Mistério e Tradição no País Basco (Francês) (2013)

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País Basco (Frânçes) Londres Mistério e Tradição Misteriosa e secreta GUIAS INSÓLITOS DO MUNDO

Vítor Manuel Adrião

2013


____________________________________ Mistério e Tradição no País Basco (Françês)

Mistério e Tradição do País Basco (Françês)–– Por Vitor Manuel Adrião Quinta-feira, Abr 11 2013 lusophia 18:30

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Lusophia | 2013__________________________________________________________

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INDICE

SIMBOLISMO ESOTÉRICO DA CRUZ BASCA (“LAUBURU”) ............................................................... 4 CRUZ CÍCLICA DE HENDAYE ........................................................................................................... 5 A ESTRANHA “VIA CRUCIS” DE S. SALVADOR D´IRATY .................................................................... 8 SALVATERRE-DE-BÉARN: A PONTE DA LENDA .............................................................................. 11 O JAVALI DA FONTE ENCANTADA (SALIES-DE-BÉARN) .................................................................. 12 SIMBOLISMO HERMÉTICO NO HOSPITAL SAINT-BLAISE................................................................ 14 SAINT MARIE DE BAYONNE, HERMETISMO E TRADIÇÃO .............................................................. 17

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Lusophia | 2013__________________________________________________________ SIMBOLISMO ESOTÉRICO DA CRUZ BASCA (“LAUBURU”) Lauburu é o nome que recebe em euskera a cruz suástica de braços curvilíneos que constitui o emblema representativo do País Basco. A sua origem europeia recua aos celtas que através das emigrações dos povos do Oriente para o Ocidente teriam herdado esse símbolo conhecidíssimo em todo o Oriente, particularmente na Índia onde o Hinduísmo e o Budismo faz profuso uso dele. Foi assim que o lauburu entrou na tradição céltica dos primitivos bascos, mas também asturianos e galegos, chamando ao mesmo de tetrasquel pelos seus quatro braços curvilíneos circum-giratórios. Com efeito, o termo lauburu compõe-se das duas palavras bascas lau, “quatro”, e buru, “cabeça”, portanto, “quatro cabeças”, ou seja, quatro braços dirigidos às “cabeças” ou pontos cardeais do Mundo (Norte, Sul, Este e Oeste) num movimento contínuo. Quando no tempo do imperador Octávio Augusto os romanos invadiram e ocuparam a Bascónia ou País dos Bascos chamaram ao lauburu de labarum, e provém deste etimólogo a denominação popular da estrela cantábrica, de origem celta, chamada lábaro. Esta suástica basca por seu movimento sinistrocêntrico (da direita para a esquerda) será antes uma sovástica, e se bem que a cultura esotérica hindu e budista desaprecie tal símbolo por representar o movimento oposto ao destrocêntrico (da esquerda para a direita) em que se move a Evolução geral de tudo e todos, ainda assim é representativa do Poder Temporal oposto complementar à Autoridade Espiritual representada pela suástica. Por essa razão a sovástica expressa sobretudo o movimento da Matéria que, por ser limitada, está sujeita à lei da transformação pelo fenómeno natural da Morte. Esta, a Morte, é tradicionalmente representada pela Noite, a Lua, o astro nocturno predilecto dos povos ante-diluvianos ou atlantes que veio a ser regente astral do povo basco, vasco ou “adorador da vaca” que identificavam não como o planeta Vénus mas como a própria Lua cujas hastes do crescente associavam às do cornúpeto. Por este motivo, ainda hoje o País Basco é um grande produtor de gado bovino, herança de um passado longínquo onde se considerava a vaca animal sagrado, tal qual acontece na Índia. Se o basco é povo lunar, já o galego, adorador do galo, a ave do dia, é povo solar, enquanto o asturiano, astur ou assur é povo mercuriano, planeta de natureza andrógina ou bissexual que serve de permeio ao Sol e à Lua, representativos do masculino e do feminino como princípios activo e passivo de que ele, Mercúrio, é o neutro ou equilibrante. Por este motivo de inter-relação esotérica entre as três étnias ibéricas, é que a suástica faz parte da sua cultura espiritual.

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____________________________________ Mistério e Tradição no País Basco (Françês) Como as cores verde e vermelha da bandeira basca são as mesmas que a Tradição Iniciática dá às Energias Celeste e Terrestre chamadas no Oriente de Fohat eKundalini, será então a suástica expressiva do movimento universal dessa Energia dupla que ao animar a Matéria como electricidade e electromagnetismo vem a ser uma espécie de “incarnação” de Forças invisíveis que se tornam visíveis, alterando-se o movimento giratório dessa cruz celeste tornando-se na Terra sovástica. Por este motivo tornou-se símbolo da Morte, razão pela qual aparece em inúmeros monumentos funerários bascos. Já nas Astúrias e na Galiza (por exemplo, em Grullos, Quirós e Piornedo) ele também aparece, mas com menos frequência predominando asuástica, símbolo da Vida e do Sol. Utilizado como amuleto ou talismã pelos bascos, além das construções funerárias o lauburu também aparece gravado nos frontispícios das casas, para que o mal e a morte não invadam as mesmas. Nisto, é um signo esconjurador mágico de grande poder. Apesar da sua grande antiguidade, o lauburu só aparece nas bandeiras e outras insígnias bascas desde o final do século XVI ou princípios do XVII. Modernamente é utilizado com profusão como símbolo da cultura basca, com carácter folclórico ou tradicional, e não necessariamente como emblema político, apesar do sentido excessivo que lhe foi imposto e lhe é absolutamente estranho atendendo às suas origens sagradas.

