Temas em teorias da justiça III: O direito internacional em debate

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Através das fronteiras: entre Carl Schmitt e Achille Mbembe

dentro estariam protegidos dos de fora, os outros, os inimigos, aqueles contra quem há uma possibilidade real de combate, quem o soberano pode reconhecer como matável e contra quem o soberano pode exigir que aqueles de dentro sacrifiquem suas vidas. Ademais, tendo se deparado com a impossibilidade de abolir a guerra, Schmitt entende que a melhor solução seria circunscrevê-la e delimita-a. O jus publicum europaeum teria convertido, pois, a Europa em uma grande cidadela fortificada, protegendo-a contra os de fora e humanizando os conflitos entre os Estados soberanos. Ao mesmo tempo, relegava a guerra para fora, esse vasto estado de natureza hobbesiano, imensas zonas sem lei, que serviriam para desafogar as tensões intraeuropeias e, por conseguinte, garantir o equilíbrio europeu. Por não encontrarem uma forma-Estado nessas localidades, esses espaços poderiam ser tomados e partilhados, de acordo com o direito do mais forte, assim como suas populações, que poderiam ser subjugadas, violentadas, exterminadas e, até mesmo, apropriadas e escravizadas. No entanto, nada disso parecia importar à ordem jurídica europeia, já que esse era o preço para o equilíbrio ser mantido. Nesse contexto, as fronteiras no universo de Schmitt parecem exercer várias funções. Em um primeiro momento de sua obra, elas denotam um caráter de diferenciação. Dentro de sua compreensão de política, as fronteiras servem de refúgio aos amigos e de oposição aos inimigos. A relação entre ambos, portanto, é uma relação dividida, já que compartilham apenas uma fronteira em comum. Em o Nomos da Terra, obra da maturidade, as fronteiras ganham outra complexidade e até mesmo um caráter fundante. Se para o autor, é a tomada da terra que engendra o direito, então é o soerguimento das primeiras divisas e fronteiras que redundam na fundação das primitivas ordens jurídicas. É através delas que se partilha e ordena o solo, opondo seus habitantes aos de alhures. Nessa esteira, com o advento do Estado-nação as fronteiras parecem ter sido colocadas a serviço de uma atividade de reconhecimento. Seriam elas que separariam os povos um dos outros, mas também é porque além delas se encontra um adversário igual a mim, membro de um Estado igual ao meu e integrante do mesmo nomos que o meu, que não é mais possível reconhecer nele um inimicus absoluto; ao revés, ele será um justus hostis. Isso implica uma mudança de 182


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