimentos para que o ego não seja inundado, submerso, perdido. As fronteiras seguras levam a um senso seguro do self, o qual pode basear sua identidade em sentimentos (LOWEN, 1993, p. 190).

A identidade, quando fixada no self ideal, na imagem do que deveria ser (imagem mental), dá origem aos distúrbios narcisistas caracterizados pela falta de contato com as sensações e os sentimentos do corpo. O fusionamento ao objeto ideal, aos valores da cultura, que maximizam a utilização do corpo como instrumento da mente, que priorizam o poder, o desempenho e a superação da morte, leva à negação do sentimento que contradiga a imagem que se procura mostrar. A manobra típica dos narcisistas é negar seu ser interno em favor de sua aparência, e os distúrbios se manifestam pela carência de autoexpressão (falso self). A fachada de superioridade dos caracteres narcisistas é uma defesa relativamente eficaz contra a depressão e a sensação de vazio das personalidades de fronteira. Como direção terapêutica, diferenciar entre necessidade e desejo; passar do “não” no ponto 2, para o “nome” no ponto 3. Para lidar com a transferência, neste ponto a flexibilidade interna se adapta ao deslocamento da energia que, nesta etapa, se expressa numa atividade criativa ainda sem uma finalidade objetiva.

Ponto 4 – Força A energia apropriada na fase anterior é agora canalizada. É a fase da afirmação pela força direcionada a um objetivo, sendo necessário um limite para, em oposição, poder se diferenciar. Segundo Fraisse (2007, p. 66): “é o valor da força aos nossos próprios olhos e seu reconhecimento no olhar do outro, sobretudo do pai”.

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8 Identidade

Força 1

A identidade é também orgânica; está ligada ao sentimento de continuidade através das diferentes experiências, e ao prazer de existir e de se afirmar diante dos outros. A queima desta etapa dá origem a patologias ligadas aos períodos primários, pré-genitais que afetam e alteram a imagem do corpo. |

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1 A entrada da figura paterna tem como função nomear e transmitir a lei. No conflito edípico - confrontação para pegar o lugar –, esta lei pode ser protetora e portadora de sentido quando o pai ajuda a criança


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a se descolar da mãe ao comunicar orgânica e simbolicamente a sua força, ou pode ser castradora, inibidora da força criativa da criança que busca a afirmação do desejo e do querer. A lei imposta pode levar à resignação e a um contrato de impossibilidade e impotência diante da vida, e a ausência de lei pode levar à transgressão e à violência com consequências de passagens ao ato - ilusão de onipotência. Como direção de trabalho, no ponto 1 é a função materna, segurança de base, e no ponto 4 é a função paterna, presença estruturante, reconhecimento, apoio, sustentação, permissão, busca dos valores e da identidade. Na transferência positiva e/ou negativa, o psicoterapeuta pode encontrar o justo lugar mantendo a presença estruturante numa relação de apoio e sustentação.

e análise em demasia, o que leva à intolerância e acarreta todos os extremismos (mundo dos ideais). A atitude psicoterapêutica se traduz em escuta e acolhimento do mundo simbólico e em respeito à elaboração intrapsíquica. Cabe a vigilância para que a pessoa não fique submersa no inconsciente, ou presa no fascínio das imagens, ou nas ponderações.

Ponto 6 – Conceito Este é o ponto das passagens: da inspiração, fluxo, carga, para a expiração, defluxo, descarga; do mundo subjetivo para o mundo objetivo; do espaço intrapsíquico para o interrelacional; do eu para o mundo; do desejo para a realização. É o lugar obrigatório da escolha consciente e do luto da onipotência.

Ponto 5 – Capacidade

Conceito 6 5

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Fluxo Inspiração

4 Eu

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O mundo

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Capacidade

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Defluxo Expiração

A energia, antes focalizada, entra agora num espaço de liberdade, de criatividade e de independência. Abre-se o acesso ao mundo potencial, ao não realizado, aos sonhos, ao mundo simbólico (corpo da representação). O acesso à fertilidade do mundo simbólico se dá pela abertura do imaginário que mobiliza a energia potencial, não realizada, numa projeção para o futuro.

1 Nesse espaço de possibilidades, no nível consciente se dá a elaboração e a análise, e no nível inconsciente, o diálogo com as imagens e os sonhos. Nesse ponto o imaginário pode ser vivido como fonte, abertura, liberdade criativa, ou como refúgio para a falta e para o vazio. Pode conter a armadilha do excesso de inconsciente que leva à dissolução, ou de palavras

O pensamento, a palavra, o questionamento, a busca do sentido e as decisões conscientes que levam à realização têm lugar nesse ponto. É também o lugar que abriga a confusão e a ambivalência diante das escolhas, pois escolher implica em renúncia e perda. Muitos bloqueios podem impedir a circulação nessa passagem, e diante de uma escolha por demais difícil pode haver o recuo e o refúgio no imaginário, ponto anterior, ou o retorno para o ponto 1, na fusão da dependência. Uma polaridade fundamental à emergência do eu, se estabelece entre o ponto 6, lugar da lei, da estrutura e da palavra que nomeia, e o ponto 1, lugar do indiferenciado, do eros, do silêncio e do inconsciente, na verticalidade. O psicoterapeuta, ancorado em sua

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A leitura diagnóstica através do círculo psico-orgânico

ética, se disponibiliza na escuta, no apoio e no respeito à liberdade e às escolhas do seu cliente.

uma blindagem que impede a ligação e a aceitação da existência do outro, ou uma anestesia que impossibilita a vivência de emoções.

Ponto 7 – Expressão Início do defluxo, do encontro com o mundo, fase da realização do desejo, da escolha, do diálogo com a matéria para dar-lhe forma, colocar em ação, na vida, o projeto concebido e amadurecido. É a experiência do fazer, do como fazer, como realizar no aqui e agora, na comunicação com o outro, na aceitação das diferenças e da interdependência. 5

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Sentimento

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9 1

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Expressão

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O trabalho então, quando concretiza uma escolha ligada ao desejo e à necessidade pode representar realização, autonomia, liberdade, criação. Entretanto, contratos inconscientes de menos-valia, de não-merecimento, de medo do julgamento e outros, podem boicotar o prazer do sucesso e reduzir a experiência em obrigação ou até mesmo em punição. Aceitar o luto da perfeição é também se libertar do medo da crítica e do insucesso que impedem a ação criativa, a autonomia e a coexistência. É poder aliar o sentimento (necessidades profundas), à expressão (conexão orgânica) e à situação (sentido). A atitude terapêutica se traduz no posicionamento enquanto testemunha da ação.

Ponto 8 – Sentimento O movimento de defluxo, de descarga representa abertura, dilatação. É a abertura do coração, a apreciação da obra, o sentimento ligado à qualidade do realizado, o sentimento de adequação de uma pessoa, com sua ação. Na relação, o eu dá lugar ao nós, uma aceitação da perda da identidade na fusão, o que supõe a capacidade de se abandonar e também de se sustentar, voltar a ser eu. O grande tema nesta etapa são as estratégias de proteção contra o sentir. A perda do contato com os sentimentos pode se tornar |

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Tanto o fechamento do coração quanto a vulnerabilidade excessiva, estão, em geral, associados à experiências primárias ligadas à dificuldade de afirmação da identidade, da diferenciação, e ao medo de fundir-se, perder-se no outro. Na polaridade entre o ponto 3 – identidade, e ponto 8 – sentimento, situam-se os jogos de poder e submissão que alimentam muitas dinâmicas. Na relação terapêutica emergem as questões sobre distância e proximidade, dependência e independência, capacidade de entrega e manutenção da identidade. O psicoterapeuta se apoia em seus próprios sentimentos para acolher e discernir os matizes da transferência.

Ponto 9 – Orgonomia Este ponto representa o final de um ciclo que iniciou no ponto 1. O movimento ascendente que se deslocou pelas costas até o alto da cabeça, no ponto 6, descende pela frente do corpo, pelo rosto, abrindo-se no peito e irradiando-se finalmente no plexo solar, no ponto 9. Nessa etapa final do círculo a atitude é de receptividade, diferente da passividade. É o momento da obtenção, o tempo do repouso necessário para poder se apropriar, usufruir, saborear o sucesso conquistado. No entanto, uma problemática desse ponto é a dificuldade em obter. A pessoa pode se precipitar numa nova ação nem sempre baseada numa necessidade profunda. Esse ponto pode também se tornar um refúgio, onde a pessoa vive cada vez menos por falta de demanda. Nesse ponto já não existe transferência; segundo


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Fraisse (2007, p.134) “(...) a relação fica abolida – não há mais relação, apenas estado, comunhão com o cosmo, participação do universo”. 6 5 7

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A seguir, o funcionamento de base na formação das diversas caractereologias.

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obtenho, partindo da pulsão primária da necessidade, até a obtenção de uma satisfação. Para Boyesen (2004, p. 302) “a originalidade da caractereologia psico-orgânica é de integrar a seus critérios psicológicos e relacionais, os critérios fisiológicos das manifestações orgânicas da linguagem do corpo, expressões das relações arcaicas inconscientes”.

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Orgonomia 1

A experiência desse estado orgonômico não necessariamente sinaliza o final de um processo psicoterapêutico. Marca o final de um ciclo antes do recomeço de um novo círculo fundado em uma nova necessidade (ponto 1), sempre mais urgente e imperativa pelo fato de a vida nos obrigar a queimar etapas e abortar a avaliação de nossa vivência através do sentir (ponto 8), e do contentamento pela finalização (ponto 9). O Círculo revela a riqueza e a complexidade de suas conexões e ligações evidenciando que, para traçar o diagnóstico dinâmico é essencial observar como a pessoa circula por todos os pontos. Como vive cada etapa, como se dá o fluxo e o defluxo, se há impedimentos, fixações, precipitações, pontos de refúgio onde o movimento reflui, ou se estagna em pontos específicos desequilibrando o movimento global. Focar apenas um ponto não tem nenhum sentido e pode resultar em equívocos. Por exemplo, uma pessoa de grande capacidade imaginária no ponto 5, há que relacionar seu funcionamento com o ponto 6, das decisões, das escolhas e da ambivalência. Uma pessoa estruturada numa falsa identidade (ponto 3) terá pouco contato com suas sensações e sentimentos e tenderá a se fusionar com o outro no ponto 8, do sentimento, numa posição de submissão e dependência. Na Análise Psico-Orgânica as estruturas de caráter são analisadas, no Círculo, pela caractereologia analítica e dinâmica desenvolvida por Paul Boyesen. Ele define quatro momentos da dinâmica relacional no modelo circular: eu preciso - eu quero - eu faço - eu

Eu quero

Eu faço 8

3

Circulação fluída no círculo: eu obtenho

Eu tenho necessidade

Eu obtenho 1 6 Eu faço

Eu quero Circulação bloqueada no círculo: eu não obtenho

3

Eu tenho necessidade

8

Refluxo

1

// Obstáculo

Eu não obtenho ------ Refluxo

A título de ilustração descrevemos algumas dinâmicas. Na estrutura rígida, por exemplo, o trânsito fica entre os pontos 2 e 7 do Círculo. Tem investimento na acumulação, no desenvolvimento da força e da capacidade, muita realização, mas não cabe tempo para sentir (ponto 8), nem para usufruir (ponto 9). Há uma precipitação em nova ação sem contato com as necessidades profundas (ponto 1). Então, o rígido é potente, faz muito, mas sente pouco; e o depressivo, ao contrário, sente em demasia e fica na fusão crônica da dependência, na necessidade (ponto 1). Assim como o rígido, a histérica também evita ter consciência de suas necessidades profundas (ponto 1), tem dificuldade em conter sua energia, tem pouco contato com o que sente (ponto 8), e se esquiva da orgonomia (ponto 9). Evita obter, pois sua estratégia inconsciente é ficar com o desejo insatisfeito. O depressivo pode ter um pouco de identidade (ponto 3), mas tem muitas dificuldades no ponto 4 não se apropria de sua força para prosseguir e fazer suas escolhas. Sua energia então entra no refluxo e ele retorna para a necessidade (ponto 1), ou acaba

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por se perder no outro ao se fusionar, por exemplo, na relação amorosa (eixo 3 e 8). Ao atribuir força e potência ao outro, o depressivo se destitui e se vive como menos. Para Boyesen (2004, p. 324) “a falta pode se tornar a estruturação da pessoa numa caractereologia, mesmo até o ponto onde a falta se torna o objeto (o objetivo)”. No círculo da depressão, tudo o que a pessoa tem é que ela não obtém, e perde paulatinamente seu desejo e sua ação mantendo-se refém de uma circulação de refluxo contínuo. O que é fundamental considerar nas diferentes problemáticas, é que tudo começa no ponto 1, na necessidade. Para Brault (1994, p. 111): “[...] aceitar sentir sua energia primária não é sem risco, porque é ao mesmo tempo reencontrar a experiência da falta”, sobretudo, na concepção de Boyesen (2004), da falta de segurança existencial, onde as experiências da pessoa são invadidas pela angústia, e da falta de segurança de ligação, tão crucial nas estruturas limítrofes cuja estruturação se baseia sobre as rupturas, clivagens e isolamentos. Na estrutura do Círculo, a interdependência entre os pontos é fator relevante na avaliação diagnóstica, e as polaridades em geral evidenciam problemáticas de excesso ou de falta. A vivência do ponto 6, lugar da lei e da estrutura, em oposição à dos pontos 9/1, lugar da fusão e do indiferenciado, marca o grande eixo vertical que contém as passagens fundamentais e decisivas, e também a falha. Existe sempre uma fascinação no indiferenciado, entre o final de uma expiração e início de nova inspiração. É também um desafio a decisão de aceitar a forma, a encarnação, a experiência humana, na primeira passagem (entre pontos 9 e 1), e a saída da simbiose para a diferenciação na segunda passagem (ponto 6), das escolhas conscientes. Na representação do Círculo a falha contém sempre o risco do desconhecido, e na passagem para o ponto 1 encontramos a fertilidade desse espaço, o potencial para atravessá-la e entrar na circulação, e também as problemáticas mais extremas, como as psicoses quando a falha se torna patológica.

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A falha do silêncio, do vazio que permite a emergência da consciência

A falha e a circulação que permite a comunicação entre o “Eu” e o “Mundo” entre e eu e o outro

A falha sem possibilidade de circulação – cisão que provoca somatização patologias como a psicose

Ref.: Anne Fraisse: Manual de Ensino da EFAPO

Para a Análise Psico-Orgânica este ponto é também o da falta, e contatar este lugar essencial é se apropriar das necessidades fundamentais e restaurar a experiência básica de simplesmente existir, e de construir vínculos afetivos que possam assegurar o reconhecimento indispensável à segurança de identidade. Para Boyesen (2004, p. 323): “A falta é estruturante no sentido que ela deixa um espaço... à preencher”. Preencher de nós mesmos, pois é a falta que acorda o desejo. Em relação à questão transferencial, temos como referência quatro direções no Círculo, descritas por P. Boyesen. O lugar central é dado ao cliente, habitando ou não o seu círculo, enquanto o terapeuta, em contato com o seu próprio círculo, se mantém disponível e à escuta. 6

Objeto de amor / O outro

Função paterna

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3 Cliente Self

Função materna

1 No quadrante sentimento, orgonomia e necessidade temos o defluxo. É, sobretudo, uma função fundamental da mãe (função materna), que também pode ser desempenhada parcialmente pelo terapeuta homem. A função paterna é o fluxo, a carga, a


A leitura diagnóstica através do círculo psico-orgânico

afirmação, a direção, a força, a capacidade, o conceito – é a estruturação. O cliente pode buscar o terapeuta como uma boa mãe, ou recriar a mãe má. Sua busca pode também estar na direção do bom pai, ou do pai ameaçador, ou ainda criar um pai rival, para competir. Em relação ao objeto de amor encontramos a segurança ontológica que é dada pelo primeiro objeto de amor – a mãe, mas no processo terapêutico o cliente está a procura de si mesmo, de retomar as partes de seu self recalcado por baixo da estrutura neurótica, para então, em contato com seus próprios desejos, ir ao encontro de seu objeto de amor, no mundo. Pelo exposto neste artigo, e seguindo a coerência do corpo teórico da Análise Psico-Orgânica, podemos perceber que o Círculo abre inúmeras possibilidades de leitura. Sempre em ligação com a profundidade, segue de perto a respiração e o movimento cíclico dos diferentes pontos que interagem e incidem uns sobre os outros favorecendo a vivência de diferentes etapas em níveis sobrepostos. Com isso os sentimentos antigos e profundos ocultos na espiral podem emergir e se atualizar. O Círculo também nos oferece a possibilidade importante de resgatar o movimento que por inúmeras razões ficou bloqueado, retido, encapsulando também a energia primária, a espontaneidade, o gesto criativo, o élan inconsciente ligado ao princípio do prazer e da vida. Concluímos ser o Círculo Psico-Orgânico uma estrutura adequada para a formulação do diagnóstico e análise do processo porque, desde o primeiro contato até o final de um percurso, o psicoterapeuta, já tendo passado pela prova de si mesmo, coloca seu Círculo em diálogo com o do paciente para, através de sua profundidade encontrar no espaço simbólico da relação, a atitude justa para acompanhar seu paciente no processo de individuação.

