Kukradja nhipejx fazendo cultura

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

Kukràdjà Nhipêjx: Fazendo Cultura Beleza, Ritual e Políticas da Visualidade entre os Mebêngôkre - Kayapó

ANDRÉ LUIS CAMPANHA DEMARCHI

Rio de Janeiro 2014


ANDRÉ LUIS CAMPANHA DEMARCHI

Kukràdjà Nhipêjx \ Fazendo Cultura Beleza, Ritual e Políticas da Visualidade entre os Mebêngôkre - Kayapó

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de DOUTOR EM ANTROPOLOGIA CULTURAL. Orientadora: Profa. Dra. Els Lagrou

Rio de Janeiro 2014


Kukràdjà Nhipêjx \ Fazendo Cultura Beleza, Ritual e Políticas da Visualidade entre os Mebêngôkre - Kayapó

ANDRÉ LUIS CAMPANHA DEMARCHI

Orientadora: Profa. Dra. Els Lagrou

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia. Aprovada por: ____________________________________________________ Presidente: Profa. Dra. Els Lagrou ____________________________________________________ Profa. Dra. Anne Marie Losonczy (École Pratique des Hautes Études, Paris, França) ____________________________________________________ Prof. Dr. Odair Giraldin (Universidade Federal do Tocantins) ____________________________________________________ Profa. Dra. Luisa Elvira Belaunde (PPGAS, Museu Nacional, UFRJ) ____________________________________________________ Prof. Dr. Cesar Gordon (PPGSA/ IFCS/UFRJ) ____________________________________________________ Suplentes: Prof. Dr. Marco Antônio Gonçalves ((PPGSA/ IFCS/UFRJ) ____________________________________________________ Suplentes: Prof. Dr. Carlos Fausto (PPGAS, Museu Nacional, UFRJ). Rio de Janeiro 24 de abril, de 2014.


FICHA CATALOGRテ:ICA


Para Sui e Tei e Para v贸 Fil贸 (in memoriam)


RESUMO

Esta tese é uma etnografia da produção cultural contemporânea dos Mebêngôkre (Kayapó), povo Jê, do Brasil Central. Partindo das tensões da categoria kukràdjà, a tradução nativa para o conceito de cultura, a tese descreve e analisa os fortes vínculos dessa categoria com a variada atividade ritual e política mebêngôkre, concedendo especial destaque às diferentes redes de relações (de parentesco, políticas e imagéticas) constituídas em torno da produção de rituais. A circulação de conhecimentos, objetos, matérias-primas, designs e imagens em extensos circuitos de comunicação e de troca intensifica disputas estéticas e imagéticas em torno da beleza das aldeias em contextos inter-aldeões e inter-étnicos de produção ritual. Privilegia-se aqueles rituais apreendidos, apropriados e inventados nas interfaces de contato com a sociedade envolvente, tais como: festas de aniversário de aldeias, cerimônias de posse de novos caciques, grandes festivais inter-étnicos e concursos de beleza para eleger a Miss Kayapó. Este enfoque não deixa de considerar também alguns temas clássicos da etnologia mebêngôkre, como as conhecidas cerimônias de nominação, a atividade feminina da pintura corporal e a produção e circulação de enfeites cerimoniais, sobretudo, aqueles feitos com miçangas.

Palavras-chave: Etnologia. Ritual. Beleza. Política da visualidade. Cultura material. Jê. Mebêngôkrê (Kayapó). Brasil Central.


ABSTRACT

This thesis is an ethnography of contemporary cultural production of the Mebêngôkre (Kayapó), a Jê speaking ethnic group, from central Brazil. Taking the ambiguities of the category kukràdjà – the native translation for the concept of culture – as a starting point, the thesis describes and analyzes the strong links between that category and the variety of Mebêngôkre ritual and political activities, with special emphasis on the different networks of (kinship, political, and imagistic) relations built around the production of rituals. The circulation of knowledge, objects, raw materials, designs, and images along extensive circuits of communication and exchange enhances the aesthetical and imagistic disputes over the beauty of the villages in inter-village and inter-ethnical contexts of ritual production. Special emphasis is given to those rituals that were apprehended, appropriated, and invented at the interfaces of contact with non-indigenous society, such as village anniversaries, empowering ceremonials for new chiefs, large inter-ethnical festivals and beauty contests to elect Miss Kayapó. This approach also takes into consideration some of the classical themes of Mebêngôkre ethnology, such as the well-known nominating ceremonies, the feminine practice of body painting, and the production and circulation of ceremonial ornaments, particularly those made of seed beads.

Keywords: Ethnology. Ritual. Beauty. Politics of visuality. Material culture. Ge. Mebengokre (Kaiapo). Central Brazil.


AGRADECIMENTOS

Uma tese é como uma rede. Os nós que a compõem são feitos dos laços criados nos (des)caminhos da vida, da pesquisa e da escrita. No caso desta, muitos são seus nós. Aqui relembroos sem duvidar de que alguns deixaram de ser atados e de que outros estão ainda mais firmes. De qualquer modo, resta assumir a dívida antropológica e existencial que nenhuma menção no papel irá redimir. Resta guardá-la, senão como a dádiva dos próximos encontros. A primeira dívida contraída nesta tese e a maior delas, foi com Suiá, que apareceu quando ela era apenas uma pequena semente em uma cabeça aflita. A ela agradeço pelo amor incondicional, por toda a barra, pelos sonhos, leituras e interlocuções de todo dia. A segunda dívida, também imensa, foi com Teresa. A ela agradeço pela felicidade de todo dia e também por todo o amor. A Teresa devo também os passeios nos parquinhos e ribeirões e os pensamentos e reflexões que só o ócio pode proporcionar. Outras dívidas das grandes foram feitas na aldeia Môjkarakô. Jamais esquecerei a convivência com a família de Moetyk e Ôro. A eles agradeço pela hospitalidade, pelo alimento e por me fazer da família. Para Akjabôro, deixo meu agradecimento por toda a conversa franca e pelos ensinamentos sempre oportunos. Axuapé, Pawire, Bepnhô e Bepunu, agradeço por toda a disposição para apreender e os ensinamentos muitos que me fizeram durante esse tempo todo de convivência. Agradeço especialmente a Bepunu, pela disposição perene, pelas traduções e boas risadas compartilhadas. Mokuká, meu velho mestre, agradeço por sua criatividade sem fim e pelas aulas de kukràdjà mebêngôkre. Aos pajés Kenmu e Apêjx por cuidar de mim quando precisei. A Moipá, Kôkuí, Ngrejmôro, Isac, Krôit, Jàtire, Kokonté, Kokoranty, Kokongri, Xôkre, Vavá, Dukre, Benjamim, Nhak-ê, Jakuri, Kokobá, Bepdjá, Takakmá, Irébodjô, Byry-byry, Ireí, Beká, Bona, Ykaryry, Tabata, Moté, Poí, Pidjôkare. Todos vocês e muitos outros me fizeram parte de Môjkarakô. As enfermeiras, com quem dividi o teto durante o campo, agradeço a hospitalidade, os quitutes, remédios e suas impressões e sentimentos sobre morar em uma aldeia indígena. Agradeço especialmente a Eunice e a Esmeralda, por todo afeto e companhia. As professoras Luzia, Ilda e Ciolina, e a pastora Eunice também agradeço pela hospitalidade. Delma e Rosana, também enfermeiras, sempre me fizeram rir um bocado. A Francisca e seus filhos Adriel e Adriely um agradecimento especial por me hospedarem em sua casa na cidade de São Félix em todas as viagens ao campo. Também em São Félix, agradeço a Sônia e seu Vildo, pela receptividade e pelas entrevistas sobre a história da cidade. Ruy, por sua vez, me fez ouvir muitos causos impressionantes sobre a história da região. Ao Pingo (Adriano Jerozolimski) e ao Niema (Fernado Niemeyer), da


Associação Floresta Protegida, por socucionar grandes problemas com agilidade e camaradagem. No Rio de Janeiro, uma grande divida foi contraída com Diego, compadre, companheiro de campo e de muitos planos em conjunto. Um rito de passagem foi o que vivemos naquele abril de 2009. Muitas das ideias dessa tese foram esboçadas nas conversas insones da madrugada, em Môjkarakô ou no “prédio rosa” em Santa Teresa. Aninha (Ana Gabriela), foi outra parceira de iniciação à etnologia. Valeu cumadre por todos as transações Krahô-Kayapó e vice-versa. A Els Lagrou, obrigado pelo apoio incondicional, pela força nas horas duras, pela generosidade intelectual e por todos caminhos abertos. Aos companheiros do NAIPE, Bruno Aroni, Tiago Coutinho, Maria Isabel, Nina Vincent, Felipe Agostini, Carolina das Neves, Alessandra Tosta, Renan Oliveira, muitas ideias impressas aqui se devem a nossas conversas na casa da Els e nas reuniões do núcleo. Aos amigos e amigas do Rio, Gerome Ibri, Maria Raquel, Bruno Cardoso, Marcia, Felipe e Joaquim, Luciana França, Zaba, Manu e Marina, Ciça, Igor e Mai, agradeço pela força de toda hora. Martina Arruda por me acolher em sua família, pelo afeto e pelas traduções para o inglês. Yama, mesmo sendo flamenguista, é um ótimo cunhado. Mônica e Marcos Arruda e Jimmy Green, obrigado pela generosidade e pelo afeto. Marcelão, meu brother, Geovana Pires e o Gabriel, sempre na luta e dividindo os ganhos com as amigos. Obrigado pela força com toda a saudade. Fabito (Fábio Candotti), sempre aparecendo nas horas certas, deu aquele empurrãozinho para essa tese terminar. Obrigado amigo. Thiago Oliveira, companheiro de campo e de outras parcerias, obrigado pelas fotos e por compartilhar viagens e ideias. Sandoval Amparo, obrigado pela amizade e por me levar até os Krahô. Aos amigos queridos de Vitória, Alex, Tom, Rafaela e Casé, obrigado pela força e pela saudade bem matada. Ao Alex, um agradecimento especial por acreditar na amizade apesar de toda distância. Em Tocantinópolis, na beira do Brasil profundo, tive a sorte de encontrar Odilon, Hmõdi e Srêmsé. Ao Odilon, agradeço toda a dívida que um tesista pode ter com um colega de trabalho. Obrigado pela parceria incondicional e pelas ideias e projetos de futuro. Em Tocantinópolis, tive a sorte de encontrar também com Marcelo Brice e Suene Honorato, companheiros de mesa e amigos do coração. Ao Brice, deixo um salve especial pela estrategie que nos levou e ainda vai nos levar longe. Ainda nesta terra, sem o apoio de Dulce e Aldenora, tudo teria sido muito mais difícil. Obrigado pela sua família linda: Souza, Gercione, Gerson, Gian, Gerinha, Silvano e Adelson. Regina e Vanderley, Ana e Tarcila, receberam a família Omim de braços abertos em Tocantinópolis. Ao grande Carlos Krikati, meu cumpadre, pelas aulas de pintura corporal e por ser pau para toda obra. Obrigado por facilitar imensamente a vida em Tocantinópolis. Marcelo e Patrícia, Iasmim e o pequeno Gael, sem esquecer da Iaiá e da Valentina, é muito bom ter vocês por perto. Heber e


Soraya, Miguel e Inácio, agradeço pelas acolhidas aconchegantes em Palmas. Ao Héber um agradecimento especial pela curiosidade e pelos diversos diálogos. A Liza e ao Tiago, sem esquecer do Homer, do Baco, da Yuli e do Brizola, gratidão pela acolhida. Ao Tiago, um agradecimento especial pelo salve geral de todo dia. Lu Aliaga, mesmo longe, continua sempre perto. Helen Lopes, por saber dar risada e seguir adiante. Ao Flávio Moreira, por me ceder um lugar na Toca da Mumbuca, onde parte dessa tese foi escrita. Dona Ana, também meu muito obrigado pelos sucos e quitutes de todas as tardes. Aos colegas do colegiado do curso de Ciências Sociais da UFT, Rita Domingues, Samuel Duarte, Klívia Nunes, Karina Souza, João Batista, Odilon Morais, Marcelo Brice, Cleides Amorim (In memorian) e Marcelo Cleto, obrigado pela consideração e pela compreensão no momento da escrita. Dividas intelectuais, acadêmicas e institucionais não podem deixar de ser lembradas. Aos professores do PPGSA/IFCS, obrigado pelas aulas importantes para minha formação. Em especial, Marco Antônio Gonçalves, Emerson Giumbelli, Otávio Bonnet, José Reginaldo Gonçalves e Cesar Gordon. As funcionárias Angela, Denise, Verônica e Cláudia, obrigado pela solicitude e eficiência. No Museu Nacional, os cursos de Carlos Fausto, Aparecida Vilaça, Bruna Francheto e Eduardo Viveiros de Castro, me fizeram mergulhar de vez na etnologia ameríndia. Aos colegas daquele tempo, Gustavo Sapori e Tainá Leite, por compatilhar aquele período de formação. No Museu do Índio (Funai), devo imensamente ao José Carlos Levinho, e aos demais funcionários, especialmente Ilda Najar, Sônia Coqueiro, Rosilene, Ivone e Maria José. Através do Museu do Índio e do Projeto de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas, tive acesso a recursos da Fundação Banco do Brasil, Sociedade dos Amigos do Museu do Índio e UNESCO, fundamentais para a realização da pesquisa. Durante o doutorado, obtive bolsa do CNPq e da FAPERJ, também essenciais para dedicação ao curso e à pesquisa. Agradeço por fim a Zeza e Zé Luis, meus pais, e ao Felipe, meu irmão, por compreender todas as ausências em momentos importantes e por todo afeto.


LISTA DE FIGURAS Figura 1: Mapra das Terras Indígenas Kayapó e do Parque Indígena do Xingu. ISA (2011). Extraído de Lea (2012: contracapa)...........................................................................................54 Figura 2: Foto aérea do limite da Terra Indígena Kayapó com o município de São Félix do Xingu. (Foto: Thiago Oliveira)...............................................................................................61 Figura 3: Mapa com localização da aldeia Môjkarakô na Terra Indígena Kayapó (TI Kayapó). Adaptado de Robert e Lópes Garcéz (2010)...............................................................67 Figura 4: Mapa das redes de relações da aldeia Môjkarakô com as aldeias e cidades vizinhas. Adaptado de Robert e Lópes Garcéz (2010)...............................................................68 Figura 5: Mapa das redes de relações das aldeias mebêngôkre do sul do Estado do Pará. Adaptado de Robert e Lópes Garcéz (2010)...............................................................................79 Figura 6: Imagem aérea da aldeia Môjkarakô. …..............................................................................99 (Foto: Sandoval Amparo) Figura 7: Os chefes Kaikware, Moté, Akjabôro e Pinkà, durante a festa de aniversário da aldeia Môjkarakô. Setembro de 2010..................................................................................100 Figura 8: Bepdjá, o organizador.......................................................................................................108 Figura 9: Crianças aguardam a chegada do cacique Akjabôro durante a festa de aniversário da aldeia Môjkarakô.................................................................................................................118 Figura 10: Rainhas esperam a chegada do cacique Akjabôro durante a festa de aniversário da aldeia Môjkarakô.................................................................................................................119 Figura 11: Chefes cumprimentam crianças durante a festa de aniversário da aldeia Môjkarakô.....125 Figura 12: O bolo de aniversário da aldeia sendo partido................................................................125 Figura 13: A mão negra de jenipapo de uma mulher kayapó segura uma quase imperceptível linha de naylon, onde serão depositadas miçangas coloridas............................................173 Figura 14: Menina pinta o corpo de sua boneca...............................................................................187 Figura 15: O organizador Bepdjá orienta o diretor do Museu do Índio na entrega das miçangas para o cacique Akjabôro. (Foto: Thiago Oliveira)............................................................213 Figura 16: O diretor do Museu do Índio entrega as miçangas para o cacique Akjabôro. (Foto: Thiago Oliveira)........................................................................................................213 Figura 17: Aĩ de palha com detalhe do pa kajpre. Extraído de Verswjver (1995: 238)...................241 Figuras 18 e 19: Aĩ de palha e Aĩ de miçanga...................................................................................241 Figura 20: Mulher portando aĩ cerimonial feito de miçangas verdes...............................................242 Figura 21: Kadjàt'yr de crochê (Verswijver, 1995: 250)..................................................................243 Figura 22: Casal enfeitado durante uma cerimônia Bemp, na aldeia Môjkarakô. A moça e o rapaz portam o an'gà tyr. Note-se que o rapaz porta o aĩ de miçanga amarela com grafismos por cima de seu an'gà tyr vermelho. (Foto: Bepunu Kayapó).................244 Figura 23, 24 e 25: A transformação do wôrekà...............................................................................245 Figuras 26 e 27: Diversos wôrekà são portados por uma menina durante um ritual. (Fotos: Thiago Oliveira)....................................................................................................................246


Figura 28: Iĩkamrêk de envira com pingentes de contas, coquinhos e penas. Extraído de Verswijver (1995: 263)................................................................................................................247 Figura 29: Rapaz usando o iĩkamrêk de miçanga durante a emplumação das crianças honradas na cerimônia kwôre-kangô realizada na aldeia Môjkarakô. (Foto: Bepunu Kayapó)...248 Figura 30: O bemp nhikre kakô, adornado com algodão cru e pingente de contas azuis e brancas, coquinhos e peninhas de arara. Extraído de Lea (2012: 255)...................................249 Figura 31: O bemp nhikre kakô de miçanga de Kokuí, feito por Xôkre, sua mulher (Foto: Thiago Oliveira)............................................................................................250 Figura 32: Durante um festival Bemp um rapaz iniciado (a direita) e seu “pai-substituto” portam diferentes versões do o õkre tã, de miçangas e penas respectivamente. (Foto: Bepunu Kayapó).....................................................................................................................251 Figuras: 33, 34 e 35: Diferentes versões do ngàp õkredjê. Da esquerda para a direita, de madrepérola, de plaquinhas de alumínio e de dentes de anta...................................253 Figuras: 36, 37, 38: Diferentes versões do ngàp õkredjê. Da esquerda para a direita, de plaquinhas de PVC, de pontas de penas e de miçangas grandes e brancas arrematadas com contas vermelhas e pingente. (Reserva técnica do Museu do Índio)................253 Figura 39: Menino usando ngàp õkredjê feito com botões verdes e arrematado com pingente de tecido em miçanga com grafismo colorido. (Foto: Thiago Oliveira).......................254 Figuras : 40 , 41 e 42 : Versões dos pingentes de miçanga do ngàp õkredjê....................................255 Figura 43: Padjê kaygó.....................................................................................................................256 Figura 44: Padjê kumrenx.................................................................................................................257 Figura 45: Padjê de miçanga com motivo gráfico...........................................................................258 Figuras 46: Padjê de miçangas com motivos gráficos coloridos.....................................................259 Figuras 47, 48, 49, 50, 51, 53: Dieferentes versões do Padjê de miçangas com motivos figurativos coloridos....................................................................................................................260 Figura 53: Mulheres descansam durante uma festa Menire Bijôk....................................................261 Figura 54: homens dançando com braçadeiras similares (1989). (Foto: Vencent Carelli)..............262 Figura 55: Homens da aldeia Kôkraimôro dançam durante a festa do dia do índio, São Félix do Xingu. (Foto: Thiago Oliveira) …............................................................................263 Figura 56: Moças durante uma festa Menire Bjôk, aldeia Metyktire, 1982. Extraído de Lea (2012: 322)...........................................................................................................................264 Figura 57: Meninas durante uma festa Menire Bjôk, aldeia Môjkarakô, 2010.................................268 Figuras 58, 59, 60: Três meninos paramentados em diferentes contextos rituais...........................269 Figura 61: Mulheres mebengêt descansam durante uma festa menire bjôk na aldeia Môjkarakô, 2010...........................................................................................................................271 Figura 62: Mulheres mekrakamti descansam durante uma festa menire bjôk na aldeia Môjkarakô, 2010...........................................................................................................................272 Figura 63: Família mebêngôkre vai às compras no comércio de São Félix do Xingu durante a festa do dia do índio. (Foto: Thiago Oliveira)...................................................................275 Figura 65: Os Tamanduás dançam em Môjkarakô na frente da casa dos homens...........................276


Figura 66: Os Tamanduás dançam no ginásio da cidade..................................................................280 Figuras 67, 68, 69: Sequência de fotos da performance final dos Tamanduás na cidade................289 Figura 70: Payakan exalta a apresentação dos habitantes de Môjkarakô.........................................290 Figura 71, 72: As delegação de Môjkarakô e de Kikretum chegam na cidade. (Foto: Thiago Oliveira)....................................................................................................................291 Figura 73: Delegação de Môjkarakô sobe em formação de dança o trapiche de São félix do Xingu. (Foto: Thiago Oliveira).............................................................................................292 Figura 74: Delegação de Môjkarakô sobe em formação de dança o trapiche de São félix do Xingu. (Foto: Thiago Oliveira).............................................................................................293 Figura 75: Público indígena e não indígena é separado pela grade do ginásio onde ocorre a festa. (Foto: Thiago Oliveira).............................................................................................296 Figuras 76, 77, 75: Propaganda para venda de pinturas corporais e tatuagens; “Cardápio de pintura”; Um kuben escolhe sua pintura corporal. (Fotos: Thiago Oliveira)...........................297 Figura 73: Público indígena e não indígena é separado pelo grade do ginásio onde ocorre a festa. (Foto: Thiago Oliveira).............................................................................................304 Figura 74, 75, 76: Propaganda para venda de pinturas corporais e tatuagens; “Cardápio de pintura”; Um kuben escolhe sua pintura corporal. (Fotos: Thiago Oliveira)...........................305 Figura 79: Enfeites de miçanga vendidos durante a festa. (Foto: Thiago Oliveira).........................306 Figura 80: Os locutores....................................................................................................................307 Figura 81: Rapaz Mebengôkre dança o “passinho” no ginásio da cidade........................................309 Figura 82: As delegação de Môjkarakô e de Kikretum chegam na cidade. (Foto: Thiago Oliveira).............................................................................................310 Figura 83: As rainhas à espera do diretor do Museu do Índio..........................................................329 Figura 84: O concurso da Miss Kayapó em 2009. (folder da festa de 2010)...................................330 Figuras 85, 86: A mesma candidata com os looks de rainha e de miss, em concurso na aldeia Môjkarakô.................................................................................................................332 Figuras 87, 89, 90: respectivamente, candidata da aldeia Aùkre (repare o seu look diferente); candidata da aldeia Pykararãkre; candidata da aldeia Apêjxti..................................341 Figuras 91, 92, 93: Respectivamente, candidata da aldeia Kôkraimôro; Ngrej'ôk, candidata da aldeia Môjkarakô; Nhaktum, candidata da aldeia Kikretum...............................................342 Figura 94: As três vencedoras do concurso de 2010........................................................................343 Figuras 95, 96, 97: Estética e política. Fotos da premiação do concurso Miss Kayapó 2010......344-5 Figuras 97 à 107: As dez candidatas à Miss Kayapó 2011 (Fotos: Bepron Kayapó) ...............................................................................................................347-9 Figuras 108 e 109: A Miss kayapó 2011 e sua franja polêmica........................................................350


SUMÁRIO Introdução

18

Memorial da pesquisa 18 Uma tese em quatro filmes 27 Revisitando o fechamento Jê 30 Kukràdjà Nhipêjx 37 Uma política da visualidade 42 As cerimônias de nominação 46 A Aldeia Môjkarakô 53

Capítulo I Área etnográfica e redes de relações Redes de relações de parentesco 70 Redes de relações políticas e interétnicas Circuitos imagéticos 85

PARTE 1 – NA ALDEIA

65

76

99

Capitulo II O Aniversário da Aldeia: a fabricação ritual da comunidade Reunião 101 Programação 104 Ensaios 108 Abertura 114 Parabéns 117 O encontro 126 Comunidade 139

Capítulo III A Cerimônia de Posse: política em Môjkarakô Etnografando um filme ritual 148 Os grupos de idade entram em cena Chegam os visitantes 154 A cerimônia de posse 158 Organização política em Môjkarakô

PARTE 2 – INTERMEZZO

148

149

160

173

Capítulo IV Pintura Corporal: sobre peles, tintas e corpos

174

100


Menire kukràdjà 177 Técnicas 178 Tintas 180 M'rôti (jenipapo) 181 Py (urucu) 184 'Ôk Mari 189 Pele, sangue e alma 191 Nascimento, infância e nominação Resguardo e luto 203

194

Capítulo V Miçangas: artefatos em transformação

210

Das origens da miçanga e de suas formas de captura 211 A árvore e o museu 218 Da guerra como forma de captura 221 As miçangas e os nekrêjx 228 A miçanga como dinheiro 233 Uma etnografia dos artefatos em transformação 238 Os enfeites em relação ou da composição do look mebêngôkre

PARTE 3 – NA CIDADE Capítulo VI A Festa do Dia do Índio

280

281

Breve histórico da Festa 281 Organização, estrutura e programação da festa Preparações, ensaios e treinos 288 A chegada 295 A festa em uma noite 303

Capítulo VII A Miss Kayapó

284

312

Forró mebêngôkre 317 A preparação de uma candidata à Miss 324 Sobre a evolução do look: da Rainha à Miss 328 Sobre algumas formas cruzadas de apreciação 334 O concurso da Miss e sua espetacularização 338

267


Epílogo - De Volta à Aldeia Bibliografia

361

355


Para entender a ética de um povo é necessário entender a sua estética. Edmund Leach


18

Introdução

Memorial da pesquisa

Sabe-se que na antropologia as condições de escolha dos grupos de pesquisa, daqueles comumente designados “nativos”, envolvem variáveis incontroláveis pelo pesquisador. No meu caso específico, os primórdios desta história pessoal remonta a um interesse pelo tema do corpo entre jovens de classes populares urbanas, um desdobramento de uma experiência didática entre a juventude pobre de um bairro periférico da cidade de São Paulo. Ingressei no doutorado com um projeto sobre esta temática, após ter realizado, no mestrado, uma pesquisa sobre antropologia urbana que tinha como tema central a banda de rock Legião Urbana e as representações sociais tecidas por seus fãs de diferentes gerações. Numa das primeiras conversas com minha futura orientadora de doutorado, escutei de uma etnóloga profissional que o interessante seria pensar o tema do corpo dos jovens pobres a partir daquilo que a etnologia ameríndia tinha proposto sobre a corporalidade nos anos recentes. Para um não iniciado no campo da etnologia ameríndia essa proposta poderia parecer (como foi para mim em um primeiro momento) um tanto exótica, mas resolvi aceitar o desafio e voltei da reunião com várias referências sobre o tema. A leitura da bibliografia me despertou um grande interesse, a ponto de abandonar o projeto inicial e decidir que iria estudar índios. O interesse pelo tema do corpo, logo se desdobrou num interesse pela arte indígena, em sua relação com a cosmologia e a mitologia ameríndia. Com o tema escolhido, bastaria agora escolher o grupo, algo mais difícil do que eu imaginava. Depois de fazer uma longa pesquisa sobre os grupos indígenas brasileiros e conversar com professores e especialistas sobre as opções ainda pouco estudadas no Brasil, decidi por um estudo sobre a arte plumária dos Kaapor, do Maranhão. Embora houvessem boas etnografias sobre esse grupo tupi1 e também grandes coleções de sua arte plumária em vários museus do mundo, não 1

Dentre as quais àquelas produzidas por Darcy Ribeiro (1996) e Huxley (1963).


19 existia, e parece ainda não existir, entre eles estudos recentes que relacionassem sua profícua produção plumária aos temas da cosmologia, da fabricação do corpo e do xamanismo. A escolha parecia assim acertada. Entretanto, quando comecei a me debruçar sobre os trabalhos existentes a respeito dos Kaapor descritos por Darcy Ribeiro, eis que o acaso transformou os rumos da pesquisa. Fui convidado a participar do Projeto “Construindo culturas, documentando tradições” (PRODOCULT), um projeto de qualificação de acervo coordenado por minha orientadora Els Lagrou e Marco Antônio Gonçalves, através dos seus respectivos Núcleos de pesquisa, NAIPE (Núcleo de Arte, Imagem e Pesquisa etnológica) e NEXTIMAGEM, ambos ligados ao PPGSA da UFRJ. O projeto surgiu no contexto do Projeto de Documentação de línguas e culturas indígenas brasileiras, que se iniciava no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em colaboração com a UNESCO. Enquanto um projeto de Documentação, a iniciativa envolvia tanto atividades no MI, quando delegações indígenas eram convidadas a comentar os acervos de suas etnias presentes nas reservas técnicas do Museu do Índio; quanto atividades nas aldeias, onde seriam oferecidas oficinas de audiovisual. A parceria possibilitou a pesquisa de campo de um grupo de orientandos dos respectivos professores, entre os quais eu mesmo, permitindo desde o começo uma relação dialógica e simétrica de pesquisa entre jovens pesquisadores indígenas e jovens antropólogos. O aprendizado da “antropologia compartilhada” pelo vídeo foi de suma importância para a minha experiência de campo entre os Kayapó. E eis que em abril de 2009, um grupo de vinte e quatro kayapó da aldeia Môjkarakô estavam chegando ao MI para participar das atividades programadas para as comemorações do dia do índio. Esta foi a primeira atividade realizada pela parceria entre os núcleos de pesquisa e o Museu do Índio. A experiência de convívio no Rio de Janeiro, entre sessões de trabalho no museu, apresentações culturais, passeios para compras no centro comercial do Saara e para visitar os principais pontos turísticos da cidade (o pão de açúcar, o corcovado, o maracanã, a praia de Copacabana) de certa forma, selaram o meu destino acadêmico, sem que eu ainda sequer percebesse. Lembro que fiquei responsável, como membro do NAIPE, por realizar uma pesquisa museológica e bibliográfica sobre os Kayapó como parte dos preparativos das atividades que havíamos proposto durante a estadia deles no Rio de Janeiro. Entre elas estavam sessões de pintura corporal, apresentações de rituais, e a qualificação tanto do acervo de objetos kayapó presente na reserva técnica do Museu, quanto dos artefatos que eles traziam para vender para a instituição. Fiquei cerca de quarenta dias imerso na vasta literatura sobre este grupo indígena o que acabou por


20 reafirmar minha convicção de que era melhor pesquisar um grupo menos estudado. Por outro lado, existia de minha parte uma grande vontade de visitar uma aldeia indígena, oportunidade que acabou sendo efetivada, entre os Kayapó, como uma extensão dos trabalhos iniciados no Museu do Índio com o grupo de Môjkarakô em visita ao Rio de Janeiro. As circunstâncias que envolveram a decisão da viagem para a aldeia foram no mínimo curiosas. Depois de uma longa sessão de trabalho de qualificação do acervo de objetos kayapó presentes no Museu, liderada por Akjabôro, o chefe da missão mebêngôkre que visitava o Museu do Índio, como quem não quer nada assuntei com minha orientadora, Els Lagrou, sobre a possibilidade de ir para a aldeia aproveitando o retorno do grupo. Els gostou da ideia imediatamente e pôs-se a indagar os membros do Nextimagem, a respeito de quem gostaria de embarcar comigo para desenvolver os trabalhos de oficina em vídeo. Depois de algumas negativas, eis que sua voz se volta para o Diego2, que aceita o convite num misto de dúvida e vontade de viajar. Após uma breve conversa com o diretor do Museu, nosso destino estava selado naquele fim de tarde de abril de 2009. No dia seguinte, José Carlos Levinho, o diretor da instituição, aproveitou o momento em que os Kayapó almoçavam para nos apresentar a Akjabôro e seu grupo de guerreiros. Dentre outras coisas, disse que iriamos continuar na aldeia o trabalho de documentação iniciado no MI, através de oficinas de vídeo para os indígenas que eles escolhessem. Akjabôro consentiu, afirmando que esse trabalho era muito importante, para “guardar a cultura para nossos netos” e também “ensinar aos brancos como vivem os índios de verdade”. Levinho, com seu bom humor característico, solicitou a ele que cuidasse bem da gente, como se estivesse recebendo ele na aldeia. Akjabôro, novamente consentiu e emendou que era bom “ter kuben trabalhando com a gente” e que na aldeia nós iriamos comer muita caça e muito peixe, tomar banho de rio e aprender muitas coisas diferentes. Por fim, apertamos as mãos e ele afirmou com um sorriso: “mas tem muito trabalho também. Mebêngôkre tem muita festa, tem muita tradição boa para mostrar”. Dois dias depois estávamos embarcando junto ao grupo em um percurso de quatro dias até a aldeia Môjkarakô. Lembro-me da sensação de estranhamento e ao mesmo tempo deslumbramento que me acometeu quando desembarcamos em Marabá e tomamos um micro-ônibus que nos levaria numa longa viagem até a cidade de São Félix do Xingu, onde tomaríamos o barco para a aldeia. Tal sensação dúbia deveu-se ao fato de constatar, naquele micro-ônibus, sentado em minha poltrona a 2

O antropólogo e amigo Diego Madi Dias me acompanhou durante duas etapas da pesquisa de campo realizadas de abril à maio de 2009 e de dezembro de 2009 à janeiro de 2010. Além disso, trabalhamos juntos em diversas etapas do Projeto de Documentação da Cultura Kayapó. Em 2011, Diego defendeu, no PPGSA/IFCS/UFRJ, sua dissertação de mestrado intitulada Mekaron Ipêx: cultura, corpo, comunicação e alteridade – usos do vídeo entre os Mebêngôkre-Kayapó.


21 contemplar as luzes de Marabá, que afora o meu ainda desconhecido e futuro amigo Diego e o sonolento motorista, eu estava pela primeira vez sozinho entre os índios. O que para outros antropólogos de outras épocas e contextos havia acontecido in loco, na própria aldeia, depois de longas viagens à cavalo por territórios desconhecidos, para mim acontecia dentro de um microônibus, no estacionamento do aeroporto da maior cidade do sul do Estado do Pará. Essa primeira estadia em Môjkarakô foi decisiva. De volta ao Rio de Janeiro, depois de um intenso período de quase um mês na aldeia, eu havia desistido completamente de estudar os Kaapor e sua plumária. Eu e Diego voltamos da aldeia abarrotados de enfeites de penas e miçangas para vendermos na “cidade”, o que vim a descobrir depois, significava muitas dívidas a pagar. Na verdade, trouxemos os objetos meio a contragosto e tentamos nos livrar dessa obrigação por mais de uma vez. No entanto, no dia de nossa partida não tivemos como evitar a pesada carga que nos esperava de fronte ao avião monomotor da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde), no qual pegaríamos carona até a cidade de São Félix do Xingu. Tentei argumentar que não teríamos como saber de quem eram os objetos e que aquela tarefa que nos outorgaram poderia acarretar confusões entre as pessoas que produziram os artefatos e problemas entre nós e órgãos de defesa do meio ambiente, como o IBAMA, que na época faziam operações nos aeroportos em busca de artefatos plumários trazidos por turistas e comerciantes deste tipo de arte. Prontamente, um dos caciques da aldeia me entregou uma lista onde havia escrito os nomes das pessoas, os objetos que cada uma delas estavam enviando, bem como o valor em reais de cada uma das peças. Quando indaguei que não teria como depositar o dinheiro, pois não havia ali na lista a conta bancária de todas as pessoas que estavam mandando os objetos, o cacique me surpreendeu dizendo: “Não tem problema! Você traz o dinheiro quando você voltar. Assim é bom para nós”. Não tinha a menor noção de quando voltaria à aldeia, mas aqueles objetos encaixotados e ensacados que o piloto agora colocava no bagageiro da aeronave me pareceram simbolizar mais que um convite. Na verdade, o que estava sendo efetivado ali na pista de pouso era a nossa relação com eles, selada através da obrigação de retornar à aldeia. Mas algo me intrigava naquele gesto de confiança. Porquê entregar para nós as suas riquezas cerimoniais sem desconfiar das nossas intenções? Essa dúvida me fez relembrar alguns dos acontecimentos vividos naquela estadia na aldeia e mesmo antes, durante nossa convivência com o grupo que visitava o Rio de Janeiro. Logo que chegamos na aldeia fomos alojados na enfermaria, mas tínhamos como posto avançado de pesquisa e convivência a casa de Moetyk e seu marido Ôro, que havíamos conhecido no Rio. Em uma das reuniões noturnas na varanda de sua casa, regadas a muito café e um caldeirão


22 de mingau de peixe elétrico (poraké), Moetyk solicitou à sua mãe que nos desse nomes mebêngôkre. Segundo a tradução de sua fala feita por Ôro, ela estava dizendo que considerava a gente como filhos e que, por isso, sua mãe deveria dar os nomes para nós. A velha Mrunóy, cega de visão, mas esperta e atenta para o que era dito ao seu redor, pediu para que eu me aproximasse e segurou a minha mão como que me sentindo através dela e vaticinou: “Kôtykté”. Todos riram e a velha repetiu o mesmo rito com Diego, dizendo: “Rikiriakô”, seguido de novas gargalhadas. No dia seguinte, como que reafirmando nossos laços de parentesco, Moetyk convidou-nos a nos refrescar com sua provisão de cocos verdes e depois pediu para que tirássemos a roupa que elas e suas filhas iriam nos pintar o corpo, como fazem as parentas com seus parentes próximos do sexo masculino. Estávamos sendo aparentados. Nosso corpo estava à serviço dessa tarefa de construção do parentesco tão longamente já descrito na etnologia das Terras Baixas da América do Sul. Durante a sessão de pintura, um grupo de meninas treinavam os seus futuros dotes na arte de pintar em bonecas de plástico trazidas da cidade. Hoje, lembrando dessas duas cenas concomitantes, encontro uma similaridade entre nossos corpos e os corpos das bonecas. Tratava-se, em ambos os casos, de um processo de pacificação estética (Lagrou, 2010), otimizado no nosso caso pelos nomes a nós concedidos e pela convivência na aldeia. De certo modo, estavam nos preparando para aquela cena tensa que vivíamos ali na pista de pouso diante dos objetos cerimoniais a nós imputados como uma espécie de calção da relacionalidade mebêngôkre. Se confiavam a nós os seus mais prestigiosos objetos, utilizados em suas cerimônias para enfeitar (e constituir) as pessoas, era porque confiavam também no investimento que haviam feito em nossos corpos, em nossas subjetividades, através dos nomes, das pinturas, do alimento e dos momentos de alegria compartilhados em diversas ocasiões. A convivência na aldeia nos preparava com um mínimo de familiarização que nos permitia defender os interesses de nossos anfitriões em terras estrangeiras. Como me disse Bepunu alguns anos depois, nós estávamos virando os “brancos deles”. Quando ouvi essa frase compreendi o lugar especifico que me foi dado ao entrar no campo. De fato, como no caso de outros etnógrafos dos Mebêngôkre (Lea, 2012: 45), a analogia mais próxima a que essa frase me remeteu foi com os cativos de guerra adotados pelos Mebêngôkre em suas expedições guerreiras. Obviamente, essa comparação deve ser contextualizada para que não pareça absurda em um tempo de pacificação. De certo modo, essa tese trata dessa contextualização que aponta para outros modos, contemporâneos, de fazer a guerra, contrair alianças e parcerias e capturar novos “cativos”, como nós. Com essa grande bagagem nas costas e com o mesmo peso em dúvidas na cabeça, cheguei ao Rio de Janeiro com apenas uma certeza: eu havia sido capturado. Não havia outra possibilidade


23 senão a de tentar vender os objetos que eu trazia e, ao mesmo tempo, enfrentar a vasta literatura sobre os Mebêngôkre, em específico, e a não menos vasta literatura sobre os outros grupos jê do Brasil Central, sobretudo, em sua porção setentrional que abarca os grupos Timbira (Krahô, Canela, Apinayé, Krikati e Gavião), e Suyá. Um dos resultados dessa tarefa foi apresentado como projeto de qualificação em dezembro de 2009, momentos antes da minha segunda viagem à Môjkarakô. Naquela altura havia elaborado o futuro dessa tese como um estudo sobre a arte e os artefatos mebêngôkre, incluindo a pintura corporal, os artefatos e enfeites em miçangas e penas e as suas máscaras. Havia ainda nessa proposta os resquícios de meu interesse pela plumária Kaapor, relida pelas relações com a cosmologia, a fabricação do corpo e o xamanismo. Mas, à diferença dos Kaapor, entre os Mebêngôkre havia etnografias substanciais que já tratavam desses três temas. Meu esforço seria o de fazer uma releitura da arte mebêngôkre à luz dos desdobramentos de pesquisas recentes, nas quais contavam dentre outros objetivos o de aproximar os Mebêngôkre e Jê, em geral, “dos modelos descritivos-conceituais que vem sendo desenvolvidos para a Amazônia indígena na esteira dos trabalhos de autores como Bruce Albert (1985; 1993) e Eduardo Viveiros de Castro (1993; 2000; 2002), por exemplo, sobretudo no que diz respeito ao regime de subjetivação (ou personificação) das culturas ameríndias” (Gordon, 2006: 83). Tal objetivo deliberado buscava, seguindo trabalhos recentes (Coelho de Souza, 2002; Gordon, 2003, 2006; Cohn, 2005), romper com a imagem de fechamento a que ficaram relegadas as sociedades jê depois das substanciais pesquisas do Projeto Harward - Museu Nacional e do contraponto tupi (Viveiros de Castro, 1986) e guianês (Riviére, 1984; Overing, 1993) realizado posteriormente, que de certo modo reforçava por contraste essa imagem de fechamento jê 3. Interessava-me particularmente nestes “modelos descritivos conceituais”, as possibilidades de explorar menos o significado simbólico dos grafismos e artefatos, temas extensamente tratados na literatura mebêngôkre, e mais sua capacidade de ação e agência, sua personificação em certos contextos específicos. Algo que estava sendo desenvolvido também por novas abordagens da antropologia da arte que se encaixavam teoricamente muito bem ao material ameríndio (Lagrou, 2009). Os trabalhos de Alfred Gell (1999) e a antropologia da memória de Carlo Severi (2007), por exemplo, permitiam uma abordagem da chamada arte indígena sem desmerecer o seu caráter artesanal e, ao mesmo tempo, sem privilegiar o seu simbolismo. Tais abordagens se somavam na busca pelo entendimento da agência dos objetos “como se fossem pessoas”, imbricadas em redes de efeitos e eficácias simbólicas, mas também pragmáticas e cognitivas. Como afirma Lagrou (2010), 3

Para revisões do “fechamento Jê”, ver Coelho de Souza (2002); Gordon (1996; 2006); Cohn (2004; 2005).


24 essas abordagens se encaixaram como luvas nas paisagens sócio-cosmológicas ameríndias, onde os artefatos são de fato pessoas e as pessoas são também artefatos, produzidos por outras pessoas. Os trabalhos dessa autora talvez sejam os melhores exemplos desses encaixes, como busquei demonstrar em um artigo publicado um pouco antes da qualificação (Demarchi, 2009). Minha segunda estadia em Môjkarakô4 se iniciou como uma repetição da primeira. Em fins de dezembro recebemos, no Rio de Janeiro, Pawire, Mokuká, Axuapé e Bepnhô, para trabalharmos no material que havia sido coletado na primeira etapa do projeto na aldeia. Preparamos oficinas de edição com o material e trabalhamos com Mokuká, o mais velho do grupo e com longa experiência em projetos de vídeo indígena5, na qualificação do material, no Museu do Índio. Após a finalização desta etapa do projeto de documentação – que rendeu produtos como o filme Memudjê, sobre a tradição guerreira mebêngôkre, bem como traduções para o português do Hino Nacional em kayapó produzido por Mokuká – voltamos juntamente com os cinegrafistas para a aldeia Môjkarakô, em uma viagem que só terminaria para mim em abril de 2010. De volta do campo, estava convicto de que era possível abordar a pintura corporal seguindo a perspectiva da agência, tal como delineada no projeto de qualificação. Mas ao contrário do que imaginava, essa tarefa rendeu menos do que o previsto. O material que havia recolhido sobre a pintura corporal, contrariando as minhas ilusões de etnógrafo principiante, era muito redundante ao conjunto de dados mebêngôkre já apresentados em outras pesquisas sobre o tema (Turner, 1980; 1995; Vidal 1992; Verswijver, 1982; 1992; Cohn, 2000). Os meus dados permitiam uma reinterpretação pontual, que obviamente seria pouco para uma tese de doutorado. Mesmo assim segui em frente na tarefa, que no fim das contas rendeu somente um artigo (Demarchi, 2013), posteriormente transformado em um dos capítulos do presente trabalho. Após um longo período de tentativas para encontrar o objeto de estudo deste trabalho (período este permeado tanto por incidentes – como ter o HD com todos os seus dados brutos 4

5

O tempo total da pesquisa de campo na aldeia Môjkarakô foi de dez meses, assim distribuídos em diferentes etapas de pesquisa: um mês, de abril à maio de 2009; cinco meses, de dezembro de 2009 à abril de 2010; três meses, de julho à outubro de 2010; duas semanas, em outubro de 2011; duas semanas, em abril de 2012. Somado a esse tempo e experiência deve-se destacar os momentos em que convivi com os Mebêngôkre no Rio de Janeiro, seja recebendo delegações para participar de encontros culturais (duas semanas, em abril de 2009), seja recebendo os participantes indígenas do Projeto de Documentação da Cultura Kayapó para etapas de trabalho no Museu do Índio: duas semanas, em dezembro de 2009; duas semanas, em junho de 2010; duas semanas, em junho de 2011; duas semanas, em dezembro de 2011. Em 2013, recebi Bepunu Kayapó em minha residência por cerca de um mês para trabalhar em traduções do material etnográfico recolhido. É digno de nota ainda, as pesquisas realizadas com os moradores de São Félix do Xingu, em 2012; e, por fim, a participação na Feira de Sementes Krahô, do ano de 2010, acompanhando uma delegação de Môjkarakô que fora convidada para o evento. Somando todas essas experiências multi-situadas de pesquisa, o tempo total do trabalho de campo foi de aproximadamente treze meses. Mokuká participou do Kayapó Vídeo Project, projeto de audiovisual implementado por Terence Turner, nos idos da década de 1980, em diferentes aldeias do sul do Estado do Pará e norte do Estado Mato Grosso. Para uma etnobiografia de Mokuká, ver Madi, 2012.


25 danificado depois de uma tempestade –, quanto por acidentes – como aquele no qual me envolvi ao dirigir um automóvel com a cabeça na tese), comecei a perceber o que estava óbvio à minha frente: o próprio projeto de documentação, pelo qual entrei no campo, é que deveria conter as respostas para as questões que me atormentavam. Até então, eu parecia ter tomado como atividades separadas a minha pesquisa para a tese de doutorado e o trabalho que envolvia o projeto de documentação, sem perceber que os meus dados principais estavam sendo coletados na segunda atividade e não na primeira. De repente, de uma situação de escassez de dados etnográficos, eu me via passando a uma situação de material excessivo devido à grande quantidade de material filmado e fotografado durante aqueles três anos de execução do projeto. Larguei o caderno de campo de lado e comecei a trabalhar nas imagens produzidas pelos cinegrafistas, voltando a ele vez ou outra para buscar algumas anotações pontuais. O verdadeiro diário da pesquisa estava sendo feito pelos cinegrafistas indígenas em sua ávida vontade de filmar os rituais na aldeia. Foi somente durante uma sessão de trabalho com Bepunu, Axuapé e Pawire, os três cinegrafistas indígenas do Projeto de Documentação, que tive clareza sobre o objeto de estudo de minha pesquisa. O insight se deu quando discutíamos qual seria o nome do projeto, já que a direção do Museu havia solicitado um título para o conjunto de nossas atividades, para aparecer nos sites que estavam sendo criados para divulgar a iniciativa. Durante esta reunião, Bepunu disse que o projeto deveria se chamar Kukràdjà Nhipêjx, algo como “fazendo cultura”. Pawire e Axuapé logo se animaram com a ideia. Escolhido o nome do projeto, passamos a discriminar as ações daquele ano, e para minha surpresa, o trabalho foi realizado rapidamente. Na tabela que apresentei aos cinegrafistas para escreverem as ações de cada mês, cada um dos campos correspondentes aos meses foram preenchidos com uma cerimônia a ser executada na aldeia. Isso significava que de fevereiro de 2012 à fevereiro de 2013, os cinegrafistas filmariam a cada mês a preparação, produção e execução de determinada cerimônia. Intercaladas entre as cerimônias de nominação Menire Bjôk, Bemp e Kwôre Kangô, estavam a festa do dia do índio, realizada em São Félix do Xingu, o aniversário da aldeia, o dia da independência, as festas de Natal e Ano Novo e o dia das crianças. Com a tabela em mãos, me dei conta de que o trabalho que havíamos feito no ano anterior, seguia um calendário de ações similar. Naquele momento, compreendi o título do projeto sugerido por Bepunu. Kukràdjà Nhipêjx, era um nome que não se referia somente ao trabalho dos cinegrafistas, mas à própria dinâmica da vida em Môjkarakô, à constante produção de kukràdjà realizada por seus moradores. Segundo a correta percepção dos cinegrafistas, só restava a eles enquanto membros da aldeia, filmar essa dinâmica produção de diferentes kukràdjà. E quanto a mim ficou claro que me


26 restava etnografar as formas contemporâneas pelas quais os Mebêngôkre de Môjkarakô fazem kukràdjà; bem como, seus modos de apreensão, invenção e circulação. É disso, enfim, do que se trata essa tese. Esta “aventura antropológica” não seria possível sem as imagens produzidas durante a pesquisa de campo. Adentrando no “mundo nativo” – que será aqui articulado e fabricado através do meu texto – via um projeto de documentação da cultura, cujo principal objetivo era produzir imagens, espero ter apreendido a utilizá-las ao gosto mebêngôkre. O mesmo posso dizer dos cenários contemporâneos descritos nesta tese, onde a articulação interétnica está posta à serviço do leitor, que pode então experimentá-la, desde que se ponha do outro lado, onde, parafraseando positivamente um velho conceito de Darci Ribeiro, a aculturação dá lugar à transfiguração. As cenas que veremos a seguir, se são como capítulos, são também pedaços de uma experiência precária de trabalho de campo. Precária no sentido Wagneriano, do trabalhador de campo lutando para capturar seus dados, produzi-los às custas dos nativos. No meu caso específico, dependi piamente das filmagens feitas pelos cinegrafistas ou, em outras palavras, do que eles imaginavam ser o trabalho de “documentar a cultura”, com câmeras, gravadores, computadores e máquinas fotográficas; dependi da antropologia que eles faziam com o vídeo e com os rituais, como que atualizando a profecia cinematográfica da “antropologia compartilhada” de Jean Rouch. Estes pedaços só se tornaram possíveis de aparecer aqui por causa de seus operadores indígenas. Sem que eu percebesse, eles me abriram as portas para participar ativamente da vida presente em Môjkarakô. Eles me ensinaram a filmar. A manter o plano como se o braço e toda a estrutura do corpo fosse um tripé6. Eles me fizeram editor de filmes que para alguns (os mais velhos) não deveriam ter fim. Como também não tinham fim as grandes quantidades de fitas mini DV e os infindáveis DVDs virgens, respectivamente, demandadas pelos cinegrafistas e consumidos pelos moradores de Môjkarakô em um vasto circuito de troca de imagens. O resultado dessa avidez por imagens foi a produção de mais de trezentas horas de gravação em vídeo e mais de dez mil fotografias, um processo que continua acontecendo e que essa tese tem, a tempo, o dever de comentar, aceitando a contingência e assumindo os riscos do corte de edição em filmes que nunca terminam de serem gravados.