CRUZ CÍCLICA DE HENDAYE A povoação de Hendaye passaria desapercebida se não fosse indicada como espécie de axis mundi ou “centro axial do mundo” sobretudo graças à misteriosa cruz no adro da sua igreja de São Vicente, edificada em 1598 com duas portas românicas portando as armas reais de França que recordam a assinatura do Tratado dos Pirinéus em 1659. De facto, Hendaye dispõe-se no centro exacto do Golfo de Biscaia, no território ocupado desde há milhares de anos pela etnia basca, e está disposta estrategicamente junto à rota para Santiago de Compostela vinda do Norte de França e atravessando o País Basco. A chamada “cruz cíclica” de Hendaye, assim encravada estrategicamente dando aso a uma geografia sagrada, parece assinalar tudo isso na profusão dos símbolos que a decoram a ponto de ter levado o alquimista Fulcanelli a dedicar-lhe um capítulo inteiro 5


Lusophia | 2013__________________________________________________________ no seu livro O Mistério das Catedrais. Segundo esse autor, esta cruz também é conhecida por “Monumento ao Fim dos Tempos” e os seus símbolos indicam a passagem da actual Idade do Ferro ou Kali-Yuga, em sânscrito, caracterizada pelo materialismo e o afastamento das leis da Natureza, para a futura Idade do Ouro ouSatyaYuga, em sânscrito, tipificada pelo espiritualismo e a reintegração do Homem na Natureza por já então cumprir as leis por que a mesma se regula e manifesta. Então, o reinado universal da desarmonia dará lugar ao reinado da Harmonia universal. Trata-se, pois, de uma mensagem apocalíptica mas realçando a esperança num tempo melhor, por certo utópico no presente ciclo profano mas não num ciclo sagrado que é a lógica da mensagem deste cruzeiro. No travessão horizontal da cruz lê-se a frase latina em letras maiúsculas: OCRUXAVES PESUNICA, anagrama da frase latina O CRUX AVE SPES UNICA, isto é, “Salve, ó Cruz, única Esperança”. A letra S, propositadamente disposta dessa forma que intriga o observador mais atento, é a chave da mensagem ocultada na cristianíssima frase: representa as “lágrimas alquímicas de Cristo”, que é uma expressão usada pelos alquimistas cristãos para definir a destilação ou extracção das virtudes naturais, as da Natureza mas também as da alma humana, durante a fase da Crisopeia ou “Fábrica do Ouro”, esta que em última instância refere-se à Iluminação do Adepto Filosófico, o Alquimista. No alfabeto hebraico o S é a inicial da letra Samekh, com o significado de “serpente de fogo” e associada ao Arcanjo da Luz, que sendo Samael ou Lúcifer exprime astralmente o planeta Vénus, este que os judaico-cristãos associam à manifestação do Messias ou Avatara nos Fim dos Tempos, isto é, na passagem de um Ciclo Planetário para outro. Portanto, a mensagem derradeira desta “cruz cíclica” dirige-se à evocação do Segundo Advento de Cristo sobre a Terra, a Parúsia Universal, com que inaugurará uma Nova Era de Paz e Progresso para o Mundo, e de forma alguma, como querem alguns alheios aos cânones dos Símbolos da Tradição, contendo a mensagem caricata de “2012 – Fim do Mundo” (que verificou-se redundar em absolutamente nada excepto como excelente marketing comercial para muitos que lucraram com os temores supersticiosos alheios de muitíssimos). As quatro faces do pedestal estão figuradas e igualmente têm dado aso a interpretações fantasistas onde o incongruente é o dominador comum. Numa face, vê-se o Sol antropomórfico cuja boca parece vomitar quatro estrelas postadas nos cantos angulares. Representa a ciclicidade espaço/temporal por que se manifesta a Vida Universal, ou seja, os 4 Ciclos universais assinalados pelas estrelas indicativas dos planetas regentes dos mesmos: a Idade do Ouro (Satya-Yuga) marcada pelo Sol; a Idade da Prata (Tetra-Yuga) assinalada pela Lua; a Idade do Bronze (Dwapara-Yuga) indicada por Vénus; a Idade do Ferro (Kali-Yuga) regida por Marte, cuja beligerância faz-se hoje sentir por toda a Terra. 6


____________________________________ Mistério e Tradição no País Basco (Françês) Por isso, o Sol Central, representando a própria Divindade, esboça um esgar de tristeza e repulsa, com o sentido moral de ver a Humanidade sua Criação hoje desavinda entre si e até O renegando. Contudo, a presença do Sol remete ao retorno às origens primordiais, a uma Nova Idade de Luz, à saída do caos intercíclico para a ordem da Harmonia Universal. Donde, o duplo sentido das iniciais INRI também gravadas nesta cruzeiro: se na interpretação teológica imediata significa em latim Ieseus Nazarenus Rex Ieduorum, “Jesus Nazareno Rei dos Judeus”, igualmente significa Ignis Natura Renovatur Integra, “Pelo Fogo se renova a Natureza inteira”. O Fogo de Deus que é o Logos Solar, eterno mantenedor e transformador da Vida Universal, e que é assinalado pelo X no topo da Cruz, inicial grega de Xpõ ou Christus em latim, ou seja, Cristo, “o Verbo que se fez carne”, que se manifestou na Terra.

Noutra face do pedestal, está gravada a Lua crescente com rosto humano. Representa o aspecto feminino da Criação, a fecundidade e a nutrição que mantém e regula os Ciclos de Vida. É algo assim como a “contraparte” do Logos ou Divindade Criadora, que no aspecto mais imediato da religião confessional representa-se em Maria Mãe ao lado do Cristo Filho, incarnação de Deus Pai. Por isso, é aqui representada com rosto antropomórfico. Ademais, volvendo novamente ao sentido de “fecundidade e nutrição”, 7