Bibliografia BESSON, J.; BRAULT, Y. O Círculo Psico-Orgânico. In BESSON, J. (Org). Manuel d’Ensignement de l’École Française d’Analyse Psycho-Organique, Tome 1, 2ª ed. Gargas: EFAPO, 1994, p. 3591 BOADELLA, D. Psicoterapia Somática: suas raízes e tradições: Uma perspectiva pessoal. In KIGNEL, R. (Org). Energia e Caráter. São Paulo: Summus Editorial, 1997, p. 13-39. BOYESEN, J. Regressão e Simbolização. In BESSON, J. (Org). Manuel d’Ensignement de l’École Française d’Analyse Psycho-Organique, Tome 7. Gargas: EFAPO, 2004, p. 293-315 BOYESEN, P. Os fundamentos do Círculo Psico-Orgânico. In BESSON, J. (Org). Manuel d’Ensignement de l’École Française d’Analyse Psycho-Organique, Tome 5. Gargas: EFAPO, 1999, p. 13-39. ___________O Inconsciente é Situacional. In BESSON, J. (Org). Manuel d’Ensignement de l’École Française d’Analyse PsychoOrganique, Tome 2. 2ª ed. Gargas: EFAPO, 1996, p. 12-35 ___________ O espaço intrapsíquico do Ser e o Mundo entre Nós. In BESSON, J. (Org). Manuel d’Ensignement de l’École Française d’Analyse Psycho-Organique, Tome 7. Gargas: EFAPO, 1996, p.319-330 BRAULT, Y. Conceitos do P.I.T. Elementar: Impulso Primário – Reação Secundária – Compromisso. In BESSON, J. (Org). Manuel d’Ensignement de l’École Française d’Analyse Psycho-Organique, Tome 1, 2ª ed. Gargas: EFAPO, 1994, p. 110-114 FRAISSE, A. Manual de Ensino da Escola Francesa de Análise Psico-Orgânica. O Círculo Psico-Orgânico. Rio de Janeiro: CEBRAFAPO, 2007 LOWEN, A. Narcisismo: Negação do Verdadeiro Self. São Paulo: Cultrix, 1993 REICH, W. Análise do Caráter. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995 WINNICOTT, D. W. Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1988

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Contribuições da análise psico-orgânica para a leitura do espaço gráfico em arteterapia Ana Luisa Baptista Resumo: Sendo um instrumento de avaliação diagnóstica ou de acompanhamento da evolução do cliente durante o processo arteterapêutico, a leitura espacial é há muito estudada por diferentes autores nas áreas de Saúde e Educação. Este artigo focaliza a primeira colagem como instrumento de avaliação diagnóstica e seus desdobramentos no decorrer do processo psicoterápico. Para tanto, sintetiza diferentes leituras espaciais em uma única, vinculando o referencial teórico da Análise Psico-Orgânica de Paul Boyesen à Psicologia Analítica de Jung, ampliando o olhar do arteterapeuta, de forma a facilitar a compreensão da dinâmica de caso. Palavras-chave: Arteterapia; Análise Psico-Orgânica; Jung; Espaço Gráfico; Energia Psíquica. Resumen: Como instrumento de evaluación diagnóstica o de acompañamiento de la evolución del paciente durante el proceso arte terapéutico, la lectura espacial hace mucho es estudiada por diferentes autores en la Salud y la Educación. Este texto plantea el tema del primer colage del paciente como instrumento de evaluación diagnostica e sus desdoblamientos durante el proceso psicoterapéutico. Para eso, sintetiza varias lecturas espaciales en una única, enlazando el referencial teórico del Análisis PsicoOrgánico de Paul Boyesen con la Psicología Analítica de Jung, ampliando la percepción del arte terapeuta, de forma a facilitar la comprensión de la dinámica del caso. Palabras clave: Arte Terapia; Análisis Psico-Orgánico; Jung; Espacio Gráfico; Energía Psíquica Abstract: Interpretation of graphic features, either as a diagnostic evaluation tool or a method for monitoring the patient's evolution along the art therapy process, has long been studied by several authors in both health and educational fields. This essay aims at reviewing the patient's first collage as a diagnostic evaluation tool, as well as its developments during the psychotherapy process. Different methods of interpreting graphic features are here combined into one, linking the theoretical framework of Paul Boyesen's Psycho-Organic Analysis to Jungian Analytical Psychology, so as to amplify the art therapist's perception and help him or her better understand the case dynamics. Key words: Art Therapy; Psycho-Organic Analysis; Jung; Graphic Features; Psychic Energy.

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Dados sobre a autora: Psicóloga (CRP 05/23146); Arteterapeuta - AARJ: reg. 022; Especialista em Psicologia Junguiana pelo Instituto Brasileiro de Medicina e Reabilitação – IBMR. Psicoterapeuta Corporal e Formadora em Análise Psico-Orgânica e Psicologia Biodinâmica pela EFAPO (École Française D' Analyse Psyco-Organyque) e pelo CEBRAFAPO (Centro Brasileiro de Formação em Análise Psico-Orgânica). Especialista em Psicoterapia de Casais e em Análise Psico-Orgânica pela EFAPO. Fundadora do Incorporar-te: Espaço Terapêutico Corpo Artes; Sócia da SBPO – Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia. Membro Titular e Diretora Cultural e de Eventos da ABRAPO – Associação Brasileira de Análise Psico-Orgânica (1ª e 2ª gestões). Coordenadora do curso Formação de Terapeutas em Arteterapia com abordagem Junguiana e Psico-Corporal em Análise PsicoOrgânica desde 1996, com turmas no Rio de Janeiro, Curitiba e Florianópolis. Coordenadora do Programa Arteterapêutico de Humanização Hospitalar e Contação de Histórias do Hospital Federal dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro – HFSE/RJ. Autora do livro infanto-juvenil Segredos do Coração, ilustrado por Márcia Széliga, publicado pela Espheris Edições, em 2010.


Contribuições da análise psico-orgânica para a leitura do espaço gráfico em arteterapia

No início do processo arteterapêutico busca-se conhecer o cliente não só através das palavras, mas também por meio de técnicas que facilitem a expressão não-verbal. Considera-se que cada pessoa como um universo em expressão. A Arteterapia busca então acolher o que esta trás neste primeiro momento das mais variadas formas, sendo reveladora do inconsciente e, também, precursora de acontecimentos. Trata-se de um canal direto de informações do sistema límbico tanto de memórias pré-verbais, como de imagens simbólicas. Já nas entrevistas iniciais algumas técnicas expressivas são introduzidas, tendo como objetivo trazer mais dados sobre a personalidade da pessoa e sua história. Geralmente, num primeiro tempo, proponho uma colagem livre, onde se possa escolher figuras que falem de si: sua forma de ser, pensar e agir; seus valores, estilo de vida, coisas que gosta e não gosta etc. Tal escolha é realizada da forma mais livre possível, estando à disposição do paciente um cesto com imagens de revistas recortadas, abordando os mais diversos temas. As imagens que compõem o cesto são escolhidas de forma aleatória. Posteriormente, é solicitado ao paciente que faça uma composição com essas figuras ou partes das mesmas. A colagem de figuras é uma atividade menos ameaçadora, uma vez que não se pede nada além da escolha de algumas entre as figuras já recortadas e de uma composição simples, realizada de acordo com o desejo do paciente. Neste processo, a atenção do terapeuta está não só nas escolhas, como também nas rejeições. A forma como a pessoa cola e recorta também é um dado importante. Colar é ligar uma coisa à outra: estabelece um vínculo. Recortar delimita um foco dentro da figura maior, eliminando partes. Embora muitas vezes só seja possível compreender uma figura colada ou rejeitada neste primeiro momento meses ou até anos depois - como será mostrado na descrição do caso clínico exposto posteriormente – as imagens coladas trazem temáticas específicas, apontando para conteúdos complexados. A disposição das figuras sobre a superfície aponta o caminho que a energia psíquica percorre, mostrando como tais temáticas são percebidas e se atualizam no momento presente. Apontam também para

desdobramentos inconscientes que falam para onde que a pessoa se encaminha, mesmo sem que ela tenha a consciência disso. Algumas vezes encontramos áreas sem figura coladas, ou seja, espaços em branco. Simbolicamente podem estar ligados a duas questões distintas:  a primeira e mais comum, ao que não pode ser dito, reconhecido ou elaborado. Em geral neste caso, há sobras de imagens que não são coladas e referem-se a temáticas que não foram colocadas na composição;  a segunda, ao espaço aberto para o novo, para o que estar por vir, mas que a Consciência ainda não tem conhecimento. Num primeiro tempo, o terapeuta fica com essas duas hipóteses que vão sendo confirmadas ou descartadas ao longo do processo que se inicia.

Guias de interpretação do espaço O ato de desenhar, pintar ou preencher uma superfície com figuras congregam o presente com um passado e um futuro. As imagens surgem da observação e vivência sensorial, da memória, da imaginação. Pode-se relacionar a observação e a vivência com o presente, a memória com o passado e a imaginação com o futuro. Na imagem gráfica, pictórica ou na colagem de imagens, estes elementos aparecem sintetizados como uma única coisa. Com o objetivo de análise, o espaço onde um objeto pode ser colocado pode ser dividido por linhas transversais imaginárias, em uma parte superior e outra inferior; por linhas verticais, dividindo um lado esquerdo e outro direito. E ainda por outras diagonais, traçadas de ponta a ponta da superfície. Vários são os estudos realizados sobre a representação simbólica do espaço. O olhar destas interpretações parte da posição do sujeito frente à superfície. Seguem algumas gráfico que são guias de interpretação espacial mais utilizados ultimamente.

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Contribuições da análise psico-orgânica para a leitura do espaço gráfico em arteterapia

FOGO

AR Ação

Fuga da Realidade

Atividade Futuro

Agressão Espectador

Impulsividade

Futuro Pai

Mãe Introversão

Fragmentação

Extroversão

Regressão Autodestruição ÁGUA

Matéria Inconsciente/Indivíduo Domínio da Natureza e do Demoníaco Gráfico 1 – Modelo adaptado da Filosofia Rosa Cruz (BELLO, 1996, p.220). Futuro Zona Passivo-Receptiva

Zona de Controle Ativo

Tudo o que pertence ao Mundo Feminino

Tudo o que pertence ao Mundo Masculino

Princípio Materno

Princípio Paterno Passado

Gráfico 2 – Modelo Karen Bolander (aup BELLO, 1996, p.221).

O outro mundo O aqui agora Morte/o sol Se põe no oeste Significado Central Escuridão Desconhecido

Futuro potencial no limiar da consciência/ Passado Imediato

Gráfico 3 – Modelo Susan Bach (aup BELLO, 1996, p.221).

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TERRA


Contribuições da análise psico-orgânica para a leitura do espaço gráfico em arteterapia

Direita

Esquerda

Consciência Coletiva Relação com o Pai Pessoal, escola, profissão

Mundo Interno Espiritual Vida Espiritual Religiosidade em cima

em cima: céu distante ar, espírito

Eu Centro da Personalidade

em baixo

Instintos Natureza Criativa, o mar do Inconsciente de onde sempre vêm novos impulsos, podendo também submergir

Relação com a Terra, mais consciente, relação a Mãe Pessoal, relação primordial, corporeidade.

em baixo: terra mais próxima, matéria, corpo

Lado esquerdo: lado inconsciente, mundo interno, proximidade intimidade, lado contemplativo “observador”, lugar da regressão.

Lado direito: lado mais consciente, mundo externo, realidade, distância, abertura, lado ativo, atuante, direção da progressão.

Lado Esquerdo do Corpo: Ligado ao hemisfério cerebral direito, funciona de modo não-verbal, integral, concreto, irracional, intuitivo, emocional, por meio das imagens.

Lado Direito do Corpo: Ligado ao hemisfério cerebral esquerdo, funciona de modo verbal, analítico, abstrato, temporal, racional, lógica linear.

Gráfico 4 – Esquema interpretativo do simbolismo espacial (AMMANN, 2002, p.87).

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IV

I

II

VI

VII

III

V Realização do Eu EIXO DO TEMPO Imaginação, Arquétipo do Pai, Pai Impessoal, Luz, Vazio, Ar, Saudade; II. Realidade Interior, Passado, Introversão, Feminino, Emoção, Eu; III. Inconsciente, Origem, Arquétipo da Mãe, Conflitos, Regressão, o Criativo; IV. Mundo do Espírito, Intelecto, Razão, Desenvolvimento Espiritual, Fogo, Pai, Céu; V. Mundo Corporal, das Sensações, Matéria, Mãe, Terra, Natureza, Instinto; VI. Consciência, Fogo, Claridade, o Final Configurado, Morte, Objetivo, Projeções; VII. Realidade Exterior, Futuro, Extroversão, Pai, Masculino, Ação, Exterior, Tu; VIII. Vida Instintiva, Mãe Pessoal, Terra, Decadência, Demônios. I.

Gráfico 5 – Esquema interpretativo do simbolismo espacial Grümwald (Zimmermman, 1992, p.95).

As diferentes leituras se complementam, ampliando o campo de visão. Integrando-as, percebe-se que estas apontam para um foco central, como o lugar da representação do Eu – centro da personalidade, o foco da Consciência, o momento presente. Há um consenso geral em afirmar que o lado direito da folha se liga ao racional e ao princípio masculino, yang, ao passo que o lado esquerdo, vincula-se ao emocional e ao princípio feminino, yin. À esquerda está a área do Passado, da introversão. À direita, tem-se o espaço do Futuro, da extroversão. A parte de cima da folha está mais vinculada ao espírito, ao futuro; a parte de baixo, à matéria, ao passado, ao concreto. 46

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VIII

Quanto aos quadrantes:  No lado esquerdo superior está o elemento Ar, o espiritual;  No lado esquerdo inferior, está a Água, os instintos, a natureza. É a área da Regressão;  No lado direito superior, o Fogo, a ação, a impulsividade, a atividade, o futuro. É a área do Prognóstico, que aponta para onde a energia iria se fluísse livremente;  No lado direito inferior, está a Terra, a corporalidade, o passado imediato. Para o lado direito e para cima, a energia ascende, progride, vai na direção da Consciência, do externo, da realidade. Para o lado esquerdo e para baixo, a energia regride para o mundo interior, para o Inconsciente.

A Energia Psíquica e suas Manifestações A Energia Psíquica pulsa em expansão e contração, estando sempre circulando na busca do equilíbrio e da expressão. Jung a compreende como Eros - princípio cosmogômico (JUNG, 1995), sendo esta criadora, formadora e geradora, além de ter a capacidade de pressentir. “... Concebe o psiquismo (Consciência e Inconsciente) como um sistema energético relativamente fechado, possuidor de um potencial que permanece o mesmo em quantidade através de suas múltiplas manifestações, durante toda a vida de cada indivíduo” (SILVEIRA, 1975, p.43). Para Jung (1995), a Energia Psíquica faz o trânsito entre a Consciência e o Inconsciente; entre o mundo externo e interno. Ele vê a psique em incessante dinamismo, onde correntes de energia cruzam-se continuadamente, criando tensões diferentes, polos opostos, correntes em Progressão e em Regressão que entretêm movimentos constantes. O Self é o centro motor e emanador da Energia Psíquica. Esta muda suas formas de manifestação e aparece sempre no processo vital, sendo, portanto, uma força vital, que só pode ser definida subjetivamente, visto que não podemos ver, tocá-la ou prová-la. Ela explica a relação entre os objetos e como estes se afetam no mundo psíquico.