6

A este respeito ver Madi e Demarchi (2013).


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Uma tese em quatro filmes A antropologia, no futuro, será audiovisual ou não será antropologia. Jean Rouch

A metáfora fílmica presente no título dessa seção diz respeito à metodologia empregada para a apresentação dos dados etnográficos coletados, sobretudo, por meio de imagens. Diante de um volumoso material imagético, optei por descrever e analisar quatro das diversas cerimônias contemporâneas filmadas pelos cinegrafistas indígenas no âmbito do Projeto de Documentação das Culturas. Todas elas, embora devidamente registradas em áudio e vídeo, nunca deixaram de ser gravações, ou seja, não foram editadas e não receberam o tratamento julgado necessário para transformá-las em filme etnográfico. Elas sempre permaneceram como parte daquilo que os profissionais de cinema denominam “material bruto”. O procedimento de apresentação destas cerimônias é um esforço de roteirizar esse material, editá-lo e levá-lo em fim ao público. Deste modo, essa tese é sobre quatro filmes que, como diriam os roteiristas frustados, não saíram do papel, tanto no sentido de que nunca foram levados à tela dos cinemas, quanto no sentido de que de fato sua forma de apresentação, tal como constituída aqui, é primordialmente composta por palavras impressas sobre o papel. Eles são como filmes mediados pelas palavras e, tal como nos romances, se exigirá do leitor o esforço para visualizar as imagens que tais palavras evocam. Diferentemente da obra literária que é transformada em filme de cinema, no caso deste trabalho, são as imagens que retornam ao papel na produção de uma etnografia feita por filmes inacabados 7. De todo modo, este trabalho aposta na profecia de Jean Rouch apresentada na epígrafe. Uma antropologia do futuro que aqui se fez presente pela própria avidez com que os ditos “nativos” se empenharam em fazer uma antropologia compartilhada por meio do audiovisual. Em outra de suas profecias descrita pelo antropólogo Marc Henri Piault (1996: 55), Rouch disse que “o antropólogo não terá mais o monopólio da observação, ele será ele mesmo observado, gravado, ele e sua cultura. E assim o filme etnográfico nos ajudará a compartilhar a antropologia”. Esse trabalho não deixa de apostar também nesta afirmação, pois os filmes editados aqui por meio de palavras são sobre cerimônias criadas a partir de observações, gravações e mesmo apropriações acuradas da cultura destes outros que os Mebêngôkre denominam kuben, que no jargão antropológico são chamados de 7

Inacabados, evidentemente, para um público ocidental.


28 “brancos”, “brasileiros”, “neobrasileiros”, “não indígenas” 8. Este trabalho é claramente inspirado no livro Ritos de uma tribo Timbira (1978), de Júlio César Melatti. Mas ao invés de descrever uma grande quantidade de ritos (quarenta, segundo informa o próprio autor), aqui se etnografa e se analisa com mais profundidade apenas quatro cerimônias, mesmo que outras do mesmo tipo tenham sido observadas durante a pesquisa de campo e apareçam com menos ênfase no decorrer do trabalho. Uma outra diferença é o fato de que Melatti estava preocupado em descrever e analisar os ritos “tradicionais” dessa tribo Timbira, enquanto que meu esforço é o de descrever ritos que facilmente poderiam ser classificados como “não tradicionais”, ritos contemporâneos, alguns recentemente inventados pelos Mebêngôkre de Môjkarakô e outros compartilhados com outras aldeias. Seguindo algumas proposições recentes sobre os rituais ameríndios evito aqui separá-los em categorias dicotômicas como aqueles tradicionais (autênticos) e aqueles não tradicionais (inautênticos). Neste sentido, faço minhas as palavras e questões apontadas por Calávia y Naveira (2013) na introdução de um dossiê que embora trate de rituais produzidos por grupos Pano poderiam ser facilmente estendidos para o caso mebêngôkre descrito nesta tese. Assim, dizem os autores: (…) a teoria antropológica tem se movido mais devagar do que a criatividade [ritual] dos povos indígenas que estuda. O hábito de entender o rito como a representação de uma ordem social ou simbólica dada – ou seja, prévia ao fazer ritual – provocou que todo uma série de eventos que não se adaptam adequadamente a essa perspectiva ficassem fora de foco, depreciados por sua informalidade como objeto de estudo. Ou eram vistos como readaptações teatrais de princípios sócio-simbólicos mais nobres, estes sim originais e estruturantes, ou eram simplesmente descartados pelo halo de inautenticidade que os envolvia. Contudo, sua proliferação e persistência apontam em outra direção: e se os rituais ao invés de serem um palco de relações sociais e simbólicas preexistentes proporcionassem também um campo apto para a invenção e a experimentação? (…) Poderíamos entender os rituais como laboratórios, eventos nos quais se busca estabelecer relações novas e novas formas de relação? (…) E se não houvessem rituais mais ou menos autênticos, mais ou menos representativos, senão só aqueles que cada povo necessitasse, determinados pelas circunstâncias e por seu modo próprio de criatividade? (Calávia y Naveira, 2013: 198)

Seguindo essas importantes questões, evito como os autores uma definição teórica de ritual, optando “por uma sensibilidade mais aberta à etnografia que ao conceito de rito em si” (Idem). Neste ponto, novamente encontram-se ressonâncias com o trabalho monumental de Melatti em seus Ritos de uma tribo Timbira; sobretudo, quando ele oferece uma definição nativa de ritual. Pedro Penõ, chefe indígena da aldeia do Posto, assegurou-me que a qualquer tipo de festa se aplica o termo amnikhĩ, palavra que significa “alegria” e que pode ser usada em frases como i mã amnikhĩ “eu estou alegre”. (…) Penõ afirmou que amnikhĩ é o nome de toda e qualquer festa. Creio que a maior parte das cerimônias aqui descritas os Krahô consideram como “festa” ou, como também 8

No decorrer da tese utilizo a palavra kuben para me referir aos não indígenas, tal como fazem contemporaneamente os Mebêngôkre com quem convivi. Para uma discussão dessa categoria entre os Mebêngôkre e outros grupos Jê, ver Coelho de Souza, 2002.


29 costumam chamar no português sertanejo, “arrumação” (Melatti, 1978: 14).

Importante destacar dessa passagem de Melatti que não há do ponto de vista krahô, separação entre tipos de festa. Todas são chamadas amnikhĩ, independentemente dos elementos que são mobilizados como símbolo em cada amnikhĩ (Idem). Não há, portanto, para os Krahô separação entre ritos tradicionais ou não tradicionais. Todos os ritos, independentemente de sua pretensa autenticidade, são formas de se estar alegre. Essas expressões, amnikhĩ e i mã amnikhĩ, são praticamente idênticas àquelas usadas pelos Kayapó para expressar sentimentos de felicidade, alegria e amor. Tal como entre os Krahô, kĩnh, para os Mebêngôkre, é gostar, amar; e amnikhĩ é ser ou estar feliz (Salanova, s/d). Entretanto, e diferentemente dos Krahô, os Mebêngôkre utilizam outra palavra para designar festa: trata-se da palavra metoro. Essa palavra é, na verdade, composta de uma partícula coletivizadora, me, seguida da palavra toro, que quer dizer dançar. Metoro, poderia ser traduzido como “dançar junto”, o que de resto se faz em todo e qualquer ritual mebêngôkre. Não por acaso, e como Melatti, ouvi dos nativos que toda e qualquer festa pode ser considerada metoro, independentemente de ser um ritual de nominação, ou uma festa realizada na cidade, ou mesmo ritos de iniciação e de competição esportiva. Em termos analíticos, gostaria de manter essa definição etnográfica abrangente neste trabalho, pois estou menos preocupado com a produção de uma classificação dos rituais mebêngôkre do que com as transformações que eles produzem. Neste último ponto, sirvo-me de uma interessante nota metodológica apresentada por Marcela Coelho de Souza em um texto infelizmente não publicado sobre as transformações rituais dos grupos indígenas do Brasil Central, dentre os quais estão, como se sabe, os Krahô e os Mebêngôkre. Nesse manuscrito, a autora afirma que para falar em “transformações rituais centrobrasileiras”, deve-se observar “simultaneamente às transformações operadas sobre os rituais e às transformações que os rituais operam” (Coelho de Souza, 2009: 01). É essa simultaneidade que se busca aqui. Esta tese é, portanto, uma etnografia da produção ritual contemporânea dos Mebêngôkre (Kayapó). Seu ponto de partida são as tensões e ambiguidades da categoria kukràdjà, a tradução nativa para o conceito de cultura, e os fortes vínculos dessa categoria com a variada atividade ritual e política mebêngôkre. Concedo especial destaque às diferentes redes de relações (de parentesco, políticas e imagéticas) constituídas em torno da produção de rituais. Argumento que a circulação de conhecimentos, objetos, matérias-primas, designs e imagens em extensos circuitos de comunicação e de troca intensifica disputas estéticas e imagéticas em torno da beleza das aldeias em contextos inter-aldeões e inter-étnicos de produção ritual.


30 Os filmes que veremos aqui por meio de palavras são registros e análises de rituais apreendidos, apropriados e inventados nas interfaces de contato com a sociedade envolvente, tais como: festas de aniversário de aldeias, cerimônias de posse de novos caciques, grandes festivais inter-étnicos e concursos de beleza para eleger a Miss Kayapó. Este enfoque, contudo, não deixa de considerar também alguns temas clássicos da etnologia mebêngôkre, como as conhecidas cerimônias de nominação, a atividade feminina da pintura corporal e a produção e circulação de enfeites cerimoniais, sobretudo, aqueles feitos com miçangas.

Revisitando o Fechamento Jê

Pensar esses rituais contemporâneos implica em pensar as transformações contemporâneas dos coletivos indígenas em virtude da crescente interação com as sociedades nacionais. Neste trabalho, seguindo uma linha aberta por estudos recentes, optei por pensar tais transformações “sem cair no discurso vitimizante da contaminação, da perda cultural, da homogeneidade causada pelo sistema mundial” (Fausto, 2006: 30). Ao contrário, trata-se de pensar as transformações contemporâneas “a partir dos modos indígenas de produzir a transformação” (Idem). Isso precisa ser dito para que se relativize o lugar ocupado pela sociedade envolvente no escopo das relações de apropriação estabelecidas pelos Mebêngôkre. Se parto do ponto de vista mebêngôkre sobre estes fenômenos, isso implica em evitar “conceder aos brancos um estatuto ontológico absolutamente privilegiado” (Gordon, 2006: 388). Sigo portanto, uma linha de argumentação inaugurada por Verswijver (1982; 1992) e Lea (1986; 2012), e seguida posteriormente por Gordon (2006) e Cohn (2005), que consiste em tratar as relações entre os Mebêngôkre e os brancos, através do mesmo idioma utilizado para tratar das relações desses com outros grupos indígenas, ou mesmo entre eles e os diversos seres não humanos, monstros e animais que povoam sua diversa mitologia. Por exemplo, na conclusão de um artigo sobre relações intertribais entre os Kayapó e os Juruna, Verswijver afirma que para os Kayapó, não existe diferença entre o contato que eles fizeram com os Juruna ou com os Shambioá [Karajá], e seu atual contato com os Brasileiros. Para eles não é computado o fato de que aqueles primeiros contatos foram feitos com culturas similares e que o contato que eles atualmente fazem é com uma sociedade dominante: nossa sociedade (1982: 315).


31

Mesmo que se possa duvidar dessa última afirmação, uma vez que do ponto de vista Mebêngôkre os brasileiros possuem um modo de vida tão estranho quanto o dos Juruna, trago à tona essa citação de Verswijver no sentido de dar visibilidade à relações de alteridade e de preensão simbólica (Cohn, 2005) efetivadas pelos Mebêngôkre, seja com grupos indígenas ou não indígenas. Uma passagem de Lea esclarece ainda mais essa percepção: Desde o início de seu contato com os seringueiros, até a sua 'pacificação', os Mebêngôkre conceberam os kuben kryt [brancos] como muito parecidos com qualquer outro tipo de kuben, incluindo os homens-morcegos e inúmeros outros kuben mitológicos, outros povos indígenas como os Yudjá e os Panará (Krãjakàrà). Os Mebêngôkre apropriaram cerimônias, cantos, nomes e adornos de todos esses kuben. (2012: 376).

Seguir nessa linha de argumentação é uma saída para evitar duas armadilhas constantes quando se trata de estudar situações de contato interétnico, onde estão em jogo as apropriações e usos que os indígenas fazem da modernidade (Sahlins, 1997). Primeiro, como não poderia deixar de ser, busco escapar do rótulo da aculturação e do conhecido valor negativo que acompanha as análises baseadas neste conceito. A incorporação de elementos exógenos, segundo esse paradigma, é pensada como ruptura de uma ordem tradicional autêntica, interpretada como apanágio da “perda cultural” e como contaminação de uma pretensa “cultura pura”. Uma visão mais elaborada que esta, e da qual também me desvio, é aquela que entende essas apropriações como hibridismos, ou processos de hibridação. Essa abordagem classifica, por exemplo, os objetos “tradicionais”, diferenciando-os daqueles que são compostos por elementos exteriores, notadamente contas de vidro, plástico, dentre outros materiais industriais. Do mesmo modo, os rituais tradicionais são contrapostos àqueles híbridos, onde a presença de elementos exógenos, mesmo que saudados como índices de inovações, são no mais das vezes entendidos como uma ruptura de uma ordem tradicional autêntica. Desviando-me propositalmente dessas formas de abordagem, busco extrair do contato interétnico os potenciais elementos de criatividade, invenção e transformação, o que implica, necessariamente, em sublinhar “a atividade propriamente criadora” dos Mebêngôkre “na constituição do ‘mundo dos brancos’ como um dos componentes do seu próprio mundo vivido” (Viveiros de Castro, 1999:115). Dessa afirmação, decorre, justamente, a outra armadilha que busco evitar. Ela diz respeito, as “teorias da dependência”, especialmente presentes em alguns trabalhos de Terence Turner (1992, 1993) sobre os Mebêngôkre. Em resumo, o autor sustenta duas configurações distintas para as comunidades kayapó pré e pós pacificação. Antes da pacificação tais comunidades


32 poderiam ser definidas segundo o autor a partir de um idioma da autonomia, marcado pela configuração de grandes aldeias com padrão populacional maior que as aldeias atuais. Depois da pacificação tal autonomia se converteria, ainda segundo o autor, em uma relação de dependência para com a sociedade nacional. Evitar essa abordagem significa, como disse acima, em não conceder aos brancos um estatuto ontológico privilegiado, o que parece ocorrer na abordagem de Turner9. Neste sentido, faço minhas as palavras de Clarice Cohn a respeito de uma discussão análoga a essa: “aqui se sugere (…) que nunca houve 'autonomia', e que o sistema [de relações mebêngôkre] sempre esteve aberto. Se dependência há, ela é constitutiva dessa socialidade, que só se faz na relação de diferença: será sempre dependente do Outro, qualquer que ele seja” (2005: 79). Se assumo, como o faz Cohn (2005), essa dependência da alteridade para a própria constituição da socialidade mebêngôkre, isto implica em se esquivar também das imagens de fechamento constituídas para eles e para outros grupos Jê na história da etnologia ameríndia. Tal imagem, como se sabe, se deve em muito ao grandioso esforço levado a cabo pelos integrantes do Projeto Harward - Museu Nacional10. Como tem apontado diversos comentadores desse projeto (Gordon, 1996; Coelho de Souza 2002; Fausto e Coelho de Souza, 2003; Cohn, 2004 e 2005), uma de suas grandes contribuições foi o de esclarecer uma série de questões inconclusivas presentes, no também monumental trabalho de Nimuendaju sobre diferentes populações Jê. Dentre as diversas questões em aberto deixadas por Nimuendaju, cumpre destacar aquela que diz respeito a importância da nominação (e de suas cerimônias) nessas sociedades. Se Nimuendaju havia apontado justamente para a saliência da onomástica entre estes grupos, ele ao mesmo tempo, “reconheceu … que não compreendia realmente como funcionava a nominação nestas sociedades” 9

10

Para críticas a essas ideias de Turner, ver: Lea, 1986; 2012; Coelho de Souza, 2002; Gordon, 2006; Cohn, 2005; Miller, 2005. O Projeto Harward - Museu Nacional ocorreu no período de 1962 a 1967 e foi realizado através de um convênio entre a universidade americana e o Museu Nacional de Antropologia, tendo como coordenadores os antropólogos David Maybury-Lewis e Roberto Cardoso de Oliveira. O projeto foi instituído com o intuito de investigar in loco, algumas das problemáticas apresentadas pelas monografias de Nimuendaju, sobretudo aquelas referentes à organização social e ao funcionamento das organizações dualistas. Esta última problemática foi herdada diretamente de Lévi-Strauss. Um dos principais objetivos do Projeto era estabelecer uma pesquisa comparativa das sociedades Jê através de uma série de pesquisas etnográficas individuais, cobrindo boa parte dos grupos Jê e ainda acrescentando a eles os Bororo, por razões de semelhança e os Nambikwara porque colocavam também o problema do dualismo, tal como formulado por Lévi-Strauss (Coelho de Souza, 2002). Contudo, foram deixados de fora do projeto os grupos meridionais ou Jê do Sul, Xokleng e Kaingang, considerados extintos no contexto do projeto. Sob a coordenação geral de Maybury-Lewis que estudou os Xerente e os Xavante, a equipe contava pelo lado americano com Terence Turner e sua esposa Joan Bamberger que estudaram os Kayapó; Jean Carter Lave, que estudou os Krikati; Cristopher Crocker estudioso dos Bororo, e alguns anos depois Anthony Seeger, que realizou pesquisas entre os Suyá. Do lado brasileiro, fechavam a equipe do projeto Roberto DaMatta, pesquisando entre os Apinayé e Júlio Cezar Melatti, entre os Krahô (Gordon, 1996). Houve certa demora na publicação dos resultados do projeto, que só saiu em livro em 1979, sob o título de Dialetical Societies. Contudo, em que pese a demora na publicação, o projeto foi de suma importância para o estabelecimento de questões centrais que marcaram certas especificidades da etnologia Jê, no panorama mais amplo da ainda incipiente etnologia ameríndia de então.


33 (Verswijver, 1984: 97). Coube aos pesquisadores do Projeto Harward - Museu Nacional, não apenas esclarecer o fenômeno da nominação entre os diversos grupos Jê, como demonstrar que “os agrupamentos sociais constitutivos dessas sociedades não se fundam no parentesco – na descendência e na aliança –, mas na nominação e na transmissão de nomes” (Cohn, 2005: 21). Segundo Cohn, a construção desse modelo analítico, criticado ou modulado por outros pesquisadores nas décadas seguintes, funda uma base que toma o modelo Jê como contraponto às análises e descobertas de outras paisagens etnográficas na América do Sul. Esse modelo parece estabelecer uma tendência de limitar a possibilidade de estabelecimento de relações sociais às fronteiras da aldeia, como que tomando literalmente o concentrismo espacial (Idem).

Tal modelo gerou uma imagem consolidada sobre os povos Jê na literatura etnológica sulamericana que tornou-se comparável ao restante do conjunto das sociedades Amazônicas. Isto se deve ao fato do aumento significativo de etnografias realizadas sobre outros povos do continente a partir de 1970, sobretudo, grupos guianeses e tupi-guarani (mas também Arawak, Pano e Caribe), cujas concepções de sociedade são muito diferentes daquelas praticadas pelos Jê, e que permitiram a seus etnógrafos questionar essa imagem de sociedade que a sociologia institucional e dualista dos grupos Jê ajudou a consolidar na etnologia sul-americana (Coelho de Souza, 2002). Comentando essas imagens das sociedades sul-americanas a partir do trabalho deliberadamente comparativo estabelecido por Viveiros de Castro, Turner afirma que o modelo desse autor para a sociedade e pessoa tupi, as entende “como ‘a-corporadas’ e em processo contínuo de ‘incorporação’ do Outro exterior e, assim ‘centrifugas’, em ‘contraste’ com os ‘corporados’ e agressivamente ‘centrípetos’ Jê” (1993: 45; grifo meu). A história da comparação entre essas categorias – centrífugos e centrípetos – remonta as noções de introjeção e expulsão da diferença, estabelecidas por Joana Overing (1983) em artigo bibliográfico que avaliava as contribuições do Projeto Harward - Museu Nacional sobre as sociedades Jê e as comparava ao Noroeste Amazônico e às sociedades Guianesas. Neste trabalho, Overing defende que os Jê e os grupos do Noroeste Amazônico introjetam a diferença, enquanto os guianeses expulsam-na. Estas, seriam formas distintas de uma mesma filosofia ameríndia que “equates society with both diference and danger, with the coming together of cultural forces different in source” (Overing, 1983 apud Coelho de Souza, 2002: 196). Seriam, na verdade, duas formas possíveis de domesticar a diferença, uma através do seu controle individual, como no caso guianês, que acarreta a expulsão da diferença; outra, levada a cabo pelos Jê, se daria a partir do controle social dessa diferença, feito por meio de “uma organização altamente ritualizada”, e cujo


34 resultado é a sua introjeção. O passo seguinte na história dessas diferenciações foi dado por Viveiros de Castro (1986). Ele afirma que Overing considera as duas formas de se relacionar com a diferença “como realizando por meios opostos o mesmo objetivo: conjurar o fato impensável da diferença, da existência real dos outros” (1986: 47, nota 11). Em contrapartida a isso e não questionando o fato levantado por Overing de que as cosmologias de todas essas sociedades partilhem um fundo simbólico comum, o autor afirma que “tudo se passa como se diante do aparelho classificatórioinscritor, as sociedades pudessem dispor-se, ou escolher, entre duas direções opostas, ou limites, linhas de fuga”. O caminho escolhido pelos Jê os levaria “a multiplicação sistemática das diferenças internas, a segmentarização generalizada (…), a tendência à representação ou exteriorização emblemática de toda diferença pensável ou possível” e permitiria ao autor defini-los como “metafóricos”, “totêmicos” e “legíveis”11. Em oposição, os grupos Tupi teriam escolhido outro caminho, qual seja, o da “dispersão das diferenças até um limiar de assignificação”, da “projeção da diferença para fora da sociedade” seguida de “uma vontade de desmarcação, de minimização das oposições, de invisibilização das significações”. Eles poderiam assim ser definidos como “metonímicos”, “sacrificais”, “imperceptíveis” (1986: 46). O mesmo autor estende essa distinção para definir as diferenças presentes nos sistemas onomásticos ameríndios. O tupi é visto como um “sistema canibal”, em que os nomes vêm de fora da sociedade (dos deuses, dos inimigos mortos, dos animais consumidos), do outro, enfim. São assim definidos em oposição a sistemas onomásticos centrípetos e dialéticos, “onde os nomes [embora também venham de fora] designam relações sociais, podem definir grupos corporados com uma identidade coletiva (...) e onde a transmissão inter-vivos é essencial para a continuidade social” (1986: 384). Esta última seria a forma Jê de nominação por excelência 12. Alguns anos depois, Fausto (2001) se utilizará da terminologia opositiva (centrípeto versus centrifugo) proposta por Viveiros de Castro para os sistemas onomásticos, “como instrumento heurístico” de definição de “dois regimes sócio-cosmológicos indígenas” (2001: 533). Embora essa terminologia não o satisfaça inteiramente, ela o permite expressar a diferença entre dois modos de reprodução social: de um lado, aquele fundado na acumulação e transmissão interna de capacidades e riquezas simbólicas; de outro, aquele erguido sobre a apropriação externa de capacidades agentivas. Ambos se voltam para a produção social de pessoas como mecanismo de reprodução generalizado da sociedade, mas de maneiras diferentes: nos Categorias inspiradas na oposição proposta por Levi-Strauss (1989) entre totemismo e sacrifício e também em DaMatta (1976) que define os Jê como sociedades legíveis. 12 Cohn (2005: 25), ressalta como essa discussão “parece deslocar a questão, da necessidade de buscar coisas de 'fora', que podem estar presentes em ambos os regimes onomásticos, para seu destino 'dentro'”. 11


35 primeiros, a pessoa ideal é constituída pela transmissão e confirmação ritual de atributos sociais distintivos – emblemas, nomes, prerrogativas, que confirmam diferenças sociológicas; nos segundos, a pessoa ideal é constituída pela aquisição de potência no exterior da sociedade – na forma de nomes, cantos, almas, vítimas – cuja transmissão é limitada e que constitui diferenças antes ontológicas do que sociológicas (...). Nos sistemas centrípetos predomina a ideia de uma fundação em que as condições de reprodução são dadas de uma vez por todas, ao contrário dos sistemas centrífugos em que ela depende necessariamente da reposição contínua de novos elementos adquiridos do exterior (op. cit.: 534).

Mesmo com a ressalva de que “nenhuma formação social é inteiramente uma coisa ou outra” e que “há inúmeras gradações entre os polos”, sendo muitas vezes possível passar de um ao outro, a tipologia expressa por Fausto será questionada por estudos mais recentes sobre os Jê (Coelho de Souza, 2002) e, sobretudo, a respeito dos Kayapó (Gordon, 2006; Cohn, 2005). Estes últimos, já no modelo de Fausto apareciam como um desses casos possíveis que transitam entre os dois polos, devido à importância dada por eles a “economia simbólica guerreira”, cuja atividade é movida justamente pela aquisição de bens do exterior. Esta atividade tenderia a ocupar um espaço menor nos sistemas de tipo centrípeto. A inadequação dos Kayapó aos dois modelos propostos por Fausto, o conduz, segundo Coelho de Souza, a “perguntas que, em si mesmas, indicam o quanto a dicotomia só vale ser posta para ser dissolvida”13 (2002: 199). E dissolvida para dar conta simultaneamente do que distingue e do que assemelha os diferentes casos etnograficamente descritos que, em sua maioria, se encaixam sempre entre os dois polos da dicotomia (op. cit.: 199). Além disso, há também como forma de questionamento destas dicotomias uma escolha teórica que se volta para os processos de troca intercomunitária e para a guerra, temas pouco explorados na etnologia Jê, a fim de questionar justamente a “representação habitual das sociedades centro-brasileiras, como ‘voltadas para dentro’ e fundamentalmente ‘autônomas’ e ‘auto-suficientes’” (Coelho de Souza, 2002: 195). Segundo a autora, para escapar a essas imagens torna-se necessário “generalizar para os demais Jê o ponto de vista proposto recentemente por Ewart (2000) em sua etnografia dos Panará”, segundo o qual, dual organization as a principle for ordering the world does not therefore end at the village boundary but rather extends beyond to include relations with outside others, such as white people with whom an ongoing relationship is entertained (Ewart, 2000: 34 apud Coelho de Souza, 2002: 200)

Um caminho parecido baseado nas mesmas escolhas é oferecido por Gordon (2006) em sua análise criativa de como o dinheiro e as mercadorias são incorporados pelos Xikrin (um subgrupo mebêngôkre). Gordon explora também o lado eminentemente centrifugo através da importância da 13

A pergunta de Fausto é a seguinte: “restaria perguntar por fim, em quê tais mecanismos de absorção de pessoas e riquezas se distinguem do movimento negativo-positivo da predação familiarizante e qual o lugar desse último na reprodução dos sistemas centrípetos” (Fausto apud Coelho de Souza, 2002: 199).


36 guerra para os Xikrin, em específico, e para os Mebêngôkre, em geral, e o faz para demarcar suas especificidades no que concerne ao tema ameríndio da “predação ontológica e das incorporações”. As variações Jê, deste tema “classicamente” Amazônico, segundo Gordon, não tinham sido tratadas “de maneira satisfatória pelos antropólogos que estudaram os mebêngôkre e os Jê em geral” (2006: 96) e serão tratadas por ele no sentido de demonstrar que “aquilo que Fausto chama de ‘parte-ativa’ do outro [sua alma, para os centrífugos Tupi] é, no universo mebêngôkre, apropriada na forma de objetos, no sentido restrito de objetivações técnicas e estéticas do Outro (nomes, cerimônias, cantos, adornos, armas, matérias-primas etc)” (op. cit.: 383). Isto o leva tanto a concluir que o canibalismo mebêngôkre opera pela absorção destas objetivações técnicas e estéticas, quanto a afirmar que ao contrário da ideia de fechamento e centripetismo, suponho que haja aí uma verdadeira teoria do contato e do contágio sócio-cosmológico, que atravessa de cima à baixo o universo mebêngôkre, incidindo diretamente na constituição da pessoa e no regime de subjetivação. Sugiro, por conseguinte, que há um problema geral da incorporação pelos Xikrin e Kayapó de capacidades exteriores que se manifesta em múltiplos domínios. (...) Sugiro, enfim que essa apropriação tem a ver com uma tópica amazônica muito mais geral, em que a questão da diferença e da relação com o Outro, codificada em uma simbólica da predação, adquire valor central na constituição dos valores indígenas (Gordon, 2006: 97).

O trabalho de Cohn (2005), segue proposta similar. Tal como Gordon, a autora se volta para os mecanismos de preensão simbólica da alteridade motivados pela guerra e pela troca em contextos distintos da história mebêngôkre, sobretudo, dos Xikrin do Bacajá, grupo no qual realizou sua pesquisa de campo. Seu trabalho aponta claramente para um esforço de reconfigurar os Mebêngôkre dentro do ideal ameríndio de “abertura para o outro”, apresentado por Levi-Strauss como uma tônica do pensamento indígena da América do Sul. Questionando “a persistência da imagem de fechamento Jê”, Cohn afirma que não se trata de, como se tem feito, anular o valor da predação para esses grupos. Ao contrário, “se o modula concedendo aos Jê algum sentido em suas buscas de elementos do exterior para se constituir” (2005: 25). Uma outra passagem de Cohn, é esclarecedora para os rendimentos desse trabalho: Essas reformulações (ou reconsiderações) nos modelos analíticos tem como fonte e embasamento novas análises sobre os Jê. De fato, a etnografia e a etnologia jê tem cada vez mais demonstrado a necessidade de se reconhecer formas e modalidades de abertura para o Outro, que Levi-Strauss (1991) demonstrou caracterizar o pensamento ameríndio. Nos Jê se manifesta claramente essa 'abertura para o outro'. A incorporação contínua de elementos tomados dos Outros demonstra que, se o processo de formação das diferenças internas teve início no tempo mítico, ele não foi interrompido, mas, ao contrário, é permanentemente reelaborado a partir de relações efetivas e históricas que estabelecem com diversos tipos de Outros (2005: 26).

Aqui interessa particularmente o lado eminentemente estético, artístico, performático desse processo de preensão simbólica, concretizado pela captura de coisas, pessoas, formas rituais,


37 conhecimentos e materiais que vem de fora. Seguindo as considerações feitas acima, a ideia é aproximar os Mebêngôkre daqueles grupos amazônicos que, no dizer de Lagrou (2009), realizam uma “pacificação estética” dos elementos capturados por meio de relações de alteridade. Lagrou mobiliza este conceito para pensar as diferentes formas de incorporação das miçangas pelos diversos grupos ameríndios. O interessante de sua abordagem é perceber como essa “manifestação específica da estética de pacificação” do outro (op. cit.: 56) envolve formas de se obter conhecimento e consequentemente, poder sobre o outro. Em suas palavras, inspiradas pelo trabalho de Taussig (1993): “adquire-se poder sobre o outro ao incorporar e domesticar esteticamente a matéria prima por ele produzida” (op. cit.: 59). Penso que seja possível estender essa ideia para outras formas de apropriação, por exemplo, as formas rituais que veremos no decorrer deste trabalho. Não seriam elas também, formas de adquirir poder e demonstrar conhecimento sobre esses outros que historicamente avançaram suas frentes de expansão sobre os Mebêngôkre?

Kukràdjà Nhipêjx A questão pode ser formulada em linguagem prática, filosófica ou ética, mas em todos os casos ela diz respeito àquilo que escolhemos querer dizer com a palavra “cultura” e a como decidimos dirimir, e inventar, suas ambiguidades. (Roy Wagner)

Após esses definições de cunho teórico, falemos um pouco mais sobre esse termo presente no título do presente trabalho e que foi proposto pelos cinegrafistas para denominar o Projeto de Documentação da Cultura. Kukràdjà, como disse acima, é a palavra que os Mebêngôkre contemporâneos designam por 'cultura', isto é, “tradição, hábitos, práticas, conhecimentos, saberes, modo de vida” (Gordon, 2009: 11). Nhipêjx, por sua vez, designa o ato de fazer alguma coisa. Por exemplo, mekaron nhipêjx, quer dizer “filmar”, onde mekaron é imagem e nhipêjx indica a ação de produzir imagens. Outro exemplo seria a expressão kikré nhipêjx, que quer dizer, “fazer uma casa”, (donde kikré = casa; nhipêjx = fazer). De modo genérico, nhipêjx é traduzido pelos índios como trabalho, no sentido de realizar alguma tarefa: filmar, construir uma casa, capinar a aldeia ou a pista de pouso, trabalhar na roça, etc. Neste sentido, kukràdjà nhipêjx pode ser traduzido como “fazendo cultura” ou “trabalhando


38 na cultura”. Dentre essas duas opções escolho providencialmente a primeira. Sobretudo, porque foi assim que os cinegrafistas a traduziram durante a referida reunião de trabalho. Mas também porque ela parece apresentar um sentido de produção constante do kukràdjà que gostaria de ressaltar neste trabalho e que, como vimos (e veremos), tornou-se o tema central do presente trabalho. Pois estaremos aqui falando sobre diversos kukràdjà apropriados, aprendidos e distribuídos entre diferentes pessoas, coletividades e comunidades. Além disso, essa expressão, 'fazendo cultura' ou kukràdjà nhipêjx, permite explorar toda a rica gama de sentidos expressos no conceito de kukràdjà: sua ampla produtividade semântica, suas ambiguidades e contradições. Assim, se disse no início que kukràdjà designa 'cultura', é porque esse é apenas um de seus variados significados, inclusive, já devidamente descritos e analisados na vasta literatura mebêngôkre. Digamos que ele é aquele significado mais propriamente reconhecível pelos etnógrafos e do mesmo modo aquele de mais fácil tradução para os nativos em contextos de intenso contato inter-étnico, onde, como diz Carneiro da Cunha (2009), a cultura se tornou uma daquelas categorias de ida e volta, e vem sendo constantemente apropriada pelos ditos povos tradicionais, justo no momento que a antropologia queria abandoná-la (Sahlins, 1997). Mais quais seriam então os outros significados que emanam desse conceito complexo? Por meio de quais sentidos se pode entrever a sua polissemia? Para responder essas perguntas vou me deter em alguns trabalhos de autores recentes que oferecem sínteses desse conceito nativo e deles extrairei aquilo que mais interessa destacar para o caso deste trabalho. Cohn (2004; 2008) e Gordon (2006; 2009), oferecem descrições detalhadas da categoria em tela. E ambos parecem concordar com uma característica central que gostaria de sublinhar: o aspecto de fluxo constante do kukràdjà mebêngôkre. Mas antes de chegar a esse ponto, que é, poderia dizer, o meu ponto nesta sessão, passemos por outros significados explorados pelos autores. Cohn inicia sua explanação sobre esse conceito lembrando que se por um lado outros pesquisadores como Lea (1986: 64-65) e Fisher (1991: 313-315) “já apontaram a relação entre esse conceito nativo e nossa ideia de cultura”; por outro lado, “todos concordam, também, sobre a necessidade de se definir cuidadosamente esse termo, abordando toda a extensão de seu campo semântico” (Cohn, 2004: 09). Do mesmo modo, Gordon destaca que “mebêngôkre kukràdjà foi traduzido (por índios e antropólogos) como a cultura, os conhecimentos e tudo o que faz parte do modo de existência mebêngôkre” (2009: 11), ressaltando, contudo, que a potencialidade semântica deste conceito não se detém nessa tradução. Cohn remete a Lea (1986) uma interessante definição de kukràdjà como a parte de um todo. Nas palavras de Lea:


39 um conceito abstrato, mas fundamental na língua kayapó é kukràdjà. Tem conotações de singular ou de plural, e pode ser traduzido de várias maneiras dependendo do contexto. Uma glosa possível seria 'uma parte de um todo', ou 'as partes constitutivas da totalidade', seja esta um corpo orgânico (composto pela cabeça, tronco e os membros) ou um corpus de conhecimento ou tradições (1986: 64).

Segundo Cohn, “e nessa mesma lógica, Fisher (1991; 313-315) o traduz por 'pieces stuff', pedaços de algo, ou o que é constituído por pedaços” (2004: 09). É com essa definição em mente que Gordon afirma que “kukràdjà não se refere apenas a conhecimentos igualmente repartidos entre todos” (2009: 11). O termo, continua Gordon, indica desde aquilo que é comum ou compartilhado no nível mais abrangente do segmento social – por exemplo, mekunin kukràdjà (que significa kukràdjà de todos), passando pelo que se restringe a uma determinada categoria de idade (menõrõny kukràdjà, de 'jovens', metumre kukràdjà, 'dos antigos') ou pelo que é genericamente dividido entre os sexos (memy kukràdjà, i.e dos homens; e meni kukràdjà, das mulheres) chegando até o nível menos inclusivo e estritamente pessoal –, por exemplo, ikukràdjà ('o meu kukràdjà'), me õ kukràdjà (o kukràdjà de alguém).

Para os rendimentos do presente trabalho, gostaria de sublinhar essa passagem do mais geral ao mais específico presente nesta definição de Gordon para kukràdjà. Pois nos capítulos que se seguem falarei de conhecimentos específicos como o da pintura corporal e o da produção de objetos em miçangas que são exclusivos das mulheres. Também falarei de uma busca incessante por diferenciação que evidencia o kukràdjà de cada um e move a transformação dos rituais e seus personagens, e da vida artefatual mebêngôkre. Por fim, destaco o kukràdjà de coletividades, como aquele produzido pelos moradores da aldeia Môjkarakô, que ao se apropriarem de distintas formas rituais querem se destacar de outras aldeias. Enfim, essa passagem torna-se importante porque apresenta em diferentes níveis uma constante produção de kukràdjà que nos remete novamente ao nome que os Mebêngôkre de Môjkarakô concederam de modo criativo ao Projeto de Documentação da Cultura: kukràdjà nhipêjx, isto é, “fazendo kukràdjà”. Mas continuemos explorando a polissemia deste importante conceito mebêngôkre a partir das análise de Cohn e Gordon. A primeira autora destaca, ainda segundo Fisher (1996: 3-4), que kukràdjà define os conhecimentos: “a qualidade de ser kayapó (...) não se liga ao que é fisicamente compartilhado, mas à posse, 'dentro da cabeça', de um conhecimento específico de tradições culturais. O mais autêntico desses conhecimentos (kukràdjà) é centrado em códigos de conduta e em regras de saúde, assim como conhecimento cerimonial, mitologia, etc.”. Deste modo, kukràdjà “é definidor de uma condição particular de estar no mundo, de um modo de vida” (Cohn, 2004: 09), designando também os conhecimentos que devem ser transmitidos de geração a geração, “em especial aquilo que é as vezes denominado me kukràdjà tum, ou seja, os conhecimentos, práticas e


40 saberes que vêm desde os tempos imemoriais” (Idem). Por fim, como ressalta Cohn, essa expressão é utilizada em particular nos discursos em que se exorta a necessidade de permanecer Mebêngôkre, a uma identidade cultural, opondo-se às coisas e aos modos dos outros. Nesse contexto, me kukràdjà se amplia para denotar tudo o que é específico de uma identidade mebêngôkre (Cohn, 2004: 10).

Aproveitando essa última definição de Cohn, noto que ela pode ser utilizada contextualmente não apenas para se diferenciar de outros que não são Mebêngôkre, como também para diferenciar as comunidades mebêngôkre entre si. Parece ser esse o sentido do termo mobilizado pelos Mebêngôkre de Môjkarakô para se diferenciar, por exemplo, de outras aldeias, como uma forma de definir a diferença própria dessa comunidade em relação às outras, visando mostrar como eles “fazem as coisas de um jeito próprio”, ou seja, fazem um kukràdjà diferenciado das demais aldeias. Esta definição, como veremos, aparece de forma significativa nos discursos dos chefes no contexto da festa de aniversário da aldeia Môjkarakô, descrita e analisada no segundo capítulo. Por ora, torna-se importante remeter à outra passagem de Cohn que nos faz chegar a um dos pontos que gostaria de atar nesta seção: a do caráter dinâmico do kukràdjà mebêngôkre como uma das principais faces da “abertura para outro” (Levi-Strauss, 1993) que se pode entrever na sóciocosmologia deste povo do Brasil Central. Assim, como afirma Cohn, nenhuma das acepções [de kukràdjà] reconhecidas pelos antropólogos e utilizadas pelos Mebêngôkre é essencialista. Kukràdjà refere-se, sim, a um modo de ser, aos conhecimentos a ele atribuídos e partes de um todo que é distribuído e transmitido individualmente. Mas, como já demonstrou Lea (1993:286), esse todo não existe senão idealmente. Por princípio, remete a uma permanência e a uma continuidade; porém a uma continuidade que não é tradicionalista e que demanda novos e eternos aportes para se manter. Para os Xikrin [um subgrupo mebêngôkre], mesmo em seus discursos mais radicais, a 'cultura' e a 'tradição' são moventes e devem ser recriadas a todo momento. Sem que se deixe de ser Mebêngôkre (2004: 10).

Esse aspecto dinâmico do kukràdjà também é destacado por Gordon, quando afirma que sendo um conjunto de partes de um todo não finito, kukràdjà pode ser entendido como um fluxo de conhecimentos, saberes e atribuições que povoam o cosmo e podem ser adquiridos e apropriados em diversos níveis, do indivíduo a uma coletividade mais larga. Pode portanto receber sucessivos aportes (ou perdas), isto é, novas partes, novos conhecimentos ou atribuições, que passam a compor, então, uma nova parte de alguém (o apropriador: xamã, guerreiro, chefe) e, eventualmente, uma nova parte de todos os Mebêngôkre (Gordon, 2009: 11).

Acredito que seja esse um dos sentidos do termo kukràdjà que os Mebêngôkre de Môjkarakô estavam querendo sublinhar quando nomearam o Projeto de Documentação da Cultura pela expressão kukràdjà nhipêjx. Ela parece sublinhar não apenas o caráter artefatual do kukràdjà,


41 no sentido de que é feito, produzido, ou mesmo aprendido e apropriado por alguém, mas também seu caráter propriamente dinâmico, no sentido de que por meio do projeto eles poderiam não apenas documentar o kukràdjà já existente, mas também e, sobretudo, fazer, produzir e registrar novos kukràdjà. Neste ponto, pode-se destacar mais uma passagem de Cohn, quando ela expressa a própria ambiguidade do termo kukràdjà – entre “retomar o que é anterior e criar, renovar” – como algo positivo. Assim, diz a autora: [É] essa a ambiguidade do termo kukràdjà de que tratamos acima: ao mesmo tempo em que instaura uma continuidade no tempo, abre-se a novidade. Dentre todas as acepções possíveis para o termo, apenas uma pode ser equivalida a uma reprodução desde tempos imemoriais – e essa é exatamente marcada pela qualificação do termo, me kukràdjà tum, em que tum indicaria a profundidade temporal. Kukràdjà, sozinho, embora traga em si essa dimensão temporal, não se encerra a esse passado, nem se encerra na continuidade (2004:12).

Neste sentido, cumpre destacar que a ambiguidade do termo kukràdjà, entre o que é tum (antigo) e o que ny (recente), entre permanência e variação, não nos permite entendê-lo como operando por meio da síntese entre elementos antigos e novos. Não se trata, nesse caso, de uma dialética entre velho e novo que necessariamente resultaria em uma síntese, mas sim da coexistência e permanência de diferentes conhecimentos que são adicionados ao estoque cultural já existente. Por isso, acredito ser particularmente interessante a ideia de ambiguidade mencionada por Cohn. Ela permite entrever ideias e conhecimentos contraditórios sem que a partir deles se precipite uma síntese que suprimiria tais contradições. Em uma passagem de Turner, nota-se novamente essa ambiguidade de que fala Cohn. Se por um lado, o autor define kukràdjà “como algo que permanece no tempo, algo que perdura, fica ou demora”; por outro, ele não deixa de lembrar que kukràdjà inclui “todo conhecimento de qualquer tipo, desde cantos cerimoniais até instruções para dar partida em motor de popa” (1988: 199 apud Gordon, 2006: 373). Mais uma vez esse tempo e essa permanência não devem ser confundidos com imutabilidade ou essencialismo. Trata-se mesmo de, para retomar a epígrafe desta seção, inventar – e não de dirimir – a ambiguidade deste conceito nativo de cultura. Uma ambiguidade na qual diferentes ideias, noções e conhecimentos permaneçam um ao lado do outro, sendo constantemente somados ao que se poderia chamar de kukràdjà mebêngôkre. É essa variedade de kukràdjà aprendidos e apreendidos de diferentes outros que gostaria de tematizar nesta tese.


42

Uma política da visualidade Outra ambiguidade do conceito de kukràdjà que gostaria de explorar neste trabalho diz respeito à sua tradução – por antropólogos e, sobretudo, pelos nativos – para 'cultura'. Com aspas tal como apontado por Carneiro da Cunha como uma forma de delimitar um registro interétnico que opera segundo uma lógica diversa daquela da cultura, sem aspas, entendida como as formas de pensamento e esquemas interiorizados “que organizam a percepção e a ação das pessoas e que garantem um certo grau de comunicação em grupos sociais” (2009: 313). A própria autora, assim como outros jêólogos, já chamaram a atenção para os perigos inerentes à sobreposição da 'cultura' e da cultura. Interessante notar que justamente o conceito de kukràdjà tem sido tomado como exemplo para diferenciar esses “falsos amigos” (Carneiro da Cunha, 2005: 24-25). Isso porquê a concepção nativa de cultura, ou seja, o kukràdjà, está pautado por um regime de propriedade específico que se homogeneíza e se coletiviza quando inserido no campo de ação propriamente interétnico, ou seja, o campo em que reina a lógica da 'cultura'. Assim, os kukràdjà que são de propriedade de pessoas específicas, ou de instituições como as Casas, tal como descritas por Lea (1986; 2012), passam por um processo de coletivização quando inseridos na lógica interétnica governada pela 'cultura'. Como diz Carneiro da Cunha, há uma marcada diferença entre a cultura entendida desse modo, passível de acumulação empréstimos e transações e aquela que chamei de 'cultura' e que opera num regime de etnicidade. Nesta última, entre outras coisas, a cultura é homogeneizada, estendendo-se democraticamente a todos algo que é, de um outro ponto de vista, uma vasta rede de direitos heterogêneos. Num regime de etnicidade, pode-se dizer que cada kayapó tem sua 'cultura'; no regime anterior – que agora, como veremos, coexiste com o outro – cada kayapó tinha apenas determinados direitos sobre determinados elementos de sua cultura (2009: 362).

O Projeto de Documentação da Cultura Kayapó, obviamente, tornou-se um espaço privilegiado de operação dessas duas lógicas, ou melhor, da coexistência de uma lógica da cultura e outra da 'cultura'. Tomemos como exemplo a compra, feita pelo Museu do Índio no âmbito do projeto, de uma coleção de grafismos de pintura corporal produzidos pelas mulheres em papéis e telas de tecido. Durante as negociações sobre o valor que seria concedido às produções das mulheres houve um intenso debate entre as pessoas presentes na casa dos homens. Um grupo de homens, respaldados pela opinião das mulheres mais velhas, defendia veementemente que o preço dos grafismos deveria estar de acordo com a maestria e a destreza das mulheres em produzi-los. Assim, quanto mais bem feito fosse o grafismo, isto é, quanto mais belo fosse ele, maior deveria ser o seu preço. Os defensores dessa posição operavam de acordo com a lógica da cultura, sem aspas,


43 ou seja, do kukràdjà acumulado diferencialmente pelas também diferentes mulheres que se empenhavam na produção dos grafismos, defendendo assim que o preço do grafismo fosse de acordo com esse acumulo e com a destreza desigual das artistas em produzir as pinturas. Ora, como veremos a seguir no capítulo dedicado à pintura corporal, a produção de grafismos demanda um longo aprendizado das mulheres, um verdadeiro acumulo de kukràdjà que diz respeito à produção correta das tintas, o plantio das árvores cujos frutos serão transformados em tintas, a correta aplicação dos grafismos de acordo com a qualidade dos corpos e, ainda, o respeito aos princípios estéticos de simetria, harmonia e proporção na execução dos grafismos. Assim, se é verdade que todas as mulheres kayapó fazem pintura, existem aquelas que são reconhecidamente boas fazedoras de grafismos. A elas, portanto, e segundo a opinião desse grupo, deveria ser pago um valor maior pelo resultado de seu trabalho diferenciado. Contudo, um outro grupo de homens, dentre eles o cacique Akjabôro, defendia que o valor a ser pago deveria ser o mesmo para todas as mulheres, independentemente de sua maestria na produção dos grafismos. Este grupo argumentava que o pagamento de um valor diferenciado geraria fofoca e inveja entre as pessoas e que isso poderia gerar sérios conflitos na comunidade. Ao fim da longa discussão, prevaleceu a decisão do segundo grupo: o valor dos grafismos seria o mesmo. Parafraseando Carneiro da Cunha, a “cultura” estava sendo democraticamente estendida a todas as mulheres que produzissem grafismos. Independente das motivações para esta escolha, ela parece coerente com o regime da etnicidade que governa a 'cultura', um regime em que conhecimentos específicos, desigualmente distribuídos são coletivizados em determinados contextos interétnicos. O caso do debate sobre o preço dos grafismos produzidos pelas mulheres mebêngôkre, ilustra muito bem a existência de duas lógicas distintas, operando segundo regimes de conhecimentos também distintos e no qual estão inseridos os grupos indígenas brasileiros contemporâneos. É também um exemplo claro de que, “embora se possa ver cada esfera como organizada por uma lógica sui generis, as mesmas pessoas vivem simultaneamente nestas mesmas esferas” (Carneiro da Cunha, 2009: 363). Mas o caso kayapó é também exemplar de outras consequências da entrada em cena da 'cultura' ou, em outras palavras, das consequências da “indigenização da 'cultura'” (Sahlins, 1997; Carneiro da Cunha, 2009). Como afirma Carneiro da Cunha, uma dessas consequências diz respeito à performatização ou mesmo espetacularização da 'cultura' a que estão submetidos os povos indígenas brasileiros. Em uma passagem já famosa, a autora expõe claramente a questão: Na linguagem marxista é como se eles [os índios] já tivessem 'cultura em si' ainda que talvez não tivessem 'cultura para si'. De todo modo, não resta dúvida de que a maioria deles adquiriu esta última


44 espécie de 'cultura', 'a cultura para si' e pode agora exibi-la diante do mundo. Entretanto, como vários antropólogos apontaram desde o final dos anos 1960 (e outros redescobrem com estrépito de tempos em tempos), essa é uma faca de dois gumes, já que obriga seus possuidores a demonstrar performaticamente a 'sua cultura' (2009: 313).