Lusophia | 2013__________________________________________________________ a Lua postada desta maneira representa tradicionalmente o quinto elemento natural, o Éter ou Akasha, a chamada Quintessência da Natureza e que se associa a Vénus, planeta feminino por excelência segundo os antigos hermetistas que o associavam à própria Virgem Mãe apodada Stella Maris, “Estrela-do-Mar” ou “sobre o Mar”, este figurativo das águas etéricas da Criação. Ainda hoje a ladainha mariana evoca Maria como Stella Maris, que sendo Vénus é considerado tradicionalmente oalter-ego da Terra, tal qual Maria é a Mãe Soberana do Mundo. Essa prerrogativa é confirmada na terceira face do pedestal, onde se vê uma estrela de oito pontas que é a figuração tradicional dada a Vénus, mas também, aqui, indicadora de ser este um lugar obrigatório de paragem durante a rota compostelana, ou seja, onde todo o peregrino deve reflectir sobre Compostela ou Campus Stellae, o “Campo da Estrela”. Por isto, a estrela de oito pontas também representa a Cavalaria Espiritual, ou por outra, o Companheirismo que caracterizou os antigos monges-construtores e igualmente os peregrinos jacobeos, adoptando o caminho quer como forma de expiação dos seus pecados, quer como via para alcançar a Iluminação marcada pela Estrela do vasto Campo de suas almas peregrinas sedentas de Luz. Finalmente, na quarta face do pedestal vê-se uma cruz dentro dum oval e em cada quartel uma letra A. Será a inicial da letra grega Alpha, como igualmente da letra hebraica Aleph, ambas com o mesmo significado de “início, começo”, em latim initio, aqui certamente o das quatro Idades tradicionais do Mundo que o oval com a cruz assinalam, pois que é o símbolo tradicional do planeta Terra, como seja, uma cruz dentro de um círculo. Aliás, da forma mais simples e imediata cada uma das quatro faces do pedestal marca uma Idade do Mundo: a face com o Sol a Satya-Yuga; a face com a Lua a Tetra-Yuga; a face com a Estrela ou Vénus a Dwapara-Yuga; a face com a Terra afligida por Marte aKali-Yuga. O cruzeiro no topo expressa o retorno da Humanidade à Idade de Ouro, a uma nova Satya ou Kryta-Yuga, a “Arcádia dos Deuses”.

A ESTRANHA “VIA CRUCIS” DE S. SALVADOR D´IRATY A capela de São Salvador de Iraty, situada no topo da montanha na comuna de Mendive, é de fácil acesso e constitui uma etapa obrigatória no caminho para Santiago de Compostela que atravessa a vila próxima de São João ao Pé da Porta. Todos os anos, pela festa da Ascensão do Senhor, realiza-se uma importante peregrinação até ao templo de São Salvador. Trata-se de um edifício românico do século XII que no século XIII aparece referido nos documentos com o nome de Sanctus Salvador juxta Sanctum 8


____________________________________ Mistério e Tradição no País Basco (Françês) Justum, sendo que a partir de 1460 ficou definitivamente conhecido como SentSaubador (São Salvador). Esta capela pertenceu à comendadoria de Apat Ospitalea (São João o Velho) da Ordem de Malta, que por sua vez dependia da de Irissarry (Iraty). Sobre a chave do arco da porta oeste, acompanhada da inscrição INDART, lê-se a data 1727, que corresponde à da restauração deste templo feita a pedido de Jean Oxoby-Indart, cura de Béhorléguy, quando se fizeram algumas modificações nele. O que não se modificou e permanece envolto em mistério é a sua estranha via crucis e as lendas sobrenaturais que tornam ainda mais misterioso este lugar. A via crucis dispõe-se em volta da capela num total de 13 cruzes, marcando as estações da subida ao Calvário de Jesus Cristo. Cada estação é representada por uma coluna ou peanha suportando um caixilho de pedra contendo a inscrição Estacionea(“Estação”), o número da mesma e uma cruz basca, tudo encimado por uma cruz de ferro. Começa aqui o mistério: a via crucis ou “caminho da Cruz” é assinalada por 14 cruzes e não por 13. Falta a 14.ª cruz, a do “enterro de Jesus”. Por que ela não figura aqui, tornando a via incompleta? Porque para a devoção basca a São Salvador de Iraty o Senhor não morreu, o seu enterro por curto espaço de tempo foi episódio de somenos importância comparada sua à Ressurreição e Assunção com a promessa de Advento no Final dos Tempos ou do Ciclo de Humanidade. Por isso é que se vê na última estação ao lado da Cruz à direita um Sol estilizado à esquerda. Representa o Triunfo da Cristandade Iluminada sobre a lei da morte ou da fatalidade, já que Cristo é o Sol da Vida. Além disso, o significado cabalístico do número 13 de cruzes em volta da capela sugere uma função mágica destinada a protegê-la das influências maléficas dos principais 13 espíritos do mal que tentam impedir o Segundo Advento de Cristo sobre a Terra, tendo em mente que o 13.º capítulo do Apocalipse é o do Anticristo e da Besta. Se o número 13 é o da Morte, esta é anulada pelo número 14 representado pela própria capela de São Salvador, o que mata a Morte e impõe o reinado eterno da Vida. Nisto, Cristo é o próprio 13.º Sol Espiritual tendo em sua volta os 12 signos zodiacais assinalados pelos 12 Apóstolos. Assim, também, o sentido maléfico do número 13 é fatalmente sobreposto

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Lusophia | 2013__________________________________________________________ pelo seu significado mais elevado de protecção e alento das almas na fé no retorno do Senhor. Ao significado da batalha apocalíptica entre Cristo e o Anticristo relaciona-se a lenda do candelabro do génio sobrenatural Basa Juan, que está no interior desta capela. Trata-se de uma peça de ferro e cobre enegrecidos que, segundo a lenda, originalmente era de ouro puro e brilhante. Certo dia, estando o génio distraído na sua caverna, um pastor audacioso entrou nela e roubou o candelabro de ouro. Basa Juan perseguiu-o de imediato e só se deteve à porta desta capela de São Salvador onde o pastor procurou refúgio, sabendo que os génios e outros espíritos são detidos pelos símbolos sagrados dos lugares religiosos. Aqui, o círculo protector da capela foi o próprio circuito de cruzes. Basa Juan vem a representar a Besta apocalíptica e o pastor aquele Pastor de Almas, o próprio Cristo, que no Final dos Tempos, diz a lenda, devolverá a Luz áurea ao candelabro encantado. O povo basco francês, com as suas rivalidades com o povo basco espanhol, também conta que esse candelabro está enegrecido porque certa ocasião os espanhóis atacaram Mendive e incendiaram este lugar de culto, o que não está absolutamente provado senão na lenda. Tudo isso é representado pela imagem de São Miguel esmagando o Dragão do Mal ou o próprio Diabo que se vê dentro da capela. Representa igualmente o domínio pelas forças celestes das energias terrestres ou telúricas, servindo o templo de pólo de atracção e encadeação de ambas as forças, neutralizando-as, ou melhor, equilibrando-as entre si através dos cruzeiros plantados no solo, com a função de reguladores e distribuidores das energias atraídas. Essa interpretação geo-celeste é corroborada pela Xaindia, isto é, a Santa, uma pequena estatueta de madeira policromada muito antiga representando uma jovem com o braço esquerdo levantado ao céu e o direito dirigido à terra tendo mão uma enxada. Encontrase numa pequena construção quadrada, espécie de nicho, junto à capela. A sua postura sugere que está evocando tanto as forças de cima como as de baixo, assim representando a Santa o próprio “Espírito” desta Montanha de São Salvador, o chamado Genius Loci, “Génio do Lugar”. A lenda conta que ela, certa noite em que saiu de casa para procurar a enxada, foi agarrada por génios do ar e levada pelo espaço, mas ao sobrevoar esta capela, proferiu uma prece a São Salvador e os génios depuseram-na docilmente no chão, onde hoje está a sua imagem.

