Recife na trilha das festas

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editorial

ABRINDO

a pista DE DANÇA

Cada geração tem os artistas que merece. Esta máxima, geralmente usada para se questionar a qualidade daquilo que se é consumido pelos mais jovens, quer dizer simplesmente que o que cada geração produz na arte é reflexo direto daquilo que ela vivencia no seu cotidiano. Desde sempre, as diversas formas de arte se fazem presentes nas sociedades para interpretar momentos históricos importantes, e a música é, entre elas, uma das quem tem maior poder de comover e agregar as massas. Podemos dizer, logo, que a cena musical de uma cidade é tão mais produtiva quanto maiores e mais profundas forem as questões sociais que enfrenta. O Recife é um exemplo disso. Refletindo na arte os seus problemas urbanos crônicos, se tornou, ao longo dos anos, um dos principais celeiros artísticos do planeta. Foi assim que, nos anos 90, a então “quarta pior cidade do mundo” deu à luz uma cena musical frutífera, que veio a ser chamada de mangue bit - uma cena que, longe de ter terminado, foi se transformando junto com o público. Talvez a música do Recife não tenha necessariamente mudado, mas se tornado mais adequada às suas novas demandas. Essa evolução da música se expressa claramente por meio do entretenimento. Liderados por DJs, os circuitos de festas alternativas no Recife sempre tiveram o papel de vanguarda, criando novas cenas, movimentando espaços e trazendo tendências de fora para dentro da cidade. Observar esses eventos oferece não só um panorama do ponto de vista da produção cultural, mas também possibilita uma análise antropológica da sociedade onde ela se insere. Por isso eles foram escolhidos para ser, ao mesmo tempo, o palco e o personagem dessa pesquisa. Me propus analisar a nossa cena alternativa atual, percorrendo seu circuito de festas e conversando com figuras variadas, desde os precursores do mangue bit até os DJs atuais. O resultado está aqui, em “Recife na trilha das festas”. Nesta série de reportagens, vamos mergulhar no universo das festas alternativas do Recife. Já na primeira matéria, “A Festa da Moda”, uma visita a um evento numa noite de sábado rendeu reflexões sobre o circuito atual: os DJs adquiriram um comportamento empreendedor, e as festas eletrônicas se tornaram uma das atividades mais promissoras financeiramente. Apostando em um conceito, que envolve desde o gênero musical até a identidade visual e escolha dos estabelecimentos, as festas temáticas vêm atraindo grandes quantidades de público, ocupando um lugar que, até alguns anos antes, pertencia aos shows. Para entender melhor o assunto, pedi a opinião de quem faz as festas. Trago aqui declarações de Lucas Logiovine, criador da produtora Golarrolê, além dos DJs e produtores Guilherme Gatis e Bruno Pedrosa, das festas Superingosto e Tropicaos, respectivamente. Na segunda matéria, “Pré-mangue: as festas pioneiras”, volto ao ponto em que tudo começou para descobrir que foi em meio às primeiras festas de discotecagem no Recife que nasceu o mangue bit, o principal movimento cultural surgido na cidade nas últimas décadas, que a inseriu definitivamente no mercado fonográfico nacional e internacional. Foi, inclusive, com a ocupação de velhos estabelecimentos por estas festas que teve início a revitalização do Recife Antigo,

hoje o principal pólo cultural da cidade. E foi, ainda, a partir delas que se começou a dar mais valor à profissão de DJ no nosso meio artístico. A história é contada por dois de seus protagonistas: Helder Aragão, ou DJ Dolores, e Renato Lins, ou DJ Renato L. Essa busca histórica nos anos 90 continua na terceira matéria da série, “Grandes produções dos anos 90”, que conta com depoimentos da produtora Patrícia Cassemiro e do artista plástico e antigo festeiro Fernando Peres. A cidade, já eletrizada pelo movimento mangue, viu seu circuito eletrônico tomar outras proporções com festas que agitavam a cena alternativa algumas vezes por ano. Eram grandes produções, que precisavam de meses de preparação e muita criatividade para chegar ao resultado final. Mesmo que ainda não tivessem o sucesso financeiro conquistado pela cena atual, essas festas atraíram recordes de público e renderam algumas boas histórias, que tentei reproduzir aqui. Com uma abordagem mais técnica, a quarta matéria, “O DJ dois ponto zero”, busca desvendar essa profissão, outrora subvalorizada e hoje glamourizada no meio artístico. A reportagem traz uma retrospectiva do ofício da discotecagem, com a evolução das diferentes mídias, dos equipamentos utilizados e da própria figura do DJ, que, com a nova realidade tecnológica, precisou adquirir outras habilidades para conquistar o seu espaço no mercado cultural. Trago aqui opiniões de diferentes representantes dessa arte na cidade: os DJs 440, Renato L, Bruno Pedrosa, Guilherme Gatis, Guilherme de Paula e Thiago Guimarães. Por fim, em “Da pista para o palco”, quinta matéria da série, trago uma discussão sobre contrapontos entre as cenas eletrônica e autoral - ambas atuais, mas que se mostram ora complementares ora antagônicas no cenário cultural do Recife. A matéria traz opiniões e expectativas de alguns integrantes da Cena Beto, atualmente figuras centrais na categoria de música autoral local: Jean Nicholas, Juvenil Silva e D Mingus. Eles falam sobre as ideologias desse coletivo - que oscila entre cena e movimento, enquanto os críticos ainda estão às voltas para compreendê-lo e classificá-lo. Opinam ainda sobre o tipo de som que fazem, sobre o comportamento do público e expectativas para o futuro da música na cidade. Que esta série de reportagens seja fonte de diversão e informação para o leitor, é o que espero colher como fruto dessa pesquisa, que precisou de boas doses de tempo e paciência (mas proporcionou muitos momentos prazerosos) para ser concluída. Apesar das dificuldades encontradas para reunir todo o material, desde as inúmeras entrevistas até a longa busca ao arquivo dos jornais da cidade, o trabalho foi encerrado trazendo a sensação de dever cumprido - ou pelo menos a certeza de que essa trilha teve um bom ponto de partida. Temos aqui uma análise atual, trazendo pontos de vista que se opõem e se complementam, além de reunir tantas histórias interessantes, que talvez teriam se perdido com o tempo se não tivessem encontrado um lugar para serem contadas. Está aberta a nossa pista de dança. Entrem e fiquem à vontade. Boa leitura! 03_


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