A riqueza dessa passagem para os rendimentos do presente trabalho é notável, e nela nos deteremos por um breve momento. Primeiro, e graças ao longo trabalho de alguns de seus etnógrafos, é possível destacar com alguma precisão o momento em que a denominada “cultura para si”, passou a ser mobilizada pelos nativos. Terence Turner, antropólogo americano que trabalha desde o início dos anos de 1960 entre os Mebêngôkre, sobretudo com o subgrupo conhecido na literatura como Gorotire, afirma que a partir dos anos de 1986-87 era comum ouvir líderes kayapó, bem como homens e mulheres comuns, dizendo ter como motivação fundamental de sua luta política a manutenção de seu modo de vida cultural e a defesa deste contra pressões de assimilação e de destruição por parte da sociedade nacional. Muitos, inclusive indivíduos monolíngues, haviam começado a usar a palavra portuguesa ‘cultura’ para se referir ao seu modo de subsistência material, ao ambiente natural ao qual está essencialmente ligado, bem como às suas instituições sociais e ao seu sistema cerimonial tradicional. O termo nativo para o conjunto de saberes e costumes, kukràdjà, era agora também comumente empregado da mesma forma, isto é, para se referir às práticas e saberes tradicionais como algo que exigia um esforço consciente por parte da comunidade para sua preservação e reprodução (1991:304).

É também neste período que Lea (1986) registra o uso da palavra kukràdjà como sinônimo de cultura, entre os Metyktire, um subgrupo mebêngôkre situado no Parque Indígena do Xingu, e posteriormente na Terra Indígena Kapôto Jarina. O importante a destacar aqui é que a partir da década de 1980, e para diferentes subgrupos mebêngôkre, kukràdjà, sua manutenção e sua dinâmica, passou a ser uma forma privilegiada de fazer política. Mas não qualquer política. E sim uma política da visualidade, em que a performatização da cultura se torna a principal arma. Essa conclusão nos leva ao segundo ponto que gostaria de destacar da passagem de Carneiro da Cunha citada acima. Trata-se de considerar que parece não ter sido um problema, ou mesmo uma obrigação para os Mebêngôkre o fato de terem que demonstrar performaticamente sua cultura em contextos interétnicos. Na verdade, a performatização da 'cultura' parece ter sido antes uma escolha deliberada, uma forma de se posicionar na esfera interétnica que tem a ver com características centrais da própria socialidade mebêngôkre. O que estou querendo dizer aqui é que se para alguns povos indígenas a performatização da cultura pode ser uma estratégia perigosa e perversa, ou mesmo, uma estratégia a não ser seguida, como o fazem os Wari estudados por Conklin (1997); para os Mebêngôkre a performatização da sua cultura sempre foi, e continua sendo, uma poderosa estratégia de luta a ponto deles terem se tornado verdadeiros exportadores desta estratégia para


45 povos indígenas brasileiros e de outros países14. Foi assim, por exemplo, que os Mebêngôkre conseguiram deter, em 1989, a construção da hidrelétrica de Belo Monte que afetaria seu território, organizando um grande evento conhecido como Encontro de Altamira. Foi assim, também, que os Mebêngôkre exerceram grande pressão política nas autoridades brasileiras durante as assembleias constituintes que debatiam a constituição de 1988. Foi assim, ainda que os Mebêngôkre conseguiram a demarcação de suas terras. Em todos estes eventos, e em outros mais, os Mebêngôkre utilizaram a estratégia da performatização de sua cultura para conseguir tais conquistas políticas. Contudo, seria equivocado pensar que tudo isso se trata de uma simples representação. Na verdade, o êxito mebêngôkre na assunção da estratégia da performatização da cultura tem a ver, como disse, com características próprias da socialidade mebêngôkre, a começar pela importância dos rituais na constituição própria desta socialidade e das redes de relações necessárias para produzi-la. E também pelo seu caráter propriamente visual. Uma passagem de Gordon permite esclarecer esse argumento. Para o autor, uma das características da sociedade mebêngôkre é o que podemos chamar do seu caráter visual. Desde o display arquitetônico das aldeias até a importância do aparecimento (amirin) dos adornos, enfeites e papéis cerimoniais nas festas e danças no pátio – isto é, o desvelamento ritual de nomes e kukràdjà – há um componente visual na objetificação do valor e da beleza. Isso não é a toa. É no ritual que a beleza se objetifica e se mostra em sua máxima extensão sociológica e cosmológica. (…) O ritual, portanto, é o ponto auge da produção (ou extração, ou atribuição) da beleza. Na verdade, é o contexto em que toda a beleza que os Mebêngôkre puderam produzir, aprender ou apropriar do cosmo se objetifica. Os rituais são momentos em que a própria sociedade mebêngôkre mostra-se como deve ser: bela, correta, boa. Mebêngôkre kukràdjà mejx kumrenx (2009: 16-17).

Não poderia ser de outra forma, portanto, que os Mebêngôkre se posicionassem na arena interétnica. Isso somente poderia acontecer através da forma ritual, ou seja, através da performatização da cultura, uma vez que existe no próprio ritual “um componente visual” de objetificação da beleza. O ritual é para os próprios nativos o momento ápice da produção de beleza e de exposição e visualização do kukràdjà mebêngôkre. Ele é, como veremos nas páginas que se seguem, o lócus privilegiado para onde se canaliza uma política da visualidade estrategicamente pensada para (im)pressionar os outros, notadamente, os brancos. Engajá-los na própria produção de diferentes rituais mebêngôkre, não apenas como público, mas também como patrocinadores de grandes festas, como participantes ativos das cerimônias, tal como também o são os espíritos, os animais e os demais estrangeiros que tomam parte nelas. 14

Conklin (1997) ressalta, por exemplo que em 1990, lideranças kayapó foram convidadas a visitar os índios Crew, no Canadá para lhes ensinar táticas de mobilização política. Conferir também: CEDI, 1990: 336.


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As cerimônias de nominação Neste trabalho, um dos temas correntes é o da multiplicidade ritual mebêngôkre e as transformações dela decorrentes. Embora não trate especificamente das conhecidas cerimônias de nominação – mencionadas, descritas e analisadas por diversos pesquisadores dos Mebêngôkre ao longo dos séculos XX e XXI; é oportuno nessa introdução dedicar algumas linhas a elas, pois que compartilham uma série de elementos em comum com os ritos descritos à frente. Para que as comparações feitas ao longo da tese estejam ao alcance do leitor não familiarizado com a literatura sobre os Mebêngôkre e Jê, realizo a partir de agora uma apresentação sumária dos conhecidos rituais de nominação, bem como das regras que regem a transmissão de nomes e nekrêjx ( prerrogativas e bens cerimoniais). ωωω A riquíssima vida cerimonial mebêngôkre sempre chamou a atenção de seus etnógrafos. Alguns deles ofereceram classificações para dar conta desta multiplicidade ritual. Verswijver por exemplo afirma que se pode distinguir três tipos principais de cerimônias: “as cerimônias de imposição de nomes (quando são confirmados os nomes das crianças), os ritos ligados ao ciclo anual de insumos da plantação (a cerimônia do milho, por exemplo) e os ritos de passagem (que marcam a passagem de uma classe de idade à outra)” (1982a: 43). Vidal (1977: 177-194) amplia esta classificação apresentando ao menos mais dois tipos de ritos que nos interessam particularmente: aqueles ligados “à vida esportiva, como a demolição de ninhos de maribondo, as competições de flechas emboladas e as competições de luta corporal” (Vidal, 1977: 176); e aqueles que não são de origem mebêngôkre, como o Aruanã, copiado dos Karajá, e o Kwôre Kangô, copiado dos Juruna pelos Gorotire que, por sua vez, o ensinaram aos Xikrin. Verswijver descreve com minúcias os ataques guerreiros mebêngôkre afirmando que muitos deles eram realizados com a meta específica de capturar jovens mulheres que, quando cativas, ensinavam novas danças e cantos. Como afirma o autor, “o impacto deste procedimento é notável: quatro das onze cerimônias de nominação existentes são ditas ter se originado de outros, ou seja, de grupos não kayapó” (1992: 155)15. Mas se estendermos, como de praxe na etnologia ameríndia contemporânea, a palavra grupo para caracterizar, na verdade, coletivos de pessoas, animais, 15

Estas quatro cerimônias seriam as já mencionadas Kwôre-Kangô (festa da mandioca), Aruanã (Bô kam metóro) e as cerimônias Memu bjôk (Festa dos homens-pintados) e Menire bjôk (Festa das mulheres pintadas).


47 espíritos e seres sobrenaturais, poder-se-ia supor que o número apontado por Verswijver aumentaria ainda mais, talvez alcançando a totalidade das cerimônias de nominação existentes. Como não possuo dados para garantir essa última afirmação, evoco o mito de origem dos nomes bonitos descrito por Lea (2012: 208-210), onde em conjunto com os nomes Bemp e Bekwoj, o personagem central do mito aprende com os peixes a cerimônia em que tais nomes foram confirmados. Ademais, como já extensamente demonstrado na literatura, isso que chamamos “patrimônio cultural” é entendido pelos próprios Mebêngôkre como adquiridos de outros coletivos. Pelo menos desde as mitológicas de Lévi-Strauss já se sabe que itens culturais primordiais para a vida coletiva e mesmo identitária destas populações – como o fogo roubado do jaguar, as plantas cultivadas recebidas da mulher estrela, os enfeites corporais capturados em inúmeros ataques guerreiros a grupos indígenas e seres mitológicos, e mesmo as cerimônias, isso para não falar dos mitos e dos nomes bonitos – são roubados de outros seres, humanos ou não, adquiridos em relações de troca ou mesmo guerra e sofisticadamente mobilizados na constituição de coletividades e identidades. Uma outra característica da nominação e de suas cerimônias é o fato, já amplamente comprovado na etnografia mebêngôkre, da existência de uma diferenciação entre duas categorias de nomes: os nomes comuns (nhidji kakrit) e os nomes bonitos (nhidji mejx) (Lea, 1986; Verswjver, 1984; Vidal, 1977). Os últimos são destacados por serem formados por classificadores cerimoniais que antecedem o complemento do nome, este não raro formado por um nome comum. Os classificadores cerimoniais podem ser reduzidos a oito: Bep e Takáak, de uso exclusivo dos homens, e Kokô, Ngrenh, Bekwynh, Iré, Nhàk e Pãnh, utilizados majoritariamente por mulheres e, com menos frequência, pelos homens (Lea, 1986). Como destacado na literatura, a beleza dos nomes bonitos não está nem em seus significados semânticos nem no fato de serem usados em cerimônias. A vinculação de sua beleza está no fato “de serem associados a uma cerimônia específica na qual são confirmados” (Lea, 2012: 245). Em geral, tais cerimônias possuem o mesmo título dos nomes confirmados nelas. Assim, por exemplo, na cerimônia denominada Kokô, só se confirmam nomes com esse classificador, o mesmo ocorrendo com os outros classificadores, com exceção dos nomes Takàk e Nhàk que possuem a especificidade de serem confirmadas em uma mesma cerimônia. Como afirma Lea, essas cerimônias “são usadas também para completar a transmissão de uma série de nomes com um classificador específico” (op. cit.: 249). Contudo, existem também cerimônias nas quais podem ser confirmados nomes com qualquer um dos classificadores. Esse é o caso das festas Menire bjôk (festa das mulheres pintadas), Memu bjôk (festa dos homens pintados) e, mais recentemente, Kwôre kangô (festa da mandioca).


48 Nomes comuns, bonitos ou falsamente bonitos são transmitidos “através do sistema bilateral de parentesco (oposto ao laço culturalmente prescrito da unifiliação) e os laços diádicos de ingêt16 a tàbdjwy17, para homens e de kwatyi18 a tàbdjwi, para mulheres” (Verswjver, 1983: 104). Tal transmissão pode ser realizada por mais de um ingêt ou kwatui para os seus tàbdjwi, ou seja, um tàbdjwi pode receber nomes de diferentes ingêt ou kwatui, e estes últimos podem doar nomes para diferentes tàbdjwi. Em conjunto com os nomes os tàbdjwi recebem prerrogativas rituais, seja de executar determinada performance ritual em dado momento de uma cerimônia, seja de poder portar certo enfeite corporal nas ocasiões festivas. Estas prerrogativas cerimoniais são denominadas nekrêjx. Nomes e prerrogativas rituais são, como afirma Verswijver (1983: 106), “possuídos” pelos segmentos residenciais (rwyk djà) que compõem a aldeia circular mebêngôkre. Na terminologia utilizada por Lea (1986; 2012), os segmentos residenciais são entendidos como Casas, unidades sociais abstratas que não devem ser confundidos com as habitações. Enfatizando essa diferenciação Lea utiliza Casa, com letra maiúscula, quando quer se referir a essas unidades formadas por grupos “corporados de descendência uterina” (1986:16); e casa, com letra minúscula, quando quer se referir as habitações onde residem famílias extensas e nucleares. Inspirada no conceito de societes a maison (sociedades de casa) apresentado por Lévi-Strauss, a noção de Casa sistematiza, segundo a abordagem de Lea, um conjunto de características da organização social mebêngôkre: a uxorilocalidade que regula o padrão de matrimônio, os sistemas de transmissão de nomes e nekrêjx, bem como o lugar específico ocupado por cada Casa na aldeia. Segundo a autora, as posições das Casas no plano aldeão remontariam a uma aldeia ideal, ou mesmo mítica, de onde teriam se originado as diferentes Casas que compõem as aldeias atuais 19. Turner, por outro lado, afirma que nomes e nekrêxj, “ao contrário do que tem sido afirmado por Vanessa Lea (cf. Lea, 1986, 1992, 1995), são propriedades dos indivíduos que os transmitem e os recebem, e não de qualquer sociedade comunal ou Casa, consideradas como uma corporação” (2009: 158). Não é o meu intuito aqui entrar nesse debate a respeito da propriedade de nomes e nekrêjx serem de pessoas ou de coletividades. Desviando-me propositalmente desta questão espinhosa, opto por enfatizar os pontos em comum salientados pelos autores. Um desses pontos, 16 17 18

19

Pai do pai, pai da mãe, irmão da mãe. Neto ou neta para ego masculino e feminino, filho da irmã para ego masculino e filha do irmão para ego feminino. Mãe da mãe, mãe do pai, irmã do pai. No que tange a este último aspecto, alguns autores (Vidal, 1979; Oliveira, 1995) demonstraram que as posições das casas na aldeia podem ser contextuais quando por exemplo certas questões políticas se sobrepõem a forma da aldeia ideal, tal como proposto por Lea.


49 notados tanto por Lea (1986; 2012) e Turner (1965; 2009), diz respeito ao fato de que a confirmação cerimonial de nomes e prerrogativas divide internamente as pessoas de uma determinada comunidade entre aquelas que são consideradas belas (merereméxj), pois que tiveram seus nomes e prerrogativas confirmados em uma determinada cerimônia; e aquelas consideradas comuns (mekakrit), pois que não tiveram seus nomes e prerrogativas confirmados cerimonialmente. Em uma passagem de Verswijver essa questão é colocada com bastante clareza. Segundo o autor: Alguns dias depois do nascimento de uma criança, vários ingêt e/ou kwatui transmitem um certo número de nomes comuns e de grandes nomes para a criança. Grandes nomes baseados em vários prefixos cerimoniais são habitualmente dados nesta ocasião. Tanto um nome grande como um nome comum podem ser usados para designar a criança durante a infância. Mas se o belo ou grande nome posteriormente não for cerimonialmente confirmado, este será considerado um idji mêtx kaigo (“belo nome dado falsamente”). Kaigo é um termo polissêmico, que tanto pode ser usado para designar um objeto que foi dado gratuitamente, como para alguma coisa que não possui a qualidade original do objeto ou do evento do qual é exemplo. Referir-se com kaigo a belos nomes que não foram cerimonialmente confirmados reflete, de um lado, que não se materializou o amparo econômico de parentes, necessário para a realização da cerimônia, e de outro, que faltou o prestígio associado a ser a criança (ou algumas das crianças) honrada(s) pela cerimônia. Me rer mêtx (“pessoas que se destacam belamente”) é o termo Kaiapó para crianças honradas numa das esmeradas cerimônias de nominação (1984: 106-107).

Esta distinção entre pessoas belas (mereremejx) e pessoas comuns (mekakrit) tem sido um tema recorrente na literatura mebêngôkre, pois que coloca em evidência um princípio de desigualdade ou hierarquia que tem a ver, como destaca Verswijver, com as condições necessárias à produção coletiva do ritual. Uma grande cerimônia de nominação só pode ser realizada com o auxílio de uma grande parentela mobilizada para a produção do alimento ritual, ele mesmo, uma das condições para que a festa ocorra. Por isso, muito dificilmente as cerimônias de nominação confirmam nomes de uma única criança. São sempre crianças de diferentes famílias, ou Casas no dizer de Lea, que se apresentam à cerimônia para ter seus nomes e prerrogativas confirmadas. Todos os parentes que os pais dessas crianças conseguirão mobilizar irão “trabalhar para a festa” (metoro nhipêjx), o que em muitos casos pode chegar a atingir toda a aldeia. Como tem destacado os autores da etnologia mebêngôkre, existe um considerável aumento no número de cerimônias no período pós pacificação. Este aumento tornou-se ainda mais vertiginosos nas últimas décadas, tendendo ao que Gordon (2006: 340) denominou “comunização ou universalização do estatuto cerimonial”. Em sua análise da inserção de grandes quantidades de mercadorias na vida social Xikrin, Gordon aponta que ela possibilitou dentre outras coisas “um aumento significativo no número de celebrados” (op. cit.: 336).


50 As consequências desse processo para os Xikrin são resumidas pelo autor da seguinte maneira: Em virtude desse incremento no número de celebrados a distinção entre nomes bonitos e nomes comuns, ou entre nomes bonitos kajgó (não confirmados), e nomes realmente bonitos, apontadas nas etnografias, não apresenta, hoje, ser tão marcada entre os Xikrin. Vários informantes dizem que todo mundo tem nomes bonitos, sem distinção entre kajgó e kumrenx ('de verdade'). Note-se a diferença em relação ao passado, quando Vidal foi por eles informada de que praticamente “todos os nomes cerimoniais perderam a sua autenticidade: são, na expressão indígena, idji mei kaigo (1977: 110). (…) Atualmente, os Xikrin, parecem enfatizar menos que no passado a diferença entre nomes bonitos ou nomes sem valor. Por outro lado, hoje parece haver mais debate em torno de quem é 'rico' e quem não é, ou para ser mais preciso, de quem tem piôkaprin ou kuben nhõ moja kumejx (muito dinheiro e mercadorias) e quem não tem. (op. cit.: 338-9; grifo do autor).

Comparando o caso dos Xikrin com o dos Mebêngôkre de Môjkarakô encontramos um panorama um pouco distinto. Pode-se dizer que havia sim uma preocupação no valor da distinção entre nomes bonitos vinculados cerimonialmente à pessoa honrada e aqueles falsamente bonitos, pois que sem vinculação cerimonial. Como entre os Xikrin do passado, muitas pessoas não possuíam nomes confirmados, não eram consideradas pessoas belas. Mas isso não impedia que estas pessoas, talvez como fizeram os Xikrin, se empenhassem em honrar seus filhos e netos em muitos rituais de nominação. Tanto que eles executavam pelo menos quatro rituais de nominação por ano, onde de cinco a quinze crianças poderiam ser honradas em cada um deles. As quatro cerimônias de nominação feitas impreterivelmente todo ano, de 2009 (ano de início de minha pesquisa de campo) à 2013 (ano de seu término), seguem um calendário fixo: no Ano Novo é realizada uma cerimônia Memy Bjôk (“festa dos homens pintados”); no fim de janeiro e início de fevereiro, desenrola-se a contraparte feminina dessa cerimônia masculina: a cerimônia Menire Bjôk (festa das mulheres pintadas); em julho acontece uma festa Kwôre-Kangô; e os meses de setembro e outubro são reservados para uma cerimônia com classificador cerimonial específico: um festival Bemp, uma festa Kôkô ou uma cerimônia Takàk. Durante os quatro anos em que desenvolvi a pesquisa de campo acompanhei de perto ou de longe o desenrolar desse calendário ritual em que diversas crianças de diferentes famílias da aldeia eram honradas cerimonialmente. Talvez, a importância da oposição memejx / mekakrit se desse para os habitantes de Môjkarakô porquê ainda haviam muitas pessoas que não tinham honrado ritualmente os nomes de seus filhos e netos, mas havia também um grande desejo coletivo para que isso acontecesse. Foi para solucionar esse impasse que os habitantes de Môjkarakô, notadamente influenciados pelas mulheres mais velhas da aldeia, desenvolveram um sistema coletivo de produção das condições necessárias aos rituais de nominação. Graças às aposentadorias que os


51 casais idosos de praticamente toda a aldeia começaram a receber, era possível que cada um deles doasse metade, ou mais, de sua quantia mensal para a aquisição de mercadorias, sobretudo, comida para alimentar as pessoas durante as festas. Essa interessante inovação passou a contar com o auxílio de outras pessoas assalariadas da aldeia (como os professores, os cinegrafistas, os agentes de saúde e de saneamento). Contudo, o dinheiro desses últimos era mobilizado para a produção de cerimônias que não eram de nominação: como o aniversário da aldeia (ver cap. 2), a cerimônia de posse (ver cap. 3) e os Jogos Tradicionais de Môjkarakô. Cerimônias que, como veremos, confirmam a beleza não de pessoas, mas de coletividades. O resultado da implementação desse sistema foi que de 2009 à 2013 quase oitenta crianças tiveram seus nomes e prerrogativas confirmadas cerimonialmente. Um número que pode parecer exagerado, mas que os Xikrin parecem ter atingido muito mais rapidamente. Segundo nos conta Gordon, somente em um ritual Bemp ocorrido em 1999 “pelo menos 22 famílias puderam confirmar os nomes de, ao menos, um de seus filhos” (2006: 337). Claro, ao invés de receber meras aposentadorias ou pequenos salários, os endinheirados Xikrin recebem justos milhões de reais do convênio de mitigação ambiental estabelecido com a Companhia Vale Do Rio Doce, exploradora da vasta mina de Carajás e de sua grande jazida de minério, localizada próximo ao território xikrin. De qualquer modo, e a despeito da quantidade de dinheiro envolvida, é certo que a inserção do vil metal e de suas inseparáveis mercadorias coloca uma série de consequências para o regime de produção ritual e de produção de beleza mebêngôkre. Em sua etnografia, Gordon encontrou duas consequências primordiais para a socialidade Xikrin diante de quantidades expressivas de dinheiro e mercadorias em sua vida cotidiana e ritual. Vejamos o argumento do autor: Se, de um lado, o consumo cotidiano de mercadorias parece visar à ampliação das redes de cuidado, troca, partilha e convivialidade e, de certa maneira, assim constituir, ou melhor, contribuir para a constituição de uma identidade entre os Xikrin (que reconhecem, por conseguinte, uma 'parecença' e um parentesco entre si), um dos efeitos possíveis que detectamos aí é, justamente, o risco de ficarem parecidos demais com os kuben, pela modificação gradativa do corpo via ingestão de alimentos industrializados e adoção de outros hábitos característicos dos kuben. Do outro lado, o consumo das mercadorias voltado ao processo cerimonial parece trazer o risco de ficarem parecidos demais entre si, na medida em que ele tende a ser um movimento de 'comunização' ou universalização do estatuto cerimonial (beleza), quando o movimento original, talvez, fosse o de se tornar parecidos ritualmente com Outros, mas de maneira diferencial – uns mais outros menos. (…) A incorporação das mercadorias embaralha, por assim dizer, os procedimentos de identificação e alteração, arriscando introduzir mais alteração ali onde se queria identificação, e mais identificação ali onde se queria alteração (2006: 340).

É preciso proceder com cautela após essa importante passagem de Gordon. No que tange às contradições colocadas pelo consumo cotidiano de mercadorias, sobretudo, alimentos


52 industrializados e medicamentos, encontrei temor semelhante entre os habitantes de Môjkarakô de estarem tornando-se por demais kuben, ao comerem enlatados, arroz, feijão, bolachas, açúcar, sal e um sem número de embutidos; e beber refrigerantes e refrescos em pó. Tal como Gordon ouviu dos Xikrin, também ouvi em Môjkarakô, e por inúmeras vezes, que antes do contato os Mebêngôkre eram mais fortes, seus corpos eram maiores e mais duros. Seu amolecimento pós contato era explicado pelo fim das atividades guerreiras, mas também pelo alto consumo de alimentos e medicamentos industrializados. A respeito do paradoxo colocado pela inserção de mercadorias e dinheiro para produção ritual, encontrei um panorama diferente daquele descrito por Gordon. De modo que não parecia ser um problema para os habitantes de Môjkarakô, o fato de terem seus filhos e netos sendo, todos, honrados e tornados ritualmente belos. Isso parecia, na verdade, a solução para o problema de que na aldeia existiam muitas pessoas consideradas me kakrit, mas que não gostariam de ver seus filhos e netos na mesma situação. A questão em Môjkarakô, talvez estivesse relacionada mais para fora do que para dentro. Como uma aldeia nova, que buscava se consolidar no plano inter-aldeão como uma aldeia grande, bonita e populosa, era importante que os filhos e netos de seus habitantes se tornassem belos, objetificando, por meio dos rituais de nominação, a beleza não apenas das crianças honradas e de seus parentes, mas da própria aldeia como um todo no panorama mais amplo das aldeias kayapó do sul do Estado do Pará. Em suma, se estavam internamente se tornando parecidos demais entre si, é porquê buscavam tornar-se externamente diferentes das outras aldeias no plano inter-aldeão. Seguindo essa tendência observada em Môjkarakô, de um projeto coletivo de produção de beleza com a criação de um sistema econômico para sustentá-lo, decidi privilegiar nesta tese as relações inter-aldeãs, deslocando a busca por diferenciação e beleza também para o plano das redes de relações entre as diversas aldeias kayapó presentes no sul do Estado do Pará. Neste ponto, é preciso trazer à tona as cerimônias que serão descritas e analisadas neste trabalho. Como se sabe, nenhuma delas é uma cerimônia de nominação. Mas isso não quer dizer que não tenham na objetificação da beleza, o seu tema central. Este permanece sendo o fim (a finalidade) dessas cerimônias: conceder beleza aos que dela participam e produzem. Mas o sujeito da beleza desliza dos nominados (e seus parentes) para a própria comunidade como um todo. É ela, a comunidade, tal como produzida pelos habitantes de Môjkarakô, que sai mais bela da festa de seu aniversário por exemplo. É ela, também, que se fortalece, se engrandece e se torna mais bela perante as outras aldeias quando seus moradores conseguem patrocinar coletivamente uma grande quantidade de


53 rituais de nominação para embelezar seus filhos e netos. Ao fazer isso, os Mebêngôkre de Môjkarakô não deixam de operar do seu jeito, e talvez de modo mais amplo, a importante equação do regime cerimonial e político mebêngôkre, tal como colocada por Gordon: mais parentes = mais riqueza = mais beleza = mais agência. Se “essas coisas andam juntas na socialidade mebêngôkre” (2006: 333), interessa aqui vê-las em ação nas vastas redes de relações intra e interétnicas que perpassam as aldeias kayapó do sul do estado do Pará e que as conectam entre si e com as diferentes cidades circunvizinhas a Terra Indígena Kayapó. Um ponto de destaque neste grande rizoma é a aldeia Môjkarakô, apresentada ao leitor no tópico seguinte.

A Aldeia Môjkarakô Falantes de uma língua do tronco linguístico Jê, os Mebêngôkre (Kayapó) habitam territórios ao sul do Estado do Pará e ao norte do Estado do Mato Grosso. Estão divididos em diversas aldeias que se por uma lado constituem universos políticos relativamente autônomos (Turner, 1992; Gordon, 2006), por outro estão conectadas por extensas redes de relações. Como afirma Gordon, existem entre as aldeias “profundas conexões de todas as ordens que indicam a necessidade de pensá-las não isoladamente, porém compondo um regime relacional mebêngôkre” (2006: 40). Tomados em conjunto os Mebêngôkre somam quase oito mil indivíduos, segundo dados do IBGE (censo 2010). É difícil precisar a quantidade de aldeias existentes atualmente devido à contínua dinâmica faccionária mebêngôkre que leva a também contínuas cisões entre aldeias. Lea (2012: 66) tem razão quando afirma que os mapas da Funai não conseguem acompanhar essa dinâmica, sendo sempre ultrapassados. O mapa mais completo que encontrei foi produzido pelo ISA (Instituto Socioambiental) e está presente na contracapa do livro recém-lançado de Lea (2012). Nele pode-se contar vinte e uma aldeias mebêngôkre presentes na Terra Indígena Kayapó (TI Kayapó), mas é possível que esse número já seja maior, devido à intensa segmentação característica dos Mebêngôkre20.

20

O mapa do ISA (2011), por exemplo, não computa a existência da aldeia Ngômèxti, formada por um grupo dissidente da aldeia Aúkre no ano de 2012.


54

Figura 1: Mapa das Terras Indígenas Kayapó e do Parque Indígena do Xingu. ISA (2011). Extraído de Lea (2012: contracapa)

A própria história da aldeia Môjkarakô, enquanto aldeia mebêngôkre, remonta a esta vasta rede de cisões e fusões entre aldeias que marcaram a ocupação kayapó de uma também vasta região


55 que vai dos rios Tocantins e Araguaia ao Tapajós, passando pelo Rio Xingu e seus afluentes como o Fresco e o Riozinho, durante os séculos XIX e XX. Tal intricado amálgama parece, segundo a tradição oral, ter origens míticas, segundo conta a narrativa da queda da árvore do milho e a consequente dispersão dos povos de língua jê ou de grupos mebêngôkre, segundo versões que variam ou se misturam ao sabor do narrador. Neste sentido, a cissiparidade mebêngôkre pode ser vista como “anterior ao próprio aparecimento deste povo, ele mesmo originário da cisão de um grupo ancestral” (Oliveira, 1995: 08). Se a diferenciação dos Mebêngôkre entre si tem origens míticas, sua expansão rumo à oeste dos rios Tocantins-Araguaia parece ter ocorrido após o contato com integrantes da frente pecuária que chegava àquela região por volta do fim do século XVIII (Verswijver, 1992). Melatti (2011), traça uma interessante comparação entre os grupos timbira e os subgrupos mebêngôkre, em sua delimitação da área etnográfica Tocantins-Xingu. Se os primeiros, após os contatos com a frente pecuária, tiveram seus grupos diminuídos – já que Nimuendaju havia contado no início do século XX cerca de quinze grupos timbira e, como afirma Melatti, hoje eles não passam de sete –, com os Mebêngôkre ocorre justamente o contrário: “a partir do contato com os brancos nas proximidades do Araguaia, no final do século XIX, inicia-se um processo de cisão e de expansão territorial (Turner 1992), de modo que temos um número cada vez maior de etnônimos” (Melatti, 2011: 20). Tal processo não parece ter chegado ao fim, muito pelo contrário, pois o número de aldeias mebêngôkre continua crescendo vertiginosamente. Para se ter uma ideia deste processo, de 2009 até 2012, período em que desenvolvi minha pesquisa de campo soube de pelo menos três novas cisões que redundaram em quatro novas aldeias. A grande aldeia Kikretum, liderada até meados dos anos de 1990 pelo lendário “Coronel” Tutu Pombo, se cindiu em 2010, formando duas novas aldeias: Apeyti, que se situa agora na margem oposta do Rio Fresco, praticamente em frente a atual Kikretum; e a aldeia Turedjam, que ocupou uma área no limite da terra indígena com o município de Ourilândia do Norte. No Riozinho, da aldeia Aúkre se separou um grupo que em 2011 constituiu a aldeia Ngômexti. Primeiramente situada a alguns quilômetros depois de Môjkarakô no próprio Riozinho, seus habitantes se mudaram para a embocadura do Rio Fresco, depois de negociações realizadas entre os líderes do movimento dissidente e os chefes das aldeias Môjkarakô e Kikretum. No rio Xingu, por sua vez, havia ocorrido, a alguns anos antes, uma cisão na aldeia Kôkraimôro, conformando a nova aldeia Pykararãkre, localizada a alguns quilômetros abaixo do mesmo rio. Não é objetivo deste trabalho retraçar a história ou a etno-história dessas cisões recentes e daquelas anteriores. Esse trabalho já foi muito bem feito por autores como Verswijver (1978; 1992)


56 e Turner (1993), com base na história oral (dos) e documental (sobre os) Mebêngôkre. A partir dos trabalhos desses e de outros autores seria possível estabelecer, esquematicamente, os seguintes períodos da história mebêngôkre. 1 – Em fins do século XVIII e início do XIX, os Mebêngôkre habitavam uma única aldeia localizada na mesopotâmia Tocantins-Araguaia e denominada Goroti Kumrem. Alguns anos depois essa aldeia se dividiria em três grandes blocos: Gorotire, Irãmranhre, Porekry. Os primeiros são antepassados dos habitantes de Môjkarakô, os segundos, um subgrupo já extinto, e os terceiros são os antepassados dos atuais Xikrin, na verdade, os primeiros a partirem de Goroti Kumrem. 2 – O início do século XIX registra os primeiros contatos com os brancos, culminando em assunções de diferentes estratégias diante destes estrangeiros armados. Enquanto os Gorotire iniciam sua longa marcha para o oeste, em direção ao Xingu, evitando o contato com as frentes extrativistas que adentravam o Tocantins-Araguaia, os Irãmranhre permanecem nessa região estabelecendo relações pacíficas com a missão dominicana do Padre Gil Vilanova, o que acabou custando o fim do grupo até meados do século XX (Nimuendaju, 1952). Os Porekry por sua vez, rumaram para sudoeste, alcançando os rios Bacajá e Cateté, onde também estabeleceram contatos (pacíficos e guerreiros) com os brancos. Registre-se, por fim, o contato destes subgrupos com diferentes povos indígenas, sobretudo Tupi, como os Araweté, Parakanã, Juruna e Tapirapé, além dos Karajá, Xambioá, Apinajé, Krahô, Munduruku, Suyá e Panará. 3 – A primeira metade do século XX fica conhecida na literatura como o período da “corrida armamentista” kayapó, segundo o termo cunhado por Turner (1992). Nesta época ocorrem uma série de conflitos intergrupais acompanhados de uma série de cisões, migrações e novas fusões. Este é o período das “correrias sangrentas” (Nimuendaju 1952), onde os diversos subgrupos em conflito atacavam os brancos para obter armas de fogo e outras mercadorias, com o intuito de se defender destes últimos e atacar outros grupos kayapó. Data deste período, por exemplo a separação em três da grande aldeia Pykatôti, de onde sairiam os atuais Mekrãngoti, os Gorotire e os Kubenkankrenh, estes últimos, os antepassados diretos dos habitantes de Môjkarakô. Registra-se, ainda, neste período, tentativas de contato pacífico com os Gorotire e Kubenkankrenh, nas imediações do incipiente povoado de São Félix da Boca do Rio, hoje a cidade de São Félix do Xingu. 4 – O período de 1950 até a década de 1980 ficou marcado como o tempo da pacificação, mesmo que esta última tenha ocorrido muitas vezes de modo difuso, sendo acompanhada inclusive de ataques guerreiros dos kayapó, entre si, e entre seus diversos subgrupos e as parcelas da


57 sociedade envolvente que circundavam a área de atuação destes subgrupos. De qualquer modo, até 1980, praticamente todos os subgrupos kayapó já haviam sido pacificados e, com isso, sofrido de todos os já conhecidos sintomas dos processos de pacificação: drástica redução populacional devido à contaminação por diversas moléstias exógenas; acomodação em território fixo, mesmo que intercalada por períodos de trecking na floresta; suspensão das atividades guerreiras entre os subgrupos, mesmo que as relações entre eles continuem eivadas de tensão e rivalidade; engajamento progressivo nas atividades econômicas gestadas pela agência indígena (na época o SPI e, posteriormente a Funai) como a coleta de castanha, seringa e peles de animais, em situações de exploração descabida, baixa remuneração e péssimas condições de trabalho; por fim, mas não em importância, engajamento progressivo nas instituições sociais da sociedade envolvente, sobretudo, naquelas que chegavam de modo incipiente nas aldeias, como a igreja, a escola e o sistema de saúde. 5 – O período que vai de 1980 até 1990 é marcado pelo acirramento do contato com a sociedade envolvente que passa a ser permanente para praticamente todos os grupos mebêngôkre 21. É também o período de luta pela demarcação da Terra Indígena Kayapó (TI-Kayapó), ocorrida depois de intensas pressões e negociações por parte dos Mebêngôkre. Destaca-se a participação dos Mebêngôkre na cena política nacional, sobretudo através de diversas visitas à Brasília na época dos debates sobre a Constituição de 1988, mas também pela organização do Encontro de Altamira em 1989, contra a instalação de usinas hidrelétricas nos rios que cortam seu território. É ainda um momento de grande exposição midiática. Como afirma Gordon, “nos anos de 1980 e 1990, [os Mebêngôkre] tornaram-se célebres na grande mídia nacional e internacional em virtude de ativa mobilização por direitos políticos, pela demarcação de suas terras, pela defesa do meio ambiente” (2006: 40). Neste contexto alguns personagens mebêngôkre como o cacique Raoni e Paulinho Payakan “tornaram-se mundialmente famosos [ao serem] fotografados pela imprensa ao lado de artistas, personalidades, defensores do meio ambiente e grandes chefes de Estado” (idem). Além disso, neste período os Mebêngôkre passam também por experiências marcantes com o garimpo de ouro e extração de madeira, assumindo o controle desses empreendimentos em seu território e tratando diretamente com madeireiros e garimpeiros. Essas experiências custam caro à imagem dos Mebêngôkre que passam a ser noticiados em diversos veículos de imprensa como “índios capitalistas selvagens” (Inglez de Souza, 2000: 68), passando de “heróis ecológicos a verdadeiros vilões da Amazônia” (Gordon, 2006: 41). Apesar dessas imagens negativas a eles 21

À exceção de alguns grupos que permanecem isolados.


58 associadas, este é também um período de intenso crescimento populacional, de ressurgimento do xamanismo (Turner, 1993), de apropriação cada vez mais intensa da “estrutura institucional de dependência” (idem), com os índios assumindo cargos importantes no órgão indigenista. Por fim, cumpre destacar como o faz Turner (1991: 304) que este é o período em que os Mebêngôkre começam “a utilizar a palavra em português 'cultura', para classificar seu modo de subsistência material, seu ambiente natural, suas instituições sociais tradicionais e seu sistema cerimonial”. Como destaca Turner, “o termo nativo para o corpo de conhecimentos [lore] e costumes da sociedade, kukràdjà, era agora também comumente usado no mesmo sentido [de 'cultura'], nos discursos Kayapó.” (Idem). 6 – O período de 1990 até a atualidade é marcado por diversas experiências de criação de organizações não-governamentais dirigidas pelos próprios Mebêngôkre e, também pelo estabelecimento de diversas parcerias com organizações deste mesmo tipo (nacionais e internacionais), sobretudo com projetos de manejo sustentável dos recursos do território. Por outro lado é um contexto de intensa divulgação cultural, através da participação em eventos nas grandes cidades brasileiras e no exterior, além da produção de exposições, livros, filmes e mais recentemente sites na internet. No âmbito mais propriamente político, esse período é marcado por uma aliança inédita entre todas as aldeias mebêngôkre, visando a luta contra a construção de usinas hidrelétricas nos rios que cortam seu território (Turner, 2006). A época atual é marcada também pela crescente ocupação do espaço urbano das cidades do entorno, bem como pelo estabelecimento de relações de aliança com políticos e autoridades locais, muitas vezes visando o patrocínio de rituais. ɷɷɷ Os detalhes e sutilezas que essa história comporta podem ser conferidos nos já mencionados trabalhos de Turner (1992) e Verswijver (1992; 1978), mas também nas etnografias recentes elaboradas por Inglez de Souza (2000), Gordon (2006) e Cohn (2005). Aqui, interessa começar a traçar o mapa das redes de relações contemporâneas perpetuadas pelos Mebêngôkre de Môjkarakô. Antes contudo de traçar essas redes, é preciso falar do principal ponto de referência desse mapa, o ponto a partir do qual a área etnográfica da presente pesquisa pode ser traçada: a aldeia Môjkarakô. A aldeia Môjkarakô, tal como a conheci, está localizada às margens do Riozinho, um afluente do rio Fresco, este, por sua vez, um afluente do rio Xingu. De modo diverso ao padrão aldeão mebêngôkre e Jê, o plano da aldeia Môjkarakô não é redondo. A organização das casas


59 forma na verdade um grande retângulo composto pelas habitações, em cujo centro se localiza a casa dos homens (ver figura 6). Em 2010, segundo dados da Funasa, sua população era de aproximadamente 400 pessoas, das quais praticamente um terço eram crianças. A aldeia possui uma escola mantida pela Secretaria de Educação de São Félix do Xingu, onde lecionam quatro professoras não indígenas e dois professores indígenas. Há também uma enfermaria, onde técnicas de enfermagem não indígenas e agentes de saúde indígenas se revezam no atendimento à população. As professoras participavam ativamente na organização de algumas cerimônias incorporadas do calendário ocidental pelos Mebêngôkre de Môjkarakô: dentre eles, o aniversário da aldeia, o dia da independência, o dia das crianças. Mesmo nas cerimônias de nominação elas eram constantemente convidadas a participar tomando parte no público ritual e algumas vezes, dançando e se travestindo quase inteiramente como uma mulher mebêngôkre. Em Môjkarakô existe uma igreja com uma casa em anexo, onde reside a Missionária Eunice proveniente de uma organização religiosa denominada MIBAC (Ministério Internacional Batista do Avivamento). Ouvi dizer que quando a missionária chegou a Môjkarakô ela manifestou durante um discurso na casa dos homens sua desaprovação para com os rituais e sobretudo para com a pintura corporal que considerava suja, como muitos de seus amigos de fé. Bepunu me contou esta história em tom de pilhéria, dizendo que a resposta do cacique Akjabôro às tentativas de conversão feitas pela missionária foi a seguinte: “Você sabe que a Funai não gosta de missionário. Mesmo assim eu consegui a autorização para você morar aqui”. Essa resposta demonstra o total domínio da situação por parte dos Mebêngôkre. Disse Bepunu, que depois dessa resposta a missionária entendeu, e que hoje ela assiste e inclusive tira fotos durante as cerimônias. No ano de 2013, em parceria com o Museu do Índio, os habitantes da aldeia construíram uma grande casa para hospedagem de pesquisadores e visitantes, na qual será futuramente instalado um laboratório de audiovisual com computadores e equipamentos doados por esta instituição no âmbito do Projeto de Documentação da Cultura. A que se considerar também a existência de uma escola, cuja construção não foi terminada e que está abandonada. Segundo os índios a não conclusão da obra se deveu ao desvio do dinheiro público destinado a construí-la. Em 2009, quando as obras foram interrompidas, as lideranças da aldeia, assessoradas pela Associação Floresta Protegida, entraram com uma ação no Ministério Público para averiguar a suspensão dos trabalhos. A aldeia possui também uma pista de pouso para aeronaves de pequeno porte construída e posteriormente mantida por sua população, sobretudo, pelos homens, que a capinam quase diariamente durante a época das chuvas (de novembro à abril). É nesta pista que pousam


60 semanalmente os aviões da Funasa, para levar à cidade as pessoas com alguma doença grave. É ali também o local onde são cerimonialmente recepcionados os convidados ilustres que vem visitar a aldeia. Pode-se mesmo dizer que, ao menos em Môjkarakô, a pista de pouso tem se tornado um espaço ritual, quando autoridades são recebidas pelas “rainhas” e levados à cena ritual que se produz para aquele encontro. Embora muito caro, o transporte aéreo é o meio mais rápido de se chegar até Môjkarakô. De São Félix do Xingu até a aldeia gasta-se menos de uma hora de avião monomotor. O mesmo não se pode dizer, quando se vai de barco. De São Félix até a aldeia, gasta-se aproximadamente dez horas de viagem por meio fluvial se a embarcação for grande. De voadeira, e a depender da potência do motor e da quantidade de pessoas a bordo, pode-se gastar de quatro a oito horas de viagem. O longo trajeto pelo rio Fresco pode ser encurtado se se vai de carro ou caminhonete até a localidade denominada P9 que fica na beira do rio Fresco próximo de onde dele desemboca o Riozinho. Saindo do P9 encurta-se em mais da metade o percurso da viagem de barco. Esse caminho é preferido pelos habitantes de Môjkarakô, quando eles se destinam a cidade de Tucumã, ou quando dela retornam. Contudo, o Riozinho torna-se não navegável na época da estiagem (maio à outubro), o que impede totalmente o trajeto fluvial neste período. No verão (amexj kam), como dizem os índios, só é possível navegar de canoa a remo ou fazendo uso do motor chamado rabeta. Mas, de um modo ou de outro, leva-se dias para vencer, por meio desse transporte fluvial, o trajeto até o P9 e mais ainda até São Félix. De modo que no período da seca, até bem pouco tempo atrás, os habitantes de Môjkarakô dependiam exclusivamente do transporte aéreo para chegar às cidades mais próximas. Recentemente, em 2010, uma estrada foi aberta a partir de uma vicinal que alcançava o limite da Terra Indígena. Mas as condições da estrada são sofríveis. Para se ter uma ideia, em setembro de 2010, quando resolvi chegar a Môjkarakô pelo meio terrestre, gastei aproximadamente 12 horas de viagem para vencer os poucos mais de 100 quilômetros de estrada. Durante o percurso foi preciso parar diversas vezes para reconstruir as pequenas pontes que abundavam na estrada. Contei mais de dezoito pontes neste pequeno percurso. Escuso dizer que durante a época das chuvas essa estrada fica totalmente intrafegável, precisando ser refeita a cada novo período de estiagem. É notável neste trajeto terrestre o contraste entre a paisagem anterior à chegada na terra indígena e aquela que se faz ver quando nela adentramos. Vindo de São Félix do Xingu, observa-se pela janela do automóvel os grandes pastos, a perder de vista, de propriedade dos grandes fazendeiros da região. Não por acaso, São Félix do Xingu é um dos marcos do conhecido “arco do


61 desmatamento” da floresta amazônica. Esta paisagem desoladora se transforma quando se adentra à Terra Indígena e se pode contemplar a exuberância da floresta Amazônica. Por via área, o contraste, torna-se ainda maior, como se pode ver nessa fotografia obtida em 2012.

]Figura 2: Foto aérea do limite da Terra Indígena Kayapó com o município de São Félix do Xingu. (Foto: Thiago Oliveira)

Em que pese a grande exploração do mogno nos anos 1980 e 1990, a floresta no interior da terra indígena continua intacta, sendo abundante em frutos variados (como castanha do pará, buriti, açaí, bacaba), peixes diversos e animais privilegiados para caça como veados, antas, caititus e queixadas, além das pacas, macacos e jabutis. Os moradores de Môjkarakô gostam de caçar e durante as cerimônias e rituais, passam longas temporadas na floresta, como seus antepassados. A pesca também é muito valorizada e as pescarias de timbó, em conjunto com os ritos que as acompanham, são constantemente realizadas durante a estação da seca. O abatimento de caças grandes como uma anta, ou uma vara de queixadas é motivo de muito alegria para os moradores. Certa vez, quando um grande contingente de moradores da aldeia havia se transferido momentaneamente para os castanhais, alguns homens mataram uma vara inteira de uns dezoito queixadas, quando estes atravessavam acidentalmente o Riozinho, justo na frente da aldeia. Depois deste feito as pessoas que restaram na aldeia resolveram promover um metoro (festa) para aquela noite, simplesmente porque com tanta comida assim não se podia deixar de fazer uma festa. Em pouco mais de dois dias de festa toda a carne fora consumida.


62 Respeita-se entre os moradores de Môjkarakô a conhecida divisão sexual dos trabalhos que idealmente organiza o cotidiano das aldeias jê. Homens caçam, pescam e ocupam os cargos das instituições ocidentais presentes na aldeia. São eles também os principais mediadores entre a aldeia e a cidade, embora a presença das mulheres na cidade tenha aumentado consideravelmente. As mulheres, como se sabe, se ocupam da roça e de sua colheita, e a distribuem em conjunto com a caça e os peixes abatidos por seus homens, aos parentes que conformam suas redes de relações mais próximas. São elas também que cozinham, fazem pinturas corporais e tecem diversos enfeites de miçanga. Neste último aspecto e como veremos a frente, não se pode mais dizer com firmeza que são os homens “os responsáveis pela confecção dos principais itens da cultura material” (Gordon, 2006: 106). Se isso continua valendo para a cestaria, a plumária e as armas, no que tange aos enfeites corporais, hoje em dia em sua maioria feitos com miçangas, são as mulheres as suas principais produtoras. No que tange ao xamanismo e feitiçaria, eles ocorrem a todo vapor em Môjkarakô, mesmo que no caso da feitiçaria ela seja negada pelos chefes. Os homens como se sabe são os xamãs por excelência, aqueles considerados wayangá. Mas isso não quer dizer que as mulheres não pratiquem um outro tipo de xamanismo, vinculado ao uso de plantas medicinais e realizado por meio da pintura corporal e de suas tinturas. Como veremos, esse tratamento da pele tem a ver com a mobilização de um conjunto de conhecimentos terapêuticos acionados pelas mulheres em momentos de enfraquecimento corporal, como os resguardos por morte, nascimento ou homicídio, e em diferentes fases da vida da pessoa. A atividade da pintura corporal, não deixa assim de ser uma forma de xamanismo feminino, e mesmo de fazer certos feitiços. Diz-se em Môjkarakô que as mulheres não devem pintar com jenipapo, um homem que não seja seu parente, sob pena deste ficar apaixonado pela mulher que o pintou. Outros agentes, como unhas, pelos e sangue animal podem ser adicionados à tinta se se quer fazer mal a uma pessoa que será pintada com tal mistura. Por outro lado, remédios, como os anticoncepcionais naturais utilizados pelas mulheres mebêngôkre, são adicionados a tinta de jenipapo como uma forma de tratamento pela pintura. Voltando ao cotidiano da aldeia deve-se notar o verdadeiro fascínio dos Mebêngôkre pelo futebol22. Jogos, peladas e treinos são constantemente realizados no campo construído, em frente a casa dos homens. E a que se considerar que o futebol é jogado por homens e mulheres. Durante a pesquisa de campo pude presenciar um evento em que uma delegação Xikrin, da aldeia Ôodjam, fora convidada a disputar partidas de futebol masculino e feminino na aldeia Môjkarakô. Os 22

Para uma etnografia fina do futebol entre os Xavante, povo Jê como os Kayapó, ver Vianna, 2001.


