A Promessa

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Sou analfabeta. Como conseguiria publicar este texto? Que edi‑ tora o receberia? Creio que seria impossível, a menos que acon tecesse um milagre. Acredito em milagres.

«Adoro‑te e prometo que serei boa», costumava eu dizer‑ ‑lhe em criança para a comover, e muito tempo depois quando lhe pedia algum favor, até descobrir que ela era «a padroeira das causas impossíveis». Há pessoas que não compreendem que se fale a uma santa como a qualquer um. Se conhecessem todas as minhas orações, diriam que são blasfémias e que não sou devota de Santa Rita.

As estátuas ou as estatuetas representam habitualmente esta santa com um livro de madeira, misterioso, na mão que apoia sobre o coração. Não esqueci o pormenor desta atitude quando lhe fiz a promessa de, caso me salvasse, escrever este livro e de o terminar até ao dia do meu próximo aniversário. Falta quase um ano para essa data. Comecei a inquietar‑me. Pensei que seria um sacrifício muito grande cumprir a minha promessa. Fazer este dicionário de recordações às vezes vergonhosas, humi lhantes, significaria abrir a minha intimidade a qualquer um. (Talvez esta inquietação fosse infundada.)

Não tenho vida própria, tenho sentimentos. As minhas experiências não tiveram importância nem ao longo da vida nem sequer à beira da morte; a vida dos outros, pelo contrário, torna‑se minha.

Passar essas páginas à máquina, pois não disponho de di‑ nheiro para pagar a uma dactilógrafa, significaria um trabalho

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árduo (não disponho de amigas desinteressadas que saibam escrever à máquina). Apresentar o manuscrito a editores, a qualquer editor do mundo, que talvez me negasse a publica‑ ção do livro, e ter inevitavelmente de o pagar com a venda de objectos por que tenho apreço, ou com algum trabalho subal‑ terno, o único de que seria capaz, significaria sacrificar o meu amor‑próprio.

Longe vão os dias felizes com os meus sobrinhos em Palermo, nos baloiços e no escorrega a comer queijo com marmelada e caramelos de chocolate branco; tempos em que me sentia desa‑ fortunada e que agora me parecem felizes; em que os meus sobrinhos sujavam tanto as mãos a brincar com a terra que, ao voltar a casa da minha irmã, em vez de tomar banho ou de ir ao cinema, tinha de lhes limpar as unhas com sabão Carpincho como se tivessem chegado do Comando Central da Polícia depois de lhes tirarem as fatídicas impressões digitais.

Eu, que sempre considerei ser inútil escrever um livro, dou comigo comprometida a fazê‑lo hoje, para cumprir uma pro‑ messa sagrada para mim.

Embarquei rumo à Cidade do Cabo há três meses no barco Anacreonte, para me reunir com a parte menos enfadonha da minha família: um cônsul e a sua mulher, primos que sempre me protegeram. Tudo o que se espera com demasiada ansie dade cumpre‑se mal ou não se cumpre. Doente, tive de regres‑ sar assim que cheguei, por causa de um acidente na viagem de ida. Caí ao mar. Escorreguei do convés, no sítio onde estão os barcos salva‑vidas, quando me debruçava sobre a amurada para alcançar uma pregadeira que me tinha caído e que pen‑ dia do meu cachecol. Como? Não sei. Ninguém me viu cair. Talvez tivesse desmaiado. Acordei na água, atordoada pela pan‑ cada. Nem do meu nome me lembrava. O barco afastava‑se

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imperturbavelmente. Gritei. Ninguém me ouviu. O barco pareceu‑me mais imenso que o mar. Felizmente sou boa nada‑ dora, malgrado o meu estilo bastante deficiente. Passado o primeiro momento de frio e de terror, deslizei lentamente na água. O calor, o fim da manhã, a luz acompanhavam‑me. Quase esqueci a minha situação angustiante porque gosto de desporto e ensaiei todos os estilos enquanto nadava. Simulta‑ neamente, pensei nos perigos que a água me depararia: os tuba rões, as serpentes do mar, as águas‑vivas, as trombas‑d’água. Acalmei‑me com o vaivém das ondas. Nadei ou boiei oito horas consecutivas, esperando que o barco voltasse para me reco lher. Às vezes pergunto‑me como pude alimentar essa espe‑

