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A história, como argumento e narrativa da nova paisagem cultural

A história, como argumento e narrativa da nova paisagem cultural.

Os trabalhos vão partir da identificação e avaliação e valorização do patrimônio tombado a nível federal e suas correspondentes áreas de entorno definidas nas respetivas portarias. Queremos por tanto, fazer uma breve reflexão sobre o conceito de patrimônio cultural no Brasil, e particularmente no Rio de Janeiro, e seus desdobramentos contemporâneos no contexto também de ICOMOS e da UNESCO.

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Colocar em discussão formas diversas de construir narrativas, e fazer com isso sentido do passado, não é fácil. Sem perder rigor e qualidade científica a narrativa deve incorporar os valores naturais e culturais, mas também, e sobretudo, um discurso de apropriação por parte da sociedade da história, da geografia, e dos bens imateriais, a chamada percepção que nasce de processos participativos que deveremos ativar.

Por isso, a patrimonialização do passado, como estratégia contemporânea, requer uma leitura sistemática e objetiva (dentro do possível). As práticas de representação historiográfica, geográfica, cartográfica, artística, cultural (pictórica, literária, cinematográfica...) do passado, devem estruturar todas às operações de apropriação num processo dialético e coletivo.

Neste recorrido de análise dos planos e das políticas que envolvem a gestão dos bens e dos entornos das portarias do IPHAN no Rio de Janeiro extraímos algumas linhas para a discussão nos próximos meses durante a proposta metodológica e instrumental dos novos instrumentos prevista no projeto PRODOC. Elas são divididas em fins e objetivos, ou a imagem que queremos; em reflexões sobre o caráter territorial, nas suas dimensões e escalas; em análise de bens e entornos, para tratar das questões que refletem sobre os tombamentos; e aquelas ideias que refletem sobre as portarias referentes aos entornos e as áreas de amortecimento.

Uma imagem global ou uma imagem local?

A reputação internacional do Rio de Janeiro foi construída progressivamente, mais no exterior, do que no interior do país. No mínimo, duas imagens, não convergentes, foram construídas da mesma cidade, do mesmo espaço, e nos mesmos tempos. Os estereótipos foram sendo conformados por imagens primordiais consolidadas ao longo de séculos. As transformações urbanísticas de modernização, que podemos falar que dão início com os primeiros engenhos de açúcar no fim do século XVI, vão se intensificar com João VI, com a construção de referências arquitetônicas, como o neoclassicismo da escola francesa, por políticas de comércio exterior e de propaganda, que envolvem os grandes eixos de equipamentos públicos, e pelos filmes de outros países, em particular as produzidas pelos Estados Unidos da América, que idealizaram os estereótipos, de entre eles a praia, a paisagem, a sensualidade, o bom tempo e a música.

Ao mesmo tempo, a realidade social, económica e ambiental do país estavam construindo um espaço diferente. Os brasileiros nas suas visões fílmicas estavam começando a confrontar a realidade com filmes como Dois Filhos de Francisco (Breno Silveira, 2005), Cazuza (Sandra Werneck, 2004), Olga (Jayme Monjardim, 2004), Carandiru (Hector Babenco, 2003) e Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002). O

crescimento e crise das comunidades nos morros e nas baixas, o desrespeito ambiental, a violência, os desequilíbrios sociais, a perda de identidade, a globalização da cultura, e outros diversos problemas estavam crescendo, tão rápido quanto a urbanização acelerada e descontrolada.

Até ao final da Segunda Guerra Mundial a construção da imagem de marca internacional da Cidade Maravilhosa é fruto da interação de intenções nacionais e da capacidade de tradução e interpretação cultural da indústria cinematográfica norte-americana. Hoje, os meios de comunicação, mais rápidos, e menos comprometidos com uma narrativa bonita do que com uma realidade violenta, fora de escala e sangrenta, escolhem preferentemente as notícias que a população consome. Sua realidade não é abrangente, nem sequer prioriza os aspetos mais relevantes para nossa convivência, mas sim as audiências, lideradas pelas fake News, ou notícias falsas.

Duas realidades por tanto convivem e o patrimônio cultural deve entender as duas dimensões como um equilíbrio entre realidade e utopia (Hoyuela Jayo, Borsagli, & Mesquista, Paisagem, Memoria e Utopia, durante o processo de construção da Nova Capital de Minas, 2015 f). Leituras idealizadas podem se colocar na base das nossas propostas, mesmo como objetivos impossíveis, mas horizontes que orientem nossas ideias para um mundo ideal não podem esquecer a realidade que hoje vivem o país ou a cidade de Rio de Janeiro.

A dinâmica de consolidação de ícones representativos do patrimônio cultural e natural do Rio de Janeiro deve se repensar, não só na realidade, mas no ideário de planejadores e gestores culturais se constituindo como um eco do futuro, uma base da afirmação da cidade no imaginário de quem tem responsabilidade no patrimônio a longo prazo. E tudo isso num contexto de crise institucional, econômica, de segurança e de mudanças climáticas.

A construção da imagem e da narrativa do tombamento, e dos planes de gestão dos bens, nas cidades, nas paisagens e nos centros históricos deve se apoiar na sua relação com a história urbana e com os processos que deram forma a essas paisagens. A partir de aí, da reconstrução das bases da paisagem, a partir dos tempos geológicos, da lógica fisiográfica, começar a identificar os momentos mais relevantes para a construção da identidade e dos valores do local. Porque são esses valores locais, esse genius locci, quem pode nos ajudar a manter os valores do local. Valores do substrato natural, da lógica territorial das bacias, da lógica das águas, dos solos e da agrologia, junto com a lógica dos processos de construção territorial coerentes com suas propostas.