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____________________________________ Mistério e Tradição no País Basco (Françês) SALVATERRE-DE-BÉARN: A PONTE DA LENDA Desde a ocupação romana que a ponte de Salvaterre-de-Béarn, situada na margem direita do rio do Oloron, é uma das principais vias de acesso do País Basco Francês a Espanha, e durante muitos séculos foi pomo de discórdias e disputas entre as duas regiões francesa e espanhola. Quando as armas e a política falhavam ficando empatadas ambas as partes, os nobres recorriam à magia e feitiçaria contratando os bruxos de ambas as margens do Oleron que lançavam feitiços uns sobre os outros, os bascos franceses amaldiçoando os bascos espanhóis e vice-versa, tudo por causa da soberania política de uma parte sobre a outra, ficando a ponte encantada por tantas maldições enviadas através dela por ambos os lados. Foi nesse ambiente mágico de rivalidade geopolítica que nasceu no século XII o nome por que até hoje é conhecida esta edificação fluvial: ponte da lenda. Uma velha crónica escrita pelo Abade Menjoulet conta o milagre de Sancie, soberana de Béarn, que sofreu no Oleron “o Julgamento de Deus pela água”: em 1170 a viscondessa Sancie vivia no castelo de Sauveterre-de-Béarn e estava de esperanças, grávida da sua primeira criança que garantiria a continuidade desta linhagem basca francesa, facto que trazia o povo contente aguardando ansioso o momento feliz do parto. Entretanto, o seu esposo, o jovem visconde Gaston V, havia partido para o outro lado dos Pirinéus para participar na cruzada contra os mouros na Península Ibérica. Sancie deu à luz um rapaz, mas o recém-nascido, disforme em todo o corpo, morreu no momento preciso em que se deu a morte de Gaston V em terra espanhola. A morte da criança provocou então uma viva reacção das gentes de Sauveterre-de-Béarn, e começou a correr o boato de que Sancie praticava a feitiçaria. A morte da criança seria, pois, uma punição divina! O tumulto foi tão grande que os barões béarnais e os notáveis da cidade, desamparados, remeteram-se ao rei Sancho de Navarra, irmão de Sancie. Este veio a Sauveterre e, perante a situação, tomou a decisão brutal de subtmeter a sua irmã ao “Julgamento de Deus”. Assim, numa manhã fria de Fevereiro, vestida só com um robe branco e com os braços e as pernas amarrados, Sancie é levada até ao meio da ponte onde a esperavam o rei, o bispo, os nobres e apopulação, num total de mais de 3000 pessoas. Após ter sido interrogada pelo bispo, a infeliz foi 11


Lusophia | 2013__________________________________________________________ violentamente agarradas pelos soldados e precipitada nas águas tumultuosas da ribeira do Oleron: se sobrevivesse à prova era inocente, mas se perecesse era culpada. Sancie desapareceu sob as águas, arrastada pela corrente violenta. Mas subitamente, sobre um banco de areia, a três tiros de flechas da sua queda, ela reapareceu, inconsciente mas viva. Então, a notícia do milagre percorreu a povoação: Sancie estava viva! Sancie era inocente! Conduzida de novo diante do bispo, este deu-lhe a bênção e declarou-a oficialmente inocente. Foram organizadas grandes festividades na cidade e em agradecimento à Virgem Maria, Sancie ofereceu a Nossa Senhora de Rocamadour um rico manto coberto de pedrarias bordado com fios de ouro. Sancie reinou longo tempo em Béarn, honrada e amada por todos os béarnais. Essa lenda explica-se à luz das rivalidades geopolíticas da época que opunha a nobreza francesa à espanhola, com esta acabando por respeitar a autonomia e independência daquela representada na própria viscondessa Sancie. Aos poucos as rivalidades foram serenando e aumentando a fama da ponte como ponto de passagem de França para Espanha dos peregrinos de Santiago de Compostela. Chegou mesmo a construir-se, no século XIV e sob a regência de Gaston III de Foix-Béarn (dito Gaston Fébus), um hospital para socorrer aos peregrinos, junto à ponte que passou a chamar-se ponte do hospital, sendo melhorada com uma escadaria de acesso a uma ponte levadiça e uma pequena torre onde se cobrava portagem aos transeuntes, excepto peregrinos. De 1525 a 1725, a ponte recebeu ainda vários melhoramentos (já antes, no século XIII, ela recebera consideráveis melhoramentos sendo fortificada sob a governação de Gaston VII de Moncade, senhor de Béarn, quando ficou conhecida como ponte maior), mas em 1732 um violento caudal da ribeira do Oleron derribou boa parte da sua estrutura que nunca mais foi reconstruída ficando tal como hoje se vê, revelando os últimos vestígios desse aspecto da arquitectura militar medieval.