Contribuições da análise psico-orgânica para a leitura do espaço gráfico em arteterapia

A Energia Psíquica assume a forma de energia física e de energia espiritual, uma vez que emana da área psicóide – camada mais profunda do Inconsciente Coletivo – “... um nível de realidade no qual o psicológico e o fisiológico, e até mesmo o inorgânico, são aspectos alternativos um do outro” (SAMUELS, 1992, p.65). Refere-se a um nível onde o Inconsciente “(...) é neutro em caráter, não sendo nem totalmente psicológico nem totalmente fisiológico” (SAMUELS, 1992, p.60). Neste espaço, anterior a qualquer forma perceptível ou manifestada, instinto e Arquétipo encontramse fundidos e nunca em uma forma pura. Tanto a Consciência como o Inconsciente têm a capacidade de direcionar a Energia: o primeiro a partir de necessidades trazidas do exterior (adaptação social, interesses diversos etc.); o segundo por necessidades internas (fome, sede, desejos etc). Seu direcionamento constitui-se num processo rumo à autorealização. Por estar sempre na busca do equilíbrio, o Self direciona o movimento energético procurando compensar as condutas unilaterais do sujeito, indo no sentido oposto a estas e com a mesma magnitude energética. Assim, a Energia é transferida de um espaço para o outro, deslocando-se na direção do equilíbrio. É, portanto, finalista, ou seja, movimenta-se para um determinado fim. Apesar de reconhecer a natureza qualitativa da Energia Psíquica, Jung (1995) enfatizou mais sua natureza quantitativa, indicadora da carga energética investida1. Refere-se à energia psíquica como sendo “... a intensidade do processo psíquico, seu valor psicológico” (SILVEIRA, 1975, p.43). Todos os fenômenos psíquicos são de natureza energética. “Os Arquétipos são núcleos de energia em estado virtual e, os símbolos, transformadores de energia. Já os Complexos são nós de energia” (SILVEIRA, 1975, p.43). E “... é a energia psíquica, a força que anima as estruturas e lhes dá vida” (STEIN, 1992, p. 60). O Inconsciente tem qualidades retrospectivas – armazena fatos comuns a toda espécie humana e outros ocorridos desde a concepção do ser – e prospectiva – ou seja, antecipa acontecimentos futuros para a consciência, sendo estes apontados de acordo com a direção que a Energia Psíquica toma a partir da forma como cada ser se conduz no mundo.

Sua comunicação se dá através de imagens simbólicas que se traduzem em palavras, gestos, textos, músicas, imagens figurativas e abstratas. O Símbolo2 é fruto da transformação do instinto em imagem, do material inconsciente em consciente. Este atrai para si uma grande quantidade de Energia e dá formas aos processos pelos quais a Energia é canalizada e consumida. Se o conteúdo simbólico revivificado é traduzido numa linguagem comunicável, pode ser integrado pela Psique. Tal integração só é possível através do reconhecimento dos materiais projetados. Na Análise Psico-Orgânica a Energia Psíquica é também definida como Bioenergia, estando presente “... em todos os organismos vivos. Essa energia vital não dá apenas a vida e a vitalidade aos indivíduos e a todas as criaturas da Terra, mas provê também, o prazer e o bem estar geral de viver” (Southwell apud SCHLESINGER et al., 1983, p. 48). “Trata-se de uma força que nos move, presente em tudo o que se passa psicológico, mental e emocionalmente” (Vandaine apud BOYESEN, 1996, p. 186) Em sua essência não tem nenhuma forma específica. É “Eros”, ou seja, “o caos indomável e sem forma” (Vocabulário de Base – Conceitos do P.I.T. Elementar trabalho sobre o Impulso Primário). A Energia é psíquica e orgânica simultaneamente, podendo ser observada sob as formas: 1. Emocional – manifestação emocional; 2. Físico-Química – metabólica; 3. Vegetativa – referente; 4. Expansão Energética – referente a uma sensação que parece se localizar para além da pele. A Análise Psico-Orgânica parte do princípio que “... um mesmo movimento energético pode ser visto sob o ângulo psicológico ou orgânico” (BESSON & BRAULT, 1996, p.1) simultaneamente buscando “... as ligações entre a linguagem verbal (significar a vivência emocional), a produção de imagens (acessar o universo simbólico) e a experiência energética sensorial (...) Estabelecendo inter-relações entre a linguagem somática, emocional e mental” (SACHARNY, 2005, p. 25). A Energia que move uma pessoa no mundo se organiza dentro de sua melhor forma de atuação. Busca o caminho que seja o mais simples, fácil, conhecido e familiar, no intuito de minimizar possibilidades de fracassos e frustrações. Na medida em que a vida flui e

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funciona de forma satisfatória, não parece haver necessidade de mudar. O problema surge quando a forma de ser não funciona mais, não conseguindo o sujeito responder às questões emergentes. Quando o fluxo da Energia fica prejudicado, o processo da vida acaba por paralisar. Cria-se, então, um resíduo que se faz presente não apenas no nível psicológico, como também no nível corporal, traduzindo-se física e psiquicamente. Este resíduo forma a Energia Residual que se refere ao que não pôde ser expresso, ao que ficou A Energia Residual está presente na Reação Secundária3. Ela fica retida no corpo, deixando uma marca. Quando liberada ganha um novo potencial. No decorrer do desenvolvimento, inúmeras vezes o sujeito cria determinados movimentos e projetos que não chegam a se concretizar. Trata-se de uma concepção que “(...) possui um potencial de movimento, possui também um campo energético” (BOYESEN, 1998, p.14) que se encontra disponível no espaço simbólico, mas não no real, sendo referente a algo que o sujeito escolheu não viver. A este potencial, Paul Boyesen, denomina Energia Consequencial. A Energia Consequencial é originária de uma carga energética proveniente de uma ação não realizada ou incompleta que se mantém no inconsciente, visto que não pôde ganhar uma forma num determinado momento da vida devido à escolha do sujeito. Ela permanece em estado latente no organismo, mas sempre presente a nível inconsciente, podendo ser encarnada a qualquer momento. A Energia pode apresentar qualidades diferentes. Ela circula no organismo ora em movimentos ascendentes ora descendentes, ou fica aprisionada, mas não desaparece, pois ... tem uma história em um não-tempo estando pronta a se manifestar em qualquer momento como uma verdade não reconhecida vinda do passado. Podemos não nos lembrar, mas ela lembra-se de nós como se a história não pertencesse apenas ao passado, mas torna-se um elemento constante da interação de concepções em evolução de novos momentos a chegar. Nossa história pessoal é um elemento da concepção de novas histórias que vivemos. Isso não pode ser

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consciente, pois nossa percepção do impacto da realidade imediata seria alterada. Isso fica então em nosso inconsciente como um mundo rico de manifestações múltiplas de verdades pouco conhecidas vindas do passado (BOYESEN, 1999, p. 61).

Quando o sujeito conecta-se com o que gostaria de ter recebido ou vivenciado, mas não foi possível em uma situação passada, tanto a Energia Residual quanto do Potencial emergem, mas com uma nova qualidade energética. Passam a ter um poder transformador no momento presente, tornando-se, então, Energia Transformacional, trazendo a possibilidade de resgate e de mudança. Integrando à leitura da Psicologia Analítica de Jung e a Análise Psico-Orgânica de Paul Boyesen, pode-se dizer que a Energia Residual é parte do Inconsciente Pessoal, estando presente nos conteúdos complexados, uma vez que já foram conscientes em algum momento da história do sujeito e posteriormente esquecidas. Já a Energia Consequencial habita também o universo arquetípico, trazendo o que está latente, em potencial. Quando a Energia Psíquica contida num Complexo é liberada, a Energia Consequencial emerge, uma vez que no núcleo de todo Complexo, reside o Arquétipo. Esta amplia nossas sensações e percepções, possibilitando fenômenos sincrônicos, de forma que “... entramos cada vez mais em contato com uma espécie de sabedoria universal e com o “inconsciente coletivo profundo”, substrato comum a todos os homens. Estes passam a ser nossos guias através da vida ... cresce nossa compreensão do universo, de nós mesmos, da humanidade e do decorrer da vida e da morte” (BOYESEN apud SCHLESINGER et al., 1983, p.11). A Energia Consequencial adquire, então, uma qualidade Transformacional e a Energia Residual, complexada, pode ser, então, integrada, ampliando o campo da Consciência.


Contribuições da análise psico-orgânica para a leitura do espaço gráfico em arteterapia

A Leitura Arteterapêutica do Espaço Gráfico Numa Abordagem Psico-Orgânica Na leitura do espaço gráfico, como já citado anteriormente, observamos os pontos onde a Energia Psíquica está retesada ou estagnada (Energia Residual) e para onde ela tende a se encaminhar no decorrer do processo psicoterápico, dissolvendo os núcleos complexados, e fluindo novamente (Energia Transformacional). Através das figuras e disposição de objetos sobre uma superfície, pode-se perceber onde a energia fica bloqueada e para onde ela poderia fluir naturalmente caso esses bloqueios não se fizessem presentes. Fazendo a leitura de colagens nos grupos de Formação em Arteterapia, percebi que o lugar onde eu apontava bloqueios energéticos, colocados como sendo referentes à Energia Residual e os que traziam como possibilidades de encaminhamento energético rumo a mudanças de antigos padrões (Energia Transformacional) eram sempre os mesmos. Estes formavam duas linhas diagonais que se cruzavam. Busquei então materiais de pacientes antigos, que não estavam mais em processo terapêutico comigo e de outros que se mantinham há alguns anos em terapia, bem como de grupos de adolescentes e adultos acompanhados por outros arteterapeutas por um período mínimo de dois anos, e fui comparando a leitura da primeira colagem com o desenrolar percurso terapêutico. Solicitei, então, a vários alunos com mais de 18 meses de Formação e a alguns ex-alunos que participavam dos Grupos de Atualização que trouxessem suas colagens, realizadas no início da Formação, e relatassem o desenvolvimento de seu processo psicoterápico. De fato, entre nove crianças com idades de 8 anos ou mais, 17 adolescentes e 52 adultos, em todas as colagens iniciais, observei a existência dos dois eixos descritos e a forma como o processo se desdobrou vinculavam-se a estes. Todos os relatos traziam a ponte entre a imagem central onde as retas se cruzavam e os dois Eixos, diretamente relacionados ao percurso percorrido no processo psicoterápico. Observei que o primeiro Eixo aponta para a direção do futuro, do prognóstico. Já o segundo para o passado. Na interseção entre as setas a figura central,

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2 focaliza onde a energia está mais concentrada ou bloqueada no Presente. Chamei essa primeira seta (1) de “Eixo Transformacional”, pois ela indica para onde a energia tende a progredir. E a segunda (2), de “Eixo Residual”, uma vez que mostra onde a energia está retesada. O Eixo Residual vai dos conteúdos simbolicamente presentes no imaginário atual para o Passado. O Eixo Transformacional caminha da área onde a Energia está mais regredida no Passado para a área do “Futuro Potencial”. Aprofundando um pouco mais, percebi na evolução da trajetória dos sujeitos dos grupos citados, que o processo psicoterápico segue um caminho duplo: parte dos conteúdos trazidos nas figuras coladas próxima à margem superior e inferior à esquerda, caminhando através dos conteúdos destes dois eixos, passando pela figura central, onde se concentra a carga energética no momento presente, geralmente bloqueada. Chega, então, às figuras que estão coladas à direita, no quadrante inferior e posteriormente, segue para a figura acima, do quadrante direito superior. No percurso, embora aparentemente linear, está sujeito a progressões e regressões nestes dois Eixos. As imagens coladas acima e abaixo dos dois eixos vão apontando as possibilidades de desdobramentos em cada ponto. Conforme a energia do Eixo Residual vai sendo liberada, paralelamente o trabalho terapêutico flui pelo Eixo Transformacional rumo aos conteúdos à direita, possibilitando a revivência de situações no momento presente com novas escolhas, de forma a caminhar em direção à figura à direita na parte posterior da folha (área do futuro em praticamente todos Revista de Análise Psico-Orgânica

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os Guias de Leitura Espacial). Nem todos os processos terminam quando o sujeito alcança esta área. Muitos se interrompem antes e outros o ultrapassam. De certo, quando a Energia alcança os conteúdos que estão na área de prognóstico, continua fluindo, de forma que muitos outros já surgiram e, com certeza, o Inconsciente aponta outras direções energéticas fazendo com que novas questões despontem. Pode-se, porém, afirmar que um ciclo se fechou para outro poder se abrir. Geralmente, quando o processo chega a área do prognóstico, é hora do arteterapeuta avaliar o percurso com o seu cliente e, se for o caso, propor uma nova colagem, visando poder perceber melhor para onde a energia se encaminha no momento presente da relação terapêutica.

A Leitura Espacial na Prática Clínica: Exemplo de Um Percurso B. veio para terapia aos 20 anos sem uma demanda específica. De sua história disse ser a filha mais velha de um casal de filhos. Seus pais se separaram no início de sua adolescência. Seu pai se casara novamente e tinha uma filha como a atual companheira. Disse que seu relacionamento com os pais era ótimo, trazendo a imagem de uma família perfeita, onde todos se relacionavam muito bem, eram amáveis e muito compreensivos. Ela se dizia uma pessoa bastante sociável, com muitos amigos e, no momento, namorava um rapaz bem mais velho do que ela. Nunca havia exercido nenhum tipo de atividade profissional. Ela, sua mãe e irmão, com os quais morava, viviam da pensão dada pelo pai. Buscando perceber que outras questões poderiam estar por trás desta “demanda inicial”, sugeri que fizesse uma colagem, escolhendo figuras com as quais se identificasse e pudesse falar de si. Ela escolheu algumas imagens durante este atendimento inicial. Terminado o tempo, sugeri que durante a semana seguinte, ela recolhesse de revistas, imagens que gostasse ou chamasse sua atenção de alguma forma. B. trouxe outras imagens que juntou as previamente recortadas. Com elas fez a composição a seguir:

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Fig. 1 – Primeira colagem

Disse ter colado muitas figuras de água porque gostava bastante de nadar e de estar em contato com a água. Dessas, a imagem da moça sobre a água foi a que mais chamou sua atenção. A água trás a possibilidade de mergulho. Vinculase ao mergulho no inconsciente e ao universo afetivo. Liga-se também a Função Psíquica Sentimento. B., como se confirmou no decorrer do tempo, tinha o Sentimento como Função Psíquica Superior. Mostrava-se extremamente sensível, magoava-se com muita facilidade e julgava a realidade com base em seus valores e emoções. A moça sobre as águas, localiza-se no centro da folha – área do presente – mas também abaixo, área do passado. Seu movimento é de quem quer entrar em contato com a água, mas ainda não pode fazê-lo. O olhar da moça não é para a água, como se precisasse da autorização, do consentimento de um outro, para que ela pudesse, de fato, poder entrar na água, mergulhar. Colou duas crianças. Com relação a que está na parte debaixo da folha, disse que gosta de crianças e que pretende trabalhar com elas. Já em relação a criança que está acima da folha, falou que achou a criança bonitinha, mas que a reportagem que falava sobre esta foto, contava a história de uma mãe que matou a filha e se suicidou em seguida. A reportagem a deixou “angustiada”. Teve dificuldade de relacionar esta imagem a questões específicas. Contoume, então, que a irmã do segundo casamento do pai, que teve uma doença grave com sério risco de vidas, mas, no momento, encontrava-se bem, embora com sequelas da doença. B. disse que sua irmã era uma criança alegre e feliz apesar de tudo. Apontando para a fera na parte superior da folha, disse que às vezes sentia ter uma fera dentro dela e que “explodia”. Isso às vezes a incomodava porque machucava as pessoas que estavam perto. Referia-se