Figura 7 . - As narrativas propostas incluem aspetos ambientais e aspetos culturais, lógicas ecossistêmicas e momentos históricos. Na imagem, a Lagoa Rodrigo de Freitas, com referências dos ecossistemas originais (restingas, mangues, morros...) e também das industrias que ocuparam a região e dos primeiros assentamentos e aterros.

Respostas a problemas globais, relacionados com a perda de identidade, com as mudanças climáticas, com a concorrência urbana a escala planetária, devem ser respondidos com a lógica que nasce do local, donde o que nos diferencia, e nos identifica, deve protagonizar nossas iniciativas, sem perder de vista o entorno, nem o contexto exterior.

Sistematizar e entender o patrimônio desde o território.

“é preciso urbanizar o campo e ruralizar a cidade” (Cerdá, 1968)

Devemos integrar a paisagem, entendido como o lugar donde acontece o que dá sentido ao patrimônio. Esse sentido "paisagístico" das declarações aprofunda nos valores não só desde a perspectiva artística, cultural ou monumental, mas também ambiental, ecológica, funcional, histórica, sentimental, perceptiva, económica, social... Também introduz a componente multiescalar, que exige olhar com diferentes zooms, a diferentes escalas, e a componente das narrativas históricas que unem os elementos componentes desses sistemas.

Figura 8 . - Os engenhos se expandiram pelo Brasil a partir do final do século XVI como uma estrutura territorial de caráter autónomo e rural. Na Bahia de Guanabara não serão representados nos mapas da família Teixeira Albernaz nem no mapa de 1665 (só as povoações), e nunca tão bem quanto os pernambucanos ou os baianos, e sempre no entorno imediato da baia de Guanabara, mesmo que, na época, já tinham sido construídos os engenhos da Fonte: Biblioteca Nacional de França, João Teixeira Albernaz II, neto de Luis Teixeira.

O patrimônio cultural não nasce de forma isolada e suas relações naturais e culturais com outras escalas do território tem que ser compreendidas e integradas nas nossas propostas desde que identificadas e valoradas nas nossas análises. Enfim, os grandes desafios hoje seriam, resumindo muito, entender o caráter sistémico do patrimônio, integrar seu reconhecimento dentro de uma ideia mais ampla de paisagem, é conseguir uma gestão sustentável a partir de um planejamento integrado. Por isso não podemos esquecer seu caráter territorial.

Para gerir as paisagens do século XXI, mesmo as de predominância cultural, uma visão conceitualmente holística, e espacialmente unitária, é necessária devido à su complexidade e à necessária integração entre valores e critérios de intervenção. A

Paisagem se manifesta como o instrumento capaz de sintetizar e ordenar essa complexidade. Nesse paradigma, com base no caráter do lugar, e não só na sua forma construído, elementos imateriais, ambientais e derivados do processo participativo, serão igualmente integrados.

Figura 9 . - A proposta UTOPIA elaborada dentro do projeto do Mapa Histórico Digital de Belo Horizonte, tenta pensar a cidade planejada da Nova Capital desde uma perspectiva contemporânea, ecológica e integrada. Fonte: mapa histórico digital de BH (Hoyuela Jayo J. A., Mapa Histórico Digital da Cidade de Belo Horizonte, 2015 g).

Para isso, um novo planejamento integrado e participativo é necessário. As interações dos bens a proteger com o território, exige a participação de todos os agentes: internacionais, nacionais, estaduais e locais, públicos e privados. E essas escalas de decisão “vertical” devem também conviver visões setoriais, mas sintéticas e operativas. Não podemos nos deixar levar por uma lógica administrativa baseada exclusivamente nos graus de responsabilidade. É necessário uma maior interoperabilidade e consenso no planejamento desde um contexto global e não setorial e seletivo.

Por tanto se faz necessário trabalhar em escalas múltiplas, desde o local até o metropolitano, e com diferentes olhares, desde diferentes disciplinas, para conseguir poder proteger e dinamizar adequadamente as paisagens do século XXI.O desenvolvimento urbano, o meio ambiente, as políticas de transporte, de turismo, de riscos e os planos territoriais, que nos conectam com o território como um todo são não são necessárias, mas fundamentais.

É necessário proteger os valores a partir do conhecimento profundo dos elementos componentes, a partir de entender os seus limites, e suas conexões, nas suas diferentes

escalas, e a partir de aí propor um desenvolvimento sustentável e de acordo com os tempo e valores derivados de um pacto social. Desse processo participativo deriva o caráter dinâmico e perceptivo da paisagem reconhecido pela Convenção Europeia ou também pela IFLA.

As paisagens devem manter esse caráter diante de outras prioridades, o que significa buscar calma, a tranquilidade, a manifestação de transcendência, a excelência ambiental, social e económica da paisagem, e sua coerência cultural, histórica e patrimonial, mas também a coerência dos processos ecológicos e da base ambiental que as caracterizam.

A paisagem é construída sobre tradições, vazios, lacunas e desafios, e não necessariamente de objetos, serviços e intervenções. Devemos "desconstruir" uma parte do território para entender suas essências, mas também devemos trabalhar com o vácuo, o entorno donde ela se manifesta. Intervir na paisagem não é necessariamente sinônimo de construção da paisagem, mas muitas vezes o contrário, de voltar às origens, de resgatar os fundamentos da paisagem. Esses elementos base são a geomorfologia, a vegetação e as plantas originais, agrológicamente coerentes, a lógica das águas, elementos em definitiva que expressam a funcionalidade antes do que a forma, os valores de coerência entre forma, função e beleza, por cima dos objetos entendidos como elementos isolados e autónomos.