rança. Também não sei. No início, o medo que sentia não me deixava pensar, depois comecei a pensar desordenadamente: vinham‑me à ideia professoras, talharins, filmes, preços, espec‑ táculos teatrais, nomes de escritores, títulos de livros, edifí‑ cios, jardins, um gato, um amor infeliz, uma cadeira, uma flor de cujo nome não me lembrava, um perfume, uma pasta de dentes, etc. Memória, como me fizeste sofrer! Desconfiei que estava a morrer ou já morta na confusão da minha memória. Depois, ao sentir um forte ardor nos olhos devido à água sal gada, percebi que estava viva e longe da agonia, já que, como é sabido, os afogados se sentem ditosos perto da morte e eu não o era. Depois de me despir ou de ter sido despida pelo mar, pois o mar despe as pessoas como se tivesse mãos apaixonadas, chegou uma altura em que o sono ou o desejo de dormir se apoderou de mim. Para não adormecer, impus alguma ordem aos meus pensamentos, uma espécie de itinerário que agora também aconselho aos presos, aos doentes que não se conse‑ guem mexer ou aos desesperados à beira do suicídio.

Comecei o meu itinerário de recordações com os nomes e a descrição minuciosa, às vezes biográfica, das pessoas que

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conheci na vida. Naturalmente, não me vinham à memória por ordem cronológica, nem por uma ordem que respeitasse a hierarquia dos meus afectos, vinham caprichosamente: os últimos eram os primeiros e os primeiros os últimos, como se o pensamento não conseguisse obedecer aos ditames do coração. Na minha memória algumas pessoas apareceram sem nome, outras sem idade, outras sem data de apresentação, outras sem a certeza de terem sido pessoas e não fantasmas ou invenções da minha imaginação. De algumas não recor dava os olhos, de outras as mãos, de outras o cabelo, a estatura, a voz. Como Sherazade com o rei Schahriar, de certo modo contei histórias à morte para que esta me poupasse a vida a mim e às minhas imagens; histórias que pareciam não ter fim. Tantas vezes me rio agora ao pensar nessa ordem ilusória que eu me propunha e que me pareceu tão severa no momento de a pôr em prática. Às vezes surpreendia‑me a presença vívi‑ da em mim do meu pensamento formulado numa só frase, era como uma dessas estampas que se intercalam no fim do capítulo de um livro ou que encabeçam as páginas mais importantes. Naturalmente, a ordem na mente solitária não é a mesma que no papel depois de escrito. Dentro do possível tentarei reconstruir nestas páginas aquela ordem ou desor‑ dem que construí com tanta dificuldade na minha mente, a partir do momento em que encontrei na água, como através de um vidro, uma tartaruga do mar parecida com o alfaiate Aldo Bindo, que por uma caprichosa associação de ideias me fez recordar Marina Dongui (atrás da montra de uma frutaria), que, como ele, tinha um sinal na face esquerda. Comecei a enumerar e a descrever pessoas:

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Marina Dongui

Marina Dongui, a vendedora de fruta, foi a primeira pessoa que se me apresentou involuntariamente à lembrança. Loura, branca e nervosa, assomava à porta da frutaria quando eu passava com o meu irmão, para lhe piscar um olho. Os seios dela, parecidos com certos frutos, transbordavam do decote, e o meu irmão parava para a ver: mas que digo? Não a ela, mas aos seus seios, e não às laranjas de umbigo, que eram muito caras.

– Menina Marina, quanto custam as laranjas? – pergun‑ tava o meu irmão.

– Está aqui o preço – apontava para a etiqueta com a sua mão rechonchuda e, pegando numa laranja, mostrava‑a, acariciando ‑a com um sorriso indecente, sem dúvida para provocar o meu irmão, que é giríssimo.

Por baixo da saia azul adivinhava‑se nas coxas a marca da cinta demasiado apertada. As pernas sem meias mostravam uma pele muito lisa e branca, vermelha como um damasco sardento ao aproximar‑se dos sapatos, que eram sempre pretos e de saltos finos como alfinetes.

– Menina Marina, dê‑me meia dúzia de laranjas.

– Laranjas porquê, se é a fruta de que menos gostamos? –protestava eu, sentindo o ferrão dos ciúmes que me provocava a infeliz da Marina.

A humilhação dos ciúmes é não poder escolher o objecto que os inspira.

O meu irmão Mingo aproximava‑se do balcão sem me ouvir e aí, ostentando na testa uma veia que só a emoção fazia sobressair, encurralava‑a contra as caixas; enquanto ela fazia a conta no papel em que depois embrulhava as laranjas, ele aproveitava para a apalpar. Era uma relação de frutas, símbolo

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talvez do sexo. Mas estou a fugir ao assunto a que me propus: descrever pessoas e não situações nem relações.