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aqui ao namorado, à mãe e ao irmão. Falou que colou o casal porque para ela a relação a dois era muito importante. Nesta época B. namorava um homem bem mais velho do que ela, com quem ela disse, num primeiro tempo, se dar muito bem. Na figura central viu uma mãe brincando com as filhas. Falou que sua relação com a mãe era assim. Sua mãe era “mais amiga do que mãe”. A mãe participava de sua vida, davam muitas festas em sua cassa, tinha excelente relação com seus amigos. Sua mãe não exercia nenhuma atividade profissional, vivendo a família da pensão que o pai dava. A foto seguinte – duas pessoas em movimento – lembrou-lhe a dança. Disse adorar dançar. A imagem no canto esquerdo da folha abaixo, lembrou-lhe a lua e o universo. Disse que tinha vontade de encontrar um sentido maior para a existência. Não seguia nenhuma religião e a morte a apavorava. Falou da imagem da roseira, dizendo ter-lhe chamado à atenção por gostar muito de flores. A roseira cresce em direção aos céus. Sendo a área do prognóstico, a figura aponta a ideia da necessidade de enraizamento para a transcendência. Da terra para o ar. Ou visão do Círculo Psico-Energético de Fraisse da Terra para o Ar, correspondente a leitura tipológica de Jung (1991), da Sensação (Terra) para o Pensamento (Ar) – contrapondo-se ao excesso da função Sentimento, tão presente nas imagens de água. Como esta era parte de uma figura maior que mostrava um túmulo, aponta para uma morte simbólica, com possibilidade de um renascimento. Com relação à figura acima da figura central - dos bonecos desenhados - disse não saber porque ter colado aquela figura. Lembrou-lhe a personagem Olívia Palito, do desenho animado Popeye, que trata de um marinheiro que fica forte ao comer espinafre. A personagem é namorada do Popeye e, geralmente, as histórias têm como enredo a relação de rivalidade entre Popeye e outro personagem, Brutos, que é muito maior e mais forte. Geralmente, Olívia o seduz ou é seduzida por ele e, depois, fica atemorizada, de forma que Popeye vai sempre salvá-la das garras do vilão, conseguindo fazê-lo após comer o espinafre. Chamou-me à atenção as três imagens em preto e branco, coladas ao centro no mesmo eixo. Observando-as sob a ótica de B., suas temáticas são: a relação a dois, a relação com a figura materna e a relação

com o corpo. Estes três núcleos estão destacados pela coloração e pela disposição na colagem, ocupando um lugar central, mas adentrando as áreas do passado e futuro da folha. B. fala de dança, de movimento. Na imagem, porém, os movimentos não fluem. Observando-a, passam uma sensação de aprisionamento. A relação a dois parece bastante sexualizada, tanto nesta imagem, como na imagem acima da figura materna brincando com as meninas, onde a sedução se faz presente. Em relação à figura materna, a questão que surgiu foi o lugar da hierarquia familiar. B. se referia a mãe como uma “amiga-irmã mais velha”, sendo esta, em suas palavras “mais amiga do que mãe”. Na imagem ela vê uma relação entre iguais. As três figuras se alinham no Eixo Residual, tendo nas polaridades, a fera acima e a criança com um cachorro abaixo no extremo oposto. B. disse que tinha uma fera dentro de si que podia machucar o outro. A fera traz o lugar da raiva. Esta imagem está colada junto ao mar, a água em movimento, de forma que se pode supor que não há um controle racional sobre o impulso da raiva. Segue-se a ela a tríade já citada: a figura que caracteriza a relação a dois, seguida da mãe com as filhas e da dança. Para acessar a criança feliz que controla o animal (cachorro), ela necessitava contatar a raiva e expressá-la: sua fera tem a boca aberta, mostrando os dentes. Essa raiva que aparece hoje na relação a dois, parece ligar-se de alguma forma à figura materna e ao corpo. No Eixo Transformacional, a imagem da lua-terra, colada no canto esquerdo abaixo da folha, fala da necessidade de dar sentido, significar. Adentra a esta imagem, a figura do casal, seguida pela figura que tem a mãe com as crianças. A ligação entre as imagens estava evidente: a mão do homem parece segurar a figura da mãe com as filhas. A partir desta observação, algumas questões se colocaram: o que B. necessitava resignificar na relação a dois que se vinculava à figura materna, “à mãeamiga”, como ela colocou? Se a mãe está no lugar de amiga, como o lugar da mãe era ocupado? Novamente a figura da água sobressai. Se a relação é temperada pelo mar, esta varia de acordo com a maré. Ou seja, de acordo com os afetos. Revista de Análise Psico-Orgânica

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O mar refere-se à Grande Água na cultura xamânica. É a forma mais primitiva em que a imagem arquetípica da Grande Mãe se apresenta. No reino da Grande Mãe, as leis são estabelecidas de acordo com as necessidades emergentes. Mais ligadas ao princípio do prazer do que ao princípio de realidade, Grande Mãe Água é flexível, sofrendo grandes variações, de acordo com os humores da mãe. Quando esta reina sozinha, tudo muda a qualquer instante de acordo com os desejos maternos, o que nem sempre trás a segurança necessária, uma vez que a responsabilidade e a constância estão na ordem da Dinâmica Patriarcal. Na sequência, ainda no Eixo Transformacional, do mar sai o sol – representante do Ego. Se B. está mergulhada no Reino da Grande Mãe tão fortemente, necessita dele emergir para se diferenciar. Há um espaço entre a figura que aponta a diferenciação (sol saindo da água) e a que referencia a transformação (roseira), como se houvesse um estágio entre uma coisa e outra. Jung (1990) em seus estudos alquímicos comparados à psicoterapia, mostra que o primeiro estágio do processo de individuação é a indiferenciação4, passando pela separação e clareamento dos conteúdos5, para posteriormente chegarem a uma transformação de fato6. Entre o estágio de clareamento e o de transformação propriamente dita, existe um espaço de aprendizagem e assimilação dos conteúdos clareados7. Na disposição de sua colagem, B. representa este espaço entre a figura representante da diferenciação/separação (emersão do Ego-Sol das águas-inconsciente) e a figura representante da transformação (roseira). B. trás a necessidade de apoiar-se na Grande Mãe, mudando sua relação com esta. Agora a imagem arquetípica da mãe aparece representada na terra, onde ela pode se enraizar, para seguir de encontro ao Pai-Céu, passando, então, por um renascimento. Não é à toa que na figura que escolheu, sua roseira está plantada num cemitério. Outro ponto que chamou-me a atenção é a ausência de referências à figura paterna e ao seu irmão na colagem. Até então, B. falava da família com muito carinho, dando grande ênfase a cada membro.

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O Desenrolar do Processo Terapêutico O processo terapêutico de B. durou em torno de seis anos. Após esse primeiro momento, focalizamos situações que lhe deixavam com raiva, uma vez que isso parecia ser a única coisa que a incomodava. B. apresentava uma intensa rebeldia a tudo que fosse imposto pelo meio social, tendo grande dificuldade de lidar com regras e horários. Via a faculdade mais como um ponto de encontro social, do que como um espaço de formação profissional. Gastava excessivamente o dinheiro que o pai lhe dava, fazendo dívidas e, muitas vezes, sem condições de pagar coisas prioritárias: alimentação, remédios, a faculdade etc. Colocava-se em situações de risco com frequência: tinha outros parceiros além do namorado, sem preocupar-se com nenhum tipo de prevenção contra gravidez ou doenças infectocontagiosas; saía com pessoas alcoolizadas dirigindo; bebia excessivamente com colegas e no dia seguinte não lembrava o que tinha feito. Na relação com seus familiares dizia ser considerada a “ovelha negra” da família, enquanto que seu irmão era o filho, neto e sobrinho “certinho e querido”. Sentia como se houvesse uma predileção pelo irmão e, depois, por parte da família por parte do pai, por sua irmãzinha. Com esta última, a relação não era de competição dada a grande diferença de idade e a distância. B., porém, ressentia-se da relação do pai com a atual família, sentindo-se excluída deste contexto. O vínculo entre ela e o pai se dava por meio do dinheiro para o sustento dela, de sua mãe e irmão. Aprofundando sua história pessoal, relatou que a diferença entre ela e o irmão era de dois anos e que como este nascera prematuro, sempre fora considerado frágil. A relação dos dois era marcada por uma forte rivalidade e muito ciúme por parte de B. Acabou percebendo que a forma como se colocava nas situações gerava uma reação negativa por parte do outro, que se afastava. Num segundo tempo, B. começou a falar da relação com o namorado atual que era também marcada por muitas crises de ciúme, desrespeito de ambas as partes e, por vezes, cenas de violência. B. não queria mais se relacionar desta forma, mas não conseguia sair deste lugar.


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Aos poucos foi percebendo que essa dinâmica vinculava-se a sua história, percebendo a desproteção das figuras parentais, a irresponsabilidade e os limites dados de forma aleatória, sem levar em conta suas necessidades. Acabou por terminar esta relação, buscando relacionar-se com parceiros mais saudáveis. Sua relação com a mãe neste momento tornou-se bastante complicada. B. entrou em contato com vários episódios nos quais sofreu algum tipo de violência devido à ausência de seus pais, que delegavam aos professores e empregados o cuidado com os filhos quando muito pequenos e, posteriormente, mais ainda muito cedo, acreditavam que eles podiam se cuidar sozinhos. Lembrou-se, então, de um episódio que ocorreu aos 9 anos de idade, quando foi abusada sexualmente por uma pessoa de confiança da família. Ao tentar contar para a mãe o ocorrido, esta insinuou ser responsabilidade sua o ocorrido, não deixando espaço para esclarecimentos maiores sobre o que aconteceu. Estava aí a relação entre as três figuras centrais do Eixo Residual: a relação a dois, a relação com a figura materna e a relação com o corpo, vinculadas à raiva no momento atual e à criança no passado. Por um tempo, B. buscou em mim as referências de leis e regras, quase que pedindo consentimento para suas ações e fórmulas mágicas que organizasse sua vida cotidiana. Na medida em que contatava a falha dos pais reais e expressava sua dor, buscava resignificar as relações estabelecidas, resgatando-as. De neta, sobrinha e filha ausente, passou a ser ponte de ligação entre os membros de sua família. Preocupava-se de ter um espaço na casa dos avós e tios, indo semanalmente ao encontro deles. Permitiuse ser acolhida e acolhê-los com todas as suas falhas e dificuldades. Quase três anos de terapia haviam se passado nesta época. B. começou, então, a questionar a continuidade do processo. Contatar o abandono dos pais reais estava sendo muito penoso para ela. Embora já estivesse bastante tempo trabalhando o abuso sexual ainda haviam nuances não tocadas nesta questão. Olhando sua colagem, vinculada à figura central – a mãe com as meninas – estava à moça sobre as

águas (figura que chamou-lhe muito atenção na escolha para fazer a colagem). B. precisava decidir se queria ou não mergulhar, para poder acolher a menina desprotegida (figura ao lado da fera) que esteve em situação de risco por sua inocência (caricatura da mulher seduzindo o homem, ao lado). Observando sua postura de enfrentamento enquanto falava e em resposta a esta questão, propus um trabalho corporal onde ela explorou as posições de abertura e fechamento. Escolheu a posição fechada como a que mais lhe incomodava. Na exploração plástica e amplificação deste movimento com tinta guache em papel 40 kg, surgiu ao longo de vários atendimentos, as seguintes imagens e história:

Fig. 2 – A Explosão

“Na explosão da energia criou-se um universo de possibilidades, um mundo multifacetado se abriu. Dele surgiu o Sol, a terra, enfim, todos os elementos”

Fig. 3 – “A mulher de fogo

“Nascia dessa mistura à mulher, que com sua música maravilhosa e essa dança mágica encantava sementes.”

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Fig. 6 – A Nova Consciência

Fig. 4 – “O dragão”

“O dragão resolveu também fazer parte dessa integração, acabando por desestruturar a ordem do universo”

Fig. 5 – O Círculo Contínuo

“Assim, a desordem clamou por uma nova ordem, e eis ela: o dragão cospe o fogo; do fogo surge à música; e a música devolve ao universo a mulher mágica; que por sua vez volta a terra”.

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“E dessa nova ordem nasce à consciência da mulher mágica, tomando para si o controle de seu novo lugar; pensando a terra, sentindo o fogo, cantando a música e se criando e recriando nas expressões do universo”. Olhando suas imagens e lendo com ela a história criada, associamos a origem, a um Mito de Criação do Mundo. Amplificando a história por ela criada, vimos o Mito de Criação Pelásigo8, onde a Deusa Eurínome surge do Caos e: ... sem que nada a sustentasse. Separou então o mar do céu e dançou sobre as ondas, deslocando atrás de si, o enorme Vento Norte. Friccionando suas mãos, criou Ofião, prodigiosa serpente que ao ver a graciosa e divina dançarina, é tomado pelo desejo. Enroscando-se em suas pernas, sob a forma de Vento Norte, Ofião faz amor com Eurínome, que tomando a forma de uma pomba e flutuando sobre as ondas, põe um ovo: O Ovo Primordial – O Universo. A deusa então pede a Ofião que choque este ovo. Quando este se parte, de dentro dele nascem todas as coisas que existem: planetas, sol, lua, montanhas, rios da terra e todas as coisas que crescem e vivem” (RIBEIRO, 1999, p. 44). Mas havia o dragão que a tudo desestruturava, não respeitando a ordem natural do universo que nascia. A imagem do dragão, já havia aparecido em


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outras oca-siões vinculadas à vivência do abuso sexual. Dando sequência a este trabalho sugeri que B. observasse bem a sua última imagem, procurando defini-la melhor com um material linear. Surgiu, então, a seguinte imagem:

Fig. 7 – Monstrinho

A imagem me remeteu a sua primeira colagem. Coloquei-a na frente de B. e ela surpreendeu-se a ver na imagem desenhada a figura do boneco seduzido por Olívia Palito, trazido no segundo atendimento em sua colagem. Com este trabalho, B. pôde acessar e trabalhar em terapia a culpa que sentia por acreditar que ela havia seduzido, aos 9 anos de idade, um homem adulto, com quem estabelecera um vínculo de confiança. Decidiu dar sequência ao processo psicoterápico, percebendo a necessidade deste e sua dificuldade em cuidar de si mesma. De fato, B. passava agora por um renascimento, tornando-se mais autônoma e assumindo mais a si própria. No novo ciclo que se abria, começou a diferenciarse de sua mãe, assumindo seus sentimentos com relação a seu pai e madrasta, de quem não se permitia gostar porque a mãe não a aceitava. Consequentemente aproximou-se mais de sua irmã. Passou a exigir de seu pai mais atenção e presença, colocando que não queria só dinheiro. Questionou o espaço da relação tanto físico – queria que ela e o irmão tivessem um quarto em sua casa, construída para adaptar-se ás necessidades físicas de sua irmã – como afetivo, buscando sair com ele para conversar e passear. Este percebendo as necessida-

des da filha, pôde se aproximar e acolhê-la mais. Posteriormente, incluiu o irmão na relação, aproximando-o do pai e de sua família. Nesta aproximação desmistificou bastante a figura paterna, que parecia ser perfeita para a nova família, mas ausente e muitas vezes insensível para com ela e o irmão. B. e o irmão perceberam que as dificuldades de relacionamento que tinha com o pai, eram muito semelhantes à de sua madrasta e da irmã. B. foi aprendendo a falar de seus sentimentos e a demonstrar quando se sentia magoada ou não gostava de algo tanto no meio familiar como social. Conseguiu perceber-se profissionalmente preocupando-se em levar a sério o curso e outras formações que fazia. Buscou estágios e cursos complementares, ampliando o leque de alternativas profissionais. Percebeu que sua intenção inicial de trabalho com crianças era uma busca de regaste de sua criança interna e não uma escolha profissional, buscando outros projetos. Caminhava cada vez mais para um processo de diferenciação. Ela precisou confrontar a figura materna e dar-lhe limites, assumindo a administração do dinheiro que o pai enviava mensalmente e solicitando a participação de seu irmão neste processo (uma vez que a mãe gastava todo o dinheiro em coisas supérfluas, deixando a família sem dinheiro para o pagamento de contas e para compra de alimentos). Este processo foi bastante complicado, pois os ganhos secundários eram altos e, muitas vezes, mais prazeroso direcionar o dinheiro para uma viagem, festa ou roupas, do que para o próprio sustento. Neste meio tempo, conheceu um rapaz de fora do Brasil com quem se envolveu. Terminada a faculdade, mesmo tendo vários planos a seguir, optou por ir morar fora para ficar mais perto do namorado. A princípio essa decisão foi tomada de forma completamente irresponsável, trazendo um movimento de regressão energética diante do novo. B. contava com um dinheiro hipotético do pai, avós e tios para viajar, acreditando que conseguiria facilmente um emprego que lhe desse condições de sustento e também um curso que lhe possibilitasse a continuidade de seus estudos. Sua família apoiava sua decisão, vendo na possibilidade de seus estudos fora do Brasil, a realização de algo que eles não puderam fazer, mas não diziam quanto, nem como poderiam dispor financeiramente para ela. Revista de Análise Psico-Orgânica

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O final do seu processo terapêutico girou em função dessa escolha e de suas consequências. B. precisou organizar-se para poder ir, escolhendo um curso que se relacionasse a sua área de estudo, garantindo que teria o mínimo necessário para se sustentar e estudar até terminar esse curso, podendo, caso não quisesse mais, voltar a qualquer momento. Seu processo terminou com a sua viagem. A imagem final de sua colagem, a roseira, retrata a necessidade de fincar-se a terra para poder transcender aos céus e expandir-se, passando por um novo nascimento. A rosa, a flor, cresce em direção ao céu. Realmente foi necessário internalizar a capacidade de cuidar de si e prover a si mesma, para, então, renascer e poder crescer. Notas 1

Entende-se por carga energética a intensidade do valor psicológico (afeto). Este gera uma “força de ação”, um movimento. 2 Entende-se por Símbolo uma imagem dotada de afeto, que encerra em si inúmeros significados que vão muito além da sua representação imediata. Oriundos do Inconsciente são desconhecidos pelo sujeito e carregam um significado coletivo e um sentido individual. O primeiro é objetivo, referente ao próprio 3Inconsciente Coletivo. O segundo é subjetivo, tendo uma representação para o sujeito, própria do Ego e da Consciência 3 Resposta dada em decorrência de pressões repressivas – proibições, punições, negações, desencorajamentos, desqualificações, privações. É uma reação interna às couraças protetoras e inibidoras (físicas e emocionais) que surgiram em decorrência da repressão dos desejos. 4 Denominado Nigredo, que num sentindo psicológico, corresponde “à escuridão do inconsciente, que encerra em primeira linha a personalidade inferior ou a Sombra” (JUNG, 1990, p.312). 5 Albedo (JUNG, 1990) 6 Rubedo (JUNG, 1990) 7 Denominado Citredo (JUNG, 1990) 8 Pelasgos = povos vindos do mar. Povos considerados autótones pelos gregos, que cultuavam a Grande Mãe no período Neolítico, sendo anteriores a civilização Creto Micênica (RIBEIRO, 1999).