O JAVALI DA FONTE ENCANTADA (SALIES-DE-BÉARN) Salies-de-Béarn foi fundada por um javali, diz a voz popular apontando o lugar onde foi encurralado e morto e lá está se esculpiu a sua cabeça que se tornou símbolo da cidade: a fonte do javali (fontaine du sanglier). Segundo a antiga lenda de fundação de Salies-de-Béarn, cerca do ano 1000 uns caçadores perseguiram um grande javali que vivia na floresta que era toda esta região. O animal refugiou-se num atoleiro onde foi emboscado e morto por uma lança atirada à distância. Chegando junto dele, viram que o javali estava coberto por uma película 12


____________________________________ Mistério e Tradição no País Basco (Françês) branca de cristais produzidos pela evaporação da água cristalina que brotava de uma nascente no solo. Havendo água que se verificou ser medicinal, e sendo o terreno propício para a agricultura e o pastoreio, em breve as pessoas começaram a ir viver junto desse manancial líquido e foi assim que a cidade nasceu e cresceu, tudo graças ao javali da lenda. Essa água é pura de origem marinha. Ela brota em Salies há mais de 200 milhões de anos estando a sua origem a 5000 metros de profundidade. É duas vezes mais salgada que a água do mar estando carregada de numerosos sais minerais e oligo-elementos, notadamente o magnesium (anti-fadiga) e o lithium (anti-depressivo). É um dos raros sais do mundo a ter tantas boas bactérias halófilas extremas, vivas, os famosos BHEV que dão o seu sabor particular ao sal e que têm uma acção benéfica sobre o corpo humano. Por isso, lê-se em gascão (béarnais) as significativas palavras inscritas na fonte do javali, obra de 1927 postada num ângulo da Praça do Bayaà de Salies-de-Béarn: Se you nou y eri mourt, arres n´y bibere, “se eu não fosse morto, ninguém viveria”. Essa frase dispõe o sacrifício do sanglier como indispensável à sobrevivência dos homens, e de facto o nome francês do animal decompõe-se dois termos afins a este tema: sang, “sangue”, e glier ou glider, “suporte”, ou seja, “sangue que suporta”, que dá a vida. Por outro lado, se palavra francesa bourbier significa “nascente”, já a semelhante a essa, bourbelier, traduz-se exactamente como “peito do javali”, o que remete, mais uma vez, para a disposição sacrificial do animal, este que na cultura religiosa hindu é identificado a Vahara (javali) como incarnação do Deus Vishnu(equivalente ao Filho na teologia cristã) e o qual é montado por todos os Bodhisattvasou “Budas de Compaixão” que se deixam sacrificar pelo Bem da Humanidade, algo assim semelhante ao Cristo ou Chrestus da religião do Ocidente. Por esse motivo o javali era considerado animal sagrado pelas mais antigas religiões, sendo que entre os celtas que viveram nas imensas florestas do Béarn era o símbolo da Autoridade Espiritual detida pela sua casta sacerdotal, a druida, encarregue da instrução e manutenção espiritual do povo. A perseguição e morte do javali pelos caçadores, 13


Lusophia | 2013__________________________________________________________ certamente será a alegoria da religião celta perseguida e exterminada pelos cristãos que vieram a simbolizar o demónio na figura do javali e até do porco, por expressar a cultura ancestral antagónica à sua muito recente, pois a colonização cristã só se torna eficaz praticamente após o século V d. C. com a queda do império romano, enquanto os celtas recuavam ao período da Proto-Histórica cuja cultura já existia nas Idades do Bronze e do Ferro. Confundido com o porco, do qual, aliás, pouco se distingue (os celtas tinham varas de porcos que viviam praticamente em estado selvagem), o javali constituiu o alimento sacrificial da festa céltica de Samhain, correspondendo à festa das colheitas realizada em 31 Outubro – 1 de Novembro, e era o animal consagrado a Lug, deus supremo do panteão lígure e celta. No grande banquete de Samhain o alimento principal era a carne de porco, e em vários relatos místicos fala-se de um porco mágico que nos festins do Outro Mundo permanece sempre assado e nunca acaba. O pai de Lug, o deus Cian, transforma-se no porco druídico, o javali, para escapar aos seus perseguidores, porém, morre sob forma humana. Isto significa a passagem dos valores da religião celta à religião cristã, facto figurado localmente por Saint Théodore de l´Alliance (São Teodoro da Aliança) e também por Saint Martin (São Martinho), corruptela do galoromano Moccus, “porco”, um dos epítetos dados ao deus Mercúriocuja função principal é servir de intermediário entre Deus e o Homem, tal qual o sacerdote hindu, celta ou cristão, onde o javali é o símbolo da sua autoridade recebida após a reclusão na floresta, o retiro espiritual em alguma caverna ou eremitério, para que depois, possuído do saber adquirido na fonte da espiritualidade, possa nutrir, alimentar a todos, corpos e almas, com a água da vida física sustida pela da vida eterna.

SIMBOLISMO HERMÉTICO NO HOSPITAL SAINT-BLAISE A igreja do Hôpital Saint-Blaise (São Brás) situa-se no limite do País Basco e do Béarn, junto ao caminho de Santiago de Compostela, e a sua origem recua ao século XII quando aqui havia o “Hôpital de la Miséricorde” (Ospitále Pía, em basco, “casa grande”, possível referência à primitiva abadia beneditina de Sainte-Christine) entretanto desaparecido, só sobrevivendo este templo classificado como monumento histórico desde 3 de Março de 1888 e entrado no património mundial pela UNESCO em 1998. Fundada em 1120, esta magnífica igreja românico-bizantina que recebeu melhoramentos no século XIII e foi restaurada nos séculos XVII e XVIII, quando se a enriqueceu com o retábulo barroco e outros ornamentos, conserva ainda vestígios dos conhecimentos herméticos dos primitivos mestres construtores que deixaram os sinais da sua ciência 14