63 convidados se apresentaram vindos em um micro-ônibus e um caminhão depois de vencerem a péssima estrada que liga São Félix do Xingu à aldeia Môjkarakô. Chegaram à aldeia de madrugada e ainda assim foram recepcionados com uma grande festa. No manhã seguinte, um grande espetáculo havia sido montado. O campo teve as suas marcações pintadas com cal e redes haviam sido providenciadas para as traves. Um grande público se amontoava na casa dos homens para ver o jogo. As equipes masculinas e femininas entraram com seus uniformes em formação de dança cantando canções rituais. Houve a tradicional pose para fotos e a não menos tradicional execução do hino de cada uma das aldeias. As partidas foram muito disputadas. No feminino, a equipe de Môjkarakô ganhara de dois a zero, contanto, sem dúvida, com a ajuda do cansaço da equipe anterior que viajara por toda a noite anterior. No masculino, após sair perdendo por dois a zero no primeiro tempo, o time de Môjkarakô conseguiu empatar na etapa final, graças aos dois gols de Pawire, o último tento sendo consagrado, para delírio do público, aos quarenta minutos. A grande rivalidade das aldeias durante as partidas era notável. Mas o fato que mais me impressionou foi que ambas estava sendo transmitidas via rádio para aldeias mebêngôkre localizadas nos mais longínquos espaços da terra indígena mebêngôkre. Uma ampla rede de comunicação estava sendo alimentada pelo narrador do jogo, que o fazia em língua mebêngôkre, sem deixar de seguir de certo modo a forma de narrar dos narradores kuben ouvidos na televisão. Durante a transmissão do jogo, Manduca, o rapaz que se transformara no narrador, fazia questão de propagandear gratuitamente, por uma simples questão de mimésis ritual, produtos consumidos pelos Mebêngôkre (como o indefectível fumo Maratá, o refrigerante Doly, e as bolachas Mabel). Entre uma bola fora e uma falta, ele anunciava com sua voz metálica esses itens do consumo mebêngôkre contemporâneo para as diversas aldeias que o escutara. Os cinegrafistas do projeto filmavam meticulosamente o jogo e gravavam o áudio do narrador para fazer um videotape a ser gravado em DVDs e distribuído para outras aldeias. Essa partida de futebol é mais um exemplo dos fenômenos sociais e culturais a serem descritos e analisados nesta tese. Como em alguns destes eventos que veremos a seguir, estava sendo experimentada naquelas partidas de futebol uma interessante capacidade nativa de mimetizar as formas culturais e rituais dos brancos, suas falas e performances em determinados contextos. De se apropriar de seu kukràdjà, do kukràdjà do outro, para exibi-lo em contextos rituais, prontamente divulgados em redes de comunicação mais amplas, inter e intra étnicas. São dessas redes que falo agora, objetivando apresentar através delas a área etnográfica da presente pesquisa; e privilegiando os rituais como um dos nós desses circuitos complexos.


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CAPÍTULO I

Área etnográfica e redes de relações

Os Kayapó reconhecem que a circulação de kukràdjà vai muito além dos limites do território aldeão habitado por eles. Kukràdjà é frequentemente descoberto fora da aldeia em meio a povos vizinhos, animais selvagens e mesmo entre os brancos. (Fisher, 2001: 118)

Este capítulo se destina a apresentar ao leitor a área etnográfica da presente pesquisa, tendo como base a possibilidade de traçar o mapa das relações sociais construídas pelos habitantes da aldeia Môjkarakô, com pessoas e grupos de pessoas que habitam as aldeias e cidades presentes no Mapa 1 (ver figura 3). Nesta tarefa, devo de início assumir, como sugere Melatti (2011), “o alto grau de arbitrariedade” implicado na definição de uma área etnográfica. Esta arbitrariedade, da qual não se pode nunca escapar, está manifesta, por exemplo, na própria constituição do mapa que privilegia as aldeias e cidades do Sul do Estado do Pará, negligenciando de modo consciente as aldeias mebêngôkre de outras terras indígenas que não as da TI Kayapó, bem como as cidades de seu entorno. Assim, não aparecem nos mapas as aldeias das Terras Indígenas Mekrãgnoti, Baú e Kapoto-Jarina, todas elas situadas ao norte do Estado do Mato Grosso. Também não considero as Terras Indígenas Las Casas e Xikrin do Cateté, onde habitam outras comunidades mebêngôkre. Essa exclusão, contudo, não quer dizer que não haja relações entre os habitantes de Môjkarakô e os dessas aldeias. Como veremos, elas existem, mas não com tanta intensidade quanto aquelas existentes com as aldeias vizinhas. Ademais, deve-se justificar sua ausência pelas próprias limitações da pesquisa de campo realizada em sua maior parte com os habitantes de Môjkarakô, e de modo esporádico em outras aldeias e cidades do sul do Pará, sobretudo, naquelas por onde se estendem as redes de relações mais intensas de seus moradores. Por isso, assumo, seguindo Melatti, que as áreas etnográficas não existem por si mesmas: elas são constructos modelados segundo os enfoques e resultados das pesquisas antropológicas.


66 Como metodologia para a apresentação das redes de relações observadas tomo como referência a noção de “polos de articulação indígena” descrita por Melatti (1979; 2011). Esta noção envolve uma proposta que consiste (...) em cartografar as sociedades indígenas e as cidades que lhes estão próximas como se fossem pontos, e unir esses pontos por linhas de espessuras diversas conforme o número de relações que os ligassem: intercasamentos, trocas comerciais, convites para ritos, procura dos serviços de médicos e feiticeiros, participações em eleições, procura de escolas, etc. Preterindo assim a uniformidade e a homogeneização cultural em favor de uma maior atenção nas relações sociais, poderíamos apontar os laços das sociedades indígenas entre si e com as sociedades nacionais, mantendo cada qual como uma totalidade sociocultural. Em outras palavras, cada sociedade indígena, não seria agrupada com outras que se parecem com ela, mas sim com aquelas que partilha sua vida social (2011: 04-05; grifo meu).

Gostaria de refinar dois pontos dessa proposta metodológica. O primeiro diz respeito ao entendimento de Melatti dos grupos em relação como “totalidades socioculturais”. O caso kayapó que descrevo nesta tese, não permite pensar em uma tal definição, uma vez que o que se poderia considerar a “totalidade sociocultural” de referência, a aldeia Môjkarakô, é feita de grupos distintos, e cujas relações são constantemente tensionadas e apaziguadas. Se existe, como veremos, uma vontade de viver junto, com felicidade e boa saúde, fazendo festas na aldeia e na cidade, é porque convivem entre si como diferentes, diferença esta contra-afirmada na própria vontade de congregação.


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Mapa 1

Figura 3: Mapa com localização da aldeia Môjkarakô na Terra Indígena Kayapó (TI Kayapó). Adaptado de Robert e Lópes Garcéz (2010).


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Mapa 2

Figura 4: Mapa das redes de relações da aldeia Môjkarakô com as aldeias e cidades vizinhas. Adaptado de Robert e Lópes Garcéz (2010).


69 Se ampliamos o escopo para as relações intergrupais, temos uma configuração interessante. Como no caso de Môjkarakô que tratarei alhures, grupos de aldeias distintas podem se juntar para formar uma nova aldeia, assim como grupos de uma determinada aldeia podem se agregar a uma outra e mesmo assim se manter enquanto grupo diferenciado, podendo inclusive se desgarrar novamente e procurar o seu próprio sítio. Tal configuração móvel foi comprovada etnograficamente por um dos orientandos de Melatti, em um estudo sobre o faccionalismo kayapó. Oliveira (1995) – inspirado no clássico trabalho de Leach (1995) sobre os sistemas políticos da Alta Birmânia – demonstra como as facções kayapó em sua lógica de organização própria baseada na amizade e no parentesco, são passíveis de diferentes formas de organização social e espacial de acordo com as diferentes motivações (históricas, sociais, políticas, econômicas) que as levaram a conviver em uma mesma aldeia através da construção de relações de parentesco, por meio da aliança e consequentemente da afinidade. Outro pequeno ajuste necessário à proposta de Melatti diz respeito à sua definição das cidades como “polos de articulação” indígenas. Gostaria de operar uma rotação de perspectiva nos fluxos de relações que estes polos articulam, entendendo as cidades não apenas como polos de articulação (dos) indígenas, mas como polos indígenas de articulação. As cidades, com seus governos locais e organizações burocráticas, como a Funai e Ongs, articulam e são articuladas pelos indígenas, chefes ou não, das diferentes aldeias com as quais se relacionam. Esse ajuste à proposta de Melatti visa, portanto, não conceder às cidades ou à dita sociedade envolvente, qualquer estatuto ontológico privilegiado no escopo da análise. O que vejo, ao contrário, é um contínuo e ávido movimento dos indígenas em criar parcerias com atores destas agências para fins diversos, dentre eles, particularmente, para apreender novos kukràdjà e também produzir rituais. Afora esses pequenos ajustes, sigo na constituição e descrição dos mapas que se seguem a mesma proposta de Melatti de conectar aldeias indígenas e cidades e traçar linhas de diferentes espessuras e cores conforme a intensidade e a qualidade das relações entre elas. No que tange à intensidade, as linhas possuem quatro espessuras que medem a força das relações segundo os seus graus máximo, alto, médio e mínimo. No que tange à qualidade privilegiei, interessadamente, três redes de relações: de parentesco, de alianças políticas e de contatos interétnicos; respectivamente marcadas pelas cores amarela, azul e vermelha. Deve-se notar também que as linhas são de mão dupla: elas vêm e vão dos pontos que se conectam através delas. Na verdade, cada uma das linhas compõe redes de relações diversas que aparecem nos mapas segundo sua intensidade e qualidade 23. 23

Cabe salientar que as linhas traçadas nos mapas que se seguem alcançam limites que superam aquilo que para efeitos legais denomina-se Terra Indígena. Na linguagem jurídica poder-se-ia dizer, como é de conhecimento


70 Para facilitar a exposição dividi o texto em tópicos sobre cada uma das linhas coloridas representadas no mapa 2 (ver figura 4). Cada um destes tópicos busca qualificar de modo mais sistemático aquilo que na representação gráfica se vê apenas superficialmente: as diferentes redes de relações constituídas pelos habitantes de Môjkarakô com as aldeias e cidades “com quem eles partilham sua vida social” (Melatti, 2011: 05). É preciso salientar que as linhas azuis e vermelhas, concernentes às redes de relações políticas e interétnicas só não estão sobrepostas por razões de ordem visual. Não encontrei outro modo, senão pela utilização de cores diferentes, para distinguir as relações políticas das aldeias entre si e aquelas realizadas pelos membros de cada aldeia com as cidades do entorno. A configuração política contemporânea dos Mebêngôkre não nos permite, entretanto, separar o político do interétnico, ambos se sobrepõem nessas redes de relações. No último tópico, descrevo um circuito imagético que não está presente nos mapas, e cujas linhas ficam para serem tecidas em outra oportunidade. Como opção analítica a descrição privilegia os rituais como “os nós de uma rede de alianças, experimentações, expansões, transmissões e intercâmbios” (Calavia e Naviera, 2013: 198). Eles são como pontos de condensação dessas redes criadas com diferentes outros, cujos kukràdjà estão sendo apropriados, compartilhados e colocados em circulação. Em outras palavras, os rituais são os nexos de canalização dessas redes de relações de alteridade por onde circulam pessoas, artefatos, mercadorias, conhecimentos, imagens e formas rituais.

Redes de relações de parentesco Temos, de início, um ponto zero, uma unidade mínima, que é a aldeia Môjkarakô. Mas basta ouvir pela primeira vez os relatos sobre a história da aldeia para desconfiar que ela seja uma unidade social. Sua formação advém da confluência entre duas facções desgarradas de outras duas aldeias, Kubenkankrenh e Aúkre. Com essa informação em mãos torna-se possível iniciar a apresentação da área etnográfica da pesquisa com o auxílio do mapa 1, como que seguindo o fluxo do Riozinho desde sua nascente até onde ele desemboca no rio Fresco. Kubenkankrenh, a aldeia público, que a aldeia Môjkarakô está localizada na Terra Indígena Kayapó (TI Kayapó (3.284.005 ha.)), a sudeste da qual, do outro lado do Xingu, encontra-se a Terra Indígena Mekrãgnoti. Mais ao norte encontra-se a Terra Indígena Baú que em conjunto com as outras duas forma o grosso da área demarcada oficialmente. Mas deve-se considerar também o importante trecho ao sul da área, no rumo do alto Xingu, onde encontra-se a Terra Indígena Kapoto-Jarina que liga a reserva kayapó ao complexo multilíngue do Parque Indígena do Xingu. Ainda, no extremo sudoeste da área, fazendo fronteira com a TI Mekrãgnoti está a Terra Indígena Panará (TI Panará). Os grupos que nela habitam foram recentemente redescobertos como os famosos Kayapó do Sul, tomados como extintos pelas fontes etnográficas até serem contatados nos anos de 1970. À nordeste da área há que se considerar também as Terras Indígenas Las Casas e Xikrin do Cateté, onde habitam outras comunidades mebêngôkre.


71 mais antiga e que está mais próxima da nascente do Riozinho, está localizada desde os anos 1940 nas cabeceiras da cachoeira da fumaça. Seus habitantes se cindiram dos Gorotire, em 1935, dando fim à grande aldeia Pykatôti (Verswijver, 1992). Enquanto os Gorotire rumaram para o rio Fresco, os que se tornaram os Kubenkankrenh a partir daquela cisão, desceram um pouco mais o Riozinho, se estabelecendo, então, nas cabeceiras da cachoeira da fumaça. A aldeia Aúkre, por sua vez, foi formada em 1979 por um grupo cindido de Kubenkankrenh. Ela está localizada também no Riozinho, muitos quilômetros abaixo de Kubenkankrenh. Ainda mais abaixo, quase na embocadura do Riozinho com o rio Vermelho encontra-se Môjkarakô, aldeia mais recente, surgida em 1995 da confluência de duas facções vindas de Kubenkankrenh e Aúkre. O fato dessa sequência de cisões nas três aldeias ter acontecido em um período relativamente curto (de cerca de sessenta anos) nos permite dizer que muitas das pessoas que vieram a se juntar em Môjkarakô são originárias de Kubenkankrenh, esta última referida por eles como a “aldeia mãe”. Na verdade, pode-se dizer que muitas daquelas pessoas pertencentes à facção cindida de Kubenkankrenh em 1995 eram as mesmas que se negaram a partir desta última em 1979, quando outros que nela moravam decidiram sair para fundar a aldeia Aúkre. Por razões diversas algumas dessas pessoas, separadas em Kubenkankrenh nos fins dos anos de 1970, iriam novamente se encontrar quinze anos depois para fundar Môjkarakô. Para melhor definir essa primeira linha de cisões que se desenha como traço marcante da área etnográfica dessa pesquisa deve-se levar em conta a qualidade das redes de relações estabelecidas entre os moradores dessas três aldeias. Partindo de nosso ponto de referência, que é a aldeia Môjkarakô, pode-se dizer que elas são, sobretudo, redes de relações de parentesco estabelecidas antes das cisões, mas que continuam sendo renovadas depois de mais de quinze anos de separação. Elas estão representadas no mapa 2 por grossas linhas da cor amarela, demonstrando as redes de relações de intensidade máxima que sobem e descem o Riozinho. As linhas de mesma cor, mas com espessura mínima, ligam pessoas de Môjkarakô a parentes de outras aldeias do Sul do Pará, possibilitando um retrato dos movimentos migratórios e da manutenção dos laços de parentesco apesar da distância geográfica. Afora as pessoas que vieram de Kubenkankrenh e Aúkre, que compõem o grosso da população adulta e jovem de Môjkarakô, a aldeia nova atraiu famílias de outras aldeias que vão além daquelas presentes no mapa 2. Kenmy, um dos wayangá (xamã) mais respeitados da aldeia, por exemplo, veio dos Metyktire e foi um dos informantes que contou à Vanessa Lea, sobre sua viagem iniciática no xamanismo e de como nela recebeu um nome que transmitiu para um de seus


72 netos (2012: 211). Kenmy chegou em Môjkarakô por meio de Kôkôranty, um de seus filhos que depois de uma temporada na aldeia Aúkre se casou com uma mulher dessa aldeia e lá passou a residir, migrando para Môjkarakô posteriormente. Outro casal que mantém laços de parentesco com membros de aldeias longínquas é composto por Vavá, sujeito proveniente de Kubenkankrenh, e sua mulher, – proveniente dos Xikrin do Cateté, sendo irmã de um dos caciques dessa aldeia. Essa família é constantemente convidada para passar temporadas no Cateté 24. Já dentro da região coberta pelo mapa, temos o caso de Játire, o atual chefe dos mekranure, homens casados com poucos filhos, que tem como esposa Nhakdjô, proveniente da aldeia Gorotire, onde o casal passava temporadas antes de Játire tornar-se chefe. Já Ikaô e sua mulher Ôkran migraram com filhos e netos de Kikretum para Môjkarakô em 2007, mantendo constante contato com os parentes da aldeia de origem. Outro caso interessante é o de Kôreí um rapaz de origem Araweté que foi criado pelo cacique Kaikware. Quando cheguei à aldeia, este rapaz estava casado com uma mulher e parecia totalmente adaptado aos costumes mebêngôkre. Durante a pesquisa e devido a desavenças que desconheço, esse rapaz e sua esposa migraram para a aldeia Gorotire. Por fim, é preciso registrar a presença de quatro jovens adultos vindos de outras aldeias que, seguindo a regra uxorilocal do matrimônio mebêngôkre, passaram a morar na casa da sogra em Môjkarakô. São eles, Pidjôkare, de Kikretum, e Beká, de Pykararãkre, casados respectivamente com as irmãs Ireí e Kokonté, estas por sua vez, filhas de Moetyk e Ôro; e Bepkadjá, de Pykany, e Payakan, de Gorotire, casados respectivamente com as irmãs Kôkôkré e Pitire, filhas por sua vez do casal Nhôiti e Ykaryry. Essa tendência a uma exogamia intercomunitária que começa a se manifestar em Môjkarakô não é, contudo, tão expressiva quanto a tendência de contração de casamentos entre os filhos dos adultos pertencentes aos dois grupos de Aúkre e Kubenkankrenh, principais formadores de Môjkarakô. Segundo meus dados de campo, são dez os casamentos estabelecidos após o surgimento da aldeia, onde os cônjuges ou são de Aúkre, ou são de Kubenkankrenh. Essa tendência vai de encontro a um certo ideal matrimonial mebêngôkre de casar-se com pessoas consideradas não parentes. Segundo Verswijver, o casamento entre os Mebêngôkre “é dito ser consumado com um membro que é 'do outro lado da aldeia', esta frase não aludindo a qualquer divisão espacial diametral da periferia da aldeia, mas sim ao papel prescritivo de casar com um não parente” (Verswijver, 1992: 52). Lea (1995: 329) concorda com essa proposição de Verswijver quando 24

Em sua etnografia sobre os Xikrin, Gordon nota o descontentamento de algumas pessoas do Cateté com “a política mais aberta do [chefe] Takàk-4 em relação à outras aldeias kayapó” de convidar frequentemente “pessoas e famílias das aldeias kayapó-gorotire, principalmente das aldeias Môjkarakô e Kikretum, para passar longas temporadas em sua aldeia, hospedadas na maioria das vezes em sua própria casa” (2006: 190).


73 aponta que “a afirmação frequentemente sublinhada por um gesto com o indicador, de que cônjuges vêm 'do outro lado' deve ser interpretada como exprimindo uma polaridade social, mais que espacial”. A autora conclui que em termos Lévi-straussianos essa regra faz com que os mebêngôkre (e outros Jê), “se arrisquem matrimonialmente mais do que a maioria dos povos das terras baixas da América do Sul, onde a tendência mais comum é o casamento entre parentes cognaticamente próximos (ou reclassificados como tal)” (1995: 328). Entre os Mebêngôkre, por outro lado, o cônjuge ideal deve ser ou estar classificado entre os não parentes (ombikwá kàak) em oposição aos parentes verdadeiros (ombikwá dzwoy/kumrenx)25. A relação de casamento, ou aliança matrimonial, possui assim um importante fator processual ou performativo, uma vez que se trata justamente de transformar pela consubstancialidade, pela co-residência e pela comensalidade, um não parente em um parente verdadeiro. Acredito que em escala ampliada os casamentos entre os jovens, cujos pais vieram tanto de Aúkre quanto de Kubenkankrenh, são parte das estratégias de, justamente, construir a consanguinidade entre os dois grupos. De fazê-los passar de duas coletividades que se encontraram num determinado momento da história à uma única comunidade que perdura no tempo, formada por pessoas diferentes, de origens diversas mas que “decidiram viver em conjunto”; o que de resto é, como diz Fisher (1998:51), uma apropriada definição nativa de comunidade. Mas voltemos aos mapas, pois abordarei o processo de fusão em Môjkarakô com mais detalhe a seguir, durante a descrição e análise da cerimônia de aniversário de quinze anos da aldeia. Agora, cumpre qualificar as redes de relações estabelecidas entre os diferentes moradores de Môjkarakô e seus parentes de também distintas aldeias. Um dos circuitos de comunicação e troca que perpassa as linhas amarelas do mapa se manifesta através de convites cerimoniais estabelecidos entre parentes das diversas aldeias. Assim, pessoas de Môjkarakô que são parentes de pessoas de Aúkre, convidam-nas a participar de cerimônias de nominação, e vice versa, o mesmo ocorrendo quando as pessoas tem relações de parentesco em Kubenkankrenh, ou em outra aldeia mais distante. Estes são convites pessoais, sendo 25

O termo ombikwá, contudo, possui um uso também contextual. Seguindo Turner (1965), Verswijver afirma que “o termo pode ser utilizado em três níveis: 1) significando parente, de modo mais englobante, em oposição a não parente; 2) significando parente verdadeiro, em oposição ao parente falso ou adotivo; 3) significando parente consanguíneo em oposição a parente por casamento” (1992: 52). Além disso, há que se considerar o uso da palavra em português “parente”, para classificar pessoas de outros grupos indígenas em contextos de contato interétnico. Um outro uso do termo ombikwá, era relativo aos não índios, como os antropólogos que estavam morando por um tempo na aldeia, e que de algum modo eram inseridos na rede de parentesco, ao serem adotados por uma casa, serem pintados e receberem um nome. Tal classificação parece estar relacionada à classificação mais abrangente entre parente e não parente tal como proposto por Turner, ou seja, se referia àquelas pessoas que, antes não parentes, haviam passado por um processo de aparentamento.


74 a pessoa convidada, em geral, responsável tanto por desempenhar importante papel cerimonial, sem o qual as próprias cerimônias não ocorreriam26; quanto por transmitir nomes e prerrogativas à seus netos ou sobrinhos que por razões diversas vivem (ou passaram a viver) em outra aldeia 27. Nestes contextos, os parentes se acolhem mutuamente em suas casas, onde passam às vezes quinze dias hospedados. Nos rituais de nominação que presenciei em Môjkarakô durante a pesquisa de campo pude observar a participação de famílias de outras aldeias, sobretudo, vindas de Aúkre e Kubenkankrenh, mas também dos Xikrin do Cateté, de Kôkraimôro e de Kikretum. Em todos os casos um dos membros dessas famílias transmitiu nomes e prerrogativas para as crianças, cujos pais os haviam convidado. Alguns deles também desempenhavam papéis cerimoniais específicos, como por exemplo, no caso de Planura, um dos chefes da aldeia Kôkraimôro que durante um menire bjôk (festa das mulheres pintadas) executou sua prerrogativa de dono dos maracás, distribuindo-os para as mulheres responsáveis por animar a festa. Presenciei também homens e mulheres de Môjkarakô sendo convidados para participar de cerimônias de nominação em Aúkre, Kubenkankrenh, Kôkraimôro, Kikretum e Las Casas. Sua participação era justificada do mesmo modo. Em geral, em todos os casos de convites registrados durante a pesquisa, eram os anfitriões que garantiam os meios para que os convidados chegassem até a aldeia. Quando um casal de Môjkarakô foi convidado para uma cerimônia na aldeia Las Casas, a família que os convidara pagou uma passagem rodoviária para que eles chegassem até a cidade mais próxima, e um táxi que os levaria até a aldeia. Em outras ocasiões, quando o transporte se fazia por meio fluvial, alguns anfitriões buscavam os convidados com as voadeiras motorizadas pertencentes à sua aldeia, cobrindo os gastos com combustível e com os pilotos das embarcações. Existe também um constante fluxo de mercadorias e remédios entre parentes de diferentes aldeias mantido e incentivado pelas rotas aéreas dos aviões responsáveis por encaminhar os doentes para tratamento na cidade. Estes aviões geralmente fazem escalas nas diversas aldeias movimentando o intercâmbio entre parentes. Assim, quando um avião pousava na pista de pouso de Môjkarakô, não era incomum observar a grande movimentação de pessoas retirando da aeronave pertences enviados por parentes de outras aldeias, e também solicitando aos pilotos que enviassem essa ou aquela encomenda para a aldeia em que eles fariam a próxima escala. Esse circuito aéreo é imensamente facilitado pela comunicação via rádios transmissores, apropriados pelos Mebêngôkre desde os anos de 1980 e onipresentes na vida cotidiana atual de qualquer aldeia. Através do rádio, 26

27

Como afirma Vidal (1977) muitos rituais deixam de ser realizados nas aldeias, simplesmente por não terem as pessoas credenciadas a realizar este ou aquele papel cerimonial. Seria interessante, embora não tenha sido objetivo do presente trabalho, mapear as trocas de nomes e prerrogativas cerimoniais entre os parentes de aldeias distintas.


75 tornou-se fácil avisar aos parentes de outras aldeias da chegada das encomendas por avião, ou mesmo, convidá-los a participar das cerimônias de nominação. Estas redes de relações de parentesco são mais frequentes e intensas entre os habitantes de Môjkarakô que possuem parentes nas aldeias Aúkre e Kubenkankrenh, o que justifica a espessura em intensidade máxima das linhas amarelas do mapa 2. Essas aldeias são justamente aquelas das quais se cindiram os dois grupos que formaram Môjkarakô. Tais redes de relações de parentesco permanecem fluindo ao largo das rivalidades existentes entre estas aldeias, enquanto aldeias cindidas, fato recorrentemente mencionado na literatura etnográfica mebêngôkre. Lea, por exemplo, afirma que “na época do contato, as subdivisões que resultaram da cisão de uma aldeia consolidariam relações de inimizade” (2012: 123). É tese desta tese que mesmo no período póspacificação permanece um sentimento de rivalidade entre grupos cindidos, o que não impede a constituição e manutenção das redes de relações de parentesco entre pessoas e famílias dos grupos distintos28. No caso de Môjkarakô, a rivalidade, com as aldeias de origem toma forma em eventos que envolvem não convidados pessoais convocados pontualmente para participar dessa ou daquela cerimônia, mas sobretudo em eventos que envolvem coletividades, como, por exemplo, convites para que delegações de outras aldeias participem de competições esportivas em Môjkarakô. Nestes casos, em que grupos de trinta a quarenta pessoas passam uma temporada na aldeia, evita-se convidar os vizinhos de Aúkre e Kubenkankrenh, pois dizem que disputas esportivas envolvendo pessoas de aldeias cindidas são prenúncios de conflitos, na medida em que podem trazer à tona rivalidades anteriores. Durante a pesquisa de campo presenciei algumas discussões em torno da possibilidade de convidar uma delegação de Aúkre para participar de um torneio de futebol em Môjkarakô. Por duas vezes a ideia esbarrou no conselho de velhos. Alguns deles consideravam muito arriscado um tal convite e outros diziam que as pessoas de Aúkre não eram merecedoras de tal consideração. Por insistência de uma liderança jovem, o convite foi então feito, mas os convidados, talvez pensando como os velhos de Môjkarakô, negaram o convite. Em uma outra ocasião, os habitantes de Môjkarakô foram convidados para disputar uma competição esportiva em Aúkre na qual estariam presentes delegações de outras aldeias. Dessa vez a negativa partiu de Môjkarakô. Dentre as diferentes razões que escutei para tal decisão, a mais recorrente era a de que as pessoas de Aúkre não sabiam organizar uma competição esportiva e se eles fossem não teriam lugar para dormir, tampouco comida para se alimentar direito. Afirmações como essas, talvez 28

A tese de que as rivalidades entre aldeias cindidas permanecem na era pós-pacificação foi levada em consideração na construção dos mapas 2 e 3. Assim, as linhas azuis que representam as redes de relações políticas seriam sempre de menor intensidade quando conectam aldeias cindidas. Por outro lado, as linhas amarelas que representam as redes de relações de parentesco possuiriam sempre intensidade máxima quando unem aldeias decorrentes de uma cisão.


76 exageradas, revelam, contudo, o temor dos habitantes de Môjkarakô de não serem bem recebidos no referido evento ou de o evento não acabar bem. O que mais uma vez reforça a rivalidade entre as duas aldeias. Por isso, quando se trata de relações que envolvem coletividades os habitantes de Môjkarakô escolhem outros parceiros, mais distantes, por assim dizer. São, às vezes, vindos do território Xikrin ou mesmo dos Gorotire e até do Parque indígena do Xingu, como os Kamaiurá que participaram de uma partida de futebol em Môjkarakô. Mas são, sobretudo, com aquelas aldeias com as quais as redes de relações são mais propriamente políticas, como Kikretum e Kôkraimôro. O que nos leva às linhas de cor azul e vermelho que cortam o mapa da área etnográfica dessa pesquisa.

Redes de relações políticas e interétnicas No âmbito mais propriamente político e tomando Môjkarakô como ponto de referência, redes de relações circulam de modo mais intenso com as aldeias Kikretum e Kôkraimôro. Por isso a maior espessura das linhas azuis que ligam essas aldeias no mapa 2. Kikretum está localizada no rio Fresco, próximo de onde nele desemboca o Riozinho. Já Kôkraimôro está situada no Rio Xingu, mais precisamente no limite da TI Kayapó com o município de São Félix do Xingu. A aliança política com Kikretum perpassa a própria história de formação de Môjkarakô. Quando os seus habitantes migraram de uma localidade hoje conhecida como “aldeia queimada” (devido a um incêndio ocorrido na aldeia e que motivou a migração), eles vieram habitar a beira do Riozinho, em um local utilizado pelos habitantes de Kikretum como lugar de caça, pesca e coleta. Nesta ocasião, os chefes de Môjkarakô, sobretudo, o cacique velho Moté, conseguiram por meio da diplomacia convencer os chefes de Kikretum a deixá-los permanecer naquele território. Com a posterior consolidação de Môjkarakô naquele sítio, as alianças políticas entre as duas aldeias se tornaram mais próximas se efetivando com convites mútuos para eventos esportivos e políticos nas duas aldeias. Soube, por exemplo, que os chefes de Môjkarakô e uma delegação de homens e mulheres esportistas foram convidados para uma cerimônia de posse de um novo cacique em Kikretum. Quando em Môjkarakô ocorreu uma cerimônia semelhante, os chefes retribuíram o convite, convocando chefes e caciques de Kikretum para participar da cerimônia de posse dos novos caciques Moipá e Játire. Em 2001, quando Akjabôro foi escolhido em assembleia para ser o representante das aldeias do sul do Pará na arena interétnica brasileira, ele teve apoio notório dos


77 caciques de Kikretum e Kôkraimôro. Com esta última aldeia as alianças políticas se estabeleceram pela crescente presença dos habitantes de Môjkarakô na cidade de São Félix do Xingu, com a qual os habitantes de Kôkraimôro já mantinham relações a mais de cinco décadas. Quando surgiu em 1995, Môjkarakô, embora se situasse no sul do Pará, era atendida pelo escritório do órgão indigenista da cidade de Colíder, no Norte de Mato Grosso. A partir de 2000, quando a comunidade já havia mudado a aldeia de lugar, eles passaram a ser atendidos pela Funai da cidade de Tucumã, até que no ano de 2010, a partir da constante pressão exercida por seus chefes e os de Kôkraimôro, uma sede do órgão indigenista foi instaurada em São Félix do Xingu para atender exclusivamente os habitantes destas duas aldeias. A fundação da sede local da Funai em São Félix foi reflexo da constante presença dos habitantes de Môjkarakô na cidade e da crescente influência de seus chefes, sobretudo, de Akjabôro, na política local. A aliança política com essas aldeias é amplamente perpassada por outras redes de relações políticas com diferentes organizações governamentais e não governamentais, situadas nas cidades do entorno da porção nordeste da TI Kayapó, sobretudo, e do ponto de vista dos moradores de Môjkarakô, com o município de São Félix do Xingu, mas também com Tucumã e um pouco menos com Ourilândia do Norte e Redenção. Estas redes estão representadas no mapa 2 pelas linhas vermelhas. Dado o caráter interétnico das redes de relações políticas entre os Mebêngôkre, uma leitura possível do mapa 2 colocaria sobre a mesma cor as relações designadas como políticas e interétnicas. A escolha por diferenciar estas relações a partir de linhas e cores distintas se dá no sentido de facilitar a exposição gráfica de uma teia de relações bem mais complexa. De qualquer modo, concordo com Turner, quando ele afirma que “o cerne da política kayapó no período póspacificação consiste na habilidade dos líderes kayapó (…) [em] obter presentes e concessões políticas da sociedade envolvente externa” (1992: 334). Essa habilidade e essa criatividade tornam-se particularmente salientes quando se destaca as relações entre os chefes das diferentes aldeias do sul do Pará e os governos locais das cidades do entorno da terra indígena. A este respeito, parece existir um acordo explícito entre as grandes lideranças mebêngôkre sobre os locais em que estes presentes e estas concessões serão conseguidos. Isso porquê os chefes privilegiam como lócus de persuasão e ação políticas as cidades fronteiriças às suas aldeias, em uma verdadeira repartição política do território 29. 29

Deve-se destacar que o próprio órgão indigenista, bem como o poder público local, fomenta essa repartição, na medida em que restringe seu atendimento aos habitantes das aldeias mais próximas das cidades, favorecendo os chefes dessas aldeias nas articulações políticas locais.


78 Podemos visualizar essa repartição no mapa 3 (ver figura 5), onde elas estão esboçadas pelas linhas de cor vermelha de espessura mais grossa que conectam as aldeias até às cidades do entorno da Terra indígena. Assim, por exemplo, percebemos que os habitantes de Gorotire e seus chefes possuem maior presença e influência junto a Funai e o poder público da cidade de Redenção (Inglês de Souza, 2000), o mesmo ocorrendo com os Xikrin do Cateté, no que tange à grande cidade de Marabá (Gordon, 2006) e com os Xikrin do Bacajá, em relação à Altamira (Cohn, 2005). No extremo sul do Pará, no escopo mais próximo da área etnográfica da presente pesquisa, a repartição ocorre da seguinte maneira: os chefes de Kikretum, desde a época de atuação de seu chefe mais conhecido o “coronel Tutu Pombo”, possuem vínculos estreitos com políticos, empresários e comerciantes da cidade de Tucumã e consequentemente, com o escritório do órgão indigenista presente naquela cidade. Já a aldeia Kôkraimôro, seus habitantes e chefes, mantém relações estreitas com os políticos e empresários da cidade de São Félix do Xingu, e com a recém-criada sede da Funai nesta cidade, o mesmo ocorrendo com os habitantes e chefes da aldeia Môjkarakô.


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Mapa 3

Figura 5: Mapa das redes de relações das aldeias mebêngôkre do sul do Estado do Pará. Adaptado de Robert e Lópes Garcéz (2010).


80

Em 2011, depois que uma cisão ocorreu em Kikretum, um de seus chefes seguido por aproximadamente cem pessoas fundou a aldeia Turedjam, instalando-se na fronteira nordeste da Terra Indígena e estabelecendo vínculos estreitos com governo local da cidade de Ourilândia do Norte, a ponto deste último financiar rapidamente a chegada da eletricidade até a nova aldeia. Em 2012, em uma clara demonstração pública das redes de relações político-interétnicas de nossa área etnográfica, a prefeitura de Ourilândia do Norte organizou e patrocinou a primeira festa do dia do índio daquela cidade, cujo público indígena era proveniente só, e somente só, da aldeia Turedjam. Na mesma semana, todas as outras aldeias mebêngôkre do sul do Pará participavam de uma festa similar em São Félix do Xingu, cidade vizinha a Ourilândia do Norte. Em 2013, durante a mesma semana do dia do índio, enquanto os habitantes dessas aldeias deslocavam-se novamente para São Félix, os de Turedjam eram agraciados com o financiamento – feito pela prefeitura de Ourilândia – de uma grande festa, agora, realizada na aldeia, e cuja programação era composta por competições esportivas, discursos de autoridades, apresentações de cantores e bandas indígenas, e a destacada realização de uma cerimônia de casamento de um dos filhos do cacique Mrô'ô. Um outro exemplo etnográfico do patrocínio de rituais pelos governos locais chegou aos meus ouvidos justamente durante a festa do dia do índio realizada na cidade de São Félix do Xingu, em 2012. Nesta ocasião pude ouvir por diversas vezes um criativo anúncio sonoro que um potente carro de som veiculava pela cidade. Reproduzo abaixo o texto do anúncio, me ressentindo das limitações da comunicação pela escrita que, nesse caso, não permite reproduzir a riqueza das colagens sonoras presentes no referido anúncio, feito, soube depois, pela colaboração de alguns indígenas com a equipe de um estúdio de som da cidade. De qualquer forma, cabe solicitar ao leitor que se imagine lendo esse anúncio ao som do “Tema da Vitória”, a conhecida música que embalava as vitórias do piloto brasileiro de Fórmula 1, Aírton Senna. Segue a transcrição do anúncio: Vem aí o segundo aniversário da aldeia Kôkraimôro! Nos dias 15, 16, 17 e 18 de maio de 2012. Apresentações culturais, competições esportivas, concursos de piada, desfile e escolha da miss Kôkraimôro. Entrega das premiações e show com a banda KKM. Marcarão presença os fundadores da aldeia Kôkraimôro: Panaú, Kukoí, Beptire, Kajti, Kití e Mekaron. Aldeias participantes: Pykararãkre, Kawatire, Apêxjt, Turedjam e Môjkarakô. Comissão organizadora: Pawi Locutor, Takàk-ê, Bepnhô, Bepkadjá, Memure, Betire e Bepmraiti. Equipes da


81 aldeia Kokrajmôro: Karani, Butire, Tépnói e Kókókrère. Segundo aniversário da aldeia Kôkraimôro, venham participar! Apoio: Petri Posto Xingu, Secretaria de Esporte e Lazer de São Félix do Xingu, Vereador Robertinho, Vereador irmão Elias, Falcão Azul publicidade e os caciques da nação kayapó Mundico e Kôkti. É a cultura do povo kayapó. A festa da aldeia Kokraimôro.

Embora não tenha participado deste evento, me parece exemplar a forma direta com a qual o anúncio descreve as redes de relações políticas intra e inter étnicas da aldeia Kôkraimôro. Do mesmo modo, me parece exemplar que seja o ritual a forma privilegiada de objetificação e publicização dessas alianças. Aqui, como destacado no início deste capítulo, o ritual aparece como um poderoso condensador de relações, o lócus para onde convergem as redes de relações de uma determinada aldeia. Essas redes de relações locais entre as aldeias e as cidades do entorno são perpassadas por formas mais amplas de aglutinação política inter aldeã. Na verdade, pode-se dizer que ao menos desde 1990 existe uma polarização da política externa mebêngôkre, entre o conjunto de aldeias presentes no sul do Estado do Pará e aquelas fixadas ao norte Estado do Mato Grosso. Tal polarização está estreitamente vinculada à própria criatividade política mebêngôkre frente aos desafios colocados pela sua participação na arena política brasileira e internacional, sobretudo após a década de 1980, quando os Kayapó se tornaram mundialmente famosos depois de participarem, como principais organizadores, de eventos políticos contra projetos de desenvolvimento econômico do Estado brasileiro que afetariam suas terras. Atualmente, temos a existência de dois grandes chefes, cada um representando um dos conjuntos de aldeias na arena política brasileira: Ropni (Raoni) representa o conjunto de aldeias do Mato Grosso; e Akjabôro representa o conjunto de aldeias do sul do Pará. Em outros contextos, como na luta contra a construção da usina hidrelétrica de Bela Monte, essa polarização é desfeita em prol da constituição e manipulação de uma unidade étnica mebêngôkre (Turner, 2006). Contudo, não se deve duvidar da existência de diversas articulações e alianças políticas entre os chefes de diferentes aldeias para que esta unidade contextual seja possível. A esse respeito, Turner (2006), em um artigo recente sobre a criatividade política mebêngôkre contemporânea, relata a verdadeira saga de uma das lideranças das aldeias do Mato Grosso para convencer os chefes de todas as 21 aldeias mebêngôkre a participar de uma reunião na aldeia Turiaçu, onde seria firmada a unidade do povo Kayapó contra a construção de Belo Monte 30. 30

Turner dá especial destaque à visita dessa liderança a três grandes aldeias do sul do Pará, cujos chefes teriam


82 Essas formas de agregação políticas não impedem, entretanto, o trânsito de pessoas e famílias entre diferentes aldeias. No caso de Môjkarakô, existem exemplos de algumas famílias que passam temporadas na aldeia de Raoni. Do mesmo modo, a repartição da influência política dos chefes de cada aldeia no âmbito político local de um município específico, não impede que os habitantes de outras aldeias circulem, mesmo que com menos frequência, por outras cidades. A cidade de Redenção continua sendo uma referência para muitas pessoas de Môjkarakô, sobretudo, quando precisam de atendimento médico mais especializado, ou quando necessitam tirar documentos ou se cadastrar em políticas de distribuição de renda como bolsa família, salário maternidade, dentre outras. O fluxo de pessoas de Môjkarakô para Tucumã também é notável. Nessa cidade fica a sede da Associação Floresta Protegida que representa cerca de oito aldeias do sul do Pará, dentre elas, Môjkarakô. Tucumã também oferece mais opções de transporte terrestre para cidades mais distantes, do que São Félix do Xingu, cidade que em termos geográficos está mais isolada. Contudo, pode-se dizer que embora circulem por estas cidades e por outras mais distantes, os moradores e os chefes de Môjkarakô mantém relações privilegiadas com a cidade de São Félix do Xingu. Pode-se mesmo dizer que os habitantes de Môjkarakô estabelecem relações quase cotidianas com esta última, tamanho o afluxo de coisas e pessoas entre aldeia e cidade. “São Félix”, como dizem os índios, é assim o local para onde são levadas as pessoas com alguma enfermidade que não podem ser tratadas na farmácia da aldeia. Estas, com seus familiares, ficam hospedadas na CASAI, casa de saúde indígena, mantida (assim como a farmácia) pela extinta Funasa e atualmente pela recém criada SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena). São Félix é também a cidade onde os aposentados e as famílias que recebem benefícios sociais do governo, bem como aqueles que são trabalhadores assalariados, fazem mensalmente suas compras. A Secretaria de Educação da mesma cidade é a responsável pela escola existente na aldeia, e é de lá também que provém os professores não indígenas. Em São Félix também está localizada a sede da missão religiosa que coordena atividades em uma pequena igreja construída em Môjkarakô. Existem pelo menos dois homens jovens adultos formados como pastores segundo essa tradição missionária batista denominada MIBAC (Ministério Internacional Batista do Avivamento). Embora as atividades da igreja sejam frequentes, elas não congregam mais do que um punhado de senhoras e crianças, com a participação de pouquíssimos homens. É nessa cidade também que os habitantes de Môjkarakô boicotado uma reunião anterior por antigas desavenças com essa e outras lideranças das aldeias do Mato Grosso (2006: 04). Estes chefes foram então convencidos a participar da Reunião para instaurar um acordo inédito em que todas as comunidades kayapó se uniram por uma causa comum: a luta contra as barragens no Xingu.


83 passaram a votar a partir dos anos 2000, quando cresceu o número de eleitores na aldeia. Kokuí, um de seus habitantes, chegou a se candidatar a vereador pelo PT (Partido dos Trabalhadores), na eleição de 2004, concorrendo pela chapa do então Prefeito da cidade. Assim, as principais instituições (escola, farmácia, igreja) da sociedade envolvente presentes na aldeia Môjkarakô estão de alguma maneira vinculadas à cidade de São Félix do Xingu. Contudo, pode-se dizer que o contexto relacional dos habitantes de Môjkarakô, vai muito além deste município, sobretudo, se nos voltarmos para a crescente participação de seus habitantes em eventos culturais em grandes cidades brasileiras como Rio de Janeiro, Brasília, Goiânia e Belém, e mesmo, em cidades no exterior como Paris, na França. As relações que se expandem até essas cidades são, no mais das vezes, frutos da crescente participação dos habitantes de Môjkarakô em projetos e ações que tem na sua “cultura” o ponto de conexão. Nestes eventos, eles são convidados para, justamente, exibir a sua “cultura”. Assim, no período da pesquisa de campo pude observar não apenas as relações dos habitantes de Môjkarakô com o Museu do Índio, no Rio de Janeiro, onde os conheci, justamente, em uma apresentação cultural, mas também suas relações com pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi, localizado em Belém, onde em 2010 foi inaugurada uma exposição com a participação direta dos habitantes da aldeia. Esses mesmos pesquisadores do Museu Paraense realizaram uma versão da mesma exposição em Paris, na França, da qual participaram uma pequena delegação de moradores da aldeia. Destaca-se, ainda, nesse cenário de atividades culturais, o evento Aldeia Multiétnica da qual os habitantes de Môjkarakô participam desde sua primeira edição em 2009. Esse evento, que reúne delegações de diversos povos indígenas do Brasil, serviu por exemplo para estreitar os laços de alguns habitantes de Môjkarakô com habitantes de outros grupos indígenas, como por exemplo os Krahô e os Yawalaptí, do Parque Indígena do Xingu. Os primeiros convidaram uma delegação de Môjkarakô para participar de sua tradicional feira de semente, enquanto os últimos fizeram um convite especial para que alguns moradores participassem de um ritual Kwarup a ser realizado no Parque. Não é objetivo deste trabalho se aprofundar em todas estas redes de relações criadas pelos habitantes de Môjkarakô em sua vivência recente. Elas são aqui apresentadas somente a título de demonstração da complexidade de relações constituídas por uma aldeia kayapó contemporânea. Como nos sugere Melatti, não há outra possibilidade senão a de começar a assumir a arbitrariedade na constituição da área etnográfica da pesquisa, diante da própria impossibilidade de dar conta de todas as redes de relações possíveis e passíveis de serem analisadas. Assim, tomo a cidade de São Félix do Xingu como aquilo que na linguagem de Melatti poderia ser o polo indígena de articulação


84 com o qual os moradores de Môjkarakô tecem privilegiadamente suas relações interétnicas. Mas se essa escolha tem certo grau de arbitrariedade, não é de todo fortuita. Como vimos, pessoas, coisas e instituições dessa cidade, estão presentes na vida dos habitantes de Môjkarakô, assim como é para lá também que converge a atuação política local dos chefes da aldeia. Mas além disso, São Félix do Xingu é, pode-se dizer, um polo indígena de articulação cerimonial. Na semana do dia 19 de abril, o tradicional dia do índio do calendário nacional, convergem para São Félix grandes delegações de aldeias mebêngôkre de toda a porção sul e sudeste do Estado do Pará para uma festa na qual a cidade é maciçamente ocupada pelos indígenas. Durante uma semana as escolas da cidade abrigam as delegações das aldeias para uma ampla programação de festividades e competições esportivas que acontecem no ginásio municipal e no parque de exposições da cidade. Esta distinta cerimônia, cuja tradição remonta aos fins dos anos 1970 é o tema da última parte desta tese. Por isso, e pelos outros motivos já elencados, São Félix do Xingu é um dos pontos nevrálgicos da área etnográfica da presente pesquisa. A ele voltaremos diversas vezes no decorrer deste trabalho, não apenas como polo de articulação interétnico, mas também como polo de articulação intra-étnico, ou seja, como lócus de produção de relações entre diferentes pessoas de distintas aldeias mebêngôkre, o que fica particularmente explícito na referida festa do dia do Índio. O contexto desta grande cerimônia é particularmente propício para se perceber uma outra rede de relações que potencializa esses outros circuitos de troca. Trata-se do “intercâmbio de concepções a cerca do ser índio” (Gallois, 2005: 18). A inserção no escopo da análise desse circuito entre concepções de “indianidades” tem sua influência nos trabalhos recentes publicados na coletânea Rede de relações nas Guianas (Gallois (org.), 2005)31. Sobretudo, quando se perguntam sobre “quais os impactos da intensificação da comunicação e do intercâmbio entre visões sobre estas sociedades e visões dessas sociedades sobre si mesmas?” (2005:18). No caso em tela, deve-se levar ao pé da letra o sentido da palavra “visões” presentes na questão posta acima, pois entre os Mebêngôkre essa comunicação e esse intercâmbio tem como canal privilegiado de expressão um circuito imagético inter-aldeão, cujo principal produto são filmagens de rituais gravadas em DVDs que circulam por diferentes aldeias, possibilitando que pessoas de aldeias diversas vejam as produções e criações rituais umas das outras. Na próxima seção enfoco essas redes de circulação de 31

Em conjunto com o trabalho de Melatti (2011) sobre as áreas etnográficas, a coletânea organizada por Gallois (2005), cujo título é Redes de Relações nas Guianas, inspirou marcadamente a produção deste capítulo, que pode ser considerado um pequeno esboço de trabalhos a serem realizados futuramente no âmbito do grupo de pesquisa Redes de Relações no Brasil Central, coordenado por mim, em parceria com o professor Odilon Morais, na Universidade Federal do Tocantins. Ao Odilon agradeço pelo intenso diálogo sobre essa temática.