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Bibliografia AMMANN, R. A terapia do jogo de areia: imagens que curam a alma e desenvolvem a personalidade. São Paulo: Paulus, 2002. BELLO, S. Pintando sua alma: método de desenvolvimento da personalidade criativa. Brasília, 1996. BESSON, J.; BRAULT, Y. O círculo psico-orgânico. Manuel d’ Enseignement. Tome 2, 1996. BOYESEN, P. L’ Inconscient est Situationnel. 2ª Partie: De la Verbalisation au corps du Mot. Manuel d’ Enseignement de L’ É Française d’ Analyse Psycho-Organique. Tome 5, 1999. JUNG, C. G. Misterium Conunctionis. R.J., Petrópolis: Vozes, 1990. Coleção: Obras completas, vol. XIV/2. ______. Símbolos da Transformação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. Coleção: Obras completas. _______ Tipos Psicológicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. Coleção: Obras Completas. RIBEIRO, M. L. C. - Alethéia: mitologia grega comparada aos mitos Nagôs/Yorubás e indígenas brasileiros, Mimeo, 1999. SACHARNY, S. A análise psico-orgânica. In RIBEIRO, A., SOUZA, F. e MAGALHÃES, R. (orgs). Catálogo de Abordagens Terapêuticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. SAMUELS. A psique plural: personalidade, moralidade e o pai. Rio de Janeiro: Imago, 1992. ______. Dicionário crítico de psicologia analítica. Rio de Janeiro, Imago, 1988. SILVEIRA, N. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. SOUTHWELL, C. Massagem Biodinâmica como Ferramenta Terapêutica – com Especial Referência ao Conceito Biodinâmico de Equilíbrio. In SCHLESINGER, George ... et al. – Cadernos de Psicologia Biodinâmica. Vol. 3 – São Paulo: Summus, 1983. STEIN, M. Jung: o mapa da alma: uma introdução. São Paulo: Cultrix, 2000. ZIMMERMANN, Elizabeth B. – Integração de Processos Interiores no Desenvolvimento da Personalidade. Campinas: UNICAMP, 1992. Tese (Mestrado em Psicologia Clínica) – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1992. VAUDAIME, E. De L’ Espirit À La Lettre ... À propôs d’ une classification des massages. Manuel d’ Enseignement de L’ É Française d’ Analyse PsychoOrganique. Tome 2, 1996.


A dor – compromisso somático Mirtha Ramirez Resumo: A dor é um enigma a decifrar. Há que entendê-la como expressão sintomática. Caberá ao terapeuta, ao acolher a pluralidade de linguagens do Inconsciente, transformá-la em expressão e encontrar o verdadeiro afeto que subjaz na dor. Cabe discernir o que está no pensamento e no corpo que o encarna. Trata-se de compreender o compromisso orgânico que constitui o sintoma. É um trabalho corporal com o não expressado. Palavras chave: dor, somático, orgânico, trabalho corporal Resumen: El dolor – compromiso somático. El dolor es un enigma a descifrar. Hay que entenderlo como expresión sintomática. Corresponderá al terapeuta, que acoge la pluralidad de lenguajes del Inconsciente, transformar el dolor en expresión y encontrar el verdadero afecto que ahí subyace. Hay que discernir lo que está en el pensamiento y en el cuerpo que lo encarna. Tratase de comprender el compromiso orgánico que constituye el síntoma. Es un trabajo corporal con el no expresado. Palabras clave: dolor, somático, orgánico, trabajo corporal. Abstract: Pain is an enigma to be deciphered. It has to be understood as symptomatic expression. The therapist, who receives the plurality of languages of the Unconscious, should transform pain in expression and find the real affection which underlies it. Make the distinction between what is in the mind and what lies in the embedding body. Which means understand the organic commitment that makes up the symptom. It has to do with corporeal work with the non expressed. Keywords: pain, somatic, organic, body work.

Dados sobre a autora: Psicóloga, CRP: 05/ 09090 – Universi-dad Nacional de Córdoba, Argentina, 1972. Curso de Formação Psicanalítica: Centro de Estúdios Psicoanalíticos (CEP). Formação Permanente no Centro de Estudos Sociopsicanalíticos (CESOP). Formação em Terapia Familiar Psi-codinâmica, Vínculo Oficina Psicos-social. Estudo Teórico Clínico, Técnicas e Vivências Corporais – Ferenczi, Boadella, Reich, Groddeck, Winnicott, Keleman, Lowen, Navarro, no Centro de Estudos de Clínica Contemporânea. Formação em Análise Psico-Orgânica e Psicologia Biodinâmica pela École Française d’Analyse Psycho-Organique (EFAPO) e pelo Centro Brasileiro de Formação em Análise Psico-Orgânica (CEBRAFAPO). Ciclo de Base em Massagem Biodinâmica e Análise Psico-Orgânica pelo CEBRAFAPO. Formação em Terapia Crânio Sacral. Spécialisation em Psychothétapie de Couple et en Analyse Psycho-Organique pela École Française d’Analyse Psycho-Organique (EFAPO).

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Autopsicografia “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente”. Fernando Pessoa John Pierrakos diz o seguinte: ... a dor é um processo cíclico de percepção das experiências humanas interiores. A dor tem uma lógica e uma função distinta: exige do organismo o estabelecimento do equilíbrio. A palavra dor vem da palavra grega pornos. Pornos é a dedicação e o esforço para fazer alguma coisa, e fazê-lo intensamente. É muito semelhante à palavra pothos, que significa desejo intenso, paixão ou desejo excessivos. Assim a palavra dor tem muitos significados. (...) sempre existe em nós algum elemento de dor; podemos impedi-lo de expressar-se e cortar a vitalidade. Podemos deter os movimentos do corpo, ou permitir que eles se expressem e manter o fluxo, manter a vida em nós (PIERRAKOS, 1983 – p. 15).

A questão é o que fazemos com essa dor, onde a colocamos e por quê. Se a dor faz parte da vida, é equivalente à vida. A dor física é só um fragmento da experiência. Perceber a dor, ouvi-la, cuidar dela é uma maneira de proteger a vida. A dor psíquica protege a integridade humana como a dor física preserva o corpo. A diferença entre sofrimento, dor e trauma:  o sofrimento mostra uma perturbação global psíquica e corporal provocada por uma excitação geralmente violenta, é uma emoção mal definida;  a dor nos remete a uma sensação local bem delimitada e determinada;  o trauma se configura quando algo inesperado ocorre. A dor em si não tem significado. É um enigma que deve ser decifrado. Há que tomar a dor como uma expressão sintomática. Ali está o terapeuta que tentará ser um intermediário que a acolhe e lhe dá suporte a essa dor inassimilável. Transformar em palavras e encontrar o nome de outro afeto, o verdadeiro afeto. 58

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Dar sentido à dor do outro significa para o terapeuta afinar-se com a dor, tentar vibrar com ela e nesse estado de ressonância esperar que o tempo e a palavra se gastem. Dar um sentido a uma dor insuportável e finalmente construir com ela um lugar na transferência onde possa ser acalmada, designada e gasta com lágrimas e palavras (NASIO, 1997 – p. 17). O terapeuta acolhe todas as linguagens do inconsciente, diferentes linguagens no plural. Nossa existência não é somente designada por palavras, embora a capacidade de nomear seja uma característica humana. Nós chamamos a essa pluralidade de linguagens de corpo de palavras: a concepção, o pensamento e o corpo que encarna o pensamento. Admitindo que hoje todas as teorias são múltiplas, a análise psico-orgânica considera a noção de inconsciente situacional. Segundo Paul Boyesen, “O inconsciente surge sempre no encontro com outro, sempre na situação. A situação é sempre a relação com outro, é o que movimenta a vida. Nascemos na relação humana e toda vida sem relação humana resulta na morte interior. A situação é sempre relacional, na situação fazemos contratos, pactos. O contrato é uma forma de ser na qual a gente se encontra e se reconhece” 1. O compromisso somático pode ser uma consequência desses contratos. Para que exista mudança e que possa transformar o sintoma, há que modificar o contrato. Os contratos são pessoais, familiares e sociais. A dor é um sinal incontestável da passagem de uma prova:  prova de uma perda;  prova de uma separação ou perda de um ser amado;  prova de uma coisa material, um valor ou a integridade do corpo. O corpo é um laço constitutivo de nós mesmos, em nosso inconsciente, é a linha sutil que conecta as diversas separações dolorosas da nossa existência. E tudo está inscrito no inconsciente O luto pela perda de um ser querido pode ser a melhor forma de compreender a dor psíquica. Há ainda a dor por causa do abandono, quando o ser amado nos retira seu amor. A dor da humilhação ocorre quando somos feridos em nosso amor próprio. A dor da mutilação, quando perdemos uma


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parte do nosso corpo. Toda dor só existe sobre um fundo de amor. Para Freud, a dor é um afeto, o verdadeiro afeto, a última muralha antes da loucura e da morte. A dor é como um estremecimento final que comprova a vida e nossa capacidade de nos recuperarmos. Não se morre de dor. Enquanto há dor, temos força disponível para combatê-la para continuar vivendo. Não se pode sustentar que desprazer seja dor. De um lado, o que revela o desprazer é a percepção que tem o Eu de uma forte tensão; de outro, essa tensão pode vir a ser mitigada. A dor é um sintoma; é a manifestação exterior e sensível de uma pulsão inconsciente recalcada. A dor no corpo revela a existência de um sofrimento inconsciente, de palavras não ditas, não nomeadas. “O luto não é a dor de perder, mas a dor do caos das pulsões enlouquecidas. Depois da morte de um amigo muito querido, Montaigne escreveu: Se insistem para que eu diga por que eu o amava, sinto que só posso expressá-lo respondendo: porque era ele, porque era eu” 2 “O ser amado faz parte de mim. A presença imaginária do ser amado em nosso inconsciente se resume “em ser” o espelho interior que nos remete à nossas próprias imagens. O ser amado é sobretudo uma fantasia que nos habita e regula a intensidade de nosso desejo, que é um desejo sempre insatisfeito e que nos estrutura. Esse desejo insatisfeito é o vazio que cria o espaço do devir da vida. Por ser insatisfeito, deseja seguir vivendo” 3. A dor é um afeto que reflete na consciência as vicissitudes extremas da tensão inconsciente. “O Ego é o verdadeiro intérprete interior da leitura das pulsões e seu tradutor, para o exterior, na linguagem dos sentimentos4 O Ego é duplamente uma superfície: a imagem mental da superfície do corpo e a superfície perceptiva do aparelho psíquico. A dor psíquica ou corporal é um grito de apelo, um grito do Id. A vivência do apaziguamento da dor está na base dos processos de subjetivação. Ocorre numa dimensão de encontro, na qual “um outro” acolhe a dor como resposta de encontros e desencontros, nos quais ajustes afetivos, intensivos e temporais regularão os cuidados com o Ego em estado de emergência.

Para Gerda Boyesen, “se as emoções são excessivamente estimuladas aparecerão os problemas psicossomáticos (...) se existe muita tensão e conflito ou muita ansiedade ou medo, há apenas energia emocional ascendente (...) o que produz dor (...) É a falta de expressão a essas emoções o que faz estagnar a energia (...). A pessoa não ousa mostrar aos outros essas emoções e muitas vezes não ousa estar consciente em si mesma. A energia aprisionada gera dor”.5 Para Freud, a pessoa torna-se neurótica ou psicótica quando as suas defesas falham. Gerda Boyesen afirma que isto também é verdadeiro no caso das defesas corporais: “Quando a energia aprisionada irrompe com incrível força, em diversas camadas de conflitos e devido a esses não pode ser liberada, permanece no organismo em diversos pontos. A energia fica ali, não flui. Desenvolve-se e atrai muito fluido. O resultado é o fluido energético que quando se acumula produz uma contração espasmódica. Existe, então, uma pressão para saída do fluido, e uma no sentido de contê-lo provocada por um espasmo” 6 Não podemos nos equivocar, a dor em si não diz nada, ela quer dizer alguma coisa, é um dispositivo analisador, é um denunciador, não pode o terapeuta se equivocar em tentativas de dar sentido à dor; a dor em si mesma não tem nenhum sentido. O que tem que procurar é a representação da dor. Ao compromisso orgânico o chamamos de sintoma. O sintoma é um fato caracterizado por uma conduta enigmática, não acessível à razão. O sintoma faz sofrer o doente, traz sofrimento para o meio que o rodeia, pois ele retira tanto de um como de outro a sua potência; do lado do paciente, onde a razão não pode impedir as suas condutas sintomáticas, e também do meio que o circunda. O sintoma tem seu lado invisível, fala de algo que não está dito, é um significante a ser interpretado. Ele tem uma dupla face, a face escondida cheia de conteúdos latentes a ser descoberta, e a que aparece, que é o sintoma. O sintoma é necessário para o equilíbrio da pessoa, está carregado de benefício secundário. O doente ganha muita coisa com esse compromisso orgânico, o que chamamos de ganho secundário7 Cada indivíduo marca seu corpo segundo as impressões da sua infância precoce. Essa história pessoal é registrada desde o princípio por sensações, por

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movimentos do corpo. Só mais tarde as recordações incluirão a linguagem verbal. Essas impressões podem reaparecer como fragmentos de cheiro, som e gosto. E também pela pele. Ferenczi diz que a lembrança fica marcada no corpo e só pelo corpo é que pode ser despertada. Trata-se de uma memória que pode restituir a experiência vivida pelo corpo. Existe uma memória corporal, que o corpo não esquece. É o corpo que mantém a memória do acontecimento. São numerosos os casos de pacientes nos quais o corpo é testemunha de situações dolorosas, às vezes traumáticas, e não conseguem pela palavra falada estabelecer a conexão necessária com o psiquismo. As somatizações são as que denunciam, estão aí, são provocadas por essa impossibilidade, e são o recurso encontrado para a sobrevivência do sujeito. As somatizações são aquilo que não foi expresso, que foi silenciado. Não raro, falha o psiquismo. Então, começa o corpo a “pensar”. E quando percebemos somatizações nesses pacientes, tudo se passa como se aflorasse o pensamento pré-verbal ou pré-simbólico. As somatizações constituem regressões a etapas de comunicação pré-verbal entre o bebê e seu entorno. As primeiras relações mãe-bebê têm lugar num entorno que antecede à comunicação linguística. Todas as comunicações oriundas do ambiente são recebidas pelo corpo do bebê através de seus sentidos. Dar nomes às sensações não é trivial para muitos pacientes. Parece-lhes difícil ligar a palavra ao corpo. Por esta razão, ouvimos discursos vazios de sensação. Teríamos de conseguir corporificar a linguagem com o corpo de palavras, restituindo a importância do sensorial, trabalhando no pulsional a questão da excitação e do afeto. Há pacientes que parecem anestesiados; poderíamos dizer que optaram por um padrão de não sentir. Para abordar esses sintomas, a análise psico-orgânica tem ferramentas muito potentes: trabalhar com o toque, sensações, imagens e sentimentos, ferramentas claramente intervencionistas. Trata-se de um trabalho corporal com o “não expressado”. Esse não expressado tem linguagem, linguagem corporal onde o orgânico profundo é a estruturação, o que chamamos de conexão orgânica. E se coloca na dimensão

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dos sentidos. Trata-se de potencializar a permissão interna, a permissão sensorial do registro da sensação – “Há possibilidade de abandono do controle mental para conectar-se com o sensorial. Neste espaço do relaxamento onde o sujeito sai da posição ativa para outro lugar do receptivo, nesse espaço pode-se conectar em outro ritmo, com uma outra respiração e resgatar a confiança no orgânico, no corporal. A permissão interna possibilita emergência do prazer, do desbloqueio, do alívio, do conforto”8 “Quando o sujeito entra em contato com o universo sensorial, fica aberto para memórias somáticas primárias, em torno de sensações, emoções, imagens. O contato tátil carrega a função de reconhecimento afetivo e a construção de segurança de base (...) O trabalho de massagem é uma das vias de acesso para reparação do prazer, da confiança no corpo, nas sensações e nos sentimentos. Cumpre poder ocupar o lugar de receptividade para se nutrir e se reinvestir positivamente. É o que designamos por micro-regulação”9 Quando a dor aparece, estamos atravessando um limiar, passando por uma prova decisiva. A dor é o sinal da possibilidade de transformação. Notas: 1 Paul Boyesen, Apostila EFAPO/CEBRAFAPO. Circulação interna. 2 Juan-David Nasio. O livro do amor e da dor. Página 38. Jorg Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997. 3 Ibid. Página 46 4 Ibid. Página 21. 5 Gerda Boyesen. Cadernos de Psicologia Biodinâmica 3. Páginas 77 e 78. Summus Editorial, São Paulo, 1983 6 Ibid. Página 69. 7 Eric Champ. Apostila de EFAPO/CEBRAFAPO. Circulação interna. 8 Silvana Sacharny. Apostila da CEBRAFAPO. Circulação interna. 9 Ibid.