A cara do meu irmão sumiu‑se‑me; nem a cor dos seus olhos raiados como os berlindes de vidro azul e verdes me vem à memória.

Amar demais às vezes cega a lembrança.

Mas a quem amava?

Aldo Bindo

Aldo Bindo era baixo, corpulento e branco. Todos os domingos se dedicava à equitação. Os óculos brilhavam‑lhe na cara como numa montra; tinha uma madeixa de cabelo encaracolado e louro e uma madeixa de cabelo liso e branco na cabeça alonga‑ da. Não tinha idade. Com a fita métrica sobre os ombros como uma condecoração, vinha a correr das traseiras da alfaiataria quando o avisavam que eu estava à sua espera. Ao espelho, com o tailleur que eu já tinha vestido, observava‑me cheia de alfinetes, ajoelhado aos meus pés. Muitas vezes tornava a tirar‑ ‑me as medidas como se não as soubesse. Com um lápis que era já quase uma unha, anotava‑as num papel pardo que encon‑ trava sempre em alguma cadeira. Quando me tirava as medi das do peito, tocava com satisfação certas protuberâncias da lapela sabiamente colocadas de maneira indecente, mas cujos pormenores pertenciam ao seu ofício; quando me media as ancas, fazia girar a fita métrica com alguma impaciência, dei‑ xando‑a cair com um gesto desencantado, soltando uma das pontas, que apanhava com a outra mão para a pôr novamente em volta do pescoço. A mulher dele, ao lado do espelho, com uma cara branca e mole como um disforme miolo de pão, ia‑lhe passando os alfinetes e o giz; por vezes descosia uma costura com uma tesoura enorme, para que ele com mestria agarrasse no pedaço descosido, como um cozinheiro uma massa, e lhe

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aplicasse alfinetes para modificar uma prega sem a melhorar. Franzia o sobrolho e, quando estava constipado, o som dos seus espirros era contagioso até pelo telefone. As mãos dele pare‑ ciam preferir a colocação das mangas, tudo o que rodeasse o peito das clientes que não fossem demasiado velhas, as lapelas, os botões da parte da frente do casaco. Soprava. Resfolegava. A bainha, pelo contrário, fazia‑o sofrer. Não era suficiente fazer‑ ‑lhe uns riscos a giz para se sentir isento de responsabilidade, media com a fita métrica da orla até ao chão. Os sapatos que calçava rangiam sempre. Nunca pensei que nos seus pés hou‑ vesse unhas ou dedos metidos dentro daqueles sapatos impe netráveis. Um dia encontrei‑o numa praia e não o reconheci ao longe, mas quando ajeitou nos ombros da mulher a saída de praia gritei: «Olha o Aldo Bindo», e corri a cumpri mentá‑lo. Besuntado de bronzeador, o rosto dele brilhava de alegria, mas… e a fita métrica? Como podia estar ali sem a fita métrica? Minutos depois vi que na areia húmida, com o dedo gordo do pé, enquanto conversava comigo, desenhava uma fita métrica, falando‑me com admiração da senhora Cerunda. Naqueles dias apaixonei‑me pelo mar como por uma pes‑ soa; chorando, ajoelhava‑me para me despedir dele, antes de voltar para Buenos Aires no fim das férias.

Alina Cerunda

Alina Cerunda era bonita, apesar dos seus setenta anos. Quem disser que não era mente. No entanto, os velhos parecem estar sempre mascarados e isso arruína‑os. Eu sei de fonte segura que nunca tomava banho. Impecavelmente penteada, de cabe‑ lo armado até quando dormia, parecia limpa. Vi Alina Cerunda na cama, como um quadro. Rodeada de novelinhos de lã de várias cores, como dentro de um ninho anti‑higiénico, trico‑ tava primorosos casaquinhos para recém‑nascidos ou botas

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com pompons para velhos e doentes. Muitas vezes, como um anjo que vela pela vida alimentar dos homens, vi‑a fazer gema queimada ou toucinho do céu, palitos de champanhe e alfajores. Magrinha, alta, de cabelo branco e azul como um enfeite de um bolo, considero‑a uma das mulheres mais bonitas. Às vezes a vista cansada deixa as pálpebras avermelhas; nela o cansa ço é uma pintura que lhe torna os olhos maiores. Se ela fosse minha mãe, mandava‑lhe fazer o retrato num bom pintor e pendurava‑o no lugar mais visível de casa. Que lembrança de família! Os seus olhos verdes combinavam com a cor do colar, que era verde também.