85 imagens que perpassam e ao mesmo tempo constituem a área etnográfica da presente pesquisa.

Circuitos imagéticos Se fossemos estabelecer um mapa com os circuitos imagéticos contemporâneos dos Mebêngôkre do sul do Pará, certamente encontraríamos na cidade de Redenção um dos polos de irradiação de imagens. Isso, graças à atuação de um padre da igreja católica. Padre Saul, quem eu infelizmente não cheguei a conhecer, possui um grande acervo de filmes, documentários, vídeos e filmagens de rituais de diferentes aldeias mebêngôkre feitos por diferentes realizadores, indígenas e não indígenas. Ao mesmo tempo em que recebe contribuições dos indígenas para seu acervo, ele alimenta a circulação das imagens distribuindo cópias em DVDs dos filmes de sua coleção para habitantes de diferentes aldeias. Em Môjkarakô, pude assistir DVDs com filmagens de rituais realizados em aldeias do Mato Grosso, como Pykany, e também em aldeias mais próximas como Gorotire, Kikretum, Pykararãkre e Aúkre, todos advindos do acervo do Padre. Esses DVDs logo que chegavam à aldeia eram rapidamente copiados pelos cinegrafistas e distribuídos aos seus habitantes para serem assistidos nos televisores que, atualmente, estão presentes em praticamente todas as casas, com suas devidas antenas parabólicas. A este respeito, pude acompanhar durante a pesquisa o vertiginoso crescimento do uso de aparelhos de televisão. No início de 2009, existia apenas uma televisão na aldeia que pertencia à família de um dos filhos do cacique velho Moté. Em 2010, já era possível contar mais seis televisores e em 2012 eles estavam presentes em praticamente todas as casas da aldeia. Novelas, filmes românticos (como Titanic) e de porrada (como Rambo) e jogos de futebol estavam entre os programas mais assistidos pelos habitantes de Môjkarakô. Mas nada comparado ao visionamento cotidiano das filmagens de rituais de outras aldeias. Esses DVDs eram vistos repetidamente, todas as noites, por um bom número de pessoas. Formavam, como argumenta Madi, “uma programação” que aponta para a possibilidade de existência “de uma televisão indígena informal'” com “uma programação paralela que é distribuída alternativamente” (2011: 91). Essa distribuição alternativa, se tinha no padre Saul um de seus polos irradiadores, era alimentada e retroalimentada por outras redes de relações que faziam circular as imagens, sobretudo, redes de relações de parentesco. Os mesmos parentes convidados a participar de rituais por parentes de outras aldeias levavam consigo cópias desses filmes que eram prontamente exibidos


86 durante a noite, reunindo um grande público. Em Môjkarakô uma grande sessão de exibição foi montada quando um Xikrin, convidado para um ritual de nominação, trouxe vários DVDs de diversas festas realizadas nas aldeias do Cateté. Em outra ocasião, quando uma família de Môjkarakô se preparava para ir a um ritual em Aúkre, o homem mais velho da família solicitou a um de seus genros (que era um dos bolsistas do Projeto) que gravasse cópias de todos os DVDs de festas de Môjkarakô para ele levar como presente aos seus parentes da outra aldeia. Quando retornaram da festa, o homem me procurou para me mostrar os DVDs de filmagens de rituais que ele havia ganhado em troca dos que ele levara. A circulação dessas imagens coloca em evidência uma rede imagético-ritual inter-aldeã que abrange as aldeias presentes em todo o sul do Pará e também do Mato Grosso. Essa rede mobiliza e incrementa a dispersão, entre diferentes aldeias, de conhecimentos, formas rituais, designs de objetos cerimoniais, grafismos da pintura corporal, canções e passos de dança – enfim, tudo aquilo que os Mebêngôkre denominam kukràdjà. Tudo isso circula por meio do que tenho denominado “filmagens rituais”, expressão que merece ser melhor qualificada. As “filmagens rituais” a que me refiro são gravações em vídeo de diferentes cerimônias ocorridas em uma determinada aldeia feitas geralmente por cinegrafistas indígenas. Estas filmagens são gravadas em DVDs, muitas vezes sem qualquer edição e passam a circular na rede imagética descrita aqui. Compartilho com Madi o entendimento de que a não edição dessas imagens diz respeito mais à uma escolha nativa do que à uma possível prática do vídeo “em estágio rudimentar” (2011: 50)32. Esta afirmação nos permite enfatizar uma característica onipresente nestas gravações que é a sua longa duração. Em geral, possuem mais de duas horas e às vezes quatro, sendo gravados dois DVDs para suportar tamanho conteúdo. Mesmo quando são editados pelos indígenas, alguns filmes possuem três horas de duração, como foi o caso da edição de uma cerimônia de nominação Bemp, realizada em uma das oficinas do Projeto. Nesta ocasião, quando manifestei minha posição contrária sobre o tamanho do filme, um dos bolsistas respondeu seca e prontamente: “Mebêngôkre gosta assim. Tem que mostrar a festa inteira”. Muitas vezes, “a festa inteira” envolvia gravações das caçadas e dos ensaios que antecedem os rituais, concedendo ao produto final registrado no DVD uma clara ordem sequencial que seguia a preparação, a produção e a execução de uma determinada 32

Geralmente os filmes editados pelos cinegrafistas visam um público externo à aldeia, ou seja, um público não Mebêngôkre. Como afirma Madi (2011: 73): “o processo de edição tem aparecido como algo cada vez mais valorizado no âmbito dos 'projetos'. Há, hoje, em um nível maior do que tínhamos no cenário encontrado por Terence Turner, pessoas que dão algum valor à edição, querendo aprender a técnica. No entanto, tal valorização aparece ligada a uma expectativa em corresponder as demandas externas. Essas pessoas são participantes de 'projetos' e percebem a necessidade de um formato, entendendo que o vídeo editado corresponde melhor como 'produto' para a articulação em outras redes (no mundo dos kuben, principalmente)”.


87 cerimônia. A presença das imagens rituais nesse circuito parece remontar às primeiras inciativas de documentação audiovisual realizadas entre os Mebêngôkre. Mônica Frota, uma das integrantes da equipe do projeto “Mekaron Opôi D'jôi” (desenvolvido em 1985 e o primeiro de audiovisual a ser realizado em uma aldeia kayapó), não deixou de notar que as câmeras de vídeos apropriadas pelos nativos tornaram-se uma poderosa ferramenta de registro de rituais, permitindo que pessoas de diferentes aldeias se vissem depois de longos anos de separação. Atenta aos usos que os Kayapó já faziam do rádio, Mônica sugeriu a expansão de redes de comunicação por imagens através da extensão das atividades do projeto para outras aldeias, estimulando a troca de vídeos entre elas. (Frota, 2001: 96). Uma outra iniciativa semelhante foi desenvolvida pelo antropólogo Terence Turner, poucos anos depois, em 1990. Batizado como o “kayapó vídeo project”, este empreendimento permitiu que pessoas de diferentes aldeias tivessem contato direto com equipamentos de vídeo e edição. Novamente, tal como havia destacado Frota, os rituais tornam-se contextos privilegiados de gravação. Em um artigo de Turner (1993) sobre o projeto, em que ele descreve e analisa as principais produções dos cinegrafistas kayapó, pode-se perceber que o tema da maioria dos filmes são rituais, sejam eles cerimônias de nominação, encenações de ritos guerreiros, ou grandes encontros políticos entre os próprios Kayapó, ou entre eles e diferentes setores da sociedade nacional. Nas palavras do próprio autor: “a maior parte dos filmes kayapó, até hoje, são de performances culturais como rituais ou encontros políticos, que formam uma natural unidade narrativa, com limites definidos pelo próprio tema e uma ordem sequencial” (1993: 90). No Projeto de Documentação das Culturas não poderia ser diferente. Também nesse caso, os rituais eram o material filmado por excelência e tal como nas outras iniciativas, as imagens resultantes eram rapidamente colocadas em circulação. Na verdade, pode-se dizer que o desenvolvimento do Projeto em Môjkarakô e a forma como seus habitantes se apropriaram dele, acabou por colocá-los em um ponto estratégico no circuito imagético que perpassa as aldeias do sul do Pará. Isso porquê ao longo do projeto, os cinegrafistas treinados nas oficinas passaram a ser convidados para filmar cerimônias em outras aldeias. A notícia de que um desses projetos estava em realização nas imediações – com uma equipe de cinegrafistas indígenas possuindo câmeras, computadores, fitas e DVDs doados pelo Museu do Índio à “comunidade” – logo se espalhou entre as aldeias do Riozinho, Fresco e Xingu, e os convites para que os cinegrafistas de Môjkarakô filmassem rituais em outras aldeias começaram a


88 ser feitos. Tais demandas não incomodavam nem os cinegrafistas, muito menos os chefes e habitantes de Môjkarakô. Os primeiros cultivavam uma grande vontade de “conhecer outras aldeias” através do trabalho e não era menos importante a vontade deles de exercitar em outro contexto o novo kukràdjà (conhecimento) que estavam aprendendo a dominar, bem como, usufruir do status que a posição de cinegrafista lhes concedia, no âmbito intra- e inter-comunitário. No caso das lideranças e dos moradores, o convite dos parentes para atuar em outras paragens oferecia um duplo incentivo. Os chefes se sentiam felizes e fortes com o fato de Môjkarakô ser a única aldeia das imediações com uma equipe de cinegrafistas, com seus devidos equipamentos. Isto, afirmaramme mais de uma vez, “era bom para a aldeia”. Mas isso não era o principal. Mais do que demonstrar para os parentes a mais nova riqueza conquistada por Môjkarakô, a apropriação do projeto permitia à comunidade ocupar uma posição estratégica no circuito de imagens que perpassam as aldeias do sul do Pará. Isso, mais uma vez, graças ao difícil trabalho dos cinegrafistas. Eles filmavam as festas a pedido daqueles que os haviam convidado, mas por uma elementar impossibilidade técnica do projeto, os cinegrafistas não podiam deixar uma cópia das filmagens com os anfitriões: não era possível, sem um deck, aparelho de edição, digitalizar as tão preciosas fitas mini DV e copiar as imagens para um DVD, como era de desejo destes últimos. Muitas vezes, para remediar uma situação deveras constrangedora e tensa, os cinegrafistas conseguiam apresentar as imagens conectando a câmera em uma televisão da aldeia em que estavam, em um espaço público, possivelmente em frente da casa do principal chefe. Essa impossibilidade técnica, era por outro lado, muito bem utilizada pelos habitantes de Môjkarakô, pois os cinegrafistas retornavam para a aldeia com as fitas e logo que chegavam eram solicitados a exibir publicamente as imagens das festas dos parentes em sessões noturnas quase diárias. O visionamento das imagens possibilitava aos habitantes de Môjkarakô um consumo imediato das cerimônias realizadas em outras aldeias, e impulsionava juízos estéticos sobre elas. Nas sessões noturnas comentava-se as inovações, aquilo que os outros tinham feito para se alegrar: as cores e imagens dos enfeites de miçanga, os designs dos colares, em seus minuciosos detalhes de contas coloridas, a invenção de novos grafismos de pintura corporal, novas músicas e novos passos de dança. Comentava-se também se a festa estava bonita e se estava sendo executada na sequência correta. Além disso, os visionamentos noturnos das “imagens dos parentes” permitiam a eles planejar suas festas com um claro espírito de disputa. Era preciso fazer mais bonito que os outros. Nos longos períodos de preparação para as cerimônias, os chefes cobravam empenho dos moradores


89 da comunidade, lembrando a eles das imagens que mostravam aldeias limpas, sem mato na praça central. Utilizando palavras de incentivo no boca de ferro (alto-falante da aldeia), Akjabôro disse certa vez: Ontem nós vimos as imagens dos parentes. Vimos a festa deles. A aldeia deles estava limpa. Todos trabalharam para a festa acontecer. Eles estão filmando aqui também, porque Môjkarakô tem projeto. Agora nós temos que trabalhar direito. Todos têm que trabalhar para a comunidade, para a nossa festa ficar mais bonita. Temos que fazer certo (bonito, correto).

Encontrei posição semelhante a de Akjabôro quando fomos convidados 33 a realizar oficinas de audiovisual na aldeia Kôkraimôro. Logo que chegamos a esta aldeia, fomos surpreendidos pela ávida vontade de seus chefes e habitantes de assistir as filmagens das apresentações rituais gravadas em Môjkarakô. Uma de nossas primeiras atividades na aldeia foi exibir estas imagens para um grande público, em um televisor colocado na casa dos homens. Mundico, o cacique da aldeia, revelou claramente após a exibição que a intenção de ver a imagem dos parentes era para que eles fizessem festas mais bonitas. Assim, nos dias que se seguiram, os homens e mulheres de Kôkraimôro, adultos e jovens, não só apresentaram para a câmera filmadora as suas versões das cerimônias feitas pelos habitantes de Môjkarakô, como também executaram outras que estes últimos não tinham realizado. Ao final de cada dia de gravações éramos solicitados a exibir as imagens filmadas na casa dos homens. Estas sessões de visionamento eram sempre acompanhadas de uma série de comentários feitos pelos telespectadores, sobretudo, a respeito da beleza da festa que haviam realizado ou, ao contrário, sobre algum ponto negativo que deveria ser melhorado para o dia seguinte. Depois de uma dessas apresentações, ouvi o cacique Mundico dizer aos homens jovens que limpassem direito o pátio da aldeia que lhe parecia sujo nas filmagens. Após outra sessão de visionamento, o mesmo cacique disse aos homens e mulheres jovens que haviam dançado o Kwôre Kangô, cuja apresentação eles haviam acabado de assistir, que a refizessem no dia seguinte, pois segundo Mundico havia pouca gente dançando e os dançarinos estavam desanimados. Ao fim de nossa estadia, quando estávamos retornando para Môjkarakô, Mundico solicitou que mostrássemos as filmagens gravadas em Kôkraimôro para os habitantes daquela aldeia verem como eles sabiam fazer festas bonitas. O interessante é que quando cheguei a Môjkarakô com estas imagens, nem precisei anunciar o pedido de Mundico. Seus habitantes logo solicitaram sessões noturnas para assistir as apresentações dos seus vizinhos, até que se esgotassem o estoque de fitas gravadas em Kôkraimôro. Essas exibições aconteciam no mesmo momento em que as pessoas de Môjkarakô preparavam uma 33

Nesta etapa do projeto estava na companhia de Diego Madi.


90 cerimônia de nominação Menire Bijôk (festa das mulheres pintadas). Não deixei de notar neste contexto que os visionamentos das imagens gravadas em Kôkraimôro animava os habitantes de Môjkarakô na preparação da festa que iria ocorrer dali a alguns dias. Tratava-se de uma vontade de fazer, uma vez mais, uma festa mais bonita que aquelas que eles viam no televisor durante a noite, momentos antes dos ensaios realizadas para a cerimônia. Disputas semelhantes entre aldeias mebêngôkre foram notadas por Cohn (2004) entre os Xikrin da aldeia Bacajá e aqueles que haviam deixado essa aldeia para fundar outra. Estes últimos, para celebrar a fundação da nova aldeia, realizaram uma festa Kwôre Kangô e solicitaram a antropóloga que levasse até a aldeia do Bacajá as fitas K7 com as gravações das canções que eles haviam produzido para a festa. Como retrata a autora, havia nesta atitude “um orgulho a ser cuidado” e uma clara “vontade de se sobressair” através da produção de “uma festa mais bonita do que a do Bacajá” (Cohn, 2004: 10). É interessante registrar as impressões da antropóloga sobre a recepção e audição das fitas pelas pessoas do Bacajá, sobretudo, porque ela aponta algo similar a esse espírito agonístico, de disputa ritual, que perpassa essa rede imagética que estou descrevendo. Segundo Cohn, “muitos se reuniram para ouvir [as fitas], e parecem ter apreciado o que ouviram. De fato, o debate do momento girava em torno de qual aldeia fazia mais rituais, ou dançava mais; assim, a pergunta que mais me faziam era se realmente na nova aldeia, do Moti Djãm, se dançava todo dia” (Idem). Estes são apenas alguns exemplos de como o trabalho de antropólogos pode ser absorvido por um circuito nativo, onde os rituais, suas imagens e sons, ou melhor seu kukràdjà, são os bens privilegiados na circulação, e cujo visionamento e audição impulsiona a produção de novos rituais, feitos e gravados com um claro espírito agonístico, pois que serão vistos por outros, em outras pontas do circuito. Um dos objetivos centrais do presente trabalho é descrever e analisar alguns destes rituais que circulam nessas redes imagéticas, sobretudo aqueles produzidos pelos habitantes de Môjkarakô, e gravados pelos cinegrafistas indígenas do Projeto de Documentação das Culturas. Antes, contudo, de passar a estas descrições, é preciso responder uma pergunta colocada pela apresentação destes circuitos de imagens descritos acima, qual seja: porquê são os rituais o conteúdo privilegiado de circulação imagética entre diferentes aldeias? Ou, em outras palavras, o que faz da forma ritual um item privilegiado de gravação e circulação? Acredito que parte da resposta para esta pergunta já esteja clara na discussão precedente: o ritual é uma forma privilegiada de circulação imagética porque ele condensa uma série de kukràdjà


91 mobilizados pelos habitantes de uma determinada aldeia para a sua realização. São esses kukràdjà que os habitantes de outras aldeias anseiam por observar e, por sua vez, apreender, copiar e mesmo julgar. Assim, como disse acima, grafismos de pintura corporal, designs, formas e cores de enfeites, canções e passos de dança são itens privilegiados de observação e análise daqueles que recebem os DVDs com a festa de uma determinada aldeia. A circulação dessas imagens que condensam diversos tipos de conhecimento incrementa uma disputa inter-aldeã que gira em torno da beleza dos rituais. De fato, existe uma relação imediata entre beleza e ritual. Turner, por exemplo, afirma que ao perguntar a um Kayapó “porque ele dança, ou porque realmente a cerimônia está sendo performada, ele provavelmente responderia: 'Por causa da beleza'” (Turner, 1980: 130) 34. É justamente a beleza (mejx) e sua relação com o ritual que deve-se considerar para continuar respondendo a pergunta colocada acima. Além de condensar diversos kukràdjà, os rituais mebêngôkre estão estreitamente vinculados a uma concepção nativa de beleza, traduzida pela palavra mejx, que como kukràdjà, possui um amplo campo semântico. Como já notou Gordon, mejx (…) não exprime somente valores estéticos, senão igualmente valores morais ou éticos. O campo semântico da palavra cobre uma série de atributos que poderíamos glosar como bom, bem, belo, bonito, correto, perfeito, ótimo. Além disso, mejx pode ser contraposto, dependendo do contexto de enunciação, aos seguintes termos antonímicos: punure ('ruim, feio, mau, errado') e kajkrit ('comum, ordinário, vulgar, trivial'), ou simplesmente mejx kêt (onde kêt = partícula de negação). De todo modo, mejx (belo, o bom, a perfeição) designa um conjunto de valores essenciais aos Xikrin [e a todos os Mebêngôkre]. Produzir ou obter coisas, pessoas e comunidades (enfim, a sociedade) mejx parece ser a finalidade última da ação xikrin no mundo, que se revela tanto no plano individual quanto no coletivo (2009: 08).

A partir dessa passagem pode-se traçar uma relação imediata não apenas entre beleza e ritual, mas também entre ela e o kukràdjà. Pois não são todos e quaisquer kukràdjà que são objeto de apropriação. Apropria-se, particularmente, os kukràdjà considerados belos. São eles que se fazem presentes nos rituais e na própria produção de pessoas belas. Como entre os Kisêdjê (Suyá), estudados por Coelho de Souza (2010: 03) a adoção de elementos exógenos – sobretudo dos xinguanos, com os quais eles passaram a conviver em determinado momento de sua história – “dependia de uma apreciação de sua 'beleza' (…), sendo esse equipamento cultural [dos xinguanos] concebido pelos Kisêdjê, em um espírito difusionista, como um conjunto de traços a serem separadamente tomados ou rejeitados”. Como destaca a autora a partir de uma citação de Seeger: 34

Fisher (1998; 2001), por outro lado dirá que uma outra resposta possível a essa pergunta é que a cerimônia é realizada “por causa da felicidade”. Este significado das cerimônias será explorado no capítulo sobre o aniversário da aldeia Môjkarakô.


92 “tudo foi adotado porque era bom ou bonito” (Seeger, 1980: 169 apud Coelho de Souza, 2010: 03). O mesmo se pode dizer do caso dos Mebêngôkre. Nem tudo que é visto nos DVDs de filmagens rituais é considerado mejx e por isso passível de apropriação. Um par de tênis utilizado por um dos rapazes homenageados em uma cerimônia de nominação Bemp realizada na aldeia Aúkre e assistida em um dos televisores da aldeia, foi tomado pelos Mebêngôkre de Môjkarakô como algo punure (feio), um exemplo do que eles não deveriam utilizar em seus próprios rituais. Assim, pode-se dizer que a própria apreciação estética é um importante fator que fazem os rituais e suas imagens circularem em diferentes aldeias. Mas isso não é tudo. Uma outra relação mais direta entre beleza e ritual pode ser extraída de comentários de outros autores. Turner (1993), por exemplo, em um artigo em que trata da apropriação do vídeo pelos Kayapó, afirma deliberadamente que o ritual não apenas cria beleza, mas também pode ser entendido “como expressando o valor supremo kayapó de beleza” (:94). Como diz o autor, a 'beleza', neste sentido, inclui um princípio de organização sequencial: repetições sucessivas do mesmo padrão, com cada performance acrescida de valor social, quando integra elementos adicionais e adquire mais delicadeza estilística, se aproximando, portanto, do ideal de inteireza e perfeição que define a beleza (op. cit.: 95).

Em um texto mais recente, Turner (2009: 159) retoma essa concepção ao dedicar algumas palavras ao conceito de beleza kayapó e utilizar como exemplo o ritual: Como um termo de valor, 'mêtch', que eu tenho traduzido pelo termo geral 'beleza' (…), conota tanto inteireza (significando que todas as partes ou aspectos de uma coisa estão presentes em suas proporções corretas) quanto perfeição de produção ou performance. A palavra está associada ao princípio de repetição, como quando uma cerimônia torna-se total e perfeitamente performada quanto mais ela foi repetidamente ensaiada.

Seguindo a primeira definição de Turner, Lea (2012: 121) afirma que “para os Mebêngôkre estética é associada com a ideia de totalidade”. Em outro texto, a autora toma as cerimônias como exemplo dessa concepção nativa de estética. Segundo ela, “as cerimônias são ocasiões eminentemente estéticas porque realizam a composição mais completa do corpo social, articulando os membros de cada Casa através de seus respectivos papéis” (1993: 275). Ou, em outras palavras: “as cerimônias mebêngôkre devem um de seus aspectos estéticos ao fato de exigirem a participação da aldeia inteira (na condição de performers ou espectadores) em graus diferentes que variam de acordo com a ocasião” (Lea, 2012: 397). Nestas passagens, Lea parece reafirmar a importância do elemento que Turner denomina “inteireza” ou o que ela própria denomina “totalidade”, destacando as noções de proporção e simetria como componentes importantes da beleza. Seguindo ideias similares no campo dos artefatos, Gordon, ao comentar a apreciação estética


93 Xikrin de alguns objetos presentes na coleção do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP), faz a seguinte afirmação: “dentre os critérios imediatos para a apreciação xikrin dos objetos belos, podemos anotar, em primeiro lugar, a adequação a um determinado padrão (ou forma, própria a cada objeto) culturalmente estabelecido, bem como a adequação aos sentidos de harmonia, proporção e simetria” (2009: 09). Não parece haver dúvida, portanto, sobre o fato de que a noção mebêngôkre de beleza está embasada em valores estéticos como “inteireza”, “totalidade”, “harmonia”, “proporção” e “simetria”. Estes valores são, como afirma Gordon, replicados nos rituais, concretizando um “paralelismo estético” entre a produção de artefatos e a produção ritual. Assim, as performances rituais, elas mesmas, podem ser vistas como um ordenamento temporal e espacial de diferentes kukràdjà. De fato, a correta distribuição dos kukràdjà durante a festa – seu aparecimento no meio do pátio da aldeia em sequência correta, e na correta disposição ou posicionamento – indica harmonia, simetria e beleza. Num certo sentido, é isso que faz a festa ser considerada realmente bonita ou boa (metoro mejx kumrenx). (…) Replicados em outro plano notamos a presença dos mesmos princípios ou critérios de reconhecimento da beleza dos objetos materiais. Assim como um belo objeto, uma bela festa também é o resultado harmônico de alinhamentos e separações aproximações e afastamentos dos elementos – neste caso os Kukràdjà – uns em relação aos outros (Gordon, 2009: 13).

Assim, quando nos voltamos para os rituais, certos princípios estéticos tornam-se salientes. Eles dizem respeito às ideias de sequência (ou processo) e repetição, tal como destacadas nas passagens de Gordon e Turner mencionadas acima. Como afirmam estes autores, é justamente essa ordem sequencial e a repetição dessas sequências durante uma cerimônia que agrega beleza ao ritual. E é justamente ela também que está presente nos vídeos de rituais filmados pelos cinegrafistas indígenas. Falando sobre um filme produzido por Tamok, um dos cinegrafistas do Kayapó vídeo project, Turner afirma: [o vídeo de Tamok] mostra fielmente a repetição de cada performance, cada uma com seu acréscimo sucessivo em termos de enfeites e participantes. Seu vídeo reproduz, em sua estrutura, a estrutura repetitiva da cerimônia em si e, portanto, ele próprio cria 'beleza', no sentido kayapó do termo (1993: 95).

Esta me parece ser uma resposta fiel à pergunta colocada acima sobre o porquê de serem as filmagens de rituais um item privilegiado de circulação. Isso não apenas porquê o ritual, como diz Turner, expressa “o valor supremo kayapó de beleza”, mas, sobretudo, porquê a própria produção do vídeo pelo cinegrafista, além de reiterar esse valor supremo, produz ele próprio ainda mais beleza. Seguindo sempre as sequências e repetições das cerimônias em seu contínuo processo de


94 agregação de beleza, o cinegrafista produz com seu vídeo um produto em que estão objetificadas tanto a própria beleza em si do ritual, motivada pelos princípios de inteireza, proporção e simetria, quanto a “sobre-beleza” que o filme engendra, uma vez que é a própria sequência ritual que norteia sua produção. Além disso, um último ponto pode ser enunciado para responder a pergunta colocada acima. Os vídeos dos cinegrafistas objetificam as próprias redes de relações mobilizadas para a produção do ritual, e fazem ver aos outros as articulações interétnicas e inter-aldeãs estabelecidas em sua concretização. As filmagens rituais expõem para os vizinhos de outras aldeias os parceiros e parcerias estabelecidas para a realização da cerimônia, sendo documentos fiéis da capacidade dos chefes mobilizarem recursos da sociedade envolvente para a sua produção. A circulação dessas imagens rituais reafirma, portanto, o prestígio de um determinado chefe, disseminando sua maestria em captar recursos e estabelecer redes de relações. No mesmo sentido, a circulação dessas imagens reafirma também a beleza das próprias comunidades onde elas foram produzidas, alimentando e retroalimentando uma disputa entre aquelas aldeias que fazem a festa mais bonita.

ɷɷɷ

A descrição desses complexos circuitos inter-aldeãos e interétnicos permite apresentar, agora, as partes que compõe essa tese e os seus respectivos capítulos. Na primeira parte, o contexto privilegiado de descrição e análise é o espaço aldeão e, mais precisamente, dois rituais produzidos pelos habitantes de Môjkarakô: a cerimônia de aniversário de quinze anos da aldeia e a cerimônia de posse de dois novos caciques. Se digo que privilegio o espaço aldeão nesta parte, é porque a ênfase está justamente na própria produção de um espaço comunitário, amplamente criado segundo uma estética da comunidade. A festa do aniversário da aldeia é, assim, um contexto oportuno para falar desses valores estéticos e de como eles são mobilizados por seus habitantes na própria história do encontro dos dois grupos que formam a aldeia, nas dificuldades e problemas enfrentadas em conjunto, na luta contra todo tipo de intempéries (chuvas, incêndios, fome, doenças) e na produção, enfim, de um senso de comunidade (Overing, 1991) partilhado pelos habitantes de Môjkarakô e providencialmente exposto (por meio de filmagens) para as demais aldeias como o jeito certo (kumrentx) e belo (mejx) de se produzir comunidade. A produção dessa estética do cotidiano não


95 pode estar desvinculada de sua inserção como estratégia política no contexto inter-aldeão, no qual se desenrolam conflitos e disputas em torno da beleza das aldeias. É a afirmação da beleza de Môjkarakô o que está em jogo na festa do aniversário. É ela, a beleza de Môjkarakô, que os habitantes de outras aldeias podem contemplar nas cópias de DVDs assistidas em seus modernos televisores. A cerimônia de aniversário pode ser entendida como um índice do êxito dos moradores e chefes de Môjkarakô em constituir, a seu modo, um krin mejx (aldeia bonita) por meio das relações de parentesco criadas ao longo dos anos entre os dois grupos de pessoas que encontraram para fundar a aldeia. O jeito de Môjkarakô, o seu kukràdjà, como veremos, está totalmente imbuído por estes valores do parentesco e pela sua prática cotidiana. É a transformação de dois grupos distintos de pessoas à uma única comunidade que está expressamente tematizada em termos políticos no capítulo sobre a cerimônia de posse dos dois novos caciques. Nesta festa e diante de distintos convidados concretiza-se uma transformação na organização política da aldeia, não mais estabelecida segundo a forma do faccionalismo, com dois chefes liderando respectivamente cada um dos grupos que se encontraram para formar a aldeia. Agora, passados quase vinte anos de convivência, a organização política toma a forma dos grupos etários, dissolvendo a oposição faccional resistente ao processo do parentesco paulatinamente constituído entre os dois grupos. A primeira parte da tese mostra o esforço dos Mebêngôkre de Môjkarakô para criar uma aldeia afluente, com ânimo inspirado, mesmo em meio a conflitos faccionais e disputas internas. Nessa parte já está presente uma tendência que perpassa toda a tese de não separar, ou entender como inteiramente permeáveis, a produção estética da comunidade e a predação estética do outro. Aqui como entre os Piaroa, estudados por Overing (1991), ou entre os Wayana, estudados por Van Velthen (2003), ou mesmo entre os Kaxinawa, estudados por Lagrou (1998; 2003), trata-se de evidenciar as pontes existentes entre as noções de produção e predação no panorama dos estudos ameríndios. Dentre os modelos teóricos produzidos para os Mebêngôkre tenho especial predileção por aquele apresentado por Lea (1986; 2012), menos em seu viés fortesiano de entendimento das Casas kayapó como corporações com suas regras de transmissão jurídicas35; e mais em seu viés feminista e de critica feminista embalada pelos estudos seminais de Marylin Strathern sobre a Melanésia. Além de restituir o lugar das mulheres na socialidade mebêngôkre, ou justamente por isso, nos trabalhos de Lea (1986; 1994; 1999; 2012) encontram-se observações argutas sobre a pintura 35

Ver em Coelho de Souza (2002) e Gordon (2006), críticas a essa face fortesiana dos trabalhos de Lea sobre as matricasas mebêngôkre.


96 corporal e o uso de miçangas (exploradas aqui nos capítulos da segunda parte da tese) que demonstram a intensa mutualidade entre produção e predação. Assim, na parte dois, que faz a passagem das cerimônias realizadas na aldeia para àquelas feitas na cidade, e por isso denominada Intermezzo, apresento dois capítulos que tematizam de modo geral a produção de corpos e artefatos: um sobre a pintura corporal e outro sobre a incorporação e uso das miçangas. Sobre a pintura corporal mebêngôkre, tematizada por autores consagrados como Turner (1980) e Vidal (1992), ofereço uma visão mais voltada para suas agências e eficácias do que para seus significados simbólicos, demonstrando como a atividade da pintura produz a pele, o corpo e o parentesco por meio de relações com seres outros, que oferecem perigo à boa saúde mebêngôkre. Os usos e aplicações das tintas em diferentes estados corporais vivenciados nos momentos de resguardo mediam relações entre humanos e não humanos por meio da constituição da pele, justamente, nestes momentos em que ela se torna enfraquecida. Todo esse trabalho de constituição e reconstituição das superfícies corporais, de tratamento do corpo, é realizado primordialmente pelas mulheres mebêngôkre. Seus conhecimentos profundos sobre esses estados corporais e sobre as formas de refiguração do corpo permite atribuir à pintura corporal e, consequentemente, às mulheres, uma função xamânica com seus respectivos “coeficientes de alteridade” (Lima, 2005). No capítulo seguinte, o tema da incorporação das miçangas e suas formas de captura coloca diretamente a questão do regime de predação simbólica mebêngôkre, já delineado por outros autores (Gordon, 2006; e Cohn, 2005), como um regime de predação não do corpo ou da alma da vítima, mas de suas capacidades técnicas e estéticas. A guerra, a troca e as parcerias estabelecidas com diferentes outros para se obter miçangas são temas constantes nos mitos coletados sobre as contas de vidro. Neste capítulo, fala-se sobre o encontro dos Mebêngôkre de Môjkarakô, notadamente suas mulheres, com grandes quantidades de miçanga, buscando-se pensar sobre as transformações que esse encontro proporciona aos kayapó e, sobretudo, suas consequências para seu regime de circulação de bens cerimoniais, conhecidos na literatura como nekrêjx. O que aconteceria a esse regime, me pergunto neste capítulo, se praticamente todos os adornos corporais fossem produzidos com miçangas? Quais as consequências dos processos de criatividade acionados pelas mulheres ao estarem diante de volumosas cargas de miçanga? Como as transformações decorrentes desse encontro se processariam nos rituais, ao intensificar os processos de comunização e diferenciação marcadamente característicos da sócio-cosmologia mebêngôkre? Como veremos, estas perguntas encontram sentido nos pontos que unem a criatividade ritual mebêngôkre e os


97 aspectos plásticos, agentivos e formais dessa matéria-prima que é a miçanga, capaz de substituir a quase totalidade dos materiais empregados na produção dos enfeites corporais. Neste capítulo volta à tona um tema já presente com menos enfase nos primeiros capítulos e que será central na terceira e última parte: o tema da guerra intra-étnica e seus modos de atualização no contexto contemporâneo pós pacificação, em que a violência entre as aldeias tornaram-se proscritas. Já é bem documentado na bibliografia mebêngôkre o fato de que grupos que antes pertenciam a uma mesma aldeia, ao se separarem, tornam-se verdadeiros inimigos (Nimuendaju, 1952; Bamberger, 1979; Verswijver, 1992; Turner, 1992; Coelho de Souza, 2002; Gordon, 2006). Antes da pacificação, essa inimizade descambava para a guerra, para o conflito armado entre os grupos que outrora compartilhavam a mesma casa dos homens e o mesmo beira rio. Na última parte da tese, interessa perceber com mais enfase as formas que essas relações tomam em processos fissionais pós-pacificação, como é o caso da aldeia Môjkarakô, onde o sentimento de disputa permanece, mas sua efetivação acontece por outros meios que não a guerra vis a vis, mesmo que esta nunca deixe de ser uma possibilidade concreta. A respeito da guerra, pode-se então perguntar: O que restou de sua pregnância no passado e de todas as possibilidades de sua atualização no presente? Se as sociedades indígenas são sociedades para a guerra (Clastres, 2004), como é recriada toda essa vontade guerreira em contextos de pacificação? Em suma, como fazer a guerra em tempos de paz? Aproximando essas questões dos rituais contemporâneos descritos na última parte da tese (a festa do dia do índio e os concursos da miss kayapó) torna-se possível formular algumas outras questões: quais transformações foram operadas sobre os rituais que fazem deles um dos lócus das disputas comunitárias contemporâneas? Quais transformações os rituais operam quando atualizados enquanto contextos de disputa e afirmação da beleza, do valor e da supremacia de uma aldeia sobre a outra? A hipótese que permite oferecer alguma luz a essas questões pode então ser formulada: nos tempos contemporâneos a festa é a guerra; pois a clássica vontade guerreira mebêngôkre tem se canalizado para o ritual e continua existindo enquanto uma guerra de e por imagens, uma guerra simbólica, de signos de distinção, de afirmação da beleza perante outros, conduzida por performances realizadas em contextos inter e intra-étnicos. Com essa hipótese um dos temas gerais da tese torna-se mais claro: trata-se do modo como a aldeia Môjkarakô entra nestas disputas estéticas e imagéticas e, consequentemente, da criatividade política e cultural que seus habitantes mobilizam para tal. Assim, no capítulo sobre a festa do dia do índio procuro demonstrar como, embora ela seja


98 organizada pela Prefeitura da cidade de São Félix do Xingu, sua estrutura segue sendo a de um grande ritual mebêngôkre, onde a beleza, a felicidade e uma certa dose de rivalidade são ingredientes fundamentais. O fato dessa grande festa ser realizada na cidade e para um grande público não indígena, coloca questões importantes sobre a forma como os kuben (não indígenas) são engajados no contexto ritual. Não se trata, como veremos, de meras “apresentações culturais para os brancos verem”, mas sim de formas específicas de engajá-los nos rituais mebêngôkre, de fazê-los não apenas financiadores destes rituais, mas participantes ativos deles, decisivos para a disputa estética e imagética inter-aldeã que se desenrola durante a festa. No último capítulo, sobre os concursos da Miss Kayapó, estamos diante de um evento intrigante e complexo. Primeiro, pela contra intuitividade inerente ao próprio título do evento. Segundo, porque o concurso da miss segue de modo exemplar uma tradição mebêngôkre de preensão de formas rituais vindas dos brancos, e dos processos miméticos que essas apropriações engendram. Terceiro, porque de maneira assaz exitosa os Mebêngôkre conseguem produzir um contexto de coexistência de valores e princípios estéticos distintos, mobilizados durante os julgamentos do concurso. Quarto, por fim, porque através do concurso da miss, tecem-se estratégias nativas de controle imagético em contextos de espetacularização da indianidade. Um conceito nativo perpassa todas essas partes e capítulos e é com sua menção que encerro esse preâmbulo. Trata-se, como não poderia deixar de ser, do kukràdjà mebêngôkre em suas diversas acepções individuais e coletivas. São as diferentes facetas desse conceito complexo, e os modos de fazê-lo, adquiri-lo e circulá-lo que guiam o leitor durante este trabalho. Iniciemos então, com a produção do kukràdjà de Môjkarakô, amplamente concretizado, performatizado e exibido na festa de aniversário de quinze anos da aldeia.


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PARTE 1 NA ALDEIA

Figura 6: Imagem a茅rea da aldeia M么jkarak么. (Foto: Sandoval Amparo)


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Capítulo II

O Aniversário de Môjkarakô: a fabricação ritual da comunidade

Môjkarakô ehhe ehhe dia seis kam kató õ akati ne já Môjkarakô ehhe ehhe dia seis você nasceu hoje é o seu dia36

Figura 7: Os chefes Kaikware, Moté, Akjabôro e Pinkà, durante a festa de aniversário da aldeia Môjkarakô. Setembro de 2010.

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Canção criada pelas mulheres de Môjkarakô para ser apresentada no dia da festa de aniversário da aldeia.


101 A importância da fundação de Môjkarakô só se tornou clara para mim quando, durante uma das últimas etapas de campo, seus moradores decidiram fazer uma festa de aniversário na qual o sujeito consagrado era a própria aldeia. Inspirados pelos feriados, festividades e competições esportivas que embalam as comemorações do aniversário das cidades do entorno da terra indígena, os moradores de Môjkarakô viviam um momento de efervescência eminente, quando se está próximo de concretizar um grande acontecimento. E este acontecimento era a comemoração do aniversário de quinze anos da aldeia. Um ritual de celebração da convivência entre aqueles dois grupos que, antes separados, exercitavam por esta década e meia, a arte de viver em conjunto, o que de resto é, como veremos, uma apropriada definição mebêngôkre de “comunidade”. A própria história de Môjkarakô não poderia ser narrada aqui sem o ângulo, diria mesmo, o frame, que este evento proporcionou. A festa de aniversário serve aqui como estrutura de referência para falar sobre o senso de comunidade (Overing, 1991) mebêngôkre, tal como praticado pelos habitantes de Môjkarakô. Um senso de comunidade cujos princípios éticos e estéticos são colocados em ação na própria festa, configurando um jeito específico de se fazer comunidade performatizado durante a cerimônia e propagado pelos chefes em seus discursos públicos. Trata-se de perceber como a estética da convivialidade pode estar articulada com a política, tanto no nível da organização política da aldeia, quanto no plano inter-aldeão e inter-étnico. Essa articulação, notável em vários aspectos da cerimônia, se concretiza de modo contundente nas narrativas sobre as cisões que redundaram em Môjkarakô e sobre toda a mobilização (de pessoas, coisas, mercadorias, parcerias) necessária à fundação da aldeia e sua posterior consolidação como krin mejx (aldeia bonita) no cenário inter-aldeão. No contexto da festa, os discursos dos chefes são como “armas discursivas” que evidenciam uma disputa inter-aldeã. Esses discursos, como veremos, não deixam de explicitar que se as diferenças internas são menos enfatizadas em determinado contexto, é porque nele (ou por meio dele) emergem outras diferenças.

Reunião A cerimônia de aniversário aconteceu em setembro de 2010. Lembro-me, como se fosse ontem, do dia que soube de sua existência. Foi no dia 24 de agosto do mesmo ano. Um daqueles dias que tinham tudo para ser mais um dia morto, quando nada de interessante acontece, quando nada de proveitoso parece render para a pesquisa. Como que acentuando essas suspeitas, eu estava muito gripado e apesar disso tinha dado voltas e voltas na aldeia buscando informações e pessoas


102 para entrevistar, sem obter êxito em nenhum destes dois objetivos. À noite, quando já me preparava para dormir em um dos quartos da farmácia da aldeia, fui chamado para participar de uma reunião. De início, estranhei o fato de uma reunião àquela hora, pois já passava das nove da noite. O rapaz que viera me buscar não deu muitas explicações e me levou até a casa de Játire, um dos filhos do cacique velho Moté. Quando entrei em sua casa, cerca de quinze homens jovens e alguns um pouco mais velhos estavam sentados em círculo, em suas inseparáveis “cadeiras de macarrão” 37. Após me cumprimentarem ofereceram-me um lugar no círculo. Bepdjá, um dos professores indígenas, explicou o motivo da reunião. Estavam ali para organizar a festa de quinze anos da aldeia Môjkarakô que iria ocorrer nos dias 04, 05 e 06 de setembro de 2010. A festa grande, explicava Bepdjá, aconteceria no dia seis. Nos dois dias anteriores aconteceriam competições esportivas e brincadeiras para as crianças. Enquanto Bepdjá explicava a programação da festa, comecei a identificar as outras pessoas presentes na reunião. Todos que estavam ali ocupavam algum cargo remunerado: Takàkma e Bepdjá eram professores da escola da aldeia; Kadjure e Takákprin eram agentes de saúde; Tesséa, Kukôi, Atydjóre e Bekrô ocupavam cargos de auxiliar de serviços gerais na escola, e Okêt, Nhôtire e Bepmrajti ocupavam cargo semelhante a este último na enfermaria da aldeia. Estavam presentes também os cinegrafistas do Projeto de Documentação das Culturas, Bepunu, Pawire e Axuapé, que estavam recebendo bolsas como pesquisadores indígenas financiadas pela Unesco em parceria com o Museu do Índio. Completavam os presentes alguns homens mais velhos que, embora não ocupassem cargos remunerados nas agências não indígenas, eram pessoas com poder de barganha com a Funai e outras instituições que poderiam contribuir com a festa. Eram eles Krôti, responsável por levar os aposentados para receber aposentadoria e fazer compras na cidade; Kôkuí, presidente da Associação da aldeia Môjkarakô, e Kôkoranti, homem com diversos contatos com empresários de São Félix do Xingu. Ouvindo Bepdjá e reconhecendo aquelas pessoas não foi difícil concluir que eu fora chamado ali para contribuir também. Depois de alguma discussão, os presentes, em acordo, chegaram à conclusão de que cada um iria contribuir com 200 reais para cobrir as despesas da festa. Estas consistiam em uma longa lista lida e comentada em voz alta e que reproduzo a seguir: − 20 caixas de bolacha; − 40 caixas de refrigerante; − 20 fardos de arroz; 37

Cadeiras feitas de fios de plástico enrolados em uma estrutura de metal, de amplo uso no interior do Brasil e também amplamente apropriadas pelos Mebêngôkre.


103 − 5 fardos de feijão; − 5 fardos de macarrão; − 2 caixas de óleo de cozinha; − 10 caixas de fogos de artifício; − 20 pacotes de balas e pirulitos; − 3 Troféus e 50 medalhas para as competições esportivas; Outros produtos como café, açúcar, fumo, carne de gado, gasolina, óleo diesel e material para iluminação seriam conseguidos a partir de “parcerias” com a Funai, a prefeitura de São Félix do Xingu e com empresários e donos de estabelecimentos comerciais na cidade. Seriam solicitadas contribuições das técnicas de enfermagem, da missionária e das professoras. Como informado por Bepdjá estas últimas se comprometeram em fazer o bolo de aniversário da aldeia e o material para fazê-lo deveria constar também na lista de compras. Takakmá, o outro professor indígena, programou a chegada das compras para o dia 31 de agosto, quando se iniciariam os preparativos para a festa. Ele e Bepdjá se comprometeram em serem os organizadores, tomando a frente na distribuição das tarefas e comandando as cerimônias de abertura e encerramento das festividades, mas com a condição de que todos que estavam ali presentes ficassem ao lado deles e ajudassem a animar as pessoas para o aniversário. Todos concordaram e se deu por encerrada a reunião. Dentro de alguns dias todos aqueles homens ali presentes partiriam para a cidade para fazer as compras, reinventando as caçadas coletivas que antecediam os grandes rituais mebêngôkre. ɷɷɷ

Tarde do dia 31 de agosto. O silêncio ensolarado e quente cobre a aldeia Môjkarakô. De repente, ouço um alvoroço de crianças correndo e gritando em direção à pista de pouso. Penso: será um avião? Passados alguns minutos logo percebo que estou enganado. É o caminhão da Funai, cujos roncos dos motores foram escutados com uma incrível antecedência pelas crianças. O caminhão está apinhado de gente e mercadorias. Perseguido implacavelmente pelas crianças, o motorista conduz o caminhão até a casa dos homens. Logo reconheço vários daqueles homens que estavam presentes na reunião. Eles começam a separar as compras das famílias que os acompanharam na viagem, daquelas que serão consumidas na festa. Diversos caixotes e fardos de


104 comida são dispostos no chão da Casa dos Homens. No dia seguinte à chegada dos alimentos, os organizadores do evento anunciaram no “boca de ferro” (o alto falante da aldeia) a programação dos trabalhos coletivos que seguia uma divisão de gênero e idade. As mulheres mais novas iriam pegar lenha para a produção da comida ritual, as mais velhas iriam limpar a aldeia e preparar a comida servida para os envolvidos nas atividades diárias. Os homens, por sua vez, divididos também em grupos etários iriam pescar e caçar para complementar a comida comprada na cidade. Durante este período de preparação, que durou cerca de cinco dias, os homens e mulheres se alternavam dançando e cantando ao nascer e ao pôr do sol. Antes dessas apresentações, os organizadores recolhiam os sacos de arroz, feijão e bolacha para distribuir porções de comida para as pessoas da aldeia engajadas no trabalho. Como me disse um dos organizadores, distribuir comida era uma forma de motivar as pessoas a participarem dos trabalhos coletivos para que elas começassem a se animar para a festa. Durante a distribuição de alimento alguns dos organizadores faziam discursos no “boca de ferro” exortando as pessoas que pegavam a comida a dançar e cantar também e, sobretudo, a trabalhar para a “comunidade”. Em um desses discursos, Bepdjá disse: Bom dia Môjkarakô. Nós estamos aqui hoje porque o aniversário da aldeia já está chegando. Vai ser uma festa grande (metoro ràjx). Mas é preciso que vocês ajudem. Sozinhos os organizadores não vão conseguir. Essa festa é de todos, têm que ser de todos. Nós fomos na cidade para comprar comida. Como vocês estão vendo, a comida já chegou. Ela é para que nós continuemos a ficar alegres. Tem que animar, tem que ficar alegre, assim a festa vai ser boa. Os cinegrafistas vão filmar, vão levar a imagem para fora e todos vão ver como Môjkarakô trabalhou direito, como as mulheres limparam a aldeia e como os homens conseguiram muita comida, fazendo uma festa bonita. Todos têm que se pintar, têm que colocar os enfeites, aparecer bonito para a festa. A festa vai começar no dia quatro. No fim da tarde vai ser a cerimônia de abertura. No outro dia começam os jogos e as brincadeiras. Depois tem premiação. No dia seis de setembro, dia do nosso aniversário, vai ter festa grande. Essa é a programação. Era isso que eu queria dizer para vocês. Bom dia Môjkarakô38.

Programação “Programação” é um daqueles termos que os Mebêngôkre escolhem não traduzir em suas falas cotidianas. Certamente foi aprendido do jargão dos funcionários dos órgãos indigenistas. Ele é utilizado frequentemente nas temporadas de preparação para um grande ritual seja ele de nominação ou não. Seu uso também é frequente na organização e participação de eventos fora da aldeia, 38

Todos as narrativas citadas neste capítulo e nos outros que compõem essa tese foram traduzidas da língua mebêngôkre para o português com o inestimável auxílio de Bepunu, a quem agradeço uma vez mais.