Os sonhos não dormem: Os sonhos como via de acesso ao inconsciente Cristiana de Assis Serra Resumo: O relato acompanha o trajeto de uma jovem ao longo de quase dois anos de psicoterapia. O caso ilustra o trabalho com sonhos e imagens e a aplicação, no contexto psicoterápico, de conceitos e técnicas da Análise Psico-Orgânica, aliados a técnicas expressivas. Palavras-chave: Sonhos, Imagens, Técnicas expressivas, Inconsciente, Sentido e Sensação, Restauração Resumen: Los sueños no duermen: los sueños como vía de acceso al inconsciente. El informe se adjunta la trayectoria de una joven en casi dos años de psicoterapia. El caso ilustra el trabajo con sueños e imágenes y la aplicación, en el contexto psicoterapéutico, de conceptos y técnicas del Análisis Psico-Orgánico, aliados a técnicas expresivas. Palabras clave: Sueños, Imágenes, Técnicas expresivas, Inconsciente, Sentido e Sensación, Reparación Abstract: This case study follows the journey of a young woman going to psychotherapy for nearly two years. The case illustrates not only the work with dreams and images, but also the application to psychotherapy practice of Psycho-Organic Analysis' concepts and techniques, allied to expressive techniques. Key words: Dreams, Images, Expressive Techniques, Unconscious, Sense and Sensation, Healing.

Dados sobre a autora: Psicóloga (CRP-05 34086). Psicoterapeuta Corporal em Análise Psico-Orgânica e Massagem Biodinâmica, com especialização em terapia de casal, pelo EFAPO (École Française D' Anályse Psyco-Organyque) e pelo CEBRAFAPO (Centro Brasileiro de Formação em Análise Psico-Orgânica). Pós-graduada em Psicoterapia Junguiana e Imaginário pela PUCRio. Pós-graduada em Neurociências Aplicadas à Longevidade pelo IPUB/UFRJ. Pós-graduada em Arteterapia em Saúde e Educação pelo IAVM/UCAM.

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Os sonhos nunca dormem. - Paul Boyesen

Clara (nome fictício) é estudante universitária e trabalha em uma grande empresa. Ao chegar à terapia, com 28 anos, está casada há cinco e mora no apartamento do marido, na zona sul carioca. A família do marido tem boas condições financeiras, ao contrário da sua; sua mãe, pai e irmão ainda residem em uma favela da zona sul, onde ela nasceu e cresceu. Apresenta-se bem vestida e cuidada, como uma típica jovem de classe média, e logo mostra ser muito articulada e inteligente, expressando-se com clareza e desenvoltura. Dorme bem e considera ter uma boa saúde – à exceção de um problema “genético” de “circulação nas pernas” (sic). Na primeira entrevista, ao ser indagada acerca do motivo que a levou a buscar uma terapia, diz que não há uma razão específica e alega que gostaria de aprofundar seu processo de autoconhecimento, dando continuidade a um processo psicoterápico anterior que havia durado 4 anos mas fora interrompido porque a terapeuta havia se mudado de cidade. Em seguida, queixa-se de ansiedade crônica e excesso de autocrítica, explicando que se cobra demais em relação a metas profissionais que ainda não atingiu – enquanto outras pessoas da sua faixa etária, sim. Por outro lado, acrescenta, sabe que tal atitude não é muito justa consigo mesma, visto que mudou de rumo em sua carreira, tendo a princípio optado por uma área e depois mudado para outra, o que a havia atrasado em sua evolução profissional. Em sua demanda inicial, pois, emerge um tema: o conflito entre expectativas que ela em parte supõe que “os outros” tenham em relação a ela, e em parte admite serem suas próprias em relação a si mesma; e uma percepção ainda vaga de que a ansiedade e o mal-estar causados por tamanha exigência pessoal são indícios de que talvez haja aí algo de errado e pouco justo com seus limites e potenciais, e com sua própria história. Nos encontros iniciais, despontam outros elementos. Primeiro, uma mãe que, por um lado, é uma batalhadora cuja força Clara admira – pois, apesar da pobreza, conseguiu colocar os dois filhos na faculdade, proporcionando-lhes meios de ascensão social; mas

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cujo catastrofismo, por outro lado, parece indicar uma profunda insegurança ontológica, que a leva a sempre esperar pelo pior e, com frequência, imergir em desesperança. Segundo, uma história de abusos sexuais diversos na infância – por parte do próprio pai e de outros dois adultos próximos, que ela se lembra de a tocarem, acariciarem e beijarem de maneira indevida, que a incomodava. O processo teria culminado quando Clara tinha 9 anos e o pai lhe disse explicitamente que seria natural se a filha fizesse sexo com ele. Ela retrucou que não e refugiou-se na casa de uma vizinha, de onde telefonou para o trabalho da mãe e relatou o que se passara. A mãe, então, prometeu que Clara não ficaria mais sozinha em casa com o pai e que trabalharia dia e noite para poder acertar as contas com o marido e sair de casa – o que de fato fez, cedendolhe a casa construída com o seu dinheiro e deixandoo algum tempo depois, levando os dois filhos. Por fim, o marido – ao qual Clara se refere como sendo o homem ideal, com quem ela tem o relacionamento ideal e quer constituir família – se autodefine, desde o primeiro encontro, como “impotente sexual”. Embora muito aberto para conversar sobre a relação, sempre que ele esbarra na sua incapacidade de satisfazê-la, como ambos descrevem a situação, demonstra tanto sofrimento e sentimento de culpa que Clara evita tocar no assunto. No entanto, ao longo dos primeiros meses de terapia, ela pouco a pouco vai se dando conta da própria insatisfação nesse campo, e começamos a investigar maneiras como o casal poderia quebrar o silêncio com relação ao tema e trabalhar esse aspecto da relação. Paralelamente, o marido começa a queixar-se de que Clara investe demais no trabalho e nos estudos e pouco se dedica à relação. O projeto terapêutico que se apresenta nesse momento consiste em concentrar-nos nos três primeiros pontos do círculo psico-orgânico para que, a partir do contato com suas próprias necessidades e limites, Clara possa ir se descolando da mãe e pai reais, encontrando no casal parental simbólico a segurança e estrutura necessárias para a construção da sua identidade. Muito mental, Clara produz imagens em profusão e com facilidade, mas apresenta notória dificuldade para entrar em contato com suas sensações. Aliando


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à Análise Psico-Orgânica o uso de técnicas expressivas, com frequência proponho-lhe que transponha suas imagens para o papel. Surge um tema recorrente: a casa. A casa que ela deseja construir para si, o incômodo por viver numa casa que é do marido e da qual ela não consegue se apropriar; ao longe delineia-se a sombra da casa da infância. Entre a favela e a classe média, ela procura o seu lugar. Proponho meios de expressão menos estruturados, procurando ir além da sua racionalidade e facilitar seu contato com sentimentos e sensações. Ela produz manchas vermelhas; diante delas, sente medo da sua raiva. Fazemos um trabalho de contato com a sensação das suas pernas, que evocam imagens de uma vasta caverna úmida; o grande vazio a assusta, mas a intensidade emocional que aflora parece ao mesmo tempo intrigá-la e atraí-la. Subitamente, o marido pede a separação. É taxativo, e o processo se desenrola rápido. Ela perde o chão, vê com horror a perspectiva de voltar para a casa materna, na favela, e mergulha no vazio. Clara aponta os aspectos negativos da favela – as faltas de educação, de respeito, de asseio, de lei e de estrutura generalizadas. Questiono: ela veio dali; ali estão suas origens, suas raízes. O que a favela lhe deu de bom? Faz-se noite no caminho. As imagens são negras, a escuridão é total. Mas surgem estrelas. Ela não fica satisfeita com o desenho e o refaz; agora, experimenta começar pelo contorno das estrelas no branco do papel antes de pintar a noite ao redor – uma primeira pele, talvez? Do branco no preto, o caminho fica truncado de cinzas, pedras, falta de forma, dureza, peso. Clara começa a despertar para o contraste entre o domínio mental e as sensações corporais. Começa a pressentir a energia que seu corpo retém, e desenha vulcões – montanhas cinzentas encimadas pôr fogo líquido, lavas incandescentes laranjas e vermelhas. Seus vulcões não explodem, escorrem uma lava lenta e inexorável. Batiza-os de “Capacidade”, e começa a encontrar aí sua força e desejo. Explica que sempre receou que seu lado “sensível” (palavra com a qual ela engloba sentimentos, sensações e intuições) fosse ingênuo e frágil, e considerava-o incompatível com “ser inteligente” – o que, ela se dá conta então, acabou tornando-a dura e agressiva.

Uma Clara que até aqui parecia adormecida reencontra então o prazer, a alegria, as noitadas, os amigos, a diversão, o sexo. Ela se questiona se o luto pelo fim do relacionamento não foi curto demais, se por trás da sensação de libertação ela não está, na verdade, fugindo de alguma coisa, se não deveria estar sofrendo mais. Ainda assim, constata: “foi essa alegria que a favela me deu”, e pouco a pouco vai redescobrindo a possibilidade de relaxar e soltar-se em suas emoções. Então, Clara começa a sonhar. Há uma grande festa na casa de um bandido da favela e, para minha surpresa, encontro várias pessoas do trabalho – a quem tenho vergonha de admitir onde moro – a caminho do lugar. Vou junto e, uma vez lá, passo a festa inteira indo de uma pessoa para a outra, ocupada em verificar se está tudo bem e se estão se divertindo. Admirada, constato que estão todos muito bem. Ao final do sonho, dou-me conta de que passei a festa inteira tão preocupada com os outros, que estavam bem, que eu mesma fui a única que não se diverti. O vasto desconhecido de que Paul Boyesen1 fala, referindo-se ao inconsciente, começa a manifestar-se em imagens que lhe causam estranhamento, surpresa e fascínio. Embora não possa ser tocado, seus efeitos não tardam a se fazer sentir. Andando pela favela, deparo-me com uma joia no chão. Mesmo sabendo que pode ser muito perigoso, pois certamente pertence a algum bandido, ela me fascina tanto que me abaixo para pegá-la, pois sinto como se a joia me pertencesse por direito. É um pingente de ouro com a letra “P” no meio. Na mesma sessão, conta outro sonho da mesma semana, posterior ao da joia: converso com minha mãe, que me conta que está com câncer. Convido-a a reviver o sonho do pingente aqui e agora, acordada. Ao repassar as imagens, deitada e de olhos fechados, ela se lembra de que não era uma joia apenas, eram quatro, de diferentes tipos. Ouvindo-a, sinto-me inclinada a oferecer-lhe, desta vez, um material mais estruturado para traduzir as imagens do sonho no papel, e opto pelo grafite e pelo lápis de cor – mas fico em dúvida se não seria melhor o lápis aquarelável; algo em mim sugere a necessidade de água para simbolicamente diluir algo duro e difícil. Ela desenha a grafite as quatro joias, e então

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lembra que elas estavam no meio de uma poça d'água. Isso, na favela, tornava-as ainda mais perigosas, pois sem dúvida seria água de esgoto, contaminada – o que só reforçava o quanto seu impulso em direção ao pingente fora irresistível. A lembrança da água faz com que eu me decida, enfim, pelo lápis aquarelável. Clara desenha seu pingente, dilui o colorido e espanta-se: “está igualzinho. Tão bonito quanto no sonho”. Pergunto-lhe a que essa letra “P” do pingente poderia se referir. Sua respiração se suspende por um instante e a resposta é imediata: “Pai”. A associação com o pai faz com que o desenho mude aos seus olhos e adquira contornos desagradáveis. Ela sai profundamente frustrada. Na sessão seguinte, fala sobre um sonho recorrente e antigo: ela está com um desconhecido, fazendo o sexo mais intenso e prazeroso da sua vida. De repente, vê o rosto de seu parceiro e descobre que é seu pai. Vê-se tomada pelo horror mais profundo, tão radical quanto o prazer anterior. Clara vai testando seus limites, aproximando-se paulatinamente de antigas feridas e fantasmas que a assombram. Ela chega contando que anda flertando com um policial, um homem casado, e comenta que toda mulher que cresce na favela sabe que namorar policiais é absolutamente proibido. Ela está transgredindo um tabu – ou dois, contando com o fato de ele ser casado. E sonha: estava em uma festa na favela com meu pai e esse policial. Eles nada têm a dizer um ao outro; a situação é absolutamente desconcertante e desagradável, e tudo o que eu quero é sair dali. Proponho-lhe reviver o sonho acordada. Ela se deita, fecha os olhos, retoma a situação. Diante da estase, procuro ajudá-la a apoiar-se em sua própria energia consequencial. Pergunto-lhe de que ela precisa. “De uma porta” – e a porta aparece. Dali, ela se depara com um jardim mal iluminado, delimitado por um bosque escuro, e sente medo. De novo: do que ela precisa? “De luz, e pessoas.” O bosque se ilumina e vários convidados da festa passeiam por entre as árvores, conversando. Ela se embrenha pelo arvoredo e logo se vê num caminho estreito, entre um paredão de pedra e um abismo lá embaixo – “tenho sempre esse sonho do abismo”, comenta. Ao mesmo tempo em que vou me orientando pelas suas sensações, indagando-lhe a cada instante como ela se

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sente, a repetição constante a mantém em contato com seu corpo e apoiada nele. “Estou sentindo medo de novo.” “E do que você precisa agora?” Surge uma prancha de surfe no ar, Clara salta sobre ela e vai descendo o abismo, surfando sobre a pedra. Afasta-se da pedra e vê-se surfando no ar, fazendo acrobacias, e a sensação é de leveza e liberdade. Convido-a a usufruir desse contato e, após alguns minutos, peço-lhe que traduza tal sensação em uma imagem. Ainda de olhos fechados, ela sorri: “um bebê. Não é menino nem menina, não tem sexo ainda, é só um bebê”. Mas e nome, já tem? “Esperança.” Nomeado o que nasce, nos despedimos. Clara sonha que uma mulher me provoca e me chama para brigar. É uma situação familiar, pois na escola era vítima constante de provocações e abusos pelo fato de ser branca em meio a uma maioria de origem negra e tinha verdadeiro horror a brigas, esquivando-se delas a todo custo. Mas, nesse sonho, não fujo. Enfrento a provocadora de igual para igual, sem medo – até que a outra me surpreende pousando a mão sobre meu estômago. O gesto e seus efeitos me pegam desprevenida: vejo-me imediatamente paralisada, incapaz de mover um músculo. Ela se pergunta o que significa o estômago, e recorre a palavras do senso comum. Sugiro que, em vez disso, ela busque a resposta em suas próprias sensações e nos significados que estas lhe sugerirem. Algo está mudando, ela comenta noutra sessão. Não sabe ainda o que é, mas tem essa sensação difusa de que algo se transforma, e aguarda com expectativa. Mesmo ignorando o resultado, intui que algo desperta e sente-se instigada a saber mais. Clara recorda o dia em que, em criança, perdeu-se da mãe em meio à multidão de pedestres de uma populosa área comercial. Seu maior medo foi que, se não achasse logo a mãe, esta acabaria desistindo de esperá-la e iria embora. Quando finalmente se encontraram, levou uma bronca por ter largado a mão da mãe. Na imaginação ativa que se segue, retorna à situação e, já adulta, se dá conta de que “ora, mas era ela que tinha que tomar conta de mim!”. Diante dessa criança assustada e sozinha, do que ela sente que precisa? Clara conversa com sua própria menina, consolaa, assegura-lhe que é muito amada e bonita. Como ela se sente? E, em contato com esse sentimento, do que ela sente que precisa? “Preciso que me deem a mão.