____________________________________ Mistério e Tradição no País Basco (Françês) secreta nas formas geométricas com que delinearam e alindaram este templo de São Brás, como se vê, por exemplo, na sua cúpula octogonal cujas nervuras configuram uma estrela de oito pontas tendo ao centro a lanterna, obra românica possivelmente inspirada na cúpula da mesquita de Córdova. Sendo a representação tradicional da “estrela” Vénus (a guia dos peregrinos, dos pastores e dos povos nómadas da antiguidade que por ela se norteavam nos seus trajectos), retém sobretudo a sua qualidade de luminária, de fonte de luz. A sua representação na abóbada desta igreja diz respeito, especificamente, ao seu significado e carácter celeste, fazendo com que seja símbolo do Espírito rompendo a obscuridade da Matéria e iluminando a esta, tornando-se motivo da manifestação central da Luz Divina que iluminando o espaço sagrado, numa epifânia que os místicos islâmicos e judeus chamam de Shekinah ou “Manifestação Real de Deus”, faz deste lugar um centro místico incontornável para quem peregrina na busca da Sabedoria de Deus, perscrutando os sinais da Natureza que os antigos arquitectos iluminados deixaram gravados na pedra muda. O tema dos conhecimentos herméticos expressos através da geometria sagrada repete-se nos motivos decorativos da janela românica num dos lados exteriores do templo, que está tripartida a guisa de expressar os Mundos Divino, Celeste e Terreno. No cimo, vê-se um trevo em triângulo representativo das Pessoas da Santíssima Trindade (Pai, Filho, Espírito Santo), e abaixo uma corrente em X alusiva ao nome grego de Cristo, Xristós, o “Ungido”, como intermediário entre Deus e a Humanidade. Finalmente, na base têm-se dois pentagramas erectos lado a lado. Representa o microcosmo ou “pequeno universo” humano no estado de perfeição humana e espiritual (por isto apresentam-se em duplos), representando assim a Humanidade regenerada, radiosa com a Luz Divina em meio às trevas do mundo profano, pronta a receber o Messias que também é assinalado pela Estrela Luminosa, como consta na Bíblia no Livro de Números (24, 17). Explica-se assim a presença de uma estrela pentalfa nas moedas cunhadas por Simão Bar Kobba (“Filho da Estrela”), chefe político-religioso da segunda revolta judaica em 132-135 da nossa Era, considerando a mesma como imagem do Messias aguardado. 15


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Se o tema da Luz predomina no simbolismo geométrico desta igreja, assim também o seu Orago São Brás é considerado um “santo ígneo”. Associado à protecção das guildas profissionais dos fabricantes de velas ou cirieiros, a celebração da sua festa instituída a 3 de Fevereiro é imediata à das Candelárias ou de Nossa Senhora das Candeias, da especial predilecção dos antigos cavaleiros templários que parece terem andado por aqui na sua época. Talvez por esse motivo, se apresente no exterior do lado norte da igreja uma pedra de efígie com a cruz templária repetida duas vezes, utensílios de ferreiro (a arte metalúrgica da forja incandescente) e o nome do autor: Ramon Casanave – 1615. Seria, possivelmente, um adepto conhecedor dos segredos da metalurgia hermética e do significado oculto do Orago local, todo ele ligado ao elemento fogo, facto que o povo local festeja num ritual estranho: nas noites de 3, 4 e 5 de Fevereiro os agricultores e pastores da região lançam os pêlos do seu gado num braseiro aceso ao cair da noite, e dançam em torno da fogueira, evocando o fogo de São Brás para que purifique a eles e ao seu gado de todos os males. Este costume será possivelmente uma reminiscência pré-cristã de algum rito celta também ele ligado à luz e ao fogo mas na pessoa do seu deus Lug, cujos predicados luminosos são os mesmos de Saint-Blaise du Hôpital. Ao mesmo tempo, não será demais ter em conta que, por mais de uma ocasião, os festejos em honra de São Brás implicam a presença de irmandades devotas (como a de Saint-Blaise du Hôpital que vem em peregrinação a esta igreja todos os anos na data do seu padroeiro), que apesar de já terem perdido o seu carácter original, as suas tradições revelam ainda que teriam se correspondido com antigos colégios iniciáticos, mais ou menos secretos e sempre discretos, entregues à conservação mistérica de certos rituais cujo sentido real seguramente escapava ao povo, ainda assim cumprindo-os em datas predeterminadas, mas que corresponderiam a celebrações perfeitamente estabelecidas num contexto de carácter gnóstico, de conhecimento transcendente possuído, com toda a probabilidade, pelos mestres construtores medievais e por alguns templários e peregrinos 16


____________________________________ Mistério e Tradição no País Basco (Françês) de Santiago de Compostela que até hoje continuam a passar por esta igreja basca plantada à beira do caminho.

SAINT MARIE DE BAYONNE, HERMETISMO E TRADIÇÃO A catedral de Santa Maria de Bayonne está situada em pleno coração desta cidade, no centro histórico sobre a colina que domina os rios Adour e Nive. Erguida sobre um antigo templo românico entretanto destruído pelos incêndios de 1258 e 1310, esta catedral foi construída em gótico flamejante nos séculos XIII e XIV, sendo os seus belíssimos vitrais, datados de 1531, já do período da Renascença. Paragem obrigatória para os peregrinos a Santiago de Compostela, esta catedral caracteriza-se pelas figuras escultóricas que a decoram alusivas aos primitivos maçons operativos ou mestres construtores medievais, tendo deixado aqui os sinais herméticos da sua passagem dando a Arte Real da construção livre, nos moldes da arquitectura sagrada, como inspirada a eles directamente por Deus Soberano do Mundo e do Universo. A primeira referência à Maçonaria Operativa está num dos lados da entrada da catedral, onde se vê um mestre canteiro com o maço e o cinzel em pleno exercício de esculpir uma coluna. O maço representa o poder, a força, é a acção do obreiro cuja energia, força e decisão são necessárias para que perserve no seu trabalho. O cinzel, que recebe a força dirigida de forma útil e ordenada, simboliza o discernimento, a a inteligência que dirige a vontade. O nome correcto do cinzel, considerando a sua função, será escopro, do latim scalprum, donde deriva a palavra esculpir. O termocinzel é a raiz de cinzelado, que significa “trabalhado ou executado com delicadeza”. Por este motivo, representa a “coluna” ou princípio da Beleza, que o maçom cria através da pedra modelando-a em formas finas de perfeição artística assim embelezando a construção do templo, e essa coluna esculpida por ele representa, na perspectiva espiritual, o desenvolvimento das suas faculdades morais e intelectuais subordinadas à prudência e à sabedoria, esta simbolizada pela maço, e aquela (prudência) pelo cinzel. A correlação dos instrumentos de ofício e das suas várias fases de desenvolvimento a princípios espirituais e morais do próprio construtor livre, foi imposta pelos monges beneditinos e cistercienses, que originalmente eram eles próprios monges construtores plantando capelas, igrejas e catedrais como esta de Bayonne no caminho compostelano, para que os peregrinos de Santiago Maior tivessem espaço condigno à prática da meditação sobre o seu aperfeiçoamento interior. Por isto, aparece próxima à escultura do canteiro uma outra de um monge com o cajado e a cabaça de peregrino. 17