Mas porque recordo tantas coisas que não me servem para nada? Que tédio era estar com Alina Cerunda! E agora, porque me vem à ideia? Será de mau agouro?

Gabriela

Como quando estava doente, ao fim de quarenta dias prostra‑ da ansiava pela cama, anseio pelo mar. O mar, o mar. «O mar cheio de urgências masculinas.» De quem será esse verso? Gabriela, que bonita era! Da cor da água eram os seus olhos. No mosaico de Santo Apolinário, em Ravena, o Arcanjo Gabriel tem olhos grandes e assombrados, cabelo levemente ondulado, de risca ao meio, nariz pequeno e fino, boca bem desenhada com um movimento descendente na comissura dos lábios do lado direito, expressão aprazível com um halo de santidade, o contorno da cara mais para o redondo ou não muito longo, uma túnica branca e duas grandes asas. A pobre Irene recortara de uma revista a fotografia daquele mosaico, primeiro para anotar a direcção no verso de uma folha, depois, e porque lhe agradou, manteve‑a debaixo de um vidro duran‑ te oito anos, no seu quarto de solteira. Dizia que durante a

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gravidez tinha olhado muitas vezes para a imagem, distrai‑ damente, sem pensar que a filha se ia parecer tanto com ele. Muitas vezes se admirava por Gabriela não ser rapaz, não ter asas e uma veste estranha como a da imagem. Habitualmente, para abreviar um pouco o nome e porque gostava mais de pro‑ nunciar Gabriel do que Gabriela, chamava‑lhe Gabriel. Recor‑ dava os anos da sua infância em Espanha, tão diferentes dos de Gabriel. Ter nascido em Espanha parecia‑lhe um sonho. Não tinha consciência do abandono a que por vezes sujeitava a filha e acreditava que fora a menina mais abandonada do mundo. Tinha três ou quatro anos quando a mãe se casou em segundas núpcias com um homem que não queria aturar filhos alheios. Viviam em Ginzo de Limia, uma povoação iso‑ lada e pobre. Em menos de nove meses, a mãe abandonou‑a a ela e à irmã, que era mais velha. Pediram esmola pelas ruas. Num lupanar deram‑lhes o sótão como abrigo e todas as sobras diárias.

Foi passado algum tempo, quando soube que aquelas mu‑ lheres eram prostitutas, que valorizou a bondade (nessa altura parecia‑lhe tão natural) que lhes tinham dispensado a ela e à irmã. Recordava com grande precisão uma das mulheres, que usava o cabelo solto e comprido até à cintura e que ia sempre pôr‑se à varanda para respirar ar fresco, mesmo no Inverno quando nevava. Abraçava‑a quando a via chorar, como se fosse a sua mãe. Quando teve de abandonar aquela casa (que já sen‑ tia como sua), porque o seu padrasto arrependido as mandara chamar, chorou por ela como nunca havia chorado por nin guém. O tempo que passou na casa paterna antes de embarcar para a Argentina foi fugaz. Um dia, o mais memorável, o padras‑ to, bêbedo, atou‑lhe uma corda à cintura e, da varanda do pri‑ meiro andar da casa, baloiçou‑a no ar até se juntar muita gente da aldeia, que não se atrevia a dizer nada ao homem com medo

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que ele a deixasse cair. Ela, divertida com a brincadeira, não se apercebeu do perigo que corria.

Tudo o resto se lhe apagara da memória e voltavam a sur‑ gir lembranças dos dentes de leite, de entrar para a escola, de Buenos Aires, das pessoas diferentes, da paisagem plana, do rio por todo o lado, das dificuldades da vida em casa da tia que a tinha recebido, da infância que vai mudando, da roupa que se vai tornando pequena, das múltiplas aprendizagens da vida (lavar a cara, os dentes, vestir‑se, comer, urinar, defe‑ car correctamente), da adolescência, da idade do desenvolvi‑ mento. Ao encontrar o amor acreditou na salvação efémera da sua carreira. O casamento desiludiu‑a. Atormentou‑a a notícia da morte da mãe, que passou doze horas caída na neve do bos‑ que e que os lobos não devoraram por milagre, uma morte que jamais se esclareceria. Depois, e como se isso não bastasse, seguiu‑se o abandono a que o marido a votou ao partir com outra, e depois Gabriel, Gabriel, Gabriel e Leandro… mas Gabriel sobretudo.

Vislumbrei um relâmpago no céu, depois outro e mais outro. Se fosse corajosa, como gostaria que caísse uma tem‑ pestade. Fechei os olhos. Choveu um bocadinho. Voltei a abrir os olhos. As nuvens afastavam‑se. Porque não me levarão?