105 sobretudo, nos dias que antecedem as viagens para participar de reuniões da associação, para participar de eventos culturais em outros estados e até mesmo países, ou para simplesmente ir à São Félix fazer compras, principalmente, quando se é aposentado ou recebe algum salário por funções desempenhadas na escola, na farmácia, e mais recentemente no Projeto de Documentação. O termo é utilizado também nas sessões de trabalho coletivo na aldeia, nas sessões de pintura corporal feminina, nos treinos e jogos de futebol feminino e masculino, nas pescarias e caçadas, ao ponto de perceber, em determinado momento da pesquisa, que toda a tarefa coletiva deve ter uma programação prévia a ser transmitida não apenas aos que vão realizá-la, mas a toda comunidade, geralmente quando um dos organizadores do evento se dirige ao “boca de ferro” e a transmite para os moradores39. Sem exagero, eu poderia dizer que as pessoas de Môjkarakô dispendem boa parte de seu tempo e energia programando diversas cerimônias. No calendário ritual mebêngôkre a festa de aniversário era somente mais uma das diversas festas programadas durante o ano. Naquele período de estiagem em que eu estava no campo já havia sido realizada uma cerimônia de nominação Kwôre Kangô. Poucos dias depois de seu término ocorreu a reunião dos organizadores da festa de aniversário da aldeia. Findada a comemoração, as pessoas ainda encontraram fôlego para preparar uma cerimônia do dia da independência, com hasteamento de bandeira e execução do hino nacional brasileiro em língua mebêngôkre. E no fim do mês de setembro alguns se preparavam para participar da cerimônia de inauguração de uma sede da Funai em São Félix do Xingu, enquanto outros se preparavam para uma viagem à terra indígena Krahô, onde participariam da famosa Feira de troca de semente organizada por estes últimos. Esse atribulado calendário ritual poderia ser estendido ainda mais se considerássemos as cerimônias programados para o período das chuvas, que contavam com a execução de pelo menos mais um ritual de nominação, da recentemente apropriada festa de ano novo, dos jogos tradicionais e da participação na festa do dia do Índio em São Félix do Xingu. A essas cerimônias fixas poderiam ser somadas outras realizadas mais esporadicamente, quando por exemplo da visita de políticos e autoridades à aldeia ou da disputa de partidas de futebol com equipes de outras aldeias mebêngôkre. Deste modo, e sem exagero, posso dizer, como o faz Oliveira para os Xikrin do Cateté, que também para os habitantes de Môjkarakô fazer metoro (festa) é a principal preocupação das pessoas durante boa parte do ano (2003: 04). Defendendo uma aproximação do ritual com as atividades do dia a dia este autor afirma que entre os Mebêngôkre o ritual está incrustado no cotidiano, 39

Sobre a rápida dispersão de informações públicas entre os moradores de Môjkarakô, ver Madi (2011; cap. 3).


106 fornecendo uma “estrutura rítmica” não apenas para as cerimoniais em si, mas também para a realização de atividades cotidianas” (op. cit.: 12). Vidal também comenta que os rituais de nominação e iniciação acontecem paralelamente e “acompanham o ciclo anual de atividades de subsistência, durante a vida na aldeia ou durante a vida nômade, dando expressão ritual a estas atividades” (Vidal, 1977: 176; grifo meu). Esta estrutura rítmica, esta expressão ritual das atividades cotidianas, pode ser aproximada daquilo que os Mebêngôkre de Môjkarakô chamam atualmente “programação” e, mais do que isso, de sua constante publicização durante o período de preparação da cerimônia. Era isso que Bepdjá e outros organizadores faziam todas as manhãs e tardes quando a comida era distribuída. Publicizar a programação é uma forma de engajar diretamente as pessoas envolvidas nos eventos e também uma forma de motivá-las a participar das tarefas coletivas e dos rituais. É parte integrante da produção da socialidade entre os Mebêngôkre contemporâneos, assim como o é a própria distribuição de alimentos naquele e em outros contextos. A apresentação da programação, assim como a oferta de comida, são fundamentais para produzir o sentimento de felicidade, mencionado por Bepdjá em seu discurso, tão característico dos rituais mebêngôkre (Fisher, 2001; Oliveira, 2003). Um tal sentimento coletivo vai sendo construído aos poucos, a cada injeção de ânimo dos organizadores, cada tarefa coletiva executada, cada distribuição de comida no pátio da aldeia, cada pequena performance realizada ao nascer e ao pôr do sol, cada enfeite sobreposto ao corpo na hora de dançar e cantar. Todo esse passo a passo ritual é publicizado pelos organizadores da cerimônia – todo ele faz parte da “programação”. Neste sentido, a programação do ritual não se refere somente aos eventos que compõem a cerimônia, mas também às condições de produção coletiva do próprio ritual. A publicização cotidiana da programação oferece uma “estrutura de referência” para a realização das tarefas cotidianas necessárias a produção da cerimônia, oferecendo, como disse Vidal, expressão ritual para essas atividades. Deve-se dedicar também algumas breves palavras aos organizadores, chamados assim também em português. No caso da cerimônia de aniversário, os organizadores eram os dois professores indígenas, e mesmo que por traz dos dois existisse uma equipe de assalariados e pessoas influentes responsáveis por financiar a festa, eram eles que distribuíam as tarefas, anunciando-as publicamente a cada manhã dos dias que antecediam o aniversário. Os organizadores têm, assim, papel fundamental na programação da cerimônia. Pode-se mesmo dizer que eles configuram um novo papel cerimonial, similar àquele descrito por Vidal (1977) como o do líder cerimonial, que


107 conduz os cantos e danças no momento mesmo das cerimônias de nominação e antes dela, durante os ensaios. Mas os organizadores desses ritos contemporâneos, tal como a cerimônia de aniversário, não cuidam dos cantos e danças. Estes continuam a cargo de velhos respeitados por ser repositórios inesgotáveis de novas canções. Os organizadores são como os mestres de cerimônia, aqueles que recebem convidados ilustres, que convocam as autoridades a falar, que conduzem discursivamente o ritual. Atualmente, eles não trabalham nestes contextos sem seus inseparáveis caderninhos e sem seus microfones devidamente amplificados. Não se vê esse tipo de mestre de cerimônia nos rituais de nominação, mas tal como se vê na festa do aniversário, ele aparece na cerimônia de posse de novos caciques, nos jogos tradicionais, nos concursos da miss kayapó, nos desfiles de sete de setembro. De modo que este novo personagem cerimonial surge no bojo da apropriação de todas essas cerimônias dos kuben. Não por acaso os organizadores são sempre jovens mekranure (com poucos filhos) que desempenham alguma função assalariada de prestígio. Não apenas professores indígenas, mas também pastores formados na aldeia e em cursos na cidade. Talvez porque durante seu processo de formação participaram da organização de cerimônias similares junto aos kuben, sendo inclusive os responsáveis por levá-las à aldeia para serem executadas por seus moradores. O organizador configura, assim, um novo papel cerimonial que até onde pude perceber não é transmitido como privilégio. Sua assunção depende, antes, das qualidades dos homens jovens que ocupam essa posição enquanto pessoas que conviveram com os kuben e deles apreenderam conhecimentos sobre suas cerimônias. Em Môjkarakô, um dos organizadores de maior prestígio era Bepdjá. Além de ser professor indígena, era filho do cacique Kaikware. Como veremos a frente, Bepdjá fez parte da equipe organizadora de várias edições da Festa do dia do índio, realizada em São Félix do Xingu pela Secretaria de Educação do município. Nos dias de festa na cidade, Bepdjá se revezava na locução do evento em língua nativa com um outro professor indígena. Nas festas que comandava na aldeia, Bepdjá colocava todo esse conhecimento em prática, animando os moradores com os novos kukràdjà trazidos da cidade.


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Figura 8: Bepdjá, o organizador.

No aniversário de quinze anos de Môjkarakô, Bepdjá era o organizador principal. Era ele o mestre de cerimônia a conduzir todos os dias de festa. Mas antes de vê-lo em atuação no momento ápice da cerimônia, é preciso retornar a um dos estágios fundamentais dos rituais Mebêngôkre: os ensaios, a ante-cena ritual.

Ensaios “Ensaio” é outra dessas palavras apropriadas do português pelos contemporâneos Mebêngôkre. Tal como “programação” e “organizador”, ela é utilizada constantemente no período de preparação de grandes festas. A palavra metoro, que além de significar festa significa também dança ou dançar, pode ser utilizada como um sinônimo para ensaio, sobretudo, quando acompanhada do adjetivo grire (pequeno). Os ensaios são, como dizem os Mebêngôkre, metoro grire, “pequenas festas”. E de fato, nelas estão presentes como que em escala reduzida todos os elementos maximizados no ami a pran, o momento ápice do ritual: a oferta de comida, o uso de enfeites e pintura corporal, a execução de canções e passos de dança, o sentimento compartilhado


109 de felicidade. O uso dos enfeites e da pintura corporal é particularmente esclarecedor desse aspecto escalar dos rituais mebêngôkre. Na festa de aniversário, por exemplo, uma vez que os organizadores comunicaram publicamente para a aldeia que ela iria ocorrer – concretizando este fato com a distribuição de alimentos – homens e mulheres de variadas idades passaram a se revezar ao nascer e ao pôr do sol na realização dos ensaios. Nos primeiros dias os homens cantaram e dançaram sem pintura corporal e portando somente um enfeite de fibra verde de inajá na cabeça. As mulheres, do mesmo modo, se portavam suas calcinhas coloridas – esse elemento contemporâneo do look ritual mebêngôkre –, não estavam pintadas e não portavam seus inúmeros enfeites de miçanga. Dançavam e cantavam vestindo apenas uma bandoleira simples feita de embira. À medida que os dias transcorriam e que o ânimo das pessoas aumentava, os dançarinos passaram a se apresentar gradativamente mais enfeitados. Primeiro, utilizando os mesmos adornos singelos mencionados acima, mas com os corpos devidamente cobertos com grafismos. Em seguida, tais adornos foram descartados e as pessoas passaram a cantar e dançar com alguns poucos enfeites de miçanga e penas. No caso dos homens, as inconfundíveis braçadeiras de miçangas (padjê) começavam a aparecer sobre os corpos pintados, em conjunto com os meaká, as também inconfundíveis diademas de penas de arara, papagaio e rei congo que agora substituíam os enfeites de fibra de inajá. As mulheres, por sua vez, com o corpo devidamente pintado de preto em contraste com a calcinha colorida, portavam agora não as bandoleiras de envira, mas as pesadas bandoleiras monocromáticas de miçanga que cobriam seus corpos transversalmente. Foi somente na véspera da cerimônia de abertura das festividades que as pessoas apareceram paramentadas com uma grande diversidade de enfeites. A véspera das cerimônias é como que um grande ensaio geral e o clima de animação das pessoas toma o ambiente, quase como no dia da grande festa. Neste contexto não se canta e dança somente ao nascer e ao pôr do sol. O ensaio percorre toda a manhã e depois de uma pausa para a distribuição de alimentos e seu consumo, seguida de banho no rio e um breve descanso, ele é retomado no meio da tarde seguindo até o início da noite. Assim como o crescente aumento no uso dos enfeites, com o passar dos dias, os ensaios se prolongam: as “pequenas festas” se dilatam, se desdobram, até atingir o ápice e ocupar todo o tempo dos participantes. Nestes contextos, o uso crescente dos artefatos e da pintura corporal pode ser entendido como um índice do também gradiente sentimento de felicidade que se cria durante os ensaios e os preparativos para a cerimônia. O prolongado uso dos enfeites é um índice do “ânimo inspirado”


110 (Overing, 1991: 32), necessário à produção das atividades coletivas desempenhadas durante a preparação dos rituais. Sua agência e a abdução que ela proporciona visa produzir coletivamente o sentimento de felicidade (kinhtire), ou para falar uma vez mais com as palavras de Overing, a sensação compartilhada de “moral alto”. Estar enfeitado é, assim, um índice de felicidade. Como afirma Fisher, “ver ornamentos rituais publicamente apresentados e propriamente separados e ordenados na ocasião de uma cerimônia de nominação leva a um persuasivo sentimento de felicidade” (2001: 55). Esta última, condição sine qua non para a realização exitosa da festa. Interessante notar, neste sentido, que a palavra kinh (feliz) pode ser utilizada em um contexto festivo para designar a beleza dos artefatos utilizados pelos participantes da cerimônia. Assim, pode-se dizer me aká kinh (diadema bonita) ou mesmo, me kunhêre kinh (enfeites bonitos) (Salanova, s/d). Nestes contextos de fala, kinh (feliz) substitui mejx, o termo mebêngôkre para beleza, como que atestando em termos linguísticos a intricada relação entre beleza e felicidade. Ademais, pelo menos desde os trabalhos de Vidal sobre a pintura corporal mebêngôkre, sabe-se que estar pintado é o modo moralmente correto (kumrenx) e bonito (mejx) de se apresentar socialmente (1992: 144). As sessões coletivas de pintura corporal, realizadas quinzenalmente por homens e mulheres independentemente da realização de rituais, são também um índice da disposição das pessoas para o trabalho e para as tarefas coletivas cotidianas. Tanto é que, como já demonstrado por Vidal, pessoas em situações de liminaridade, isto é, que estão respeitando algum tipo de resguardo (angri), não participam das sessões de pintura corporal e tampouco dos rituais. Como veremos com mais detalhe no capítulo cinco, para essas pessoas a pintura corporal possui outra eficácia, relacionada ao trabalho de reconstituição da corporalidade afetada, por exemplo, pela morte de um parente próximo, ou pelo nascimento do primeiro filho ou neto, ou ainda pela participação em atividades guerreiras que tenham o homicídio como decorrência. De qualquer modo, a pintura corporal aplicada de um modo distinto dos grafismos festivos e cotidianos atua como uma forma de preparar e proteger o corpo da pessoa para que paulatinamente ela retorne às atividades coletivas e possa com o tempo recuperar sua saúde, sua beleza e sua alegria ao tomar parte nas sessões coletivas de pintura corporal ou mesmo nas atividades coletivas como os ensaios que antecedem uma cerimônia. Outro elemento notável dos ensaios é a criação do repertório performático a ser exibido no ritual, tanto no que tange à produção de um repertório de canções e passos de dança, quanto no que diz respeito ao próprio repertório gráfico da pintura corporal e dos enfeites, bem como dos designs destes últimos. No que tange às canções, Bepunu me disse certa vez que são os wayangá (xamãs) os


111 responsáveis por ensiná-las durante os ensaios. Em uma das sessões de trabalho do projeto de documentação, estávamos editando um filme sobre a festa menire bjôk realizada na aldeia Môjkarakô em janeiro de 2010, quando ocorreu o seguinte diálogo: André: São as mulheres que fazem as músicas? Bepunu: Não. Elas vão até os wayangá como o Mrupati, Kôkôbá, Moté, Apêxt, Kenmy [ os principais xamãs de Môjkarakô]. São eles que dão as músicas para elas. Eles que vão ensinar, todo tempo, antes da festa. Todo dia de noite e de manhãzinha eles cantam com as mulheres, ensaiando. Porque no menire bjôk tem música antiga. Os pajés vão repetindo, repetindo com as mulheres até completar as músicas novas. Aí depois deixa a antiga e só canta a nova. André: Então é o pajé que faz as músicas? Bepunu: Não. Ele canta! Ele sabe qual é o animal que canta essa música, ele aprende com esse bicho. Pode ser tatu, porcão, peixe, jabuti ou macaco. Todos têm musica e só o pajé que sabe cantar. Aí ele passa para as mulheres. Quando uma mulher aprende a música, ela junta todas as outras e ficam cantando, cantando, todo dia até aprender. Aí todas as mulheres já sabem e já pode cantar junto.

Comentando informações semelhantes a essas formuladas por Bepunu, Fisher afirma que para os Mebêngôkre “as canções não são apenas parte de um roteiro litúrgico a ser apresentado por uma congregação, elas são também os meios pelos quais um grupo de pessoas pode constituir-se ele mesmo como uma congregação ritual” (Fisher, 2001: 120). O mesmo se pode dizer sobre os passos de dança. Estes estão estritamente vinculados às canções e tal como elas são aprendidos durante os ensaios. Durante a edição das filmagens da festa menire bjôk Bepunu também comentou os passos de dança. André: E os passos de dança, são os pajés que criam também? Bepunu: Não. Aí já é a mulher que faz. Já é menire kukràdjà (conhecimento feminino). Quando uma mulher começa a fazer o movimento lá na frente a outra que está atrás já sabe. Todo mundo já sabe, já ensaiou antes. Mas é através da música também. Cada música é um movimento. Tem uma que é assim reto [coloca o braço para cima] e outra que é assim com os dois braços mexendo. Só com a música elas já sabem como é que é. Na perna também. Só com a música elas já sabem qual batida de pé. Se vai ser rápida, mais devagar ou mais lento. Quando não faz tudo junto [sincronizado], fica punure (feio), ninguém gosta. Se filmar, não pode mandar para os parentes. As mulheres que sabem muito bem tem que ensinar para as outras. Durante o ensaio ela fala: “na hora da festa tu tem que fazer assim, mexe assim”. Tem uma dança que chama kumaken que é uma viradinha. As mulheres da frente viram e voltam e todo mundo atrás tem que fazer junto, depois que elas fizeram. Essa é muito difícil, tem que ensaiar muito para fazer direito na hora da festa.

Os ensaios, tal como a “programação”, são não apenas elementos presentes nas cerimônias, mas também formas de constituir isso que Fisher denomina congregação ritual. Outra forma de uma tal constituição, não comentada pelo autor, diz respeito à produção dos enfeites e das pinturas corporais. Como estas são tarefas eminentemente femininas, é durante os ensaios que as mulheres combinam quais enfeites e grafismos irão produzir para usar durante a festa grande e nos dias que a antecedem. Como destacado na literatura, existem enfeites que só podem ser usados por


112 determinadas pessoas que os receberam junto com os nomes de seus ngêt e suas kwatui. A esta classe de objetos os Mebêngôkre denominam, como se sabe, nekrêjx. Mas não é sobre este tipo de enfeites que as mulheres conversam durante os ensaios. Elas falam, decidem, opinam sobre enfeites de uso comum, cujas cores, designs e grafismos serão combinados por elas de acordo com distinções etárias. As mekrãre, mulheres que possuem filhos e netos, produzem seus próprios enfeites e os de seus maridos, localizados em um grupo etário similar ao de suas esposas. O mesmo ocorre com as mulheres que possuem apenas filhos. As mekurerere, moças púberes ainda sem filhos, produzem e decidem sobre seus próprios enfeites e os de seus irmãos da mesma classe etária. Deste modo, não é raro observar esses diferentes grupos de mulheres conversando entre si durante os ensaios nos intervalos das sessões de canto e dança. Do mesmo modo, observa-se suas reuniões diárias para produzir tanto os enfeites de uso coletivo, quanto os grafismos que cobrirão seus corpos e os de seus maridos. Essa classe de objetos de uso comum, assim como os grafismos da pintura corporal, é reinventada a cada nova cerimônia. O período de ensaios é assim o momento propício para desfazer os enfeites do último ritual e produzir os novos, em um movimento semelhante ao que ocorre com as canções e os passos de dança. Por isso, esses contextos são momentos de intensa criatividade coletiva. Novos cantos, novos passos de dança e novos enfeites e grafismos são criados pelos participantes, que se reúnem exibindo-os paulatinamente durante os ensaios. Para manter o contínuo processo de criação em uma tal ordem crescente, é dito que os organizadores da cerimônia devem oferecer pagamentos com comida para os participantes. Como afirma Fisher, assim eles devem proceder se desejam “que os ensaios continuem de modo consistente (...) possibilitando que o clímax ritual ocorra” (2001: 120). Na festa de aniversário, assim como em outras cerimônias descritas e analisadas neste trabalho, os organizadores não são, como nas clássicas cerimônias de nominação, os pais das crianças a serem honradas e cujos nomes, prerrogativas e objetos cerimoniais, previamente transmitidos, serão confirmadas na ocasião. Como vimos, os organizadores eram todos homens assalariados que, como em um gesto de reciprocidade para com a comunidade, se propuseram a não apenas organizar a festa, mas também financiá-la com seus recursos próprios. Uma tal configuração torna ainda mais clara uma das características notáveis dos rituais mebêngôkre que diz respeito à criação de coesividade, construída paulatinamente durante os ensaios. Nas cerimônias de nominação, os pais das crianças solicitam aos seus parentes putativos ou classificatórios que participem das atividades de produção do ritual, como as caçadas coletivas, a coleta de lenha para a


113 preparação da comida ritual, a limpeza da aldeia dentre outros (Turner, 1965; Vidal, 1977; Gordon, 2006; Lea, 2012). Durante estas atividades os pais das crianças são os responsáveis por fornecer alimento para as pessoas, tal como ocorre, como vimos, durante os ensaios. No caso da cerimônia de aniversário, tem-se uma maximização desses eventos. Os organizadores se esforçam para animar, ou mesmo seduzir todas as pessoas da aldeia a participar da festa, cujo homenageado é a própria comunidade e não essa ou aquela criança. Quando comparada às cerimônias de nominação, a festa de aniversário torna-se uma ocasião de celebração não de crianças, cujos nomes serão confirmados e cuja beleza será outorgada pela realização da festa. O aniversário da aldeia é um rito que visa embelezar ritualmente não uma ou diferentes pessoas, mas a aldeia inteira. O que está sendo celebrado é o êxito daqueles dois grupos de pessoas que passaram a conviver depois da fundação da aldeia. Tanto que, como veremos à frente, o próprio rito final da festa, seu momento ápice, atualiza na cena ritual o encontro entre os dois chefes que selou o destino deles e de seus seguidores. A festa de aniversário é, assim, um contexto de partilha da beleza e da felicidade. A diferenciação que ela impõe não é aquela dos rituais de nominação, onde se distingue pessoas comuns (mekàkrit) de pessoas belas (mereremejx). Para compreendê-la, deve-se ir além das diferenças internas. Aqui, trata-se de ser coletivamente belo para outros Mebêngôkre de outras aldeias, pois embora eles não tenham sido convidados para esta festa, as imagens filmadas dessa cerimônia chegarão até suas aldeias contidas em DVDs, tão logo ela termine. Por isso é preciso ensaiar com precisão. Por isso, torna-se necessário criar o ânimo nas pessoas durante os ensaios, distribuindo comida para todos, produzindo novos enfeites e novas canções. Por isso, enfim, a importância que os Mebêngôkre concedem à ante-cena ritual. Como afirma Fisher (2001: 120) “nenhuma coerção de qualquer tipo pode ser usada para forçar a participação” das pessoas nos rituais. Elas devem ser continuamente motivadas a participar tanto da festa em si, quanto dos ensaios, sem os quais o ritual não aconteceria. Isso fica particularmente evidente na fala de Bepdjá reproduzida acima. Ao invés de ordenar que as mulheres limpem a aldeia e que os homens cacem e pesquem, o organizador maneja seu discurso utilizando a presença das câmeras e a circulação das imagens produzidas por elas como uma forma sútil de informar a comunidade sobre as tarefas coletivas a serem realizadas para a produção de uma festa bonita. Não há coerção em seu discurso. Trata-se, como afirmou Overing para outros contextos etnográficos, de “uma política de manejo do ânimo, e não do estabelecimento de instituições de hierarquia e de relações de subordinação e de dominação”. (1991: 14). Sobre os ensaios e os


114 trabalhos coletivos presentes na programação do evento e que concedem a ele sua “estrutura rítmica” crescente, pode-se dizer finalmente que, tal como entre os Cubeo, os Piaroa e outros povos ameríndios, eles “requerem ânimo inspirado” (Goldman apud Overing, 1991: 13)40. Esta constatação nos encaminha para uma primeira questão: estariam os Mebêngôkre de Môjkarakô criando comunidade ao produzirem ininterruptamente os seus rituais? Uma descrição densa (Geertz, 1973) da festa de aniversário da aldeia oferece algumas possíveis respostas para esta questão.

Abertura Dia 04 de setembro. Pouco antes do amanhecer os homens se reúnem no ngábe (casa dos homens) para cantar. Com o dia ainda raiando, um dos organizadores da cerimônia do aniversário adianta no boca de ferro a programação do dia para a comunidade. Bom dia Môjkarakô. Hoje nós estamos felizes, porque o nosso dia está chegando. Os homens já cantaram. Daqui a pouco são as mulheres. Vamos cantar e dançar muito hoje. Porque nós continuamos juntos. De tarde, vai ter a abertura na casa dos guerreiros. Vamos animar pessoal, o nosso dia está chegando. Quem já acordou pode vir pegar a comida. De tarde vai ter mais. Amanhã nós, os organizadores, vamos pescar. Quem quiser pode vir também. Amanhã de tarde vai ter futebol masculino e feminino. Vai ser mekranure contra menoronyre. Para quem ganhar vai ter troféu. É isso que eu queria falar para vocês. Bom dia Môjkarakô.

As mulheres foram saindo lentamente de suas casas para pegar as porções de comida que cabiam a suas famílias. Pouco a pouco o sol ia subindo e a animação das pessoas parecia acompanhá-lo. Às nove da manhã, a casa dos homens já estava cheia. Os homens de todas as idades cantavam e dançavam e, vez por outra, cruzavam em bloco o pátio da aldeia, davam a volta na casa dos homens e retornavam a ela. As mulheres saíam em duas filas de duplas de duas casas distintas. Trilhando um caminho sinuoso no pátio, os dois grupos se encontravam e completavam juntos o percurso até a casa dos homens. Os cinegrafistas acompanhavam meticulosamente essas performances. Ao meio dia, grandes panelas de arroz, feijão e peixe cozido foram depositados na casa dos homens. Os grupos se formaram para a refeição. A satisfação das pessoas diante da farta comida era notória. Depois da refeição as pessoas foram tomar banho no rio e descansar para 40

Sobre o ritual como produção de felicidade, ver Lagrou (2007), para os Kaxinawa (onde o canto ritual se chama benimai, alegrar, os cantos servem para alegrar as estrelas, alegrar todos os donos das substâncias utilizadas no ritual); Melatti (1978) e Morim de Lima (2010), para os Krahô (onde o termo para festa, amnikhĩ, quer dizer literalmente “alegria”); Guerreiro Júnior (2013), para os Xinguanos; e, finalmente, Fisher (1998; 2001) e Oliveira (2003), para os Mebêngôkre.


115 cerimônia de abertura que aconteceria à tarde. Por volta das quatro da tarde já haviam pessoas na casa dos homens. Três bandeiras foram hasteadas no pátio, à frente do ngábe. Ao centro estava a bandeira da aldeia. Do lado direito uma bandeira do Brasil e do lado esquerdo uma da Funai. Alguns jovens contemplavam os mastros e comentavam como estavam bem firmes. Lentamente, cada um dos homens da classe de idade dos mekrãre, foram saindo sozinhos e alternadamente de suas casas até chegar à casa dos homens. Cada um deles executava uma performance que consistia em percorrer a longa distância entre as casas da aldeia e a casa dos homens cantando e dançando e empunhando uma arma específica que poderia ser uma borduna, um conjunto de flechas, ou mesmo uma espingarda. As mulheres repetiam seu desfile matutino e quando adentravam ao ngábe, formavam com os homens e crianças um grande bloco de dançarinos. Eles saíam em formação da casa dos homens e faziam uma grande volta até pararem em frente aos mastros com as bandeiras. Bepdjá, o mestre de cerimônia, tomou a palavra. Boa tarde Môjkarakô. Nós estamos aqui para a abertura da nossa festa. Os caciques por favor fiquem aqui na frente. Antes de passar a palavra aos caciques eu gostaria de lembrar das pessoas que ajudaram a fazer essa festa. O cinegrafista Pawire. Ele contribuiu com a organização, por favor batam palmas para ele. Outro cinegrafista Bepunu, também ajudou, palmas por favor. Agora os auxiliares de serviços gerais. Atydjóre, Tesséia e Kôkômoti. Todos eles deram sua contribuição, palmas por favor. Vou falar também dos professores indígenas, Takàkma e Bepdjá, eles também contribuíram, palmas para eles. As professoras da aldeia, elas vão fazer o bolo. Palmas para elas por favor. Na nossa festa vai ter esporte, vai ter brincadeira. Nós conseguimos dois troféus, quem conseguiu foi o André, o antropólogo que trabalha para nós no projeto do Museu do Índio. Palmas para ele por favor. Outras pessoas contribuíram conseguindo as coisas na Funai e na prefeitura. Eu vou falar deles também. Kokuí, Kôkôranty e Benjamim. Palmas para eles por favor. Todas essas pessoas contribuíram para a nossa festa. Nós estamos aqui hoje para comemorar o nosso aniversário. Dia seis vai ser a festa grande, vai ter bolo, vai ter refrigerante para todos ficarem muito felizes. Dia seis, nós vamos receber o benadjwôro (chefe) Akjabôro. Ele está vindo diretamente de Brasília para a festa. A festa vai ser grande. Agora vou chamar os caciques e as lideranças que estão aqui para falar um pouco. Quem vai falar hoje é só o cacique Kaikware. No dia seis, todos vão falar.

Kaikware dá dois passos à frente se destacando da fila onde estão Moté e Pinkà, os outros dois caciques. Ergue o corpo, respira fundo e inicia o seu discurso. Não sei por que motivo técnico o discurso de Kaikware não teve o áudio captado pela câmera do cinegrafista indígena, impossibilitando sua tradução em momento posterior. No momento em que ele falava anotei o que pude com meu conhecimento rudimentar da língua mebêngôkre e meses depois coloquei o resultado de minhas anotações sob o crivo de Bepunu para tradução. Com muito esforço e criatividade ele traduziu, ou melhor, recriou a fala de Kaikware do modo como se segue. Boa tarde a todos. Foi no dia seis que nós chegamos nessa terra. Eu vim primeiro para fazer roça. Eu vim com Tunhô, Kajkyx, Katamti, Pinkrãjaroti. Pinkrãjaroti era meboktire (criança), eu trouxe ele


116 para ele aprender. Hoje ele está grande como muitos de vocês. Hoje nós estamos comemorando o dia que eu e Akjabôro nos encontramos com as nossas turmas. Hoje nós estamos fortes e felizes nesta terra. Nós estamos muito bem. Eu sou benadjwôro (chefe). Por isso eu sempre falo que não pode brigar em festa (me kuté amio bikenh ket). Não pode falar mal dos outros, fazer fofoca. Os homens e as mulheres tem que ser bons uns com os outros. Falar bem, para ficarmos todos juntos. Porque hoje é o nosso dia, o dia que chegamos nessa terra. Estamos felizes e com saúde. A festa vai ser boa. Eu sou benadjwôro e estou trabalhando para vocês continuarem felizes e com saúde. Era isso que eu queria dizer para vocês. Boa tarde para todos.

As pessoas aplaudiram o discurso de Kaikware. Quando Bepdjá assume novamente a condução da cerimônia, o áudio retorna inesperadamente. Temos, portanto, a tradução literal de sua fala. Ele diz: Vocês ouviram a fala boa (kaben mejx) do cacique. Ele falou que a festa vai ser grande. Ele está muito feliz. Agora nós vamos todos comer bolacha e beber suco aqui na casa dos homens. Os organizadores estão trazendo a comida. Enquanto isso vocês vão até a casa de vocês, peguem os seus copos e retornam para cá. Não pode ter confusão na hora da comida. Todos vão ficar sentados e os organizadores vão distribuir primeiro para as crianças, depois para os maiores. A festa está só começando. Amanhã vão começar as competições e as brincadeiras. No dia seis vai ser a festa grande, o benadjwôro Akjabôro vai chegar. Todos vão ficar felizes. É só isso, vamos bater palmas porque nós todos estamos felizes.

Enquanto as crianças foram até as suas casas buscar os copos, as mulheres e os homens formavam os blocos de pessoas para dançar o Kwôre Kangô. Quatro grupos de pessoas se formaram respeitando diferenças de gênero e idade. Ao centro, os homens da categoria dos mekrãre estavam abraçados lado a lado, formando uma longa fila de corpos enfeitados. Eles avançavam para frente e para trás, no que eram acompanhados por uma fila de meninas novas dispostas de frente para eles. Quando os homens se movimentavam para frente, as meninas andavam para trás e quando estas avançavam, os homens recuavam. Atrás dos homens, um grupo de mulheres mais velhas acompanhavam seus movimentos, enquanto atrás das meninas um grupo de rapazes seguia os passos das moças, para frente e para trás. O resultado de uma tal disposição era um constante vai e vem sincronizado das quatro filas de pessoas, que vez por outra giravam de modo também coordenado. As crianças que retornavam com seus copos nas mãos formavam pequenos blocos atrás dos homens e das mulheres. As pessoas permaneceram dançando por um longo período. Quando já estava para anoitecer, os organizadores chegaram à casa dos homens com um grande caldeirão repleto de muitos litros de suco e caixas de bolacha de água e sal. As crianças estavam sentadas em círculo em torno da comida e haviam dispostos seus copos coloridos no chão. Os homens e mulheres estavam sentados em volta deles. Os organizadores, pacientemente distribuíam as bolachas e enchiam os copos das pessoas. O primeiro dia de festa chegava ao fim com esta distinta refeição coletiva.


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Parabéns [Entre os Kayapó] todas as festas têm por característica comum a de envolver a comunidade inteira ou, pelo menos, todos os homens e todas as mulheres. Todos comungam da mesma atitude espiritual básica, que é a sensação alegre e animada de fazer uma festa e viver horas e dias de intensa alegria. (Lukesch, 1976: 289).

Manhã do dia seis de setembro. A cena da grande festa está sendo montada. O ngábe está cheio de homens enfeitados. Os organizadores se movimentam rapidamente, cruzam o pátio da aldeia e retornam conversando entre si. Pelo que entendi estavam conversando sobre como vão preparar a recepção do cacique Akjabôro que está chegando de avião da cidade. Enquanto os organizadores conversavam, as professoras (não indígenas) e a enfermeira traziam um grande cartaz colorido onde se podia ler a seguinte inscrição: Môjkarakô nhõ anati ne ja mexjkumrenh ajã amexj be 15 (Môjkarakô hoje é o seu dia, parabéns pelo seu aniversário de quinze anos). Elas traziam também balões coloridos. Dois rapazes decoravam os mastros das bandeiras com palhas de coqueiro. As professoras amarravam as bexigas coloridas na palha e penduravam o cartaz entre os dois mastros adornados. De longe se podia ver dois rapazes carregando uma mesa com um grande bolo de aniversário (de cinco andares!), com uma enorme vela verde com a forma do número quinze. Os cinegrafistas acompanhavam de perto o longo trajeto percorrido pelos rapazes. Estes o fizeram com grande cuidado, até colocarem a mesa à frente de onde estava o cartaz. Outra mesa é colocada ao lado. Dezenas de garrafas de refrigerante são alinhadamente dispostas nessa mesa. As professoras solicitavam fotos ao lado do bolo e os homens que estavam sentados em suas cadeiras no ngábe levantavam-se para admirar a beleza do “altar” montado pelas professoras. Um deles não conteve a animação e soltou o primeiro verso de uma canção, batendo o ritmo com pé no chão e fazendo movimento de dança. O sentimento de ânimo deste homem contagiou os outros que o seguiam formando um grande bloco de dançarinos. Do outro lado da aldeia duas longas fileiras de mulheres saíam da casa da esposa do cacique Akjabôro. Os cinegrafistas corriam pra filmá-las. As professoras admiravam, enquanto os homens seguiam dançando. Um dos organizadores pegou o microfone e anunciou: “A festa está bonita. Todos estão dançando e cantando. Todos estão felizes. Agora pode dançar o kwôre kangô. Daqui a pouco o cacique grande está chegando. Nós estamos preparando a chegada dele. Muito Bom. Vamos animar pessoal”.


118 Enquanto os homens e mulheres tomavam a posição do kwore-kangô, os organizadores reuniam dezenas de crianças devidamente enfeitadas para compor um longo corredor de recepção para o cacique Akjabôro. As crianças foram dispostas em duas longas filas que iam da casa dos homens até a entrada da escola, esta última próxima à pista de pouso.

Figura 9: Crianças aguardam a chegada do cacique Akjabôro durante a festa de aniversário da aldeia Môjkarakô.

Diante da pista estavam posicionadas três meninas e um menino muito mais enfeitados que as demais crianças. Portavam o longo diadema krôkrôti e os pesados braceletes, bandoleiras e colares de miçangas coloridas. Os organizadores se referiam às três meninas como as “rainhas” que iriam recepcionar o cacique e conduzi-lo até ao pátio central. Uma delas portava uma tiara de miçanga com o nome do chefe.


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Figura 10: Rainhas esperam a chegada do cacique Akjabôro durante a festa de aniversário da aldeia Môjkarakô.

Enquanto isso na casa dos homens o kwôre kangô corria solto. Blocos de homens e mulheres abraçados iam um em direção ao outro, cantando e marcando o ritmo com firmes batidas de pé. As pessoas dançavam alegremente, esperando o cacique chegar, o que não demorou muito para acontecer. Um dos organizadores anunciou no microfone: “O cacique está chegando. Vocês podem ouvir o barulho do avião”. A fala do locutor animou ainda mais as pessoas. Os cinegrafistas corriam até a pista de pouso para filmar a chegada do cacique. O avião cortava o céu de Môjkarakô e se aproximava da cabeceira da pista. De lá era possível ouvir o som dos dançarinos no pátio da aldeia. Akjabôro saiu do avião acenando para as professoras que foram ver sua chegada. Estava devidamente vestido para a ocasião. Portava um meaká na cabeça, além de colares, bandoleiras e braçadeiras de miçanga. Seu relógio reluzia ao sol do meio dia. Akjabôro, sorridente, foi recepcionado pelo cacique Pinkà, que o cumprimentou com um abraço e dando-lhe as mãos o levou até onde estavam as “rainhas”. Uma mulher se aproxima. Akjabôro a cumprimenta e a mulher chora copiosamente o choro cerimonial mebêngôkre. Outras duas mulheres chegam e choram também.


120 Akjabôro, agora está sério, impassível diante das mulheres. Bepdjá se aproxima enquanto as mulheres vão contendo o choro. Akjabôro acena para que ele espere. As mulheres se retiram e Akjabôro pede a uma delas que tome conta de sua bagagem. Bepdjá cumprimenta Akjabôro que já está novamente sorridente. Ele o posiciona entre as duas “rainhas” que o irão conduzir de mãos dadas até o pátio. Atrás segue Pinkà com as outras duas “rainhas”. As cenas que se seguem são expressivas. Akjabôro está visivelmente emocionado. As rainhas o conduzem por entre as filas de crianças que o saúdam. No pátio, os homens e mulheres se posicionam de frente para o bolo e cantam e dançam dando boas vindas para o chefe. Kaikware está ao centro e de frente para o público contempla a chegada daquele com o qual se juntou há quinze anos atrás para construir a aldeia. Quando Akjabôro chega, enfim, ao pátio, conduzido pelas rainhas e seguido pelas crianças, os dois se olham de frente emocionados. Como que revivem o primeiro encontro que selou a trajetória daquelas pessoas ali reunidas. Em um gesto de reafirmação desses laços os dois chefes se abraçam efusivamente sob os aplausos, também efusivos, da congregação ritual. Enquanto isso, Bepdjá monta a cena do parabéns. Primeiro, organiza os quatro caciques atrás do bolo. Depois dispõe duas rainhas uma em cada ponta da mesa e as outras duas um pouco mais à frente. A cena está montada e os moradores, de frente e ao redor do bolo, continuam dançando e cantando por um bom tempo. Novamente ouve-se a voz do locutor ao microfone anunciando a execução do hino da aldeia. As pessoas vão parando lentamente de cantar enquanto os primeiros acordes do hino saem da caixa de som. As pessoas e, sobretudo, as crianças começam a cantar as seguintes palavras: Hino de Môjkarakô41 (Autor: Mokuká Kayapó) 1 ME BA KINH KUMRENH (2X) Nós todos estamos felizes de verdade (enfático) MÝKAM NE ME BA KINH Porque nós estamos felizes? MÔJKARAKÔ AMIRIN NE KUMÉX Muita gente está aparecendo (nascendo) em Môjkarakô 41

Um primeira versão da tradução do hino foi feita por Mokuká em uma sessão de trabalho do Projeto de documentação. Esta versão foi posteriormente trabalhada por Bepunu, Bepdjá e Takàkma, os dois últimos professores indígenas.


121 BÀ PÝTARA KADJÝ Defendemos e preservamos a floresta NGÔ PÝTARA KADJÝ Defendemos e preservamos os rios PÝKA PÝTARA KADJÝ AMIRIN Defendendo nossas terras continuaremos existindo [Refrão] MÔJKARAKÔ (3X) AMIRIN NE KUMEX Muita gente está aparecendo (nascendo) 2 ME BA TYX KUMRENH (2X) Nós somos fortes de verdade MÝKAM NE ME BA TÝX Porque nós somos fortes? MEBÊNGÔKRE AMIRIN NE ARIBA Mebêngôkre continua existindo (aparecendo, nascendo) ME BENJADJWYRY KUNÎ Todos temos nossos líderes PÝKA KUNÎ KÔT ME KUNI Todos vivemos na mesma terra MEBÊNGÔKRE AMIRÍN NE ARIBA Mebêngôkre continua existindo (aparecendo, nascendo) MEBÊNGÔKRE MÉ BA KUNÎ Todos nós somos Mebêngôkre PÝKA KUNI KÔT AMIRÍN NÉ ARIBA Todo o nosso território continua existindo ɷɷɷ


122 Ao fim do hino as pessoas aplaudem efusivamente e gritam vivas à aldeia. A voz do locutor novamente é ouvida: “Parabéns Môjkarakô pelo seu dia. Agora vamos cantar o parabéns”. Incentivados por Luzia, uma das professoras, crianças e adultos cantam o tradicional “parabéns para você” em português. Ao fim todos entoam um grande viva à aldeia: “Viva Môjkarakô!!! Viva!!!”. Bepdjá, novamente toma a palavra.

Bepdjá: Muito bom. Hoje nós estamos reunidos porque faz quinze anos que nós nos encontramos. A festa está muito bonita e quero agradecer a presença de todos. Essa festa é para vocês. A hora de comer o bolo já está chegando. Mas antes, vou chamar os caciques para falar um pouquinho para vocês. Agora vamos ouvir o cacique Pinkà. Pinkà: Bom dia. Hoje, o nosso aniversário (pyka nhõ akati) chegou. Eu fiquei muito feliz com a dança. Tem que juntar as pessoas para a festa ficar bonita. Assim que eu gosto. Tem que continuar assim, porque tem muita comida aqui. Hoje a aldeia está crescendo. Nós sofremos muito para chegar até aqui. Todo o dia eu estou falando para vocês, para viver com saúde, em paz. É isso que eu estou falando para vocês. Um bom aniversário para todos. Bepdjá: Muito bom. Obrigado cacique. Agora vamos chamar o cacique Kaikware. Ele, que junto com Akjabôro trouxe todos nós para essa terra. Por favor cacique a fala é sua. Kaikware: Hoje é o nosso aniversário (guai ba nhõ akati). Foi nesse dia que eu escolhi essa terra e me encontrei com Akjabôro. Amanhã é outro dia importante, é dia sete de setembro. Eu estou avisando para vocês. Por causa de momentos como esse que essa aldeia acontece. Ela tem que ser a aldeia mais organizada, tem que ser a aldeia mais bonita, para a gente viver em paz, com saúde. Tem que ouvir as lideranças (ouvir quem sabe falar) porque hoje é o aniversário da aldeia. Não pode falar mal das outras pessoas, tem que trabalhar para alimentar a família. Por isso, esse dia é importante. Nessa data nós nos encontramos. Eu fiquei muito contente e alegre, como eu estou feliz agora. Boa festa para vocês. Bepdjá: Muito obrigado. Agora vamos chamar o cacique velho que está conosco ainda. O ex cacique vai falar agora. O nome dele é Moté Kayapó. Moté: Senhoras (amnhire) e Senhores (akmére), a festa do nosso dia está muito linda. Eu queria dançar com vocês, mas eu estou gripado, com dor de cabeça, mas eu fiquei olhando vocês dançarem e fiquei muito feliz. A festa está muito linda e eu fiquei muito feliz. Eu quero que vocês escutem a minha palavra. Eu não quero que aconteça briga de mulher e de homem aqui. Eu não quero ver briga com borduna (kô aben tàk). Eu que cancelei a briga de borduna, para não acontecer mais, para deixar a aldeia em paz. E cada ano nós vamos comemorar o


123 aniversário de nossa aldeia. Nós temos que alimentar nossos netos, nossos filhos. Eu quero que todo mundo fique com saúde e paz. Eu estou vivo e forte ainda. Eu estou ajudando os caciques novos. Mas eu estou aguardando alguma coisa grave, alguma briga que vai acontecer aqui ou com outra aldeia. Isso não pode acontecer. Porque nós moramos juntos e o aniversário chegou. Vocês comemoram o aniversário e eu fico muito feliz. É isso que eu estou falando para vocês. Todo mundo dançou, criança e adulto, e eu gostei muito. Era só isso. Bepdjá: Muito bom. Agora os assessores, aqueles que estão ajudando os caciques da aldeia. Eles vão falar também. Para falar do Aniversário da aldeia vou chamar Ôro Mytyrwy. Ôro: Hoje é o dia que nós nos encontramos e ficamos junto (abenwyry bôx nhõ akati). Hoje nós estamos nessa aldeia, temos que ficar em paz (akabôt kati). Nós temos que cuidar das crianças e cuidar dos velhos que já estão fracos. Porque não é muita gente para cuidar, os velhos não são muitos. Eles tem que ficar com boa saúde e para isso nós temos que lutar ( guai ba kukwa kam u mari mejx). Porque nós estamos juntos e eu estou falando para vocês permanecerem assim. Não pode esquecer dos outros. Tem que ser amigos de todos. Tem que ser irmão de todos. Tem que ser como irmã e irmão. É isso que eu estou colocando para vocês, como os caciques já falaram. Um bom aniversário para nós todos. Bepdjá: Obrigado. Vou chamar mais uma pessoa que resolve as coisas para os caciques, que ajuda nossa comunidade. O nome dele é Bepkaêti. Por favor, pode falar. Bepkaêti: Bom dia. Porquê as crianças ainda estão vivas? Porquê os adultos estão vivos ainda? Porquê os homens ainda estão vivos? Porquê os cacique ainda estão fortes? Porque nós estamos aqui lutando, estamos vivos para lutar e para defender a nossa terra. Nesse dia do aniversário de Môjkarakô é para continuarmos juntos e lutar pela nossa terra. É só isso. Bepdjá: Agora vou chamar o responsável pela nossa Associação. O presidente da Secretaria Especial de Cultura Mebêngôkre. Por favor Kokuí, venha até aqui e fala para a gente. Kokuí: Hoje é o aniversário da nossa aldeia. Nós estamos alegres. Eu estou muito emocionado (itókru), porque hoje é o nosso aniversário. Nós temos que continuar fazendo essa festa todo ano. Nós temos que defender essa terra. Nós temos que lembrar do início, quando nós sofremos para chegar até aqui. Nós temos que defender a nossa comunidade que foi feita com muito sofrimento. Temos que pensar sobre esse “sofrimento”. Nós não vamos deixar os kuben invadir a nossa terra, eles não vão entrar porque nós somos fortes. Nós temos que continuar fortes. Boa tarde. Bepdjá: Tudo bem. Nós vamos ouvir em silêncio o benadjwôro que chegou agora. Nós vamos


124 escutar o que ele vai falar. Esta é a última fala. Depois disso nós vamos comer bolo e começar a dançar para ficar alegre. Vou chamar o líder kayapó, o nome dele é Akjabôro. Aplausos (aminhi kra mô) por favor. Akjabôro: Parabéns Môjkarakô. Eu fiquei esperando o avião, por isso que eu cheguei atrasado. Peço desculpas por esse atraso. Nós ainda não temos avião próprio para chegar mais rápido. Por isso peço desculpas. Foi nesse dia que nós nos encontramos, eu, Kaikware, Kokuí e o Moté. Foi quando o Kokuí passou o cacique para o Pinkà. Agora o Kokuí trabalha com a Associação. Mas foi nesse dia que começou a nossa luta, no dia seis de setembro. Quando eu cheguei aqui eu fiquei muito feliz. Eu cheguei e estou muito bem com vocês todos reunidos. Quando eu estava vindo tinha kuben (de São Félix) querendo vir para a festa. Mas não teve como trazê-los. As pessoas que falaram antes já falaram tudo. Nós temos que manter as coisas (saúde, educação, comida) aqui na aldeia. Nós caciques temos que continuar lutando, conseguir as coisas para vocês. Tem muito tempo que eu estou à disposição de todas as comunidades de todas as aldeias, mas eu sempre lutei por Môjkarakô também. Já consegui a Funai em São Félix, daqui uns dias vai ter a nossa associação, vai ter estrada para cá. Eu estou pensando assim. É só isso, bom dia pra vocês e boa festa também. Viva Môjkarakô! Essa festa é para vocês.

Ao fim das palavras de Akjabôro, todos começaram a cantar. As pessoas estavam visivelmente animadas. E dançavam e cantavam forte. Os homens formaram uma fila de dançarinos que se desmembrou do bloco de pessoas, contornando o pátio. Era o momento solene dos cumprimentos. Essa fila de homens dançarinos alcançou a ponta da “mesa do parabéns” para cumprimentar com apertos de mão cada um dos chefes e das rainhas que estavam em torno do bolo. Esse gesto foi repetido pelas mulheres, pelas crianças e pelas professoras. Completados os cumprimentos e enquanto as pessoas retornavam à formação anterior, Bepdjá se apressou em reconfigurar a cena do parabéns para a partilha do bolo. Pediu gentilmente que os caciques se retirassem e recompôs a cena com uma mulher responsável por cortar o bolo e pelos jovens organizadores responsáveis por distribuir o refrigerante. A grande fila de crianças já estava formada. Uma das professoras, ensinou à mulher como cortar o bolo sem despedaçá-lo. Esta entregava os pedaços para uma das rainhas, que enfim distribuía para as pessoas. Lentamente pedaços do grande bolo chegavam às mãos dos moradores. Primeiro, as crianças, depois mulheres e homens. E assim foi até que, como a festa, ele se exauriu.


125 Figura 11: Chefes cumprimentam crianças durante a festa de aniversário da aldeia Môjkarakô Figura 12: O bolo de aniversário da aldeia sendo partido.