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Herdeiros das ciências herméticas e pitagóricas relativas à geometria e matemática aplicadas à arquitectura com finalidade sagrada, os monges construtores e os mestres canteiros eram considerados pela gente vulgar, despossuída de tais conhecimentos, verdadeiros génios que mais pareciam os anjos de Deus a fazer a “cantar a pedra” para relevar nela a Beleza Divina. Essa ideia dos maçons incarnando os anjos está representada nos inúmeros escultóricos desses com instrumentos musicais, que são as “alfaias celestes” metamorfoseadas, nas mãos dos canteiros, nos instrumentos da sua arte.

Tal como Deus Espírito Santo criou o Mundo da Matéria, representada pela Virgem Maria, também os mestres construtores elevam o Mundo da Matéria à Perfeição de Deus através da sua Arte Real. A posse desta ciência representava-se na barca soprada pela Pomba do Espírito Santo, assim iluminando as mentes dos seus ocupantes infundindolhes o conhecimento que fazia deles anjos criadores aos olhos do mundo. É este o significado hermético da barca com os marinheiros santos e a Pomba empurrando a mesma, vista no medalhão colorido na abóbada do transepto da catedral. Essa barca é igualmente a primeira representação do chamado cogue pelos bascos, que ainda em 1304 circulava no Mar Mediterrâneo segundo o cronista toscano Giovanni Villani, mas cujo significado sagrado é o deste mesmo templo ter sido feito segundo o modelo da barca de Deus que iluminou os seus obreiros à feitura de obra tão maravilhosa. O Château d´Abbadie é sem dúvida a mais estranha, insólita e até bizarra construção arquitectónica que existe no País Basco Francês. Os símbolos, figuras e estátuas que o 18


____________________________________ Mistério e Tradição no País Basco (Françês) decoram repletem-se de significados ocultos sob a aparência que já de si também é assombrosa. Desde estátuas de animais africanos e sul-americanos dispostos estrategicamente neste espaço hoje museológico, até ornamentações de natureza esotérica, tudo aqui pauta pela raridade e singularidade. O estilo neogótico do Château d´Abbadie destaca-se na paisagem de Hendaye (Pirinéus Atlânticos), na província do Labourd, e compreende as seguintes partes principais: a biblioteca e o observatório, a capela e finalmente a habitação. Foi construído entre 1864 e 1879 segundo os planos dos arquitectos e paisagistas Clément Parent, Edmond Duthoit e sobretudo Eugène Viollet-le-Duc, a pedido do proprietário Antoine Thomson d´Abbadie (Dublin, 1810 – Paris, 1897), o famoso explorador dos sertões do Brasil e dos desertos do Egipto e Etiópia (Abissínia) de 1847 a 1858, o que lhe valeu ser eleito membro da Academia das Ciências Francesa em 1867, tendo escrito uma obra importante relatando os resultados das suas investigações no território africano, Geodesia da Alta Etiópia. Além de explorador, foi também astrónomo, antropólogo e linguísta. Muitas das figuras zoomórficas que decoram este castelo de Abbadie são efectivamente da fauna etíope e egípcia, mas sugerindo um significado diverso do aparente como se repara, por exemplo, no jacaré ou crocodilo do Nilo postado ao lado da escadaria de acesso ao edifício como se fosse o guardião do mesmo. Usando da Cabala Fonética ou Gematria, a palavra jacaré deixa o subentendido de um outro significado além do simplesmente decorativo da escultura: jacaré em latim é jaccareque se relaciona foneticamente ao outro termo latino jocari, “jogar”, ou seja, interpretar a linguagem ou mensagem cifrada que esta e outras esculturas bem parecem velar. Posto assim, o crocodilo simboliza o cosmóforo ou “portador do mundo”, expressando o construtor e transformador permanente da Terra saído do Caos Primordial para a gerar, e assim se mantém, como divindade ctónica e lunar, como aquele que “devora” diariamente o Sol, simbolismo reportando à sua natureza cosmogónica caracterizando-o como o que disseca os ciclos de existência ao mesmo tempo que inicia outros novos, garantindo assim a solução da marcha avante da Evolução Universal. Por isto, é o símbolo fundamental das forças que dominam a morte e o renascimento. Sob o nome Leviatã o crocodilo é descrito no Livro de Jó, na Bíblia, como saído do Caos original, pela razão já apontada. Na teologia do Antigo Egipto, o crocodilo expressava o deus Sobek, devorador das almas impuras indignas de adentrar o Amenti, a região subterrânea dos deuses do panteão egípcio. E aqui, postado à entrada do castelo de Abbadie, por certo figurando o sentido de guardiãodos mistérios subentendidos no figurino desta casa, que é exactamente o significado dado pela religião hindu ao temível sáurio a quem chama Makara. 19


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Nos lados da entrada no átrio deste castelo, imediatamente a seguir ao crocodilo, estão esculpidos dois caracóis que são prolongamento do simbolismo daquele. Devido à sua casca espiralada e por ser considerado universalmente um símbolo lunar, o caracol indica a regeneração periódica: tal como a Lua que aparece e desaparece, ele mostra e esconde os seus chifres, simbolismo esse remetendo para a morte e o renascimento que são o tema do eterno retorno. Significa também a fertilidade devido à espiral que carrega em sua casca, tornando-o representação da teofania lunar, ou seja, da Natureza inteira regulada pelos ciclos da Lua. Nos hieróglifos egípcios, a espiral é representada por um caracol, simbolizando essa figura geométrica tão difundida na Natureza a evolução da Vida Universal. A própria Via Láctea é em forma de espiral, e foi assim que Antoine d´Abbadie quis representar a escadaria espiralóide de acesso ao seu observatório astronómico em cujo topo está desenhado em formas geométricas arabizantes o 20