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Mas não uma mão que me segure no lugar, e sim uma que me ajude a levantar” – e, a partir dessa constatação, espontaneamente ela se dá as mãos, pousando-as sobre a barriga. Fico comovida diante desse gesto de restauração, em que ela reencontra em si mesma o amor e a proteção de seus pais simbólicos e, no final, escolhe sair guiada pela mão do Pai. O sonho seguinte marca uma mudança qualitativa. Sonho que estou numa casa na favela e aparecem duas cobras... não sei se é uma ou se são duas. Fico com medo e saio. Noto que há um homem me seguindo. Ele me segue até um beco, onde paro e pergunto o que ele quer. Vejo que minha mãe está assistindo a tudo de uma janela, mas ela nada diz; apenas chora em silêncio. Proponho que Clara se deite e feche os olhos para reviver o sonho. Ela vê as cobras – agora são mesmo duas – saírem de um buraco no chão da casa. Sai e o homem, cujo rosto ela não consegue ver, a segue. Ao ver-se encurralada no beco, sente medo; ao notar a mãe chorando muda na janela, sente raiva e resolve enfrentar o homem. Bate nele, e ele desaparece. Dirige-se à mãe: diz-lhe que ela deveria protegê-la, que não admitia sua passividade diante da situação. Vira-se e continua descendo em direção à rua. Nota que tem um caderno com anotações em suas mãos, embora não saiba o que está escrito. Ainda do morro, divisa entre as casas o sol no horizonte e segue na direção do mar. Peço-lhe uma imagem que represente como ela se sente ao final, e Clara desenha um barco no mar com o sol, intitulando o trabalho de “Caminho do Sol”. A partir daí, seguem-se trabalhos em que as imagens de sol, de caminho, andar por um caminho em direção ao sol, são recorrentes. As pernas são uma presença forte em vários momentos. Mesmo passado esse momento, mais à frente as imagens de andar longamente, de longos caminhos, voltarão a aparecer. Sua jornada vai ganhando corpo. Um método de trabalho veio instalando-se gradualmente. Clara leva pouco mais de uma hora para chegar ao meu consultório, saindo do trabalho. Durante a viagem, reflete sobre os acontecimentos da semana. Nota que cada vez refere-se mais a acontecimentos “internos” e menos aos “externos”; e, se num primeiro momento cede à autocrítica e se pergunta se tal escolha não seria sinal de alienação, pas-

sado algum tempo, à medida que começar a desfrutar dos efeitos de seu mergulho, acabará por despreocupar-se disso. A princípio, traz relatórios mais ou menos ordenados em que se misturam fatos, sonhos e associações. Posteriormente, começará a sentir uma dificuldade crescente para organizar em palavras tantas sensações, mas manterá o discurso estruturado e coerente. De todo modo, investe muito no processo terapêutico, inclusive adotando o hábito de exercitar-se na percepção da correlação entre sentimentos e sensações corporais a cada vez que uma situação mais significativa se apresenta. E surge uma rotina: toda semana, na noite que antecede a sessão, tem um sonho que é “o sonho da terapia”. Com o tempo, serão às vezes não um, mas dois, três ou até mais, num fluxo ininterrupto de imagens em constante diálogo com suas reflexões acerca de sua realidade concreta e com sua atenção para com as sensações corporais. A mãe de Clara pediu-lhe que fosse buscar algo no porão de casa. Explica que sua casa é construída em cima de um valão de esgoto, e que o tal porão é cortado pelo fluxo de água e dejetos. Sua mãe, ela diz, vai àquele lugar sem problemas; contudo, ela mesma detesta ir ali porque o chão de terra, as paredes e tudo o que é guardado lá é infestado de baratas, centenas delas. Após essa experiência, fica evidente para ela uma decisão: não dá mais para continuar morando na favela. Ela faz um balanço do período passado lá, desde o fim de seu casamento: recorda como redescobriu a alegria, a liberdade, o prazer e a energia trazidos pelo lugar e por seus moradores. Reconhece pontos fortes e fracos, qualidades e defeitos. Apropria-se do que recebe de positivo dali, e recusa aquilo que não quer para si. Reflete sobre prós e contras de morar na casa materna, nota que se acomodou na situação de não precisar se responsabilizar pelas contas e deveres domésticos, mas incomoda-se com a necessidade de manter a mãe a par de cada passo que dá. Percebe o contraste entre o lugar em que ela se coloca em relação à mãe e a atitude de seu irmão, que, embora more também na mesma casa e usufrua dos mesmos benefícios, tem com a mãe uma relação de independência. Trabalha seus limites e possibilidades; estabelece distinções entre o que diz respeito às circunstâncias concretas e o que são as suas próprias escolhas

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quanto a como lidar com o que acontece. À medida que trabalha a separação em relação à mãe, Clara vai gradualmente ganhando corpo, apropriando-se dele e de sua própria força, e seu olhar sobre a realidade muda. Um dia, Clara chega ao consultório e pergunta: “Sabe aquela sensação que eu tinha de que alguma coisa estava mudando, de que alguma coisa estava 'na iminência de'...? Pois é: não sei bem como nem quando, mas mudou. Alguma coisa aconteceu”. Algo nasceu, o que se reflete tanto nos acontecimentos externos quanto na sequência de sonhos que sobrevém, com grande intensidade emocional, e que adquire um colorido peculiar. Por volta dessa época, Clara conhece Ângelo. Este se mostra interessado e gentil e acena com um companheirismo carinhoso que acaba por encantá-la, e ela começa a corresponder às investidas do rapaz. Ele, porém, precisa ausentar-se da cidade com frequência por razões de trabalho, e tem uma viagem de férias de 15 dias já marcada para dali a algumas semanas. À medida que vai se envolvendo, Clara começa a investir cada vez mais energia na relação com o rapaz, que ocupa seus pensamentos a maior parte do tempo – a ponto de levá-la a se ressentir um pouco da perda de investimento no seu trabalho pessoal. Trabalhamos no sentido de buscar um equilíbrio, para que ela possa abrir espaço também para outros aspectos da sua vida. O rapaz, porém, que se mostrara tão assertivo no princípio, parece hesitar e adota uma atitude ambivalente, ora investindo, ora recuando. Clara percebe que o Ângelo “real” não corresponde à imagem que a encantara num primeiro momento, mas ainda assim gosta do que vê e dispõe-se a tentar construir algo com ele. Questiona sua necessidade de controle e procura abrir-se para o diálogo. Quando finalmente chega o momento das férias, ela cria um mecanismo para conseguir concentrar-se no trabalho: ao deitarse, à noite, visualiza Ângelo em uma grande biblioteca, e ali os dois ficam juntos até o dia seguinte, quando ela, ao levantar, se despede dele e vai trabalhar. Se porventura ele lhe invade os pensamentos durante o dia, ela reage: “não é para você estar aqui, vamos nos encontrar à noite na biblioteca”, e retoma suas ocupações. Clara sonha: estou numa casa, e sei que em algum

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lugar ali dentro há três cães pretos, enormes e bravos. Sinto muito medo e quero ir embora, mas não posso sair de onde estou. Ela revive o sonho comigo e, na imaginação ativa, convido-a a explorar o lugar onde está. Ela encontra um homem que lhe dá três livros com números e anotações manuscritas, e deixa a casa. Dias depois, ela sonha de novo: estou no trabalho e vou preparar uma sala para uma reunião, mas ao abrir a porta descubro que estou em casa. Não é a casa da minha mãe, é a minha casa, e é linda, perfeita, exatamente como eu a imagino. Ela já estava lá, pronta, e o incrível é que no sonho eu não sabia, mas ao mesmo tempo eu tinha de saber, pois eu é que a havia arrumado assim. Ela comenta que pouco a pouco vem arrumando seu quarto na casa da mãe, colocando-o do seu jeito, mas que ainda falta o armário, que está uma confusão. A bagunça do armário permanecerá como um assunto recorrente nos próximos meses, como uma tarefa pendente que a atormenta mas que ela nunca se anima a empreender. Depois de passar pelos cães ameaçadores e de ganhar (deles?) os livros de presente, sua casa começa a encarnar-se e a ganhar forma, à medida que seu próprio corpo se encarna e ganha forma, à medida que ela acessa seu manancial simbólico, à medida que focos de energia residual vão sendo restaurados. Mais que a mera descarga da energia residual, a função da terapia aqui é ajudá-la a “encontrar sua concepção primeira para que ela se manifeste em sua forma original, e não com as distorções resultantes de anos de deformações”, como observa Paul Boyesen.2 Livres dos grilhões que os desfiguravam, fantasmas e monstros retomam sua positividade original e voltam a ser seus aliados, energia primária à sua disposição. Um novo sonho: estou no trabalho, me preparando para uma reunião, quando vêm nos avisar de que um dos participantes da reunião acaba de ser assassinado por assaltantes lá fora. Vejo-o no chão, e me impressiona a quantidade de sangue derramado. Todos sentimos muito medo, e nos vemos em uma casa de dois andares. Estamos todos no térreo, e ouvimos no teto os passos de alguém que está no andar de cima. Não sabemos quem é, mas sabemos que é muito perigoso, e todos sentimos muito medo. Então, as outras pessoas desaparecem e tudo fica ainda pior,


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pois estou sozinha na casa com todo aquele perigo. O homem aparece, luto com ele e venço! Sinto-me incrivelmente bem e orgulhosa. Ela se mostra muito mobilizada com o sonho, muito surpresa e feliz com sua vitória. Revive o sonho na horizontal, de olhos fechados, e enfatiza como lhe é penoso enfrentar todo aquele medo. Ao terminar, indago de que cor seria sua sensação geral do sonho. “Vermelho”, ela responde. Ofereço-lhe uma grande cartolina vermelha e convido-a a desenhar o sonho. Ela ocupa a princípio apenas a parte de baixo do papel, fazendo um desenho linear e omitindo vários elementos do sonho. Vou perguntando se não falta nada até que o desenho fique completo, incluindo a representação de suas sensações nos diferentes momentos do sonho, e a folha de papel esteja inteiramente preenchida, com os vários elementos numa disposição, agora, mais circular. As cores que predominam são o vermelho, o cinza e o preto. Seu medo é uma pedra cinzenta. Seu orgulho olhando-se num espelho – imagem por ela escolhida para representar sua satisfação consigo mesma – é desenhado no mesmo vermelho da poça de sangue do assassinado. Um detalhe chama a minha atenção: ao contrário da imagem grande e sorridente que a representa, seu reflexo no espelho é pequeno e distorcido, e faltamlhe os braços. Pergunto pela imagem que ela tinha em mente. Ao contrário do desenho, era simétrica – mas ela demora a notar a assimetria no desenho. Quando por fim a percebe, é um choque. “Quem foi que desenhou isto? O desenho que eu fiz não era esse”, ela diz em tom de brincadeira, mas está impressionada. A falta de braços evoca-lhe uma sensação de impossibilidade de contato, de alcançar algo que ela ainda não sabe o que é. Nas semanas seguintes, seu incômodo crescente com a indefinição do relacionamento com Ângelo concretiza-se em uma decisão: procurando dialogar com o rapaz, ela lhe envia um e-mail expondo seus sentimentos. Só ao receber a sua resposta, porém, ela se dá conta de que havia descrito tudo o que não queria e dissera que, do jeito que a situação vinha caminhando, não estava satisfatória para ela. Diante disso, Ângelo responde que, então, mesmo lamentando muito, iria respeitá-la e daria a relação por terminada. Ao desapontamento soma-se o choque de perceber o quanto ela, apesar do intuito de abrir-se

para o diálogo, havia apresentado ao outro uma decisão unilateral de sua parte. A imagem da moça sem braços no espelho volta-lhe com força. Ela sente que há algo ali que não consegue ver. Despeço-me dela propondo que experimente dialogar de fato com a imagem sem braços. Ela aprova a ideia: “Sim, vou dizer-lhe tudo o que penso a seu respeito”. “Mas, Clara”, replico, “será que um diálogo não significa também que você se disponha a ouvir o que ela tem a dizer?”. Na semana seguinte, ela conta que, ao lavar a cabeça no banho, a moça sem braços aparecera de supetão e a advertira: “Eu só apareço assim porque te interesse que assim eu seja”. Sem conseguir atinar com o significado daquelas palavras, ela se diz intrigada. Pressente que há uma escolha sua ali de algum modo, mas não consegue conceber uma escolha para além dos limites de sua consciência. Segue-se uma série de sonhos marcados pelo inesperado, a ponto de Clara já chegar às sessões brincando acerca das “surpresas da semana”. De fato, a sensação de surpresa é recorrente, assim como a descoberta de elementos preciosos, tesouros que lhe pertenciam desde sempre, embora ela até então não soubesse. Ou sabia? Vou à casa de uma vizinha e lá encontro uma cachorrinha preta, um filhote de poucos meses. É uma cachorrinha encantadora, muito especial. Para minha surpresa, minha vizinha me diz que ela é minha. “Mas quem cuidou dela desde que ela nasceu?”, pergunto. Aí, minha surpresa é maior ainda, porque eu sei que fui eu que cuidei dela. Ela sempre foi minha responsabilidade, mesmo eu não entendendo como pode ser que eu tenha cuidado dela sem saber. Não sei como, mas eu sei que fui eu. Será que esta filhotinha nasceu dos grandes e assustadores cães pretos do sonho recente? Na mesma semana, ela tem um sonho similar, mas com um gato branco que aparece em sua casa – também especial, também precioso, também inteiramente seu e cuidado por ela, embora ela não soubesse como. Uma cadela e um gato, preto e branco, filhote e adulto – opostos que lhe pertencem e pouco a pouco se aproximam e conjugam. O sonho seguinte começa com Clara em sua casa. Mas não a casa da favela, é uma casa de dois andares no Leblon, na rua em que passa um canal. Estou saindo e chegam dois bandidos para ficar lá. Eles não

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sabem que eu sei que têm a intenção de me enganar e me roubar. Reúno tudo o que tenho de valor numa bolsa e saio, fingindo que não sei de nada. Ao sair, vejo uma moto e sei que ela está ali para que eu a use. Subo uma grande ladeira e, quando chego lá no alto, a moto simplesmente para – mas não tem problema, pois ela me levou até onde eu tinha de ir. Saio da moto e ela desaparece. Vou até a porta de uma casa: é a casa do mago. Vou entrar. Clara reúne seus tesouros e parte em uma jornada em busca do mago. Que sabedoria ele lhe trará? Pergunto-lhe quais são os seus tesouros, quais os seus talentos, e ela parte. Na sessão subsequente, ela relata o encontro não com um mago, mas com uma terapeuta. Era a semana da saúde na empresa e fui a uma terapeuta. Ao vê-la, entrei num estado de relaxamento profundo. Nunca senti nada parecido; não era sono, eu estava acordada, mas tão relaxada que cheguei a perguntar para ela se havia me drogado – embora eu soubesse que não. Então, ela pegou na sua mão três feridas que havia na minha perna e me mostrou. A última era a maior, e chegava a ter uns vermezinhos brancos andando. Depois de muito se preparar, de ganhar corpo e confiança em seus próprios recursos, havia chegado a hora de encarar e curar suas feridas. A própria Clara comenta: “Engraçado, você me perguntou quais eram os meus talentos, mas desde então só venho olhando para as minhas podridões”. A palavra “podridão” me chama a atenção, e ela se lembra da ferida com os vermes andando. Refere-se ao fato de que começa a reconhecer em si mesma sentimentos de raiva e inveja de que não se orgulha, mas começa a vê-los com mais serenidade. Ao mesmo tempo, seus sonhos refletem o descolamento de ideais utópicos e externos e a busca de valores mais justos com ela mesma. Num deles, passeando num parque, Clara depara-se com um macaco branco que alguém lhe propõe que ela guarde numa gaveta; no entanto, ela sabe que se trata de um animal selvagem, que nem naquele parque deveria estar, mas na floresta. Noutro, ela perde um par de tênis numa academia, e um vigia a leva para um depósito onde ficam todos os tênis perdidos. Vários são muito melhores do que os dela, mas mesmo sabendo que poderia fazer isto sem maiores consequências, ela não se apodera de nenhum, e avisa que o seu não está ali. Num terceiro, ela discute com um grupo de homens que

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parecem ser agentes secretos que investigaram toda a sua vida e a questionam com relação a escolhas que ela fez no passado. Clara justifica suas escolhas com segurança, ciente de que vivia um outro momento e de que seus valores eram outros, e de que ela não havia feito nada de errado. Ela esclarece os valores que a definem e, a partir deles, procura discernir em profundidade o que é justo para ela, independentemente de valores e expectativas alheios. Seus limites vão ajudando a delinear sua identidade. A surpresa seguinte é um bebê. Sonho que um bebê não para de chorar e, quando não aguento mais, vou lá perguntar à mãe o que há de errado com a criança. Para minha surpresa, o bebê fala, embora tenha apenas cinco meses. Nessa mesma sessão, a quantidade de vezes em que aparece o número cinco salta-me aos olhos, e, ao ouvir a idade do bebê, pergunto-lhe o que havia acontecido cinco meses antes daquela data. Ela ri ao dar-se conta de que o sonho fora na noite em que fazia cinco meses que ela e Ângelo haviam se conhecido. Só várias semanas mais tarde perceberia que, naquele mesmo dia, fazia também exatamente um ano que ela havia deixado a casa do ex-marido. Na sessão seguinte, ela traz um novo questionamento: “como eu posso ser normal, quer dizer, ter uma vida sexual normal, tendo sofrido os abusos que sofri na infância? Não é possível, tem que ter alguma coisa errada em algum lugar”. E especula: “Não sei, às vezes acho minha sexualidade meio masculina, me acho meio agressiva, tanto em termos de precisar de uma coisa intensa quanto no sentido da iniciativa: quando eu quero ficar com alguém, pode ser o cara mais lindo do mundo, mas ele vem falar comigo”. Em seguida, relata um novo sonho: estou na casa da maga. Sempre sonho com meus dentes caindo, e dessa vez é meu canino direito que está soltando camadas e mais camadas de esmalte branco, e vai ficando cada vez menor. A maga pega esse material e coloca numa bandeja, e para minha surpresa fica uma enorme massa branca. Pergunto para ela como pode tanto material ter saído do meu dente. Estou preocupada porque meu sorriso deve ter ficado horrível com um dente faltando, e procuro um espelho. Entro por um corredor escuro, com muitas portas e cheio de monstros e fantasmas. É um lugar assustador e muito mau. No final do corredor há uma porta aberta e um