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O encontro A festa de aniversário é a atualização de um encontro diversas vezes mencionado nos discursos dos chefes, assessores e lideranças durante a cerimônia. Praticamente todos eles iniciam suas falas lembrando do aniversário da aldeia como o dia em que se encontraram as pessoas que hoje formam a comunidade. A performance desse encontro ocorre, como vimos acima, no momento ápice do aniversário: quando a cena do parabéns está prestes a ser formada, Akjabôro reencontra Kaikware no pátio da aldeia, diante daqueles que foram reunidos pelos dois há quinze anos e que hoje, como não cansam de lembrar, formam uma comunidade. A expressividade dessa cena é compatível com os desafios e objetivos comuns compartilhados pelos dois chefes e por seus seguidores na aventura de criar uma nova aldeia. Se como afirma Fisher (1998), as aldeias mebêngôkre são formas objetificadas do próprio esforço de seus habitantes em produzir comunidade, o caso específico de Môjkarakô não só demonstra, mas propriamente potencializa as condições de produção desse esforço continuamente atualizado, por exemplo, e como vimos, pela própria festa de aniversário. Neste sentido, o caso de Môjkarakô evidencia claramente porque não se deve confundir aldeia com comunidade. Não apenas porque seus moradores tiveram que criar três aldeias até se fixarem onde residem atualmente, mas também e, sobretudo, porque o que deve ser aqui valorizado é a própria participação e engajamento coletivo na difícil decisão de partir e se arriscar em construir uma nova morada. Difícil, porque como veremos à frente, construir uma nova comunidade implica necessariamente em lidar com sentimentos como ódio e raiva, diametralmente opostos aos de felicidade e bem-estar mobilizados na produção de um senso de comunidade (Overing, 1991). Afinal, como afirma Santos Granero (2000: 282-284), os processos de fissão intergrupais ameríndios evidenciam o fim da possibilidade de convivialidade entre as pessoas. Entre os Mebêngôkre, não é incomum que uma tal ruptura aconteça como aponta a literatura (Bamberger, 1979; Verswijver, 1992; Fisher, 1998), justamente durante a realização de grandes cerimônias. Embora não tenha sido esse o caso das cisões que deram origem a Môjkarakô, este dado é relevante porque evidencia, como mostra Fisher (1998:55), que os rituais são contextos de afirmação da comunidade, como podem desencadear também a sua própria negação, isto é, a negação dos sentimentos e valores mobilizados para a sua construção. Quando, por razões diversas, um ritual falha em congregar as pessoas e por motivos também diversos, floresce o antagonismo justo onde deveria se produzir felicidade, essa situação torna “quase impossível que as pessoas continuem a


127 coexistir em uma mesma aldeia” (Fisher, 1998: 55). Como afirma Fisher, “because ritual action depends on a felt response from participants, the lack of feeling by participants can destroy a ritual and the village in the process” (idem). Os conflitos e rupturas, quando ocorridos nas cerimônias revertem os sentimentos e emoções de amor, amizade, confiança e generosidade, valorizados como constituintes do senso de comunidade, em sentimentos e emoções que são o seu oposto, ou seja, que são a própria negação do social, como raiva, ódio, ira e vergonha. Não foi esse o caso de Môjkarakô. O fim da convivialidade que marcou as trajetórias dessas pessoas em suas aldeias de origem tem seus motivos expressos na palavra “trabalho” (nhipêjx) e no adjetivo “correto” (kumrenx). Mais especificamente na negação de uma tal possibilidade de engajar as pessoas em atividades coletivas de trabalho. Os dois protagonistas, Akjabôro e Kaikware, tiveram questionadas, por motivos diversos, suas capacidades de, como dizem os Mebêngôkre, “trabalhar para sua comunidade”. Trabalho e a própria produção do senso de comunidade são, como diz Overing (1991), inseparáveis. Neste sentido, a negação da possibilidade de agregação coletiva para o trabalho é a própria negação da convivialidade. Como afirma Overing, o trabalho para os Cubeo (e para os Piaroa), não era, como no ocidente, alienado das relações pessoais de comunidade e de sua moralidade (…). Não consistia em um domínio separado do pessoal, nem do social, antes, de tão intensamente pessoal quanto social, o trabalho era, a um só tempo, produtor e produto de relações sociais prazerosas (…). Pelo trabalho assim definido, comunidade e vínculo com outros poderiam ser devidamente criados e mantidos. Ambos, trabalho e vínculo social eram considerados mutuamente constitutivos: na ausência de relações tranquilas de uma boa vida em comunidade, não se poderia trabalhar e, sem trabalho, não havia comunidade. Em outras palavras, o trabalho – inclusive, ou em particular, a manutenção cotidiana da vida – não era entendida como labuta; esta é uma noção ocidental, isto é, um produto de relações de dominação e subordinação (1991: 15-16).

A julgar pelas narrativas apresentadas abaixo, os Mebêngôkre parecem compartilhar, uma vez mais com os Piaroa, os Cubeo e muitos outros grupos ameríndios, uma tal conceituação de trabalho. Entre os Mebêngôkre não há sujeição ao trabalho. Os chefes, aqueles que seriam os primeiros candidatos a exercerem a coerção, seguindo uma dinâmica sistematizada por Clastres (1978), devem antes dar o exemplo e iniciar primeiro e por sua própria vontade as tarefas que se irão produzir coletivamente. Em Môjkarakô, observei diversas vezes essa atitude dos chefes, sobretudo, quando se tratava de capinar a pista de pouso, atividade coletiva masculina realizada frequentemente na estação das chuvas. Por diversas vezes vi Akjabôro comunicar aos homens reunidos pela manhã no ngábe que era preciso capinar a pista e que ele estava indo fazê-lo naquele momento. Sua atitude motivava os outros a uma tal atividade. Diante do árduo trabalho de capinar a


128 longa pista no sol quente era possível notar a animação dos homens expressa nas diversas piadas contadas durante a empreitada. Entre uma roçada e outra os homens paravam para descansar, tomando suco, amolando as enxadas e facões e dando risadas dos causos contados por algum deles, que não raro possuíam detalhado conteúdo erótico. Nestas sessões coletivas de trabalho, bem como naquelas que antecediam os rituais, os Mebêngôkre de Môjkarakô exercitavam a constituição mútua entre o trabalho e o vínculo social, tornando possível tanto a existência e a manutenção da comunidade quanto as próprias condições necessárias para se trabalhar coletivamente. Exercitavam o que não se tornou possível em suas aldeias de origem quando seus atuais chefes entraram em conflito com os chefes principais de suas respectivas aldeias de origem no que diz respeito à capacidade de mobilizar a coletividade para o trabalho. Assim, parece também valer para os Mebêngôkre a máxima clastreana retomada por Overing em seu já referido ensaio: “o líder bem sucedido era aquele que conseguia atrair à sua comunidade gente suficiente, gente capaz de cooperar harmonicamente em base diária, o que lhe permitia manter o moral alto dentro da comunidade” (1991: 19). Os chefes rebeldes conseguiram atrair para si um grupo de pessoas dispostos a abandonar a aldeia antiga para fundar uma nova. As narrativas que se seguem falam justamente das impossibilidades de se cooperar harmonicamente, por conta do conflito entre o chefe principal e chefes aspirantes e da superação a posteriori desse insucesso pelos novos líderes e pelas pessoas que os seguiam. A primeira delas tem como tema central os conflitos e suas consequências para os dois chefes, os protagonistas da narrativa, e para aqueles que os seguiram. A outra narrativa é, ao contrário da primeira, o relato de um dos chefes sobre o encontro entre os dois grupos e a construção da aldeia que batizaram de Môjkarakô, por causa da grande presença de uma árvore com esse nome naquele novo sítio. É digno de nota que a narrativa do chefe evita comentários sobre os conflitos em si. Ele parece ter levado a sério a minha solicitação de que contasse a história da aldeia, enfatizando o momento mesmo de sua criação dramatizado pelo encontro entre os dois chefes. Segundo essa percepção, os conflitos nas aldeias de origem parecem não fazer parte da história de Môjkarakô. A aldeia surgiu desse encontro e é dele que se deveria falar. Mas existe outra razão para o chefe não falar do conflito e ela me foi explicada por Pawire, o narrador do primeiro relato. Logo após contar a narrativa abaixo, quando o perguntei sobre o porquê do chefe não falar daquelas coisas, Pawire disse: “cacique não pode falar de briga, de fofoca, de confusão. Ele só pode falar de briga quando é fora da aldeia, no tempo que tinha guerra, aí pode falar na casa dos homens para os jovens ouvirem. Quem fala de briga e de fofoca é mulher, jovem, menino. Cacique não fala dessas coisas não”. E


129 muito menos de um conflito no qual ele mesmo estava envolvido, competindo com o líder principal e sendo acusado de usar os recursos em proveito próprio A narrativa de Pawire é especial justamente por ele não ser chefe. Por isso, ele pode tocar em temas espinhosos que Kaikware evitou em sua narrativa. Por isso, ele pode falar sobre o fim da convivialidade e não apenas de seu restabelecimento, renovado pelo encontro dos dois chefes e seus seguidores. Com Pawire, então, à palavra: No início foi assim, o cacique Pangrá chamou uma reunião na casa dos homens e ficou falando mal do cacique Akjabôro. Ele estava querendo bater no cacique Akjabôro. Eles estavam na casa dos guerreiros, e estavam quase brigando. Uma outra pessoa separou os dois para não ter bagunça. Tinham quatro caciques na aldeia: Pangrá, Ngàpre, Pedro e o cacique Akjabôro que era chefe dos guerreiros jovens. Os outros caciques ficaram calados, não falaram nada. Só ficou o cacique Akjabôro e o cacique Pangrá que estava contra ele, um falando duro para o outro. Depois da discussão, alguns guerreiros pediram para o cacique Akjabôro sair da aldeia com a turma dele. Mas ele não queria. Ele queria ficar em Kubenkankrenh, mas muitas pessoas falaram na cabeça dele: – Bora sair para você resolver as coisas direito para nós, não é bom brigar assim. Deixa esse cacique aí que tá brigando com os outros. Nós vamos sair, você vai nos levar para outro canto, para nós fazermos aldeia nova, para agente trabalhar direito assim vai ser melhor para nós. Ele ficou pensando. Depois ele encontrou o cacique Kaikware em Brasília. Eles conversaram e Kaikware falou: – Eu tenho uma terra para levar o pessoal. Eu tenho um problema também, eu quero sair da minha aldeia com a minha turma. A gente vai se encontrar para fazer uma aldeia junto. Eles combinaram. O cacique Akjabôro voltou, fez reunião e conversou com os guerreiros. Ele disse: – Eu conversei com o compadre42 Kaikware e ele tem uma terra para nós ficarmos, ele tem um problema também. Eu vou levar vocês para a gente fazer uma aldeia junto com eles, para a gente trabalhar direito para vocês. Foi quando o pessoal começou a fazer canoa, farinha, começou a colher mandioca, inhame, para descer para fazer a aldeia nova. Lá no Aúkre o Kaikware tinha brigado também. O Kaikware era chefe de posto da Funai, estava trabalhando com projeto de arroz. Ele chamou todo mundo, todos os guerreiros do Aúkre para trabalhar com ele. O cacique Paulinho Payakan não gostou e disse: – Se o Kaikware é chefe de posto, ele tem que fazer só o serviço dele mesmo. Depois falou assim: – Ah então o Kaikware já virou cacique, juntou todos os guerreiros e todas as mulheres para trabalhar com ele43. Eu vou cortar todas as coisas dele, não vai ser mais chefe de posto, até 42

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Essa formulação de Pawire é exemplar do seu processo de narração, antecipando formas de tratamento que só se efetivaram com a convivência entre os dois caciques. O compadrio entre os dois chefes se construiu, não no primeiro encontro, mas ao longo da criação de um evento feito em conjunto. Ao juntarem-se a si e aos seus, Kaikware e Akjabôro tornaram-se como que “padrinhos” de Môjkarakô, incentivando inclusive que as pessoas dos dois grupos casassem entre si. Essa frase deve ser tomada com uma certa dose de ironia, pois segundo o narrador, Payakan estaria acusando Kaikware de querer ocupar a posição de cacique, sem sê-lo de fato.


130 parece que já virou cacique, que negócio é esse e tal. O Kaikware respondeu: – Não, eu estou ajudando a comunidade, eu estou querendo fazer projeto para a comunidade, eu não estou atrapalhando os outros caciques, eu estou ajudando eles, eu estou ajudando a comunidade. Aí ele zangou! Falou que não queria mais também, falou que podia cortar todas as coisas: – A minha vontade você não vai tirar, pode cortar as coisas que eu vou continuar trabalhando. (O Payakan era cunhado dele, casou com a irmã do Kaikware). Depois da confusão o Kaikware procurou o pai do Kokuí, o cacique velho Moté. Ele disse que tinha uma terra, que é onde está a aldeia queimada44. O Kaikware falou assim: – Eu queria arrumar uma terra para levar o pessoal para fazer uma aldeia nova, para trabalhar direito, porque aqui eu não dou conta de trabalhar direito, estão atrapalhando o meu serviço. O Moté falou: – Você pode ir para esse lugar fazer o seu trabalho lá, pode levar o pessoal para trabalhar direito. Então, o Kaikware entrou primeiro, arrumou uma turma e entrou para fazer uma roça. Ele desceu no mesmo dia da conversa com Moté. Ficou cinco dias lá e voltou para a aldeia. Ele fez reunião e falou: – Nós já fizemos roça. Agora nós vamos fazer farinha, arrumar mandioca, inhame, batata, banana, muitas coisas para nós levarmos e ficarmos de vez. Depois o pessoal começou a levar as coisas para o acampamento. Foi quase todo mundo embora do Aúkre. Ficou pouquinha gente. O Kaikware passou um rádio para o cacique Akjabôro dizendo que ia descer na manhã seguinte. O Akjabôro respondeu falando que depois de três dias ele ia chegar com o seu pessoal em Aúkre. Isso aconteceu quando eu era menoronyre45, eu Bepunu, Axuapé, Bepdjá. Nós e muitos outros fomos antes para ajudar a turma do cacique Kaikware, para abrir a clareira. Depois voltamos para o Aúkre para encontrar o pessoal do cacique Akjabôro, nossos parentes de Kubenkankrenh. Todo mundo desceu de remo, foi duro ó! Quando o cacique Akjabôro chegou em Aúkre um dos caciques falou para ele ficar lá com a turma dele. Ele disse assim: – O Kaikware levou todo mundo, ficaram pouquinhas pessoas aqui. Então você pode morar aqui com a gente, você já trouxe muita gente, nós precisamos que vocês fiquem aqui. O cacique Akjabôro respondeu: – Olha, nós já combinamos com o cacique Kaikware, nós não queremos ficar aqui. Nós já fechamos todas as coisas para ir junto com ele, para fazer uma aldeia nova. Na mesma noite nós fizemos uma reunião e o cacique Akjabôro falou: – Olha, o cacique de Aúkre tá querendo que eu fique, mas eu não quero morar aqui, eu quero morar junto com vocês, para a gente fazer uma nova aldeia, trabalhar para a comunidade, fazer os nossos próprios trabalhos. Porque se eu ficar aqui, eu vou querer fazer o meu trabalho e o cacique não vai querer deixar, vai dizer: 'não, essa é minha aldeia, você é de outra se você fizer as coisas aqui eu não vou deixar'. Então, eu penso que nós é que temos que fazer a aldeia, fazer o nosso próprio trabalho na aldeia nova. Foi assim que o Akjabôro falou. Então, nós descemos no dia seguinte. Nós descemos e 44

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Aldeia queimada (Môjkarakô chêt) é como os habitantes de Môjkarakô denominam o sítio da primeira aldeia, posteriormente devastada pelo fogo quando boa parte da população já havia migrado para a beira rio. A seguir apresento mais detalhes deste momento. Grupo de idade de jovens solteiros, que não possuem filhos.


131 dormimos na beira do rio. No outro dia, chegamos na picada que levava para a aldeia queimada e nos juntamos aos outros. Quando todos se encontraram teve dança. Todos estavam alegres, com força. Foi assim que aconteceu. O padre desceu com o pessoal de Aúkre. Ele ensinou matemática para gente no meio do mato, lá no acampamento.

Antes de comentar os fatos específicos narrados por Pawire, que consolidam a ruptura de cada um dos grupos com suas respectivas aldeias e sua consequente união para formar Môjkarakô, gostaria de direcionar brevemente a atenção do leitor para algumas características formais dessa narrativa. Elejo iniciar com alguns aspectos formais porque eles são constitutivos de e constituídos por um narrador que se abre à fala de outras tantas vozes. De início, devo destacar a escolha pela própria formatação do texto. O uso de travessões visa evidenciar as vozes criadas pelo narrador. Vozes que podem aparecer por meio de outras vozes, citação dentro de citação, como ocorre quando Pawire fala da resposta que Akjabôro deu aos seus, quando do convite feito pelo velho cacique de Aúkre para que não partisse com Kaikware. Neste momento da narrativa Akjabôro responde falando o que o velho havia dito para ele. Tudo isso saindo da memória imaginativa de Pawire, participante coadjuvante da narrativa, mas ao mesmo tempo seu único participante, difuso em inúmeras vozes. Aqui, como diz Calávia sobre os narradores ameríndios, seríamos ingênuos se procurássemos uma expressão espontânea e direta do indivíduo. Antes, esta narrativa poderia estar incluída dentre aquelas, cujo traço mais marcante “é o seu estilo citacional” (2006: 187), onde a citação não precisa ser simples: “pode se desdobrar em cascata, quando o emissor cita alguém que cita alguém que cita alguém” (Idem). Neste caso, como em outros elencados por Calávia, “embora o discurso seja regido por um 'eu', o enunciador pode estar emprestando sua voz a uma longa série de outros (…)”. Esse movimento de externalização do eu em múltiplas vozes constituintes de um si da narrativa, não impede que Pawire se posicione. Ele conta do ponto de vista de alguém que pertence a um dos dois grupos que se juntaram. Pawire nasceu em Kubenkankrenh, e sua narrativa é fiel a essa origem. Ele começa sua narrativa pelo problema que lá ocorrera e seus desdobramentos na vida dos que iriam partir, o que culmina no encontro dos dois chefes em Brasília. Depois, a narrativa se direciona para os fatos ocorridos em Aúkre. E avança até os dias da partida, quando Akjabôro é confrontado a decisão de ficar em Aúkre ou seguir ao encontro de Kaikware. A narrativa se encerra com o encontro com os outros na beira do rio e com o singular aparecimento de um padre que seguiu o grupo rumo à nova aldeia.


132 Nota-se que o “problema” dos dois chefes, embora circulado por especificidades e idiossincrasias ocorreu por motivos similares que diziam respeito à forma de gerir os “recursos” advindos das relações com diferentes agências não indígenas. Tratava-se de conflitos e expectativas sobre o modo de “trabalhar” levado à cabo pelos dois futuros chefes de Môjkarakô. No de Akjabôro, a narrativa de Pawire não deixa claro o motivo da discórdia, ainda que outras fontes mencionem conflitos em relação à exploração comercial da Terra Indígena, algo muito comum entre os Mebêngôkre que tiveram, ao longo do último quarto do século XX, diversas experiências deste tipo em seu território: como o garimpo de ouro e a extração de madeira (sobretudo mogno) e recursos naturais (como a castanha do Pará e a folha de jaborandi). No caso de Kaikware, as motivações do conflito estão mais explícitas. Kaikware era o chefe de Posto da Funai, uma posição de prestígio, mas ao mesmo tempo separada do cargo de chefia exercido por Payakan e outros como Txikiri e Kupatô. O conflito parece ter irrompido depois que Kaikware exaltou a comunidade a participar de um projeto de roça de arroz patrocinado pelo órgão indigenista. A grande adesão ao projeto por parte da população incomoda o chefe mais jovem, o famoso Paulinho Payakan, personagem destacado da história recente dos Kayapó. Segue-se, então, o conflito, sem dúvida, reforçado pela posição de afinidade entre os dois: eram cunhados, como diz Pawire. Em contraste a esta situação, a de Akjabôro oferece uma acusação, não de insubordinação como aquela feita por Payakan à Kaikware, mas de uso para fins próprios dos recursos advindos das transações monetárias em curso naquele contexto, reforçado, sem dúvida, pela diferença etária entre Pangrá e Akjabôro, que talvez refletisse não uma relação entre cunhados, mas aquela entre sogro e genro, onde a desigualdade etária é notória. De qualquer modo, o importante aqui é ressaltar que ambos os personagens da fundação de Môjkarakô ocupavam posições de destaque na organização política de suas respectivas aldeias a ponto de ameaçar com seu poder de mobilização as posições dos chefes principais: Kaikware não era cacique e, por isso, ultrapassou os limites do que alguns, notadamente Payakan, esperavam de sua função; Akjabôro, por sua vez, era um cacique jovem e ousou enfrentar um cacique mais velho. Ambos foram impedidos de seguirem seus trabalhos, ou seja, de seguirem mobilizando as pessoas para trabalhar coletivamente. Aqui é preciso retomar o conceito ameríndio de trabalho tal como formulado por Overing (1991). O chefe é aquele que consegue mobilizar os seus para empreitadas coletivas. A negação da possibilidade dos dois chefes menores de ocuparem a posição de chefe principal e deste modo trabalharem em suas respectivas aldeias do modo como pretendiam foi interpretada por eles como a


133 própria negação da possibilidade de continuarem vivendo nesta comunidade e como sinal de que precisavam fundar sua própria aldeia. A negação do poder de coordenação do trabalho coletivo marca, portanto, o próprio fim da possibilidade de continuar trabalhando e convivendo nas suas aldeias de origem para os dois chefes e aqueles que os seguiam. Se, como vimos, trabalho e vínculo social são mutuamente constitutivos, a negação do primeiro implica necessariamente na negação do segundo: “na ausência de relações tranquilas de uma boa vida em comunidade, não se poderia trabalhar e, sem trabalho, não havia comunidade” (Overing, 1991: 19). Eis o dilema enfrentado pelos chefes e ao mesmo tempo o desafio colocado à eles para formar a nova comunidade. Algo que fica explícito na narrativa de Kaikware sobre a história da aldeia coletada durante o contexto da festa de aniversário de Môjkarakô. Ela fala do esforço para criar e manter com sucesso um senso de comunidade necessário à contínua execução de trabalhos coletivos, incluindo dentre estas tarefas a própria produção de rituais. Sua fala demarca o característico entusiasmo de aldeias recém fundadas onde reina a motivação para o trabalho coletivo e onde nascem muitas crianças. Boa tarde a todos. Nós já fizemos três aniversários da aldeia. E agora nós estamos fazendo todo ano e vamos continuar fazendo. Nós comemoramos todo ano porque nós nos encontramos nesse dia (abenwyry i bôx nhõ akati), eu e Akjabôro. Foi aí que tudo começou. Hoje, nós continuamos juntos, todo mundo está com saúde, quem nasceu aqui já está grande, quem nasceu agora já está crescendo, alguns já são mebôktire e mekurerere. Assim que nós estamos em Môjkarakô. Foi um problema (kukràdjà) nosso que deu origem a Môjkarakô. Eu vou contar do nosso jeito. Eu vou contar para os kuben que não sabem da nossa vida. Eu vou contar para os parentes das outras aldeias para eles verem como nós fazemos aqui. Eu vou contar para guardar para os nossos netos. Foi no mês de junho que eu comecei a escolher o local para a aldeia. Nesse mês eu já comecei a fazer roça. Eu, Tunhô, Kajkyx, Katamti, Pinkrãjaroti. Este último eu levei ele porque ainda era pequeno (mebôktire), para ele aprender. Nós fomos primeiro para essa terra. Dia 25 de julho, as outras pessoas do Aúkre começaram a vir para cá, encontrar com a gente. Todos eles chegaram aqui no local da nova aldeia. Depois vieram as pessoas de Kubenkankrenh, junto com o Akjabôro. Porque nós estávamos combinados. Eles estavam em outra aldeia, aldeia Kubenkankrenh. Eu sou da aldeia Aúkre e nós estávamos combinando de escolher uma área boa para morar, para juntar com essas pessoas, para fazer roça mais perto das casas e ficar mais perto da comida. Assim era melhor para nós. Quando as pessoas chegaram, todos gostaram do local e todos escolheram ficar naquela terra (pyka kabi). Então Moté e Kubenhikanhti 46 eram caciques antigos do Aúkre. Eles vieram juntos para Môjkarakô para continuar a ser cacique. Eu queria fazer a aldeia no rio Xingu (Bytire). Mas as pessoas não queriam fazer aldeia lá, falavam para mim: esse lugar aqui é bom, a terra é boa. Aí nós ficamos no Môjkarakô Chêt e escolhemos a área para fazer pista de pouso 46

Pai de Kaikware.


134 (mátkà nhõ kapôt), escolhemos o lugar para fazer a roça. A terra era boa para plantar. Todo mundo gostou e estavam trabalhando na terra e eu fui para Brasília. Eu fui para Brasília para conseguir os tratores para abrir a clareira. Conversei com o presidente da Funai e ele aprovou. Os tratores chegaram, limparam a estrada e entraram para fazer a pista e depois limparam para fazer as casas e voltaram para a cidade. A pista ficou bem limpa, o avião pousou, levou os pacientes e outras pessoas para Redenção. E nós ficamos vivendo na aldeia. Mas todo o verão não tinha água. O igarapé Tépore secava todo, só ficava lama. Eu fiz documento quatro vezes para a Funasa fazer o posto artesiano e ela não fez. Assim ficou ruim para nós. E as pessoas começaram a querer sair porque não tinha água. No verão de 1999 as pessoas foram de vez para a beira do Riozinho. Foi quando a aldeia pegou fogo. Uma mulher deixou o peixe queimar no fogo. Tinha muito vento e o fogo pegou em todas as casas. Sobrou só um pouquinho. Foi muito sofrimento. Nós ficamos sem nada de novo. Todo mundo estava na beira acampado. Me chamaram para fazer reunião comigo. Na reunião eu falei: “Sim. Eu vou trabalhar de novo para fazer outra aldeia”. Em 2000, eu construí a pista de pouso da aldeia nova. A Funasa me ajudou, mandou trator para limpar a pista e nós ficamos muito tempo aqui. Agora nós moramos tranquilos na beira do rio. Um dia um kuben falou: “Eu vou fazer poço artesiano para vocês”. Fizeram um poço muito ruim (punuuure!). Nós lutamos para fazer outro e aí conseguimos. Agora nós bebemos água tratada, água limpa, água boa. Quando nós estávamos em Môjkarakô Chêt (aldeia queimada) não tinha malária, ninguém ficou com malária, todo mundo estava bem. Quando chegamos no acampamento a malária apareceu, todo mundo ficou doente. Não tinha pista, não tinha barco. Foi lá que a Funasa apareceu. Aí ajudou a tratar a malária. E me ajudou a organizar a nova aldeia. Agora nós estamos aqui lembrando do que aconteceu. Nós sofremos muito, mas o que não deu certo para nós já ficou para trás. Hoje, você viu, as pessoas dançaram e cantaram, estavam felizes comemorando o dia do nosso encontro. No início, nós temos que lembrar dos kuben que nos ajudaram. Nós recebemos ajuda da [antropóloga francesa] Pascale e até hoje ela ajuda nós, ensina os jovens a trabalhar com mapa, defender o território. Aqui em Môjkarakô o padre morou com agente. Ele ajudou muito a gente também. Hoje ele voltou para a cidade. Agora tem missionário, que ensina a bíblia na nossa língua. Tem as professoras, merendeiras e enfermeiras que ajudam também. Hoje em dia todos nós estamos trabalhando junto com o kuben: trabalha como agente de saúde (pidjy kam a pêjx), agente de saneamento (ngôpre kam a pêjx), cinegrafista (mekaron kam a pêjx), trabalha na escola como professor. Todos esses serviços são os índios que ocupam. Hoje em dia nós estamos juntos e trabalhando. Se algum de vocês de fora está ouvindo a minha mensagem, tem que escutar. É isso que nós estamos fazendo e trabalhando aqui. Hoje é o dia do aniversário da aldeia, o dia que nós nos encontramos. Foi nesse mês de setembro que nos encontramos. Nós fizemos três vezes a festa de aniversário. Nós gostamos muito da festa e temos que continuar. Eu estou avisando para as pessoas que tem que fazer como nós fazemos aqui, tem que sentar, conversar, não falar mal dos outros. Quem fala português, como os caciques e as lideranças, têm que resolver os problemas e ficar todo mundo junto. É assim que a gente faz as coisas aqui. Esse é o nosso jeito (kukràdjà)47. Eu estou contando a nossa história para vocês pensarem (kam a mi mari) e sentirem. Fazer uma nova aldeia é muito difícil, muito duro, precisa de muitas coisas (moja mokràjx be kuni tyxt kuni punu). É isso que eu estou passando para vocês. Para fundar uma nova aldeia, a comida acaba rápido. Acaba a comida, depois tem comida, aí acaba comida de novo. 47

O que nos particulariza.


135 Aconteceu assim com a gente. É isso que eu estou contando para vocês. Hoje nós temos muita comida na roça: batata doce, mandioca, banana, inhame, mamão, feijão, fava, feijão pequeno. Tem peixe, tem caça, tudo. Essa é a nossa comida. Hoje em dia nesse ano estamos bem, tranquilos. Todo mundo bem alimentado. Nós estamos dançando e cantando do jeito certo, nós não estamos pensando em coisa ruim. É isto que eu estou falando para vocês. Nós temos que organizar a nossa área. Porque a terra é gente boa, ela nos alimenta. Nós plantamos, mandioca, banana, inhame, na terra. Quem nos dá alimento é a terra. Nós comemos e ficamos alegre. Nós temos que proteger o rio também, porque o rio ajuda muito, ele protege o corpo (me ba jó djwa mejx). Eu estou contando a nossa história. Meu compadre Akjabôro que sabe a história da saída do pessoal de Kubenkankrenh para Môjkarakô. Mas eu sei a minha parte. Foi quando nós juntamos as pessoas para fazer a nossa comunidade. Agora nós estamos aqui juntos, trabalhando na roça para alimentar os filhos, os netos, os adultos, porque a terra aqui é boa. Nós organizamos a roça também. Essa é a nossa preocupação. Vocês que já sabem muitas coisas, não podem falar mal dos outros. Deixa as pessoas trabalhar em paz, ficar bem, trabalhar tranquilo. Tem um kuben que fica aqui na aldeia, ele vai mostrar os trabalhos, ensinar os jovens. Eu estou falando também para o kuben ouvir e para todas as aldeias, para aprender a escutar nós aqui de Môjkarakô. Aqui nós ficamos juntos, trabalhamos juntos, organizamos festas juntos. Agora eu estou gravando a minha voz, mas nós temos que fazer um livro com a história de Môjkarakô para guardar para os nossos netos. Tem que filmar a festa do aniversário para mostrar para outras aldeias como nós fazemos. Mas agora eu estou gravando no gravador para vocês escutarem. Aqui na aldeia Môjkarakô nós pensamos em vocês de cada aldeia, nós temos que ajudar todos. Eu queria ouvir vocês também. Esse é o nosso dia e por isso eu estou explicando essa história para vocês. Eu estou falando sobre onde nós moramos e como nós vivemos. Boa tarde para vocês.

Em termos formais, e em oposição à narrativa de Pawire, a narrativa de Kaikware não é constituída por diferentes vozes de outros. Antes, ela quer atingir diferentes outros e não dar voz a eles. O esforço de Kaikware é transmitir para públicos diversos uma experiência e a reafirmação dos valores éticos e estéticos tipicamente mebêngôkre que a guiaram e continuam guiando. Mas quais seriam esses públicos que Kaikware quer atingir? Primeiramente, Kaikware está falando para os próprios habitantes da aldeia. Seu relato é um registro para as novas gerações da árdua trajetória dos dois grupos e dos chefes que se juntaram para formar a aldeia. Por isso, ele diz que vai “contar para guardar para os nossos netos”48. Um outro público notável, são os não indígenas, os kuben, aqueles que não sabem como eles vivem. Por fim, Kaikware fala para os parentes das outras aldeias. É aí que seu discurso se torna uma potente “arma retórica”. Neste último quesito, a fala de Kaikware é uma afirmação sobre a conformidade da nova aldeia com as normas e o senso de comunidade mebêngôkre. Trata-se de mostrar para um ouvinte também Mebêngôkre como, apesar de (ou graças a) todo este sofrimento, as pessoas viviam bem 48

Para a tematização dessa expressão relacionada a atividade de filmar, ver Madi (2011; cap. 1)


136 em Môjkarakô, estavam alegres, com muita comida, realizando festas e trabalhando coletivamente, exercitando um entendimento de prosperidade que como nas Guianas e em outras regiões ameríndias, não se prende unicamente a uma questão de acumulação produtiva, mas de ânimo. Aqui como lá, uma comunidade próspera é uma comunidade com moral alto, e como lembra Overing, um tal entendimento está baseado “em um firme senso de realidade, pois, apenas através da construção de um moral alto, atividades coletivas – e de fato todo o trabalho – poderiam ser realizadas com facilidade, ou simplesmente realizadas” (1991: 13). Em suma, os chefes de Môjkarakô querem mostrar para seus pares de outras aldeias e, especialmente, para as aldeias e os chefes rivais, que sua aldeia é um exemplo bem sucedido de convivência e superação de dificuldades e, que como tal, os valores e práticas que a constituem deveriam não apenas ser comunicados para as outras aldeias, mas também seguidas por elas. Trata-se, na verdade, de uma forma agonística de apresentar aos outros o “estilo” de fazer comunidade levado a cabo pelos moradores de Môjkarakô. Um tal estilo é explicitado quando Kaikware se refere ao “jeito” de Môjkarakô, aquilo que os particularizaria frente às outras aldeias mebêngôkre. “Jeito” foi o termo escolhida por Bepunu para traduzir a polissêmica palavra kukràdjà. Como a etnologia mebêngôkre já registrou, este conceito designa “os 'conhecimentos' que, transmitidos ao longo de relações específicas, constituem a pessoa humana. Esses conhecimentos referem-se aos códigos de comportamento, ao cerimonial, à mitologia, e materializam-se em cantos (de cura e proteção), narrativas, remédios, ornamentos” (Coelho de Souza, 2007: 10). Por esse motivo, essa categoria tem sido traduzida tanto por antropólogos quanto por nativos como “cultura” e “tradição”, o que tem colocado interessantes questões para a antropologia e sua participação nas discussões sobre conhecimento tradicional indígena, direitos e propriedades intelectuais (cf. Coelho de Souza, 2005). Mas é Gordon que nos oferece uma definição mais afeita àquela operada por Bepunu na tradução do termo kukràdjà para “jeito”. Seguindo os argumentos de Giannini (1992: 97) ele afirma que os Xikrin, “distinguem os kukràdjà que são de uma pessoa (i-kukràdjà, onde, i = flexão de 1º pessoa absolutiva; possessivo) – que poderíamos traduzir como 'minha parte, minha atribuição, meu privilégio', ou seja, 'aquilo que me cabe'” – daqueles “que são mekuni kukràdjà (kukràdjà de todos)”, ou mesmo de categorias de idade e gênero diferentes. “Há assim, conclui o autor, algo que se chama de mebengokre kukràdjà, que não parece englobar totalmente, e sim existir ao lado de ikukràdjà (o meu kukràdjà), do kukràdjà de alguém (me õ kukràdjà), do kukràdjà de gente velha, de homens e mulheres, em particular” (2006: 375; grifo meu), do kukràdjà de uma comunidade


137 poderíamos completar. Os etnólogos dos Mebêngôkre tem privilegiado a “parte” como característica distintiva desse conceito nativo de cultura. Gordon, por exemplo, o faz aproximando o kukràdjà, não do “nosso conceito antropológico (ou relativista) de cultura, que a despeito de suas diversas definições, remete desde a sua extração romântica, mais ou menos imediatamente a uma noção de todo”, mas do conceito humanista de cultura, “no qual esta é entendida como uma espécie de aquisição: algo (conhecimento, saberes, costumes) que a pessoa (o indivíduo, a coletividade) deve ir acumulando de modo a tornar-se pleno agente ou sujeito moral” (2006: 375; grifo meu). Nessa acepção o kukràdjà se aproxima do conceito de “conhecimento produtivo” proposto por Overing se entendido como o “que, no entendimento indígena, permite a construção e manutenção da comunidade”. (1991: 1617). A tradução de Bepunu parece se aproximar de uma tal acepção, sobretudo se retornarmos ao contexto dialógico criado pela narrativa de Kaikware. Ele está descrevendo para os outros, sobretudo, para outros Mebêngôkre, o “jeito” como eles, de Môjkarakô, vivem. No fim de sua narrativa, depois de manifestar o desejo de ouvir os outros, Kaikware diz: “Eu estou falando sobre onde nós moramos e como nós vivemos”. Ele está falando do kukràdjà de Môjkarakô, dos conhecimentos necessários não apenas à constituição da pessoa humana, mas também da própria constituição particular e coletiva de uma comunidade. Ele está falando de uma “categoria de conhecimento, que se articula a uma teoria do trabalho e da criatividade” (Overing, 1991: 11). O kukràdjà de Môjkarakô, o “jeito” da comunidade, isto é, seu conhecimento produtivo, é resultante do próprio acúmulo de experiências, sentimentos e emoções compartilhados por seus habitantes durante suas trajetórias. Este conhecimento produtivo, que se articula a uma noção de trabalho e criatividade, é colocado em prática na própria execução da festa de aniversário, nos discursos das lideranças, no grande bolo, na suntuosa recepção para Akjabôro, enfim na própria organização da festa como um todo. Neste sentido, a festa de aniversário é a forma objetificada do kukràdjà de Môjkarakô, do jeito “deles fazerem as coisas”, e surge como um potente “marcador de identidade” frente às outras comunidades mebêngôkre. Os rituais são, como afirma Oliveira, potencialmente eficazes na produção de sinais diacríticos entre diferentes comunidades: “a performance de uma cerimônia em uma aldeia particular é usada como um elemento de identidade, distinguindo aquela aldeia específica (em relação às outras aldeias mebêngôkre) como a única que performa tal e tal metoro”. (2003: 04). Kaikware lembra isso aos seus ouvintes quando afirma repetidamente que já fizeram a festa três vezes e que vão continuar fazendo outras edições. Mas ele faz mais que isso ao deixar


138 claro que a festa é um exemplo do que eles (os ouvintes) deveriam aprender com as pessoas de Môjkarakô: Nós fizemos três vezes a festa de aniversário. Nós gostamos muito da festa e temos que continuar. Eu estou avisando para as pessoas que tem que fazer como nós fazemos aqui, tem que sentar, conversar, não falar mal dos outros. Quem fala português, como os caciques e as lideranças, têm que resolver os problemas e ficar todo mundo junto. É assim que a gente faz as coisas aqui. Esse é o nosso jeito (kukràdjà).

Nesta passagem, Kaikware está enfatizando não apenas a exclusividade da festa de aniversário como um ritual performado apenas por Môjkarakô, ou seja, como um seu kukràdjà no sentido de uma prerrogativa exclusiva da aldeia, que demarcaria sua identidade perante as outras; mas também e de maneira mais ampla, Kaikware está enfatizando a exclusividade do jeito como eles fazem os rituais, e com isso fazem comunidade, e vice-versa. Nesta última acepção, seu discurso evidencia um processo de diferenciação inter-aldeão, onde o que está em jogo não são “mulheres ou proteínas”, mas a razão de uma certa forma de fazer comunidade (Azanha, 1984: 16), compartilhada pelos coletivos mebêngôkre, mas executada a seu modo por cada um deles. Como diz Azanha (Idem), nestes contextos: “a afirmação da autonomia de cada grupo passa pela afirmação de uma certa 'verdade' de cada um”, em relação a um fundo cultural comum compartilhado. É esta “verdade” que Kaikware faz transparecer em seu discurso para os outros Mebêngôkre. É esta verdade que os moradores de Môjkarakô executam durante a cerimônia de aniversário e de outras que veremos neste trabalho. É essa afirmação assertiva que, enfim, surge como resultado dos próprios processos fissionais pelos quais passaram os habitantes de Môjkarakô, nos momentos anteriores a criação da aldeia. Como tem sido documentado para os Mebêngôkre (Turner, 1992; Verswijver, 1992; Bamberger, 1979), os processos fissionais geram um sentimento de rivalidade crescente entre os grupos ora cindidos. Grupos que antes pertenciam a uma mesma aldeia, ao se separarem, como que aceleram o processo de diferenciação entre eles continuando a inimizade despertada pelo conflito (Coelho de Souza, 2002). Uma passagem de Verswijver não deixa dúvidas sobre a rivalidade permanente depois de uma separação: “uma vez que uma aldeia tenha sofrido uma cisão, os dois grupos resultantes continuam a ser reciprocamente hostis; ataques surpresas são frequentemente realizados por um dos grupos cindidos que tenha sido forçado a partir, iniciando deste modo um processo de ataques mútuos (1992: 140-141)”. Bamberger afirma algo semelhante: “uma vez que a aldeia tenha se dividido depois de um duelo coletivo, as duas facções continuam a se tratar de modo hostil”. E acrescenta: “retaliações geram medo nas pessoas da antiga aldeia, onde a possibilidade de


139 ataques surpresa para vingar antigas desavenças é um tema recorrente nas conversas cotidianas” (1979: 140). Para os rendimentos do presente trabalho, interessa perceber a forma que estas relações de rivalidade tomam quando acontecem em contextos de pacificação, onde a guerra vis a vis foi interrompida, mesmo que continue sendo uma possibilidade concreta e muitas vezes sedutora. Como afirma Melatti (1978: 351) para o caso krahô – que acredito poder ser estendido também para o caso mebêngôkre – o desaparecimento das relações de hostilidade armada com outras aldeias não implica no desaparecimento de um sentimento de desconfiança e de hostilidade que, embora não chegue ao choque violento, ainda persiste. Incidindo nesta pista torna-se possível explorar outras formas dessas rivalidades que refiguram a guerra dos antigos em disputas éticas, estéticas e imagéticas. Mas antes de passar para a dinâmica inter-aldeã torna-se necessário retornar ao tema da produção do senso de comunidade entre os habitantes da aldeia e destacar a importância do ritual e do parentesco nesse processo.

Comunidade As aldeias kayapó precisamente nunca “são”. Elas são a manifestação exterior do esforço para criar comunidade. Algumas vezes com sucesso, outras não. (Fisher, 1998)

Quando perguntados sobre as características de uma aldeia ideal, os Kayapó da aldeia Gorotire afirmaram para a antropóloga Joanna Bamberger que elas deveriam ser populosas e possuírem uma extensiva atividade cerimonial (1979: 142). Em Môjkarakô não era diferente. Seus moradores, sempre que falávamos sobre a aldeia, exaltavam como ela havia crescido em número de pessoas e como estas pessoas se engajam coletivamente na produção de rituais. De fato, em seus quinze anos de existência a aldeia mais do que dobrou sua população. Em 2010, quando a Funasa atualizou o seu censo, a aldeia possuía 403 habitantes, dentre os quais, um pouco menos da metade era composto por crianças. Em contraste, quando em 1995 os dois grupos se encontraram na beira do Riozinho para formar a nova aldeia não eram mais do que 120. Essa rápida ascensão populacional é comentada na aldeia, a boca pequena e nos discursos públicos, como um índice da “boa vida” que se leva e que se produz em Môjkarakô. As primeiras


140 estrofes do hino da aldeia, não deixam dúvidas a esse respeito. O hino inicia com uma afirmação forte repetida por duas vezes: Me ba kinh kumrenx (Nós estamos alegres de verdade). Essa afirmação é seguida de um questionamento acerca dessa alegria: Mykam ne me ba kinh (Porque nós estamos alegres?). A resposta a essa pergunta é justamente uma afirmação da populosidade e da vitalidade da aldeia: Môjkarakô amirin ne kuméjx (Muita gente está aparecendo (nascendo) em Môjkarakô)49. Que a populosidade seja a causa de tamanha felicidade, é porque ela está relacionada à extensiva produção ritual, o outro elemento presente no ideal de um krin mejx, uma aldeia bonita. Em Môjkarakô, as pessoas também comentavam entusiasmadas o fato da produção dos rituais terem aumentado com o paulatino aumento das pessoas na comunidade. Para ser bonita não basta que uma aldeia tenha muitas pessoas, do mesmo modo que alegria não se consegue somente com isso. O que proporciona a qualidade da beleza de uma aldeia é a extensividade da produção ritual e o “sentimento unificado” (Fisher, 2001: 120) que as cerimônias proporcionam no conjunto de pessoas que moram na aldeia. Um tal sentimento está associado à produção de um senso de comunidade entre essas pessoas (Overing, 1991) e não deve ser dissociado de suas formas objetificadas de expressão que estão em ação durante o ritual. Graças aos trabalhos de dois autores da etnologia mebêngôkre pode-se perceber algumas ideias de Overing presentes nas análises sobre as sociedades indígenas do Brasil Central 50. Um deles, Oliveira (2003), foi seu orientando e desenvolveu uma tese levando em conta os insignes inaugurados por Overing em seu ensaio sobre a estética da produção entre os Cubeo e os Piaroa, como já o indica o próprio título do trabalho, cuja tradução para o português poderia ser “Da vida e da felicidade”. Não é fortuito o fato de que para falar de felicidade – ou nas palavras de Overing, da produção do ânimo e do moral alto – Oliveira, tenha escolhido o tema do ritual entre os Xikrin do Cateté, como forma de acesso às concepções mebêngôkre concernentes à moralidade e à estética da vida social (Oliveira, 2003). Oliveira, encontrou cenário contemporâneo semelhante ao descrito neste trabalho, onde a atividade cerimonial, como na aldeia ideal dos Gorotire, era praticada extensivamente. Antes de me deparar com a tese de Oliveira, eu havia lido os trabalhos de Fisher (1998; 2003), também sobre um grupo Xikrin (do Bacajá), e já havia identificado semelhanças em sua abordagem do ritual e da comunidade com aquela apresentada por Overing. Devo admitir que me impressionei com o fato deste autor não comentar a obra de Overing, tamanha a proximidade que 49 50

Está última afirmação poderia ser traduzida também como “Môjkarakô está cheia de gente”. Embora de modo mais difuso, algumas ideias de Overing também podem ser contempladas nos trabalhos de Lea (1994; 2012), Coelho de Souza (2002) e Gordon (2006).


141 sua visão dos Kayapó atinge com relação aos Piaroa e os Cubeo, respectivamente estudados e retomados pela autora através do trabalho de Goldman (1963). Fisher propõe uma abordagem do ritual enquanto produtor de um senso geral de animação compartilhado por todas as pessoas de uma determinada aldeia e que ele define como um dos elementos centrais para uma concepção nativa de comunidade (1998: 54). Algo muito próximo da ideia de Overing, segundo a qual um dos pilares da produção da socialidade ameríndia, tal como sugerido por Goldman, consiste “no fato de que gente vivendo junta em comunidade depende da criação cotidiana de moral alto entre seus membros, e não do estabelecimento de leis, regras e corporações” (1991: 16). O encontro com o trabalho de Oliveira e sua também apropriação das ideias de Fisher me deu a certeza de que não estava encontrando relações forçadas entre as ideias deste último sobre os Mebêngôkre e de Overing, sobre os Cubeo e os Piaroa. O ponto importante do trabalho destes autores é a interessante rotação de perspectiva que eles propõem para o entendimento do que na antropologia se denomina comunidade. Essa virada, com uma certa inspiração Clastreana, assumida ou não, foi muito bem resumida por Overing em seu texto sobre a estética da produção: “os antropólogos tendem a entender estruturas de hierarquia ou instituições de coerção e subordinação muito mais facilmente do que o fazem quanto a estruturas de igualdade ou instituições de cooperação e paz” (1991: 09). Ao focar na produção de um senso de comunidade por meio da produção coletiva de sentimentos compartilhados, tanto Oliveira (2003), quanto Fisher (1998) abrem caminho para o entendimento da comunidade enfatizando as “instituições de cooperação e paz” e suas “estruturas de igualdade”, evitando definir comunidade como o conjunto de grupos sociais diferenciados no interior de uma dada aldeia. Uma passagem de Fisher é esclarecedora neste sentido: A despeito do malogro dos Kayapó em identificar instituições públicas específicas como a base da comunidade, todos os Kayapó apontam para a significância de compartilhar certos estados emocionais. Ao contrário das associações institucionais ou dos laços de parentesco, emoções compartilhadas, tais como felicidade ou tristeza, são pensadas para serem universalmente experienciadas por todos os habitantes da aldeia (Fisher, 1998:54).

O que está em jogo nessas abordagens é uma noção de comunidade em constante movimento, sendo constituída não simplesmente pela filiação a grupos corporados ou cerimoniais e por sua reprodução no decorrer do tempo, mas pela produção constante desta forma coletiva de compartilhar sentimentos. Temos assim uma passagem, para utilizar uma linguagem batesoniana, dos tipos aos processos. Não é a totalidade dos tipos de aglutinação coletiva e suas diferentes formas de pertencimento que conformam isto que estes autores estão denominando comunidade, mas sim o processo constante de exercer e permanecer exercendo esse desejo de viver em conjunto.


142 Me parece ser justo esse outro ponto seminal do artigo de Overing, quando ela afirma por exemplo que à diferença de povos que acreditam que sua comunidade tem existência temporal por meio de mecanismos tais como a propriedade corporada de bens e as normas jurídicas dessa corporação, nem os Cubeo, nem os Piaroa, entendiam “comunidade”, e as relações que encerrava, como um dado político que permitia continuidade através do tempo, mas enquanto um processo de existência que devia ser cotidianamente obtido pelas pessoas, pelo tato nas relações e pelo trabalho (1991: 16; grifo meu).

Para os rendimentos do presente trabalho, cumpre destacar esse deslocamento do entendimento da comunidade como uma instituição, ou como um conjunto delas, para um seu entendimento enquanto um processo em contínuo vir a ser. Nas palavras de Overing: um processo de existência, que depende da criação de ânimo entre os pares e não simplesmente de seu pertencimento a esse ou aquele grupo ou família. Como vimos, os ensaios e programações oferecem uma estrutura rítmica às atividades cotidianas. Eles são parte integrante do contínuo processo de produção da animação das pessoas para o seu engajamento nas tarefas coletivas. Neste sentido, e para responder a pergunta colocada acima, pode-se dizer que a permanente produção de rituais é uma forma eficaz de produzir continuamente emoções compartilhadas por todos, ou seja, de produzir continuamente um senso de comunidade, de fabricá-lo por meio dos rituais e objetificá-lo para que outras aldeias possam vê-lo em ação. Entre os Mebêngôkre uma tal forma de entendimento da vida em sociedade é marcadamente reiterada pelo conceito nativo mejx, cujo campo semântico, como afirma Gordon, “cobre uma série de atributos que poderíamos glosar como ‘bom, bem, belo, bonito, correto, perfeito, ótimo’”, de modo que esta categoria, “não exprime somente valores estéticos, senão igualmente valores morais ou éticos” (2009: 09). Assim, tanto quanto para os Piaroa, para os Mebêngôkre, beleza é entendida como expressão de valores políticos e morais (Vidal, 1992: 144) e está intimamente relacionado a produção coletiva de ânimo, como vimos, uma das condições de existência dos rituais. Como afirma Fisher, durante uma cerimônia de nominação, por exemplo, papéis são diferenciados, mas um senso geral de animação é sentido por todos. (…). Esta animação não é meramente o produto da atividade coletiva, mas é concebida como a meta de uma tal atividade, é justo isso que ela visa produzir. (1998: 55).

