Nº 146, Junho 2005

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Cartas na mesa

FILME «CRUZADA» DESPERTA DEBATE ENTRE CRISTÃOS E MUÇULMANOS Duas semanas após a sua estreia, o filme “Reino dos Céus” (Kingdom of Heaven), de Ridley Scott, muitos grupos de direitos humanos, políticos e especialistas vêem o filme do realizador britânico - que narra as sangrentas batalhas entre cristãos e muçulmanos pelo controlo de Jerusalém no século XII - como uma aposta arriscada. “O filme mostra as cruzadas de forma equilibrada, apesar das inquietações de que o filme poderia retractar os muçulmanos de forma estereotipada”, afirma o Conselho de Relações Islâmico-americanas. “Infelizmente, é uma das raras oportunidades em que um muçulmano irá ao cinema sentindo-se satisfeito com a forma como um filme retractou o Islão”, diz Rabiah Ahmed, coordenador desta instituição, que assistiu ao filme em Los Angeles. Os cristãos, por sua vez, parecem ter saído igualmente satisfeitos. “Com as tensões políticas e sociais entre o Ocidente e o mundo islâmico, fazer um filme em que alguém mata um inimigo em nome de Deus pode tornar-se incendiário ou ser politicamente incorrecto. Este filme não caiu em nenhuma destas armadilhas”, afirma Steve Beard, editor da revista metodista conservadora “Good News Magazine”. Porém, Khaled Abu Al-Fadl, professor de Direito da Universidade da Califórnia, pensa o contrário. “É um típico filme de Hollywood, que mostra os muçulmanos como seres irracionais, desonestos, mentirosos, enquanto os cristãos são retractados como tolerantes, justos e racionais. É o mesmo tipo de cruzada que George Bush empreendeu contra o Iraque e o Afeganistão e reflecte a crença de muitos cristãos deste país de que ele prestou um favor a estes povos”, diz Al-Fadl. O historiador britânico Jonathan Riley Smith, também especialista em cruzadas, disse, pelo contrário, que o filme “é uma versão da história contada por Osama Bin Laden”, mostrando os muçulmanos como um povo “sofisticado e civilizado” e os cristãos das cruzadas como “bru-

Filhos de pescadores na escola são como peixes fora de água

verso e reverso

A modernização e escolarização da comunidade piscatória da Nazaré A pesca na Nazaré foi sempre para a grande maioria dos pescadores uma vida de grande risco e poucos ganhos, ainda que a opção pelo mar fosse o destino óbvio e o espaço de afirmação para os filhos dos pescadores. Foi sempre esta a imagem que as famílias dos pescadores transmitiram aos filhos. Com o desenvolvimento económico que o país conheceu a partir da entrada na Comunidade Económica Europeia, muitos filhos de pescadores passaram a ter possibilidade de fugir à vida do mar, realizando finalmente aquilo que sempre tinha sido tentado sem sucesso: o emprego em terra. Era bastante comum entre as famílias piscatórias procurarem para os filhos, mal estes cumpriam a escolaridade obrigatória, um lugar numa oficina onde pudessem aprender uma arte, ou no comércio. E isto tornava-se uma obsessão por parte das mães que tinham visto morrer um filho ou o marido no mar. Os filhos da comunidade piscatória da Nazaré só nos últimos vinte anos entraram efectivamente no 3o ciclo e no ensino secundário. Até aos anos oitenta, poucos eram os filhos dos pescadores que iam além do ensino primário. Quando no início dos anos setenta a escolaridade foi alargada para os seis anos, os filhos dos pescadores pouco aproveitaram desse alargamento: a escola pouco lhes dizia. A maior parte dos rapazes desistia antes de cumprir o ciclo preparatório; e as raparigas nem sequer estudavam para além da quarta classe. Iam aprender costura. Nos anos oitenta, deu-se o alargamento da escolaridade para o terceiro ciclo. Os filhos dos pescadores que acabavam o ciclo preparatório passaram a ter a possibilidade de prosseguir os seus estudos. Contudo, a maior parte acabava por desistir antes de lá chegar. O Mário, pescador de 42 anos, disse-nos que ainda chegou a frequentar o 2o ano do Ciclo Preparatório; mas não acabou: “Quando faltava mês e meio para o fim das aulas e ...ainda há uma distinção entre os filhos começava o tempo quente, o pessoal gostava de das famílias piscatórias, ou que ainda mantêm ir para a praia, e deixava de ir às aulas. Quando de alguma forma o padrão tradicional os pais nos mandavam ir para a escola, respondíamos: “Não vou!”... e pronto, não acontecia mais de educação dos filhos, caracterizado por uma nada”. “A escola era uma obrigação”. É também esta relação com a escola que Cemaior margem de liberdade e autonomia que leste Malpique encontrou nos anos oitenta entre os é dada às crianças, e os filhos de uma classe filhos dos pescadores da Afurada. média que exerce um maior controlo sobre os «Parece-nos que as crianças deste meio piscatempos e os espaços das crianças. tório, tal como os pais, não valorizam muito a escolaridade, ainda que digam o contrário. Na formação do Ideal do eu acaba por ter mais peso o modelo comportamental dos pais. Admitimos que o marcado vínculo que liga todas estas crianças à mãe reforça mais a dependência aos valores tradicionais do que Ideais do Eu promotores de mudança, mesmo quando estes valores são veiculados pela mãe» (1990: 248). Se no início da década de oitenta havia pouco interesse em que os filhos prosseguissem os estudos, nos anos noventa há um empenhamento dos pais na formação escolar tanto das filhas como dos filhos. E isto representou um sinal evidente de modernização das famílias piscatórias, sobretudo no domínio das expectativas em relação aos filhos, e a leitura que fazem das transformações da sociedade nazarena e das oportunidades de vida e de futuro para eles. A maioria das famílias piscatórias tinha consciência plena de que a escola não garantia aos filhos uma ascensão social. O que pretendiam é que ela lhes permitisse pelo menos ter um emprego onde pudessem ganhar a vida. Com os anos noventa, a comunidade piscatória retira, finalmente, partido da escolaridade alargada. Mas esta mudança foi possível porque tanto a comunidade piscatória como a escola se transformaram. Alguns professores que entrevistei consideram que ainda há uma distinção entre os filhos das famílias piscatórias, ou que ainda mantêm de alguma forma o padrão tradicional de educação dos filhos, caracterizado por uma maior margem de liberdade e autonomia que é dada às crianças, e os filhos de uma classe média que exerce um maior controlo sobre os tempos e os espaços das crianças. E esta diferença de atitudes é notória, quer no acompanhamento escolar, quer no comportamento dos filhos dos pescadores na escola. Uma professora de origem piscatória dizia que as crianças da Praia são prejudicadas porque os professores as estigmatizam devido à sua origem. Segundo esta professora, mesmo os poucos que chegam ao secundário acabam por abandonar e empregar-se no comércio. E esta impressão é confirmada pelas declarações de um outro colega, para quem os alunos do meio piscatório, mais fracos, vão sendo filtrados e ficando pelo caminho. E os poucos que sobrevivem, segundo as suas palavras, matriculam-se nas opções que lhes parecem mais fáceis e não chegam a completar o secundário.

tos e bárbaros”.

E AGORA professor? José Maria Trindade Escola Superior de Educação de Leiria

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a página

da educação

Fonte: AFP

Bibliografia: Malpique, Celeste (1990) A Ausência do Pai, Porto: Edições Afrontamento.

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