Irene Roca

Irene em nada se parecia com a filha. Irene tinha um carácter alegre. As suas feições regulares faziam‑nos pensar numa boneca de porcelana deteriorada. Gabriela esperava por Irene na praça Las Heras. Seguira‑a naquele dia, que agora recordo ao evocar a cara de Irene. Estava tão bonita vestida de verde, com aquele colar de pérolas minúsculas e um par de luvas bran‑ cas, que levava na mão como um ramalhete! Gabriela perdeu‑a de vista num momento de distracção, diante de uma tabacaria

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onde vendiam berlindes de vidro. Condoída, vi‑a sentadinha num banco de madeira verde a comer uma laranja e a olhar, sem o saber, para a porta por onde a mãe tinha entrado.

O que fazem as mulheres quando não estão em casa? Sendo puras como a sua mãe, dedicavam‑se a ocupações sérias, pen‑ saria Gabriela. Depois pensaria, como sempre, no acto sexual.

O que mais desejava, no mundo da sua curiosidade, era ver um homem e uma mulher a fazê‑lo. Já tinha visto gatos, cães, pombos, guanacos, macacos praticarem esse acto, mas nunca seres humanos. Juancha, uma colega da escola, disse‑lhe que era muito divertido.

Para chegar àquele quarto desarrumado, com livros pelo chão, meias nas cadeiras, embalagens de pão meio abertas sobre uma mesa, camisas caídas no chão, Irene tinha atraves‑ sado um vestíbulo, umas portas de sacada de vidros vermelhos e azuis, da cor do mar que estou a ver, depois um pátio com plantas, gaiolas e um limoeiro ao centro. Eu conheci aquele quarto. Mas quão diferente era o lugar onde Gabriela a ima‑ ginava, mergulhada em misteriosos afazeres!

O que fazia a sua mãe? Não pensava noutra coisa. Irene contava‑lhe que na casa aonde ia de visita havia um pássaro mecânico que cantava dentro de uma gaiola de vidro com guarnições de ouro. Mentirosa. Como podia mentir‑lhe? Aque‑ la gaiola de vidro e ouro ocupava um lugar preponderante na imaginação de Gabriela. Tinha‑se transformado num palácio iluminado pelos pingentes de mil lustres, um palácio onde a sua mãe fazia lavores preciosos, com amigas perfumadas e bondosas.

Atravessava muitos quartos e jardins até chegar ao lugar onde a esperavam. Ali, numa espécie de claustro, havia um aquário enorme com peixes cobertos de asas e caudas violetas. Era a tinturaria de Valentín Masini, onde nunca levavam

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Gabriela porque o cheiro a amoníaco e a outros ácidos não era bom para a saúde.

O sol iluminava o espelho de um armário, a face de um fauno, cachos e folhas entalhadas em madeira, um gato tigrado adormecido, uma modesta cama de ferro com a pintura des‑ cascada, cortinas rasgadas e sujas que se agitavam com o vento. Gostava desse quarto! Irene também. Ela, sentada no chão, com o cotovelo apoiado na cama, de vez em quando deitava uma olhadela à desordem, como se a incomodasse, e voltaria a mer gulhar na leitura de um livro. Às vezes ficava no chão um dos seus sutiãs, um dos seus lenços. Com que ódio olhei para eles a primeira vez que os descobri, sem saber que eram de quem eram. Ela, Irene, era parte dessa desordem, uma das suas orga‑ nizadoras, também uma das suas mártires. Espreguiçando‑se como uma idiota, chamava Leandro com voz aguda. Amava‑ ‑o? Aquilo era amar?

Eu imaginava muitas vezes esta cena que me torturava. Ele tinha‑ma contado. Nem o mar me faz esquecê‑la.

A voz afogada de Leandro, sob a água do duche, respondia‑ ‑lhe como sempre:

– O que é que queres?

Ele contava‑me em pormenor as tolices que diziam.

– Não consigo estar um minuto sem ti, meu amor – dizia‑ ‑lhe sempre.

– Já vou – respondia ele com maus modos.

– Poderias explicar‑me essa questão das vias nervosas sen‑ sitivas, das vias respiratórias ou das extra‑sístoles?

– Seria melhor que não existissem – respondia Leandro, secando o rosto com a toalha; tudo lhe era indiferente e acres‑ centava, impetuoso: – Seria melhor que a humanidade não existisse, é uma porcaria.

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