____________________________________ Mistério e Tradição no País Basco (Françês) Universo, tendo inscrito na sua luneta meridiana, feita na Alemanha e que é única, a significativa frase em língua basca: Ez ikuzi ez ikazi, “não vejo, não aprendo”. Mas ele quis ver, quis aprender os mistérios do Universo, e para isso “cavalgou” o caracol, simbolicamente falando de acordo com a frase enigmática dos antigos hermetistas: “Só cavalgando o caracol é que se pode entender o Universo”. Na balaustrada por cima da entrada no átrio e sob o escudo com o monograma de Antoine Thomson d´Abbadie, desce uma serpente enrolada num obelisco. Domina a paisagem geral e parece destinar-se a incutir o temor de engolir aos “curiosos e profanos” que ousam acercar-se e adentrar, como “almas indignas ou impuras”, o “espaço sagrado” desta notável Mansão Filosofal. À primeira vista, atendendo ao aparente zelo católico do proprietário, poderá tão-só alegorizar a serpente que se enrolou no bastão de Moisés segundo o relato bíblico. Mas atendendo também aos seus outros interesses multivariados, incluindo a hipótese do seu interesse pelo hermetismo tradicional perante o figurino desta escultura que faz parte da arte simbólica hermética, segundo esta a serpente descendo o obelisco representa o encadeamento da energia do constelado celeste à energia telúrica da Terra, representando assim o pólo central das energias geocelestes concentradas neste castelo. Aliás, Antoine d´Abbadie foi um estudioso e investigador das correntes magnéticas da Terra, inclusive estando o seu observatório equipado para detectar tremores telúricos. Por outro lado, atendendo ao carácter místico deste homem singular, a serpente descendo do obelisco pode muito bem igualmente assinalá-lo como um Iluminado pelo Céu, pela Divindade, pois que a serpente na cultura árabe é representativa de Deus Vivificador, Hel-Hay, e é chamada ElHayyah, a que transmite a Vida, El-Hayat, e isto tanto física como espiritualmente. O Hinduísmo atribui o mesmo significado à serpente, chamando-a Ananta, dizendo que por ela o Fogo Criador de Deus, chamado Kundalini, se manifesta tanto na Natureza quanto no Homem que se purifica e fica apto a recebê-lo e assim ficar Iluminado. Se Antoine d´Abbadie acaso adoptou secretamente alguma afiliação esotérica aparte do seu postulado católico romano, não será de estranhar por não ser raro muitos Iniciados adoptarem publicamente uma religião confessional e no privado seguirem uma corrente sapiencial, de acordo com as palavras de Cristo destinando “o leite para as crianças (conhecimento exotérico, público) e a carne (saber esotérico, privado) para os adultos”, para que se possa “ler o espírito que vivifica por debaixo da letra morta”. Levanta-se uma questão: a que Ordem Iniciática pertenceria o proprietário deste castelo? Seria membro da Maçonaria? Não há dados disponíveis sobre isso, tampouco sobre o arquitecto Eugène Viollet-le-Duc, que foi quem deu o gosto neogótico ao imóvel, mas à entrada deste está gravado numa lanterna um A e um V entrecruzados que sugerem o 21


Lusophia | 2013__________________________________________________________ símbolo maçónico do esquadro e do compasso, havendo uma estrela na base da peça que se iluminava quando esta era acesa. Será, pois, a Estrela da Iluminação caríssima à Maçonaria por representar a própria Luz maçónica conferida aquando da Iniciação simbólica, onde o Iniciado renasce como um homem novo, tal qual a Estrela do Natal assinala o nascimento do Novo Messias que foi Cristo. Mas não passa de mera hipótese a eventual afliação secreta de Antoine d´Abbadie na Maçonaria, mesmo não sendo de a descartar completamente. Assim, na leitura imediata o A é inicial de Antoine e o V da sua esposa Virgine, sendo a estrela aquela que ilumina a visão e o entendimento de quem transpõe a entrada, para que não tropece e caia nos degraus do alpendre ainda antes de entrar, coisa que também não é incomum, sobretudo nos dias d´hoje de grande cegueira humana. Este castelo e o seu proprietário identificam-se à mais bela Obra de Deus feita no País Basco. Daí, conter a legenda basca gravada repetidamente: Jainkoa bera langile on izanagatik, nahi du lankide, ou seja, “Deus sendo bom Obreiro, viu um companheiro de trabalho”. O castelo vem a ser símbolo de protecção, e no seu sentido metafísico o que ele protege é a transcendência do espiritual. Por isto, o castelo branco da iluminação é sinónimo de realização, de um destino transcendente perfeitamente cumprido, após se ter logrado a perfeição divina. É o lugar onde a alma e o seu Deus estarão eternamente unidos e gozarão, em pleno, da sua recíproca e imarcescível presença.

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Contactos: Por correio: ao cuidado de Dr. Vitor Manuel Adrião. Rua Carvalho Araújo, n.º 36, 2.º esq. 2720 – Damaia – Amadora – Portugal Endereço electrónico: vitoradrião@portugalis.com Sítio internet: Lusophia 23


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Vítor Manuel Adrião, renomado escritor esotérico português, é consultor de investigação filosófica e histórica, formado em História e Filosofia pela Faculdade de Letras de Lisboa, tendo feito especialização na área medieval pela Universidade de Coimbra. Presidente-Fundador da Comunidade Teúrgica Portuguesa e Director da Revista de Estudos Teúrgicos Pax, Adrião é profundo conhecedor da História Medieval do Sagrado, sendo conferencista de diversos temas relacionados ao esoterismo, às religiões oficiais, aos mitos e tradições portuguesas, às Ordens de Kurat (em Sintra) e do Santo Graal, das quais também faz parte.


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