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espelho de pé no meio do quarto. Vou me olhar no espelho, mas quando entro sinto que há algo de muito ruim ali e volto, com medo. Ao chegar na sala, vejo uma multidão de monstros e sinto que essa maga é má. Ela fica furiosa e me pergunta se eu tenho medo dela e se vou denegrir a sua imagem. Reúno minha coragem e respondo que não, que acredito que a magia dela possa ajudar muita gente, mas sinto que sua energia não está em sintonia com a minha. Então, vejo um espelho e me olho. Para minha surpresa, o dente que caiu não faz falta. Meus dentes estão mais bem distribuídos e meu sorriso está muito mais bonito que antes. Clara enfrenta suas antigas feridas, monstros, fantasmas. O tamanho do seu horror é o quanto de energia ela represa nessas imagens, mas luta para superar a dicotomia bom/mau e tem uma vaga intuição de que mesmo o que mais a assusta pode reservar-lhe uma energia poderosa. Sugiro que as respostas virão quando as perguntas estiverem claras. Logo um novo sonho vem tocar mais diretamente o campo das perguntas da sessão anterior: estou na praia, de férias, e ao sair entro num shopping de luxo. Olho as vitrine, dou umas voltas e no final, ao dirigirme para a porta, vejo um homem entrando de mãos dadas com um menino. Ao vê-los, tenho a certeza de que esse homem está abusando da criança. Quero fazer alguma coisa, mas já estou saindo, e acordo muito incomodada. Proponho-lhe reviver o sonho e, no final, pergunto do que ela sente que precisa. Ela volta e pergunta ao menino se está tudo bem e se ele não prefere ficar com ela. O menino larga o homem e vai embora com Clara, que sente um enorme alívio por havê-lo salvado. Os paralelos entre esse diálogo entre Clara e o menino abusado e o anterior, igualmente restaurador, entre ela e ela mesma em criança, perdida na rua pela mãe, mostram os paradoxos do inconsciente manifestando-se com cada vez mais clareza. A criança cuja mão a mãe solta se vê nas mãos do (pai?) abusador? Se, nas duas situações, a criança é salva pela mão, para o que apontará aquela imagem do seu reflexo sem braços? Num sonho posterior, ela se vê demitida do trabalho e é consolada por duas amigas, uma com características mais maternas, outra mais firme e paterna. O

apoio de ambas é igualmente importante, e a imagem final do sonho é ela caminhando por uma estrada, com uma amiga de cada lado. Clara descreve uma forte sensação nos braços, que estão presentes como nunca. Para atravessar a perda difícil, apoiando-se na mãe de um lado e no pai do outro, ela finalmente encontra seus braços e resgata sua integridade. Noutro sonho, alguém vai à minha casa e vai entrar no meu quarto. Penso na bagunça do armário e fico com vergonha, mas depois resolvo deixar para lá: se o meu armário é assim, é assim e pronto, não tenho que ficar escondendo. Mas, para minha surpresa, ao entrar no quarto descubro que não só já arrumei o armário como ele agora não tem portas e é arrumado com uma criatividade incrível, de que eu jamais me julgaria capaz. O melhor é que ele não tem só coisas bonitas ou novas; tem de tudo um pouco, e é exatamente isso, e a maneira como as coisas foram dispostas, que o torna tão bonito, criativo e interessante. Sim, onde Clara espera achar tesouros, encontra podridões, e onde espera confusão, encontra criatividade; onde espera bondade, encontra maldade, ou será que a maldade esconde algo que lhe será benéfico? Onde espera feiura, encontra beleza; onde imagina haver medo, encontra coragem; onde se crê fraca, acha-se forte. Imagens se repetem criando associações inesperadas, e o quebra-cabeça ganha novos contornos. No território desconhecido do inconsciente, o jogo é repleto de surpresas inusitadas; e a cada jogada o tabuleiro, mutante, produz novas peças. A propósito, ela acrescenta, havia esquecido de contar, mas fazia algumas semanas que finalmente tinha arrumado o armário do seu quarto. O processo de Clara revela o inconsciente como o “manancial de possibilidades” de que fala Paul Boyesen,3 o desconhecido invisível cujos efeitos se fazem sentir. O impulso para a saúde, para a restauração das estases, para a libertação dos fluxos aprisionados, para a mudança “no justo tempo”4 se manifesta nas imagens e surpresas, presentes enviados à consciência pela sede da sabedoria oculta no interior de cada um. Consciente e inconsciente dialogam em Clara, que a cada passo reconhece e se apropria de sua história, de suas escolhas, de seus valores e de quem ela é. À medida que ela se apropria e se responsabiliza

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por suas necessidades e desejos, escolhas e realizações – valores originais e fundamentais que pertencem à sua “espiritualidade encarnada”5 –, sua identidade profunda vêm à tona. Sua demanda inicial continha já a intuição da necessidade imperiosa de ser justa com esse Eu Superior, esse Self irresistível que assim fala. Paul Boyesen6 nos diz que “o próximo movimento ocorrerá no justo tempo. Mesmo quando não é expressa, a energia consequencial continua sendo um potencial de mudança, um pouco como uma fonte de alternativas que nos lembra das coisas que poderíamos fazer, mas não fizemos”. Sim, a jornada prossegue; há quase dois anos em terapia, Clara recentemente comentou que tem, desde sempre, uma imensa sensibilidade no baixo ventre. Hesitou muito antes de mencionar a questão porque não sabia o que isso significava nem se tinha alguma importância, mas descreveu o quanto a sensação é intensa, desagradável e perturbadora – e revelou que a remete imediatamente às situações de abuso vividas na infância. Há ainda muita restauração a empreender, muitos fantasmas a reconquistar, muita apropriação por fazer. Mas, a cada passo do caminho, Clara se abastece de novos tesouros e ganha mais corpo para avançar em sua aventura, conduzida por seus sonhos.

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Bibliografia: 1

Paul Boyesen. L’inconscient est situationnel. In Manuel d’enseignement de l’EFAPO, tome 2, 2ème édition, 1996. 2 Paul Boyesen, op. cit. 3 Paul Boyesen, op. cit. 4 Paul Boyesen, op. cit. 5 Paul Boyesen, op. cit. 6 Paul Boyesen, op. cit.


Entrevista com Silvana Sacharny Entrevista concedida ao primeiro número da Revista de Análise Psico-Orgânica, Silvana Sacharny, fundadora do Centro Brasileiro de Formação em Análise Psico-Orgânica (CEBRAFAPO), onde fala sobre sua trajetória e da forma como implantou este trabalho no Brasil.

Gostaríamos de saber como foi o seu primeiro contato com esta metodologia de trabalho. Como começou a sua trajetória profissional? Em 1986, no Rio de Janeiro, conheci o trabalho de Massagens Biodinâmicas, por intermédio de um casal de terapeutas formados pelo Instituto de Biodinâmica em Londres. Eles vieram de mudança para o Brasil, iniciando pequenos cursos de formação em Biodinâmica. Foi assim que conheci a Biodinâmica e me apaixonei de imediato. São mais de 20 anos de trajetória. O início foi aos 24 anos, eu era recém formada em Psicologia. A partir deste momento, comecei a introduzir tudo o que eu aprendia com os terapeutas ingleses no meu trabalho clínico, ainda muito incipiente, com aquelas técnicas de massagens com as quais eu começava a ter contato. Tive a intenção de ir para a França, estudar com Paul Boyesen em sua nova Escola Francesa. Começamos a nos corresponder através de cartas, pois não havia internet. A escola me mandava material, eu mandava o meu histórico e indicava o que me interessava. Após muitas trocas de correspondências, fui à França em 1988. Fiz uma entrevista com Paul e compreendi melhor a Formação de Psicoterapeutas em Análise Psico-Orgânica. Fiquei por lá e apostei numa formação que durou quatro anos e incluiu contato com o material da Psicologia Biodinâmica e a sistematização das Massagens Biodinâmicas.

E como esse trabalho chegou ao Brasil? Em 1992 voltei para o Rio de Janeiro e passei a difundir o que aprendi na França, iniciando um caminho no qual sempre constatei resultados muito importantes, afora uma gratificação pessoal que me motivava a seguir adiante. Logo em seguida, em 1994, surgiu a primeira oportunidade de trazer ao Rio

a psicoterapeuta Anne Fraisse, formadora da Escola Francesa de Análise Psico-Orgânica. Ela veio para um congresso no Rio e realizou o primeiro workshop em Psico-Orgânica para terapeutas corporais. Na época a gente fez uma vinculação com o pessoal que estudava com o italiano Frederico Navarro e, a partir desse momento, multiplicaram-se os interesses por cursos e seminários. Começamos a organizar diversos workshops com a Anne Fraisse, que veio ao Rio mais duas ou três vezes, até que em 1997, conseguimos trazer o próprio Paul Boyesen. No ano seguinte, estruturamos o primeiro grupo de Formação de Psicoterapeutas em Análise Psico-Orgânica.

Como é a estrutura deste trabalho hoje? Em 1998, foi inaugurado o Centro Brasileiro de Formação em Análise Psico-Orgânica – CEBRAFAPO e, até hoje, cresce pouco a pouco o trabalho de formação vinculado à Escola Francesa. A cada ano, três formadores vêm da França para ministrar os seminários que prosseguem sob a minha coordenação. Hoje no Brasil. a equipe conta seis formadores brasileiros - Delfina Pimenta, Denise Kaiuca, Edgard Sobreira, Maria Roggia, Ana Luisa Baptista e Mirtha Ramirez. A Formação de Psicoterapeutas em Análise PsicoOrgânica dura três anos e meio. Com o amadurecimento e desejo dos psicoterapeutas formados, criou-se em 2006 a Associação Brasileira de Análise Psico-Orgânica – ABRAPO, que tem inúmeros projetos para difundir a prática e o pensamento da Análise Psico-Orgânica. A nova Associação tem atualmente em torno de 30 psicoterapeutas associados. Em pouco mais de 15 anos de atividades, 70 psicoterapeutas se formaram, em trajetória contínua, perseverante e bem cuidadosa.

Então no Brasil o trabalho se restringe ao Rio de Janeiro? Neste momento sim, embora seja tenhamos o desejo expandir para outros estados. Nessa intenção, já tivemos algumas turmas que concluíram o curso de Base em Massagem Biodinâmica e Introdução a Análise Psico-Orgânica em Florianópolis, Campinas e Manaus. Em 2009, Paul Boyesen também deu um workshop em Florianópolis, visando apresentar a Análise PsicoOrgânica. Revista de Análise Psico-Orgânica

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Quem busca esse tipo de trabalho? Basicamente profissionais das áreas de Saúde e Educação.

Você pode falar um pouco mais sobre as Massagens Biodinâmicas? As Massagens Biodinâmicas são um trabalho terapêutico. Busca a noção de reconexão com o que chamamos de auto-regulação. Todos os seres vivos possuem no corpo este sistema que, no entanto, se desestrutura em decorrência da vida contemporânea, marcada pelo stress nas mais diversas instâncias. Pode ser de ordem mais emocional, mais física, mais psíquica, não importa, pois trabalhamos o corpo como um todo, como uma unidade psicossomática. O sujeito pode viver um desequilíbrio afetivo, emocional, seja por uma perda ou por uma separação, o que vai gerar manifestações físicas e/ou corporais. Ou vice-versa: a partir de um sintoma físico, um mal estar constante pode estressar a pessoa, tornando seus sistemas emocional e psíquico mais vulneráveis e abalados. A abordagem Biodinâmica trabalha na integração do afetivo, do psíquico e do somático. Em uma situação de desequilíbrio, há uma total desconexão ou desordem, e o corpo manifesta desconforto. Nessa situação o terapeuta busca construir junto com o paciente, um aprendizado chamado de relaxamento através do toque. Na abordagem biodinâmica, no entanto, não existe um terapeuta que realiza um trabalho e um paciente que se submete a esse trabalho. Existe uma dupla que vai trabalhar em conjunto. O paciente vai receber o trabalho de massagem. Nessa palavra – receber – já há um lugar de ação e o paciente se torna responsável pelo trabalho de ser receptivo. Isso não é simples nem fácil. Quando a pessoa não está receptiva, não consegue entrar no movimento de descarregar o seu stress, de relaxar e de restaurar a energia; tem uma dificuldade até para se alongar e ficar deitada, por exemplo. Todo o trabalho então é feito passo a passo. Não existe aquele que faz e aquele que é submetido à ação. Existe uma transmissão de um saber que se traduz através do toque, de determinados percursos de massagem, com os quais o paciente vai aprender a relaxar. Desse modo, o corpo começa a desenvolver uma

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percepção prática do relaxamento. Quando isso ocorre um processo de consciência corporal se instaura. Surge a consciência das tensões para além da consciência pontual relacionada a uma dor de cabeça, uma dor lombar ou uma dor no estômago. De que forma ela surge e como o corpo vai acumular tensão, até manifestar a dor. A intenção do terapeuta não é criar a dependência, de forma que o relaxamento só ocorra na sessão de massagem, permitindo o alívio apenas uma hora numa semana inteira. A intenção. É que a pessoa leve o benefício proporcionado pela massagem para o seu cotidiano.

Como surgiu, então, a Análise Psico-Orgânica? Criada por Paul Boyesen, a Análise Psico-Orgânica surgiu como uma espécie de continuidade do trabalho da Psicologia Biodinâmica, elaborada na década de 1950 pela fisioterapeuta e psicóloga norueguesa Gerda Boyesen, mãe de Paul. Gerda criou como os seus três filhos – Paul, Monalisa e Ebha – a Fundação Boyesen, que passou a difundir pelo mundo a terapêutica original da Biodinâmica. A família estabeleceu em Londres o Instituto de Psicologia Biodinâmica e trabalhou unida por muitos anos em inúmeras formações de profissionais nas décadas de 1960 e 1970. A partir dos anos 70, porém, Paul acrescentou suas próprias contribuições ao trabalho da biodinâmica e criou uma nova abordagem, que se desenvolveu mais amplamente estruturada nos anos 80, quando deu origem a uma nova linha terapêutica difundida pela Escola Francesa de Análise Psico-Orgânica. A nova instituição passou não só a abrigar as teorias e os ensinamentos criados por Gerda Boyesen, que tem relação mais direta com a Massagem Biodinâmica, mas também se expandiu para uma trilha de trabalho mais vinculada à Psicanálise. A Análise Psico-Orgânica, portanto, é um trabalho analítico com mediação corporal. Busca através da intervenção corporal estabelecer a unidade entre o orgânico, o emocional e o psicológico.

Quais são as referências de base para a construção da APO? A linguagem e o método clínico da Análise PsicoOrgânica é uma criação exclusiva do pensamento de


Entrevista com Silvana Sacharny

Paul Boyesen. Ele se inspirou em alguns pensadores e em três principais eixos referenciais: o Eixo Corporal propriamente, vinculado a Willian Reich; o Eixo Existencial (apoiado na abordagem da Gestalt, e em Carl Rogers); o Eixo Analítico (com referências aos pensadores, S. Freud, C. G. Jung e Lacan). Daí a riqueza do trabalho, posto que cada formador agrega para a formação a sua bagagem de referência, tanto do ponto de vista da Escola Francesa, quanto do ponto de vista do CEBRAFAPO. Desta forma a produção criativa vai sendo ampliada.

Quais os campos de atuação do Psicoterapeuta em Análise Psico-Orgânica? Como você vê a inserção social deste trabalho para além da clínica? A Formação visa principalmente o trabalho com a clínica psicoterapêutica individual, casal e grupos. No campo social já tivemos uma inserção com a Psico-Oncologia Pediátrica, com crianças, adolescentes e seus familiares. Atualmente através da ABRAPO existe o Projeto de Atendimento Acessível que visa propiciar atendimentos a pessoas com restrições financeiras. Os diversos profissionais formados vêm criando projetos de atendimentos e consultorias a empresa e instituições utilizando-se do referencial da Análise Psico-Orgânica.

Sendo pioneira deste trabalho no Brasil, o que você pensa que o psicoterapeuta em Análise Psico-Orgânica precisa desenvolver em si mesmo para poder exercer este trabalho com qualidade? É fundamental que o psicoterapeuta esteja sempre em algum processo pessoal, mantenha um espaço de supervisão e aberto para o aprofundamento teórico da Análise Psico-Orgânica. Estimo que o espaço da interação em parcerias de criação seja também fundamental para o enriquecimento das práticas profissionais, por isso o espaço do grupo é tão rico.

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