A escolha, como afirma Oliveira, pela ênfase na coesividade, equivalência e similaridade se reflete na forma como é entendida por estes autores a relação entre produção do parentesco e produção ritual. Nos trabalhos dos dois autores o ritual vai além do parentesco, não porque as


143 pessoas estão divididas em grupos cujas formas de afiliação não se dão necessariamente por relações de parentesco, mas porque as pessoas ao realizarem rituais estão compartilhando sentimentos que também são compartilhados no grupo mais íntimo de convivência. Fisher, novamente esclarece esse ponto: Eu não estou sugerindo que não é importante prestar atenção às formas ou padrões organizacionais como índices de comunidade. Organização por ela mesma, entretanto, não resulta automaticamente no tipo de sentimento que os Kayapó associam à comunidade. Para serem efetivas, atividades grupais devem produzir estados físicos e sociais combinados que estão correlacionados a certas emoções. Esses sentimentos são poderosos porque eles são expressões sociais, públicas e coletivas de sentimentos que, quando experienciados no domínio doméstico, são sentidas como consequências naturais de sentimentos existentes entre parentes próximos, uns em relação aos outros, uma vez que compartilham uma essência física comum (1998: 54).

A criação disso que Fisher denomina substância física comum é uma das características constantes da produção do parentesco entre os ameríndios e está relacionado a própria produção da corporalidade e da pessoa entre esses povos. Entre os Jê, uma tal conceituação foi classicamente definida por Melatti (1976) e Damatta (1976), em suas definições dos grupos domésticos respectivamente Krahô e Apinajé, como grupos constituídos por “laços de substância”. Como se sabe, uma tal definição implicava em encontrar nos grupos cerimoniais e políticos o par da oposição ora criada entre os domínios domésticos e públicos das sociedades jê. Os clássicos “laços de substância” existentes entre esses grupos ganharam em muito em termos de compreensão quando refraseados em um idioma não da natureza ou do biológico, mas das emoções e de seu compartilhamento coletivo. Nos termos de Overing, da própria convivialidade presente na constituição desses laços. Uma das vantagens de um tal idioma é o de não incorrer em tal dicotomia na análise e ressaltar, ao invés disso, que “a razão para que membros de uma comunidade tornem-se crescentemente similares um para com o outro é que eles estão respectivamente envolvidos com a criação de cada um; com o passar do tempo mutualidade cria um certo tipo de homogeneidade material” (1996: 06). Oliveira traduziu de modo convincente estas ideias de Overing para o caso específico dos Mebêngôkre, mas que poderia ser estendido para os Jê, quando ampliou a noção de 'substância' abarcando não apenas seus elementos físicos e biológicos, mas também seus aspectos psicológicos e emocionais. Em suas palavras, como notado por Melatti para os Krahô, existe a noção de uma substância comum compartilhada por trás de tais práticas [de viver em família]. Mas esta substância poderia não ser entendida somente em termos físicos/fisiológicos. Uma poderosa ideia de cuidado é operativa aqui, e ela envolve mais do que simplesmente uma comunidade de substância física. Ela implica também um sentimento psicológico geral de animação e bem estar – que poderia ser chamado de felicidade – obtido no


144 interior do mais intimo círculo de convivialidade (…). A criação de felicidade que os Mebêngôkre insistentemente colocam como a razão de ser de suas cerimonias, pode ser visto como algo apropriadamente similar, no nível da aldeia, ao estado geral de animação e bem estar que deve ser obtido nas relações daqueles que vivem em íntima familiaridade (2003: 131).

Parentesco e ritual são assim aproximados, não como polos opostos respectivamente associados aos domínios privados e públicos, mas como tendo uma continuidade entre si manifesta na criação mútua de famílias e coletividades51. Um tal entendimento dessa continuidade, digamos assim emocional e psicológica das sensações compartilhadas nos rituais e no seio da intimidade mais próxima, pode ser vista nos discursos cerimoniais proferidos pelos chefes e lideranças durante a festa de aniversário. Em tais discursos os valores da convivialidade íntima são publicizados como exemplo de ética a ser seguida nas relações coletivas. Assim, não é por acaso, por exemplo, que Ôro evoque em seu discurso as relações entre irmãs e irmãos como o ideal de comportamento a ser seguidos por todos. Durante sua fala, Ôro diz: Nós temos que cuidar das crianças e cuidar dos velhos que já estão fracos. Porque não é muita gente para cuidar, os velhos não são muitos. Eles tem que ficar com boa saúde e para isso nós temos que lutar (guai ba kukwa kam u mari mejx). Porque nós estamos juntos e eu estou falando para vocês permanecerem assim. Não pode esquecer dos outros. Tem que ser amigo (ombikwá) de todos. Tem que ser irmão (kamy) de todos. Tem que ser como irmã (kanikwôj) e irmão (kamy).

As relações entre irmã e irmão entre os Mebêngôkre são marcadas por cuidados mútuos. Um irmão sempre que caça algum animal na floresta, entrega um pedaço de sua presa para sua irmã, que lhe retribui com alimentos de sua roça. Esse vínculo forte é sempre reatualizado pelas pinturas corporais feitas nos irmãos pelas irmãs, sobretudo quando os primeiros não são casados. Do mesmo modo, uma irmã produz os enfeites corporais de miçanga para o seu irmão quando este ainda é solteiro. Além disso, os irmãos e irmãs estão intimamente relacionados pela troca de nomes, uma vez que o primeiro idealmente transmite seus nomes ao filho de sua irmã, enquanto esta última transmite seus nomes para a filha de seu irmão (Lea, 2012: 159). A uxorilocalidade mebêngôkre, não impede que irmãos e irmãs mesmo depois de casados, sigam mantendo essa relação de cuidado mútuo. A casa materna, onde idealmente as irmãs permanecem e da qual os homens partem ao casar, continua sendo uma referência para estes últimos. São as casas dos seus pais e os homens sempre retornam a ela para cuidar dos seus parentes mais próximos. Cuidar dos velhos é uma tarefa que idealmente deve ser seguida por todos os filhos. Como afirma Lea, os filhos sempre podem contar com a mãe para fornecer comida, “até ela se tornar muito velha e cada vez mais dependente 51

Outras formas de superar essa oposição entre parentesco e ritual estão presentes nos trabalhos de Coelho de Souza (2002), sobre os Jê; e de Gordon (2006), sobre os Mebêngôkre. Estas abordagens serão consideradas na segunda e terceira parte do presente trabalho.


145 de seus filhos”(2012:159). No que tange à oferta de comida, o mesmo se pode dizer das irmãs. Oliveira registra que para os homens Xikrin suas irmãs são a epitome da amizade e do parentesco, sobretudo, porque elas sempre estão dispostas a ofertar comida para eles quando assim necessitarem (2003: 130). Tal como Oliveira, presenciei por diversas vezes os homens deixarem momentaneamente a casa de suas esposas para comerem na casa de suas irmãs que, seguindo a uxorilocalidade característica dos Mebêngôkre, é também a casa de sua mãe. Neste sentido, não é difícil concordar com Lea quando ela afirma por exemplo que é mais comum que um homem seja alimentado por sua irmã do que por sua própria esposa (1986). Embora esta afirmação pareça um tanto radical, ela parece propícia para demonstrar a importância da relação de cuidado mútuo entre irmãos e irmãs como ideal de convivialidade mebêngôkre, tal como formulado por Ôro em seu discurso. Ao retomar esses preceitos da convivialidade mebêngôkre em seu discurso no contexto da festa, Ôro está reforçando os sentimentos e emoções compartilhados por todos durante o aniversário. O sentimento de felicidade coletiva, ou o senso geral de animação, só pode ser atingido se todos viverem como irmãos e irmãs, sendo generosos como eles. Em uma entrevista Ôro retomou essa temática do cuidado mútuo nos termos da comensalidade e da oferta de comida. Ele disse: Eu sempre falo aqui na aldeia para todo mundo viver em paz, ser amigo, viver como irmão e irmã. Por exemplo, tem que dar comida para alguém que aparecer na casa dele. Se eu apareço na casa de alguém, a pessoa vai oferecer comida para mim e se eu me interessar de comer eu posso comer ou se eu tiver de barriga cheia eu falo obrigado e, então, eu posso levar para minha casa para as outras pessoas comerem. É assim que tem que ser. Um irmão ou uma irmã não pode deixar o outro com fome. Por isso que eu falo que todos tem que ser como irmão e irmã. Tem que dar comida para os outros e comer junto também. É isso que acontece, por isso que eu sempre falo na aldeia Môjkarakô. Hoje ainda eu vou falar. Todo final de semana eu falo.

A generosidade e o cuidado mútuo entre irmãos e irmãs devem ser disseminados como valores ideais para todas as relações dos moradores da aldeia. A relação entre irmão e irmã é assim, como que o ideal de convivialidade para os mebêngôkre. Como diz Ôro, jamais se deve negar comida a um irmão, ou a uma irmã e essa impossibilidade deve guiar o comportamento dos moradores da aldeia independentemente das relações de parentesco. Mas para além da generosidade e da oferta, deve-se levar em conta a comensalidade própria às relações entre os irmãos, bem como aos parentes que convivem em uma determinada família. Deve-se ressaltar não apenas a oferta de comida, mas o ato mesmo de comer junto, como um dos importantes vetores de produção do parentesco e por extensão da produção do ritual. Como já se sabe, entre os ameríndios, a partilha do alimento, bem como a comensalidade “não apenas marcam as relações entre parentes, como as


146 produzem. Comer como alguém e com alguém é um forte vetor de identidade, assim como se abster por ou com alguém. A partilha do alimento e do código culinário fabrica, portanto, pessoas da mesma espécie” (Fausto, 2002: 15). Em outras palavras, comer em conjunto cria similaridade entre as pessoas e a coletividade não apareceria senão como o ato e o efeito de cozinhar para e comer com outras pessoas. Não por acaso, a comida, sua produção coletiva e sua oferta, é um tema constante nos rituais mebêngôkre e também e como não poderia deixar de ser, da festa de aniversário. Aqui podemos relembrar a reunião que deu início a cerimônia, onde os homens assalariados da aldeia se juntaram para prover os alimentos necessários a produção da festa. Podemos lembrar também da contínua distribuição desses alimentos durante o período dos ensaios como uma das estratégias de animação das pessoas pelos organizadores da festa. Neste contexto, pode-se dizer que a comida propícia a própria festa, cria mesmo as condições de sua existência, e por extensão a existência da comunidade enquanto uma coletividade que, como uma família, come em conjunto. Para concluir esse capítulo, pode-se dizer que a cerimônia do aniversário de Môjkarakô evidencia de modo particularmente saliente como os rituais “criam um estado no qual a aldeia como um todo age como se ela fosse uma família” (Oliveira, 2003: 125; Fisher, 2001: 132), ao compartilhar sentimentos de felicidade e bem estar e também ao compartilhar o alimento ritual. Neste sentido, o bolo do aniversário pode ser entendido como o índice máximo dessa comensalidade coletivizada. Como os nomes bonitos confirmados nas cerimônias de nominação, o bolo é um índice “que se refere a produção e diferenciação de relações através do tempo” (Fisher, 2001: 117). Essa formulação torna-se particularmente interessante quando se tem em mente que a festa de aniversário da aldeia é também, e como vimos, uma performance do encontro entre os dois chefes, Kaikware e Akjabôro, e seus respectivos seguidores, ocorridos a mais de quinze anos atrás. A festa de aniversário é, assim, e no sentido da produção dessas relações, um índice do processo de transformação desses dois grupos de pessoas em uma única comunidade e de como eles produziram as condições subjetivas e objetivas para se viver (e comer) em conjunto. No que tange a diferenciação de relações através do tempo, ela, a festa, é um resultado objetificado e para consumo externo desse processo contínuo de produção do parentesco e dos valores e ideais que o motivaram e continuam motivando. Se as diferenças internas são suprimidas nestes contextos, se nele reina o ideal de “irmandade” e o sentimento unificado de felicidade tal como emulado pelos chefes e tal como produzido no ritual, é porque a diferenciação em seu sentido agonístico está colocada para fora, direcionado às outras aldeias pertencentes às redes de relações


147 nas quais Môjkarakô e seus chefes e habitantes estão inseridos. A festa de aniversário, além de afirmar e reafirmar laços de parentesco constituídos através do tempo, e mesmo, além de incentivar esse processo, direciona sua produção também para o exterior, para embate estético e político que se desenrola atualmente entre as aldeias do sul do Pará. Não por acaso, o evento é meticulosamente filmado para posterior gravação em DVDs rapidamente espalhados para outras aldeias, para que seus habitantes contemplem a beleza de Môjkarakô e a alegria de seus habitantes em seu aniversário de quinze anos. No próximo capítulo, veremos como os efeitos desse processo temporal de produção e diferenciação de relações se concretizam em termos políticos na cerimônia de posse de dois novos caciques da aldeia Môjkarakô.


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Capítulo III

A Cerimônia de posse: da política em Môjkarakô

O presente capítulo descreve e analisa a cerimônia de posse de dois novos chefes da aldeia Môjkarakô. Como não estava na aldeia quando a cerimônia ocorreu, recorri a um filme produzido pelos cinegrafistas do Projeto de Documentação das Culturas para descrever as cenas que se seguem. Elas servem de referência para tratar de um dos temas complexos da etnologia dos Mebêngôkre que diz respeito à sua criatividade política. Esta temática, vista aqui a partir de um caso específico, nos permite dar seguimento à análise empreendida no capítulo anterior, no que tange ao processo de fusão dos dois grupos de pessoas que se encontraram para fundar a aldeia Môjkarakô, tão bem tematizado na cerimônia de aniversário. O reordenamento político consumado na cerimônia de posse dos novos caciques aponta para transformações nas formas de organização política da aldeia: passa-se das formas de organização baseadas no faccionalismo, para formas de organização calcadas nas categorias de idade. Argumento que essas transformações apontam para o processo de produção do parentesco entre os dois grupos, concretizando no plano político a fusão entre eles.

Etnografando um filme-ritual Graças à concepção dos cinegrafistas indígenas a respeito do que é filmar um ritual 52, no filme da cerimônia de posse é possível acompanhar a mesma estrutura de referência em crescente presente no aniversário, bem como nas diversas cerimônias realizadas pelos Mebêngôkre. O filme está dividido em três capítulos de dez a quinze minutos de duração, cada qual correspondendo a um dos três dias da cerimônia. Cada um desses capítulos são pequenos fragmentos visuais de performances realizadas durante os dias, seguindo uma apresentação cronológica da programação do evento. No que se segue descrevo cada um dos capítulos do filme, enfatizando a criatividade 52

Sobre a concepção de filmagem mebêngôkre, ver Turner (1993) e Madi (2011).


149 estética e política dos habitantes de Môjkarakô, concretizada na produção de novas canções, novos passos de danças e novas pinturas corporais que expressam a própria dinâmica política.

Os grupos de idade entram em cena O primeiro dia da cerimônia de posse exibe com clareza a dinâmica ritual dos grupos de idade presentes em Môjkarakô e sua conexão direta com a organização política da aldeia. Antes de descrever as diversas performances desses grupos e suas filiações políticas, torna-se necessário fazer um breve resumo das categorias de idade mebêngôkre. Como já amplamente descrito pela literatura53, o sistema de categorias etárias mebêngôkre classifica as pessoas de ambos os gêneros de acordo com seu desenvolvimento corporal e as capacidades adquiridas no ciclo de vida. Tanto o desenvolvimento corporal, quanto as capacidades adquiridas no ciclo de vida não devem ser entendidas como algo biológico ou natural. Como afirma Coelho de Souza, aqui, são sempre pessoas (enquanto corpos criados por outras pessoas) e não a natureza ou a biologia que geram outros corpos: não se imaginam corpos crescendo automaticamente, independentemente de ações específicas de outros (parentes). Toda geração, “biológica” inclusive, é criativa e intencional: pessoas são feitas da vontade de outras pessoas (2010: 17).

Feito esse importante esclarecimento pode-se então descrever de modo sumário as categorias de idade mebêngôkre54. Os bebês e crianças pequenas masculinos e femininos recebem uma classificação que não distingue o gênero. Ambos são descritos respectivamente como mekaràre e meprire. Quando os meprire adquirem maior autonomia eles são reclassificados como mebôktire, para os meninos e mekurerereti, para as meninas. Por volta dos dez anos de idade, os mebôktire tornam-se meôkre e as mekurerereti, ingressam na categoria de idade das meprintire. Depois, já na adolescência, os rapazes que passaram pela iniciação masculina e que são solteiros e/ou recém-casados, mas ainda não possuem filhos, são denominados menoronyre. Mekurerere, é a classificação correspondente para as moças púberes, também já iniciadas, mas ainda solteiras e sem filhos. Quando da existência de filhos, a nomenclatura não define mais o gênero, agrupando homens e mulheres nas mesmas categorias de acordo com a quantidade de filhos que eles possuem. Assim, a categoria mekrare, que engloba todos os homens e mulheres com filhos, é por sua vez dividia entre mekranyre (pessoas que possuem poucos filhos e/ou filhos pequenos) e mekrakrãmti (pessoas que possuem muitos filhos e/ou filhos crescidos). Por fim, temos a categoria mebengêt para homens e 53

54

Para descrições e análises sobre as categorias de idade mebêngôkre ver Turner (1966), Vidal (1977), Verswijver (1992), Lea (2012), Fisher (2001) e Cohn (2000). O processo de produção de pessoas e corpos será retomado no capítulo sobre a pintura corporal.


150 mulheres já avôs e com filhos que já se tornaram mekrãre (Gordon, 2006: 179; Lea, 2012: 159-167; Vidal, 1977; Verswijver, 1992; Turner, 1965). No próximo capítulo veremos como todo o processo temporal do ciclo de vida se produz como um processo de endurecimento do corpo e ao mesmo tempo, de sua maturação; processos esses, que não são coetâneos (Gordon, 2006). Veremos como a produção do corpo e mesmo da pele não se separa da produção da pessoa, de suas capacidades e suas agências. O ponto aqui é demonstrar como pessoas que vivenciam esses diferentes estados corporais se organizam ritualmente para atualizar a nova forma política que reinará em Môjkarakô depois daqueles dias de festa. A programação do primeiro dia da cerimônia foi marcado pelas apresentações rituais de cada um desses grupos de idade presentes na aldeia, com exceção das crianças que não participaram da festa e dos homens e mulheres mebengêt que se apresentaram em conjunto com os homens e mulheres da categoria mekrakrãmti. Seguindo a sequência estabelecida no filme dos cinegrafistas, percebe-se a noção de processo que envolve o ritual mebêngôkre. Embora o filme não registre os ensaios e preparações que antecedem as cerimônias, graças às técnicas de edição manipuladas pelos cinegrafistas é possível acompanhar a transformação dos corpos dos participantes, bem como sua animação, ambos representados, como vimos, pelo uso paulatino dos enfeites, esses índices de animação, boa saúde e bem viver. Assim, já no primeiro take do vídeo somos levados a contemplar essa transformação quando um pequeno grupo de homens da categoria dos mekrakamti, reunido na casa dos homens, aparece em cena, de manhã bem cedo. Eles estão em formação de dança e de fato, em poucos segundos começam a cantar e se direcionam em fila, marcando o passo rumo ao pátio. Além disso, estão sem qualquer enfeite ou pintura. Quando, de costas para a câmera, eles alcançam o meio da praça de dança um efeito visual utilizado pelos cinegrafistas na edição do vídeo transforma os corpos dos dançarinos. O sol está alto agora e os corpos, em maior número, estão devidamente pintados e enfeitados e se movimentam refazendo com mais expressividade o percurso performático do grupo anterior. Nas próximas cenas, o mesmo procedimento de edição é realizado com as mulheres da mesma categoria etária. Portando primeiramente somente pinturas corporais, graças aos efeitos visuais manipulados pelos cinegrafistas, elas se transformam, percorrendo o pátio da aldeia com suas longas bandoleiras de miçanga. Esses dois grupos de homens e mulheres da categoria etária dos mekrakamti, embora se apresentem separadamente, possuem algumas características em comum em sua indumentária. A cor predominante nos diferentes enfeites é o amarelo. A pintura corporal, embora siga padrões


151 gráficos diversos, também apresenta uma peculiaridade comum. Por entre os grafismos estampados nos corpos daqueles homens e mulheres está escrito “Moipá”, o nome de um dos chefes (o mais velho) que tomaria posse durante a cerimônia. Observação semelhante pode ser feita quando entram em cena os homens e mulheres classificados como mekranure, ou seja, que têm poucos filhos. Embora se apresentem separadamente como os anteriores, se distinguem destes pela cor branca predominante em seus enfeites. Além disso, os mekranure exibem tal como os mekrakamti, um padrão de pintura corporal correspondente ao de seu chefe. Nos corpos das pessoas desses grupos está escrito, também por entre grafismos, “Játire”, o nome do outro chefe (o novo) que também tomaria posse durante a cerimônia. Os menoronyre e as mekurerere, também diferenciados dos mekrakamti e dos mekranure pela cor azul de seus enfeites de miçanga, apresentam-se primeiramente separados e depois em conjunto com os respectivos grupos masculinos e femininos desta última categoria. Como eles, portam o padrão gráfico com o nome do líder novo. Os mebengêt, por sua vez, estão diluídos sem diferenciação entre os mekrare. Durante todo o primeiro capítulo do filme é possível perceber um movimento contínuo de agrupamento entre as categorias de idade, no que se refere às performances cerimoniais. Primeiro, cada um dos grupos de idade apresenta-se separadamente exibindo seus kukràdjà diferenciados para os demais, concretizado nos enfeites de cores e formas diversas e nas canções e passos de dança também diversos. Depois, os menoronyre e as mekurerere, se juntam aos grupos dos mekranure de seus respectivos gêneros. De modo que, em determinado momento da cerimônia, há quatro grupos cerimoniais revezando-se no pátio de dança. A ordem das apresentações destes grupos parece também não ser fortuita. Primeiro, dividem o pátio de dança os homens e mulheres mekranure, ou seja, aqueles que seriam liderados por Játire, o chefe dessa respectiva classe de idade. As pinturas corporais exibidas pelos grupos de homens e mulheres mekranure, e também pelos menoronyre e mekurerere que haviam se juntado a eles, embora se diferenciem nas formas e nos padrões, possuem a peculiaridade de ter como parte de seus padrões gráficos a palavra “Játire”, o nome do novo chefe. Depois dessa sequência, o filme exibe agora as apresentações dos homens e mulheres mekrakrãmti. Estes, estão com a pintura corporal em que está escrito o nome de seu respectivo chefe (“Moipá”), isto é, do chefe da mesma categoria de idade que eles. É interessante notar que embora cada um dos grupos de seguidores esteja se apresentando separadamente segundo o gênero, parece haver uma sincronia entre as apresentações dos homens e das mulheres filiados aos respectivos chefes. Os grupos de dançarinos e dançarinas seguidores de Játire interagem entre si durante as apresentações e cantam uma mesma canção de boas vindas ao


152 novo chefe. O mesmo ocorrendo com os grupos de dançarinos e dançarinas que serão liderados por Moipá. Essa sincronia entre os homens e mulheres associados a cada um dos chefes é ressaltada pelo fato de que enquanto um deles está dançando, o outro descansa e assiste as apresentações na casa dos homens. Cada um dos grupos forma o público das apresentações dos outros, inserindo um espírito de rivalidade entre eles, na medida em que cada um quer impressionar o outro com sua performance. Esse mesmo espírito fica patente quando uma nova reorganização dos grupos toma conta do pátio de dança. Agora seguindo um critério de gênero, todos os homens dançam em conjunto pelo pátio da aldeia, formando uma longa e sinuosa fila onde podem ser visualizados os diferentes grupos etários masculinos. À frente estão os mekranure enfeitados com seus calções e adornos na cor branca. Atrás deles estão os menoronyre, destacados pelas cores azuis de seus enfeites. Seguem a estes na longa fila os mekrakrãmti, com sua indumentária amarela. No fim da fila, vêm os mebengêt, também de amarelo, mas carregando bordunas e espingardas nos ombros, como se estivessem na retaguarda de uma expedição guerreira. Enquanto essa grande linha de dançarinos percorre sinuosamente o pátio de dança, as mulheres se reúnem em conjunto na casa dos homens, compondo o público para a apresentação dos homens. Tão logo a ponta da fila dos guerreiros chega ao ngábe, elas se organizam para dançar todas juntas. Ao contrário dos homens, elas não seguem em fila. Formam na verdade um bloco de linhas verticais compostas por mulheres abraçadas. Novamente, com o auxílio das cores dos enfeites de miçanga, é possível diferenciar os grupos de idade que formam o bloco de dançarinas. Como na grande fila dos homens, à frente do bloco estão as mekranure, seguidas das mekurerere, que por sua vez são seguidas pelas mekrakrãmti e pelas mebengêt, estas últimas carregando seus netos no colo. Depois de se apresentarem, as mulheres se encaminham para a casa dos homens, onde estes últimos estão reunidos. Vai começar a parte final do primeiro dia de cerimônia, não por acaso o seu momento ápice, quando todos os participantes da festa ocupam em conjunto o pátio de dança, quando os diferentes grupos etários se fundem em um único bloco de dançarinos. Contudo, o grande bloco que se forma no centro da aldeia está como que fatiado por divisões de gênero e idade. Cada uma das categorias de idade, com exceção dos mebengêt (os velhos) dos dois sexos, compõe filas alternadas. A primeira fila da direita para a esquerda é ocupada pelos mekranure (aqueles que possuem poucos filhos). Ao seu lado estão as mekurerere (as moças púberes), seguidas pelos homens mekrakrãmti (que possuem muitos filhos). Estes por sua vez estão ao lado de duas filas de mulheres mekranure, seguidas pelos menoronyre (rapazes sem filhos). Fecha o bloco a fila das


153 mulheres mekrakrãmti. Todos cantam uma mesma música e executam um passo de dança que consiste em percorrer um longo circulo em volta do pátio de dança. Quando as pessoas completam duas voltas nesse círculo imaginário e começam a parar, um corte de edição no filme direciona a imagem para uma nova formação dos dançarinos, que mantém, contudo, a divisão etária da anterior. Só que ao invés de formarem um bloco, os dançarinos formam um grande arco concêntrico, com diferentes camadas de de pessoas e cores. Novo corte no filme e agora os dançarinos estão em formação de kwôre-kangô, em um contínuo movimento de vai e vem. O ritmo dos dançarinos se acelera e eles se preparam para realizar a rotação característica desse passo de dança. Ao tentar fazer esse movimento os blocos de dançarinos se desfazem, causando grande confusão entre as pessoas, que caem na gargalhada. E é com esse sentimento de alegria no ar que o primeiro capítulo do filme se encerra. Interessa registrar particularmente o contínuo movimento de separação e junção dos grupos de idade durante a cerimônia. Como vimos, a cerimônia se inicia com a apresentação separada de cada um dos seis grupos de idade, divididos entre os menoronyre e as mekurerere, os homens e mulheres mekranure e os homens e mulheres mekrakrãmti. Depois da primeira rodada de apresentações, os menoronyre e as mekurerere se agrupam para dançar com seus respectivos grupos de homens e mulheres mekranure. Neste momento, os grupos de dançarinos se diferenciam pela filiação política a um dos dois chefes. Na sequência são os grupos de homens e mulheres mekranure que, encorpados com a presença das mekurerere e dos menoronyre em cada um deles, se junta aos respectivos grupos de homens e mulheres da categoria mekrakrãmti No fim do primeiro dia da cerimônia, estes dois grandes grupos de homens e mulheres se reúnem para dançar formando um único conjunto onde estão presentes as três categorias de idade de cada um dos gêneros. Esse continuo movimento apresentado paulatinamente no primeiro capítulo do vídeo segue assim uma ordem fusional: no início da cerimônia todos os grupos de idade se apresentam separadamente. Com o decorrer das apresentações eles vão se agrupando até formar um único bloco de dançarinos ao final da cerimônia. Gostaria de argumentar que esta estrutura de apresentação, em sua contínua junção dos grupos de idade, expressa o que está se passando na esfera política. Não se trata, contudo, de uma mera representação. Trata-se sim de uma atualização contextual que coloca em evidência a transformação de uma organização política baseada no faccionalismo em uma organização política calcada nas categorias etárias. O momento ápice da cerimônia, quando todos os grupos etários dançam e cantam em conjunto – sem, contudo, deixar de demonstrar sua diferenciação expressa nas posições assumidas nos blocos de dançarinos e também pelo uso de


154 enfeites e pinturas corporais de formas e cores diversas – atualiza uma ordem política em que as diferenças faccionárias são suprimidas em prol de uma organização etária mais igualitária. Como veremos a frente, a organização política mebêngôkre varia entre a divisão faccionária – que segundo os índios estimula a competição e o conflito entre os diferentes grupos presentes na aldeia – e a organização por grupos de idade, que também segundo os nativos, suprime as diferenças faccionais em prol de uma ordem mais igualitária. É justamente essa transformação que, acredito, esteja sendo atualizada ou ensejada neste primeiro dia de cerimônia. No segundo dia, como veremos agora, outros atores entram em cena.

Chegam os visitantes O segundo dia da cerimônia de posse é marcado pela chegada dos visitantes de outras aldeias. No filme, isto fica explícito logo no início da segunda parte quando somos levados a contemplar a chegada dos dois chefes da aldeia Aúkre convidados para a cerimônia. Eles vêm acompanhados de mais três homens, formando uma pequena delegação que é recebida na beira do rio por um dos organizadores da cerimônia e pelo cacique velho Moté. Estes os encaminham até um lugar próximo à entrada da aldeia, onde um grupo de quatro “rainhas” espera os chefes para conduzi-los até o ngábe. Nesse ponto do filme é possível ouvir os cantos que ecoam da casa dos homens, onde os habitantes da aldeia estão reunidos para receber os convidados. Rapidamente o organizador forma a cena da entrada dos caciques. Primeiro, ele posiciona cada um dos caciques entre duas rainhas, que dão as mãos para eles. Depois, posiciona o cacique velho Moté na frente da comitiva. Quando a cena está armada, o organizador diz para eles esperarem até que o locutor do evento os convide a entrar. Passados alguns breves minutos, pode-se ouvir a voz do locutor: Bom dia Môjkarakô. Nós estamos aqui para a cerimônia de posse dos novos caciques. Agora nós vamos receber os caciques da aldeia Aúkre que vieram para a festa. A nossa festa está bonita e agora vai ficar melhor. Por favor, venham caciques.

Depois dessas palavras a comitiva é levada pelas rainhas até a casa dos homens. Logo no início do percurso, ouve-se novamente a voz do locutor: Por favor, eu gostaria de pedir para as pessoas que estão acompanhando os caciques para tirarem a camisa, para a nossa festa ficar mais bonita e a imagem ficar bonita também.

Em que pese a solicitação estética do locutor, os acompanhantes seguiram caminhando como


155 estavam até o ngábe, que estava devidamente preparado para a recepção. Os menoronyre haviam colocado palhas de palmeira no chão da casa dos homens e em sua extremidade direita havia, como de praxe nestas ocasiões cerimoniais, três mastros com as respectivas bandeiras do Brasil, de Môjkarakô e da Funai. Os participantes formavam um grande retângulo acompanhando a arquitetura da casa dos homens, onde em uma de suas extremidades estavam posicionados os caciques Akjabôro, Kaikware e Pinkà. Quando a comitiva alcançou a casa dos homens, novamente o organizador preparou a cena. O cacique velho Moté foi colocado entre os caciques de Môjkarakô, enquanto que os de Aúkre tomaram suas posições próximos a eles em uma das laterais da casa dos homens, com as rainhas ao seu lado. Quando tudo estava arranjado, o locutor do evento chamou a atenção de todos para a execução do hino nacional em mebêngôkre, seguido da execução do hino de Môjkarakô. Após a execução dos hinos, era chegada a hora dos cumprimentos. Os dois caciques de Aúkre cumprimentaram os chefes de Môjkarakô com abraços efusivos e depois apertaram as mãos de cada uma das pessoas presentes. Enquanto aconteciam os cumprimentos, o locutor novamente falou: É isso pessoal. Vamos dar boas vindas aos caciques de Aúkre. Eles estão aqui para acompanhar a cerimônia de posse dos nossos novos caciques. A presença deles é muito importante aqui. Agora eles vão descansar da viagem e de tarde eles vão dançar com a gente. Muito obrigado a todos que estão presentes aqui. A nossa festa está muito bonita. Obrigado Môjkarakô.

De fato, como disse o locutor, a presença dos caciques de Aúkre era muito importante naquele contexto. Como vimos, foi justo dessa aldeia que se separou um dos grupos que vieram a compor Môjkarakô, o grupo liderado por Kaikware. A presença dos caciques era, por assim dizer, uma estratégia diplomática de reaproximação com aquela aldeia, com a qual relações políticas haviam sido cortadas desde a cisão. Mesmo que houvesse visitas esporádicas entre famílias e pessoas das duas aldeias, em termos de aliança política os chefes de Môjkarakô haviam se aproximado mais dos chefes de outras aldeias, como Kikretum, Kôkraimôro, Pykararãkre e Apêjxti. Mas existia uma outra razão para a reaproximação entre os chefes das duas aldeias. Cerca de seis meses antes da cerimônia de posse, Aúkre havia sofrido uma nova cisão. Um grupo de cerca de cem pessoas havia saído para fundar a aldeia Ngôméjxti. Embora não tenha dados sobre os motivos que levaram a essa nova cisão em Aúkre, pude perceber no campo os efeitos que ela trouxe para os habitantes de Môjkarakô. Seus chefes e habitantes ficaram insatisfeitos quando souberam do local onde a nova aldeia seria construída. Tratava-se de um lugar no Riozinho, um pouco depois de onde este se encontra com o Rio Vermelho. O fato é que esse era um local


156 privilegiado de caça e pesca para os habitantes de Môjkarakô. A possibilidade de ficarem sem ele levou à convocação feita pelo cacique velho Moté para uma reunião em Môjkarakô, para tratar do assunto. Algo que tornou a situação um pouco mais tensa foi o fato de que o cacique de Ngômexti, estrategicamente, faltou à referida reunião, onde estavam presentes também os caciques da aldeia Kikretum. Estes últimos, para remediar o eminente conflito, abriram mão de uma parte de seu território de caça, pesca e coleta para abrigar a nova aldeia. Passados poucos dias da referida reunião, os habitantes de Ngômejxti migraram para uma localidade na margem direita do rio Fresco, onde este se encontra com o Riozinho. Este episódio acabou por fortalecer a relação entre os chefes de Môjkarakô e Aúkre. A atitude negativa dos chefes de Môjkarakô para com a ocupação irregular do território feita pelos habitantes da nova aldeia foi interpretado pelos caciques de Aúkre com um gesto de solidariedade política, abrindo um novo canal de comunicação entre as aldeias. Aos chefes de Môjkarakô, por sua vez, interessava demonstrar a autonomia política da sua aldeia que, depois de mais de quinze anos de sua fundação, se consolidava no cenário político inter-aldeão. Assim, a aproximação com Aúkre pode ser entendida como o reconhecimento por parte dos chefes desta aldeia da autonomia política de Môjkarakô. Essa aliança é portanto um índice da consolidação de Môjkarakô enquanto aldeia bonita, populosa e cujas pessoas e chefes trabalhavam em prol da comunidade, trazendo para o plano inter-aldeão um sentimento de comunidade já partilhado internamente, que torna-se ainda mais forte quando é plenamente reconhecido por outros. Esse alinhamento com Aúkre não era, contudo, tão expressivo quanto aquele realizado com Kikretum, como o demonstra a participação maciça de sua população na cerimônia de posse dos novos caciques. O segundo grupo de convidados a aportar na beira do Riozinho era uma grande delegação da aldeia Kikretum, seguida por seus respectivos chefes. Eles haviam sido convidados para participar da cerimônia de posse, não só como dançarinos a engrossar as fileiras do espetáculo, mas também como jogadores de futebol. Faziam parte da programação da cerimônia partidas de futebol entre as seleções masculinas e femininas das duas aldeias marcadas para acontecer no dia seguinte a posse dos caciques. A chegada do grande grupo de Kikretum em Môjkarakô foi um espetáculo à parte. Eles vinham em seis voadeiras em sua lotação máxima e seus passageiros estavam devidamente pintados e paramentados. Quando estavam prestes a chegar na aldeia, os seis barcos se alinharam e todos os tripulantes começaram a cantar em conjunto, permanecendo nessa posição até que os organizadores da cerimônia abrissem caminho entre as crianças que tomavam banho na beira rio. Na margem do


157 Riozinho, muitos habitantes de Môjkarakô, também devidamente pintados e paramentados, prestigiavam a chegada dos seus convidados. Lá no pátio, o locutor anunciava a presença dos visitantes e chamava os organizadores para produzirem a cena da chegada do povo de Kikretum. Alguns jovens foram escalados para levar a bagagem dos convidados para as devidas casas onde eles ficariam hospedados, permitindo que eles dançassem livremente. Os organizadores então entraram em cena. Primeiro, organizaram as pessoas de Môjkarakô no pátio da aldeia em duas grandes linhas paralelas de homens e mulheres. Os chefes da aldeia estavam dispostos um ao lado do outro à frente dos mastros com as bandeiras e ao lado deles estavam os dois chefes de Aúkre Enquanto isso, lá na beira do rio, outros organizadores se ocupavam em preparar a entrada da grande comitiva de convidados, com seus respectivos chefes. Como na entrada dos caciques de Aúkre, os dois chefes de Kikretum foram colocados cada um entre duas “rainhas” e novamente o velho Moté fazia as vezes de anfitrião à frente da comitiva. Logo atrás dos dois chefes, os convidados estavam divididos em duas grandes filas de homens e mulheres que cantavam e dançavam fortemente. O locutor então deu o sinal para que a comitiva fizesse sua entrada triunfal em Môjkarakô: Boa tarde Môjkarakô. Nós estamos recebendo agora as pessoas de aldeia Kikretum. Eles estão chegando. Vamos dar boas vindas a eles para a nossa festa ficar mais bonita. Eles estão vindo, vamos receber eles com palmas. Por favor palmas para o pessoal da aldeia Kikretum. Amanhã vai ter jogo de futebol masculino e feminino. A apresentação deles está muito bonita. Por favor, rainhas tragam os caciques para a frente. Agora vamos ver a apresentação de Kikretum.

Enquanto os caciques eram levados para o local em que se encontravam os chefes de Môjkarakô e Aúkre, os habitantes de Kikretum dançavam e cantavam no pátio fazendo um longo movimento por entre o retângulo formado pelos anfitriões. Como que sincronizados, quando os caciques alcançaram suas posições, os grupos de dançarinos encerraram sua performance se colocando imediatamente atrás de seus chefes. Akjabôro, então, saiu de seu lugar e caminhou em direção de Niti, o principal chefe de Kikretum dando-lhes efusivos abraços. Depois repetiu o gesto com o outro cacique e conduziu-os para que cumprimentassem os demais chefes. Após esses cumprimentos, os chefes de Kikretum passaram a apertar a mão de cada um dos moradores de Môjkarakô presentes na cerimônia, o mesmo sendo feito pela grande delegação de Kikretum. Durante esse cumprimento coletivo, o hino de Môjkarakô soava pelas caixas de som. Assim termina, no filme, o segundo dia de festa. Um corte e já estamos no dia da posse de Moipá e Játire.


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A cerimônia de posse O último capítulo do filme produzido pelos cinegrafistas é dedicado ao momento da posse propriamente dita dos novos caciques. Ele se inicia como no primeiro dia da cerimônia, com os diferentes grupos de idade femininos e masculinos da aldeia se apresentando de modo intercalado no pátio de dança. As apresentações seguem o mesmo movimento de separação e fusão apresentados no primeiro dia da festa, de modo que cada um dos grupos de idade femininos e masculinos se apresentam separadamente e gradualmente vão se agrupando até que em um determinado momento estão todos dançando juntos. Mas neste último dia, que é também o momento ápice de toda a cerimônia, nota-se a apresentação de dois novos grupos compostos pelos visitantes femininos e masculinos da aldeia Kikretum. Tal como os outros grupos de idade presentes, os grupos de Kikretum primeiro se apresentam separadamente, se intercalando com as apresentações dos habitantes de Môjkarakô. Em seguida os grupos masculinos e femininos da aldeia visitante se juntam para se apresentar em conjunto. Depois dessa rodada de apresentações, os grupos dos visitantes são incorporados pelos anfitriões em uma apresentação em que todos dançam e cantam em conjunto. Outro ponto a se destacar é que os grupos de idade femininos e masculinos de Môjkarakô portam pinturas corporais com os nomes de seus respectivos chefes. Assim, os grupos de idade de homens e mulheres mekranure (aqueles que possuem poucos filhos) estão pintados com um motivo gráfico preenchido com o nome Játire que é o nome do chefe mais novo que irá tomar posse naquele dia. O mesmo ocorre com os homens e mulheres da categoria dos mekrakamti (aqueles que possuem muitos filhos e/ou filhos crescidos). Eles portam grafismos com o nome de Moipá, o homem que sucederá Kaikware e Pinkà, também a partir daquele dia. Seguindo essa diferenciação, cada um dos grupos homenageia os novos chefes, cantando canções de boas vindas para eles. Depois da apresentação de cada um desses grupos de idade e da apresentação dos visitantes de Kikretum, os organizadores da cerimônia começam a preparar os participantes para o momento solene da posse. Primeiro os caciques da aldeia, bem como os caciques de Aúkre e Kikretum são dispostos um ao lado do outro à frente da casa dos homens e diante do pátio de dança. Atrás deles estavam os mastros com as bandeiras que seriam hasteadas durante a cerimônia. Os habitantes da aldeia por sua vez são organizados mais uma vez segundo gênero e idade em duas grandes filas paralelas que se iniciavam em cada uma das pontas da fila composta pelos caciques. Do lado esquerdo da casa dos homens estão os homens da categoria dos mekrakamti, alinhados um ao lado


159 do outro. Estes são seguidos pelas mulheres da mesma categoria de idade. No lado oposto, a fila se inicia com os homens da categoria dos mekranure, seguidos pelos homens da mesma categoria de idade da aldeia Kikretum. Depois destes a fila continua com os menoronyre de Môjkarakô e se encerra com as mulheres da categoria de idade mekranure, seguida das mekurerere da aldeia. Novamente, há uma divisão clara entre os mekrakamti e os mekranure de ambos os gêneros, de modo que cada uma das filas é composta por cada uma destas categorias etárias e, convém lembrar, cada um destes dois grupos de idade está portando pinturas corporais com os nomes de seus respectivos chefes. Essa organização forma um grande retângulo no pátio da aldeia, só que com uma de suas extremidades abertas. É justamente por essa extremidade que os dois novos chefes adentram no pátio e se posicionam diante dos caciques da aldeia Môjkarakô, Kikretum e Aúkre. A entrada dos novos chefes em cena aparece como algo espetacular no vídeo. Quando todas as pessoas participantes da cerimônia haviam se posicionado em seus respectivos lugares, cada uma das filas compostas pelos dançarinos começaram a cantar canções diferentes. Os mekrakamti, que portavam a pintura com o nome de Moipá, cantavam uma canção de boas vindas ao seu novo chefe, o mesmo acontecendo com os que estavam do outro lado do retângulo, que cantavam uma canção de boas vindas ao chefe Játire. Na verdade, parecia haver uma disputa sonora entre os dois grupos a ponto de não se conseguir discernir com clareza no áudio do vídeo nenhuma das duas canções. No auge dessa polifonia sonora, cada um dos novos chefes começa a entrar em cena. Eles saem de suas respectivas casas, acompanhados cada qual por duas “rainhas” que os conduzem de mãos dadas. Eles estão devidamente paramentados com enfeites de miçanga (cintos, braçadeiras, bandoleiras) e portam o cocar meaká. Lentamente eles vão caminhando ao som das canções até se encontrarem na extremidade vazia do retângulo que se formara no pátio de dança. Por um momento eles ficam parados neste local enquanto seus futuros seguidores aumentam o volume das diferentes canções que os homenageiam. Parece haver um esforço por cada um dos seguidores perfilados em cada uma das linhas do retângulo em superar em altura as canções de seus oponentes momentâneos. Em meio ao alto volume do som, os dois novos chefes avançam pelo pátio adentro, seguidos de suas respectivas duplas de rainhas. Eles estão um ao lado do outro e, caminhando lentamente, chegam até o local onde estão situados os caciques. Param diante deles enquanto o som dos seus seguidores continua estridente. Ao longe pode-se ver duas crianças vestidas como rainhas. Elas carregam em conjunto a bandeira de Môjkarakô dobrada. As duas crianças caminham lentamente até o local onde os dois caciques estão posicionados e param ao lado deles. Os seguidores continuam cantando forte. O plano da filmagem se abre para captar toda a cena. Com um corte brusco o filme se encerra neste


160 momento. Depois de descrever esse momento culminante da cerimônia com toda a sua dramaticidade é preciso dedicar algumas linhas à “conjuntura política” que fez esses homens chegarem onde chegaram, e mais do que isso, é preciso se perguntar sobre quais foram as transformações ocorridas em Môjkarakô que tornaram possível a escolha desses dois homens para serem os novos chefes, nesta distinta cerimônia.

Organização política em Môjkarakô O tema da organização política entre os Mebêngôkre já foi fartamente documentado por seus etnógrafos (Turner, 1965, 1979, 1992; Verswijver, 1992; Vidal, 1977; Bamberger, 1979; Fisher, 1998; Lea, 1986, 2012; Gordon, 2006; Cohn, 2005). Em que pesem as diferentes abordagens, os pesquisadores tendem a concordar com a coexistência de uma série de formas de organização privilegiadas por diferentes coletivos mebêngôkre ao sabor de sua história e das redes de relações constituídas em determinados contextos. Essas diferentes formas de agremiação têm recebido classificações tais como “turmas”, “facções”, “sociedades de homens”, “metades”, e não raro se intercruzam com as famosas “categorias de idade”. O interesse dos etnógrafos recai justamente sobre a dinâmica política dessas formas de organização, sua variação no tempo, seu aspecto, digamos assim, processual. Vidal, por exemplo, afirma que tanto entre os Mebêngôkre quanto entre os outros grupos jê existe um acervo variado de sistemas de classificação de indivíduos e que estes sistemas, existentes em todas as sociedades, não possuem, porém, nem a mesma importância nem as mesmas funções nos diferentes grupos. O que parece é que estas sociedades transferem o peso estrutural ora a uma, ora a outra instituição, dependendo de contingências históricas e de antecedentes culturais (1979: 133).

O objetivo aqui, como já dito, é descrever a alternância entre duas formas de organização política constantemente destacadas pelos etnógrafos: aquela baseada no faccionalismo e aquela concretizada através das categorias etárias. A hipótese é que o “peso estrutural” concedido a uma ou outra dessas formas tem a ver com o paulatino processo de fusão (aparentamento) entre os dois grupos que se uniram para fundar Môjkarakô. Esse processo de unificação foi concretizado pelo estabelecimento sistemático de relações de parentesco através do tempo entre os dois grupos, resultando em seu também crescente aumento populacional. Como disse, mudanças na estrutura política mebêngôkre são reportadas por diversos etnógrafos. A mais conhecida delas, sem duvida, é aquela descrita por Turner (1992) em seu ensaio


161 sobre a história dos grupos mebêngôkre. Neste ensaio, Turner apresenta duas configurações políticas nos períodos pré e pós contato que, embora sejam distintas, demonstram possuir uma certa continuidade. A base da organização tradicional mebêngôkre – ou seja, daquela existente antes da pacificação – está sedimentada na existência de duas casas dos homens, uma do lado leste e a outra no lado oeste das grandes aldeias existentes no passado. São poucas as informações a respeito dessa configuração política. Nimuendaju, ao ouvir de um informante essa mesma descrição, supôs que as casas dos homens eram metades matrimoniais, ou seja, que regulavam inter-casamentos. Turner, como seus colegas do Harward Brasil Central Project, revogou totalmente essa interpretação de Nimuendaju. Para Turner, as duas casas dos homens eram o espaço de expressão do controle político dos velhos sobre os jovens, replicando no âmbito público a forma da relação hierárquica sogro-genro estabelecida no âmbito doméstico. Cada casa dos homens era dividida internamente por categorias etárias, cujos indivíduos ocupavam assentos específicos. Em geral, com os homens casados ao centro, os mebengêt em uma das pontas, sendo a outra ocupada pelos solteiros. A afiliação às ditas sociedades de homens presentes em cada uma das casas dos homens é considerada independente de qualquer laço de parentesco. Cada sociedade possui um chefe específico, e cada um desses chefes, de cada uma das casas dos homens, tem autoridade difusa no âmbito da aldeia. Os efeitos deletérios do contato, alteraram a divisão em duas casas dos homens vistas como metades. Como afirma Turner, com o início das relações comerciais e/ou hostis com os brasileiros, cada vez mais intensas e, o aumento concomitante da frequência de hostilidades entre os vários grupos kayapó, a camada politicamente dominante dentro da aldeia, a dos homens maduros da categoria de idade dos pais, teve de definir sua preeminência na comunidade, cada vez mais em termos de sua liderança nas relações externas de ataques ou comércio com os brasileiros ou outras comunidades indígenas. A partir do momento em que a representação da comunidade em relação a grupos sociais externos tornou-se mais importante do que a representação de uma casa dos homens em relação à outra no seio da comunidade, a estrutura de metades tornou-se redundante enquanto base de manutenção da predominância dos pais mais velhos sobre os membros mais jovens de sua categoria de idade e sobre os solteiros (1992: 335).

Essa passagem de Turner concentra uma de suas ideias que têm sido questionadas por outros pesquisadores (Lea, 1986, 2012; Coelho de Souza, 2002; Gordon, 2006; Cohn, 2005). Turner constrói uma imagem da socialidade mebêngôkre total ou basicamente voltada para o interior, como se o contato fosse uma espécie de “marco zero” da alteridade mebêngôkre, definindo-a como antes e depois de uma dependência estrutural para com a sociedade brasileira. E justamente quando “a parcela politicamente dominante” da aldeia se vê imbricada em um sem número de relações externas, o equilíbrio interno da estrutura de metades baseada em duas casa dos homens é abalado.


162 Essa imagem não deixa de evocar um certo entendimento da questão concedendo “aos brancos um estatuto ontológico absolutamente privilegiado” (Gordon, 2006: 388). Em resumo, Turner parece estar dizendo que foi a dependência com relação ao mundo externo que colocou em cheque o equilíbrio da organização interna tradicional. Além de obsoleta, a oposição entre duas casas dos homens, “tornou-se destruidora, foco de divisão faccional” (Turner, 1992: 335). Contudo, alguns informantes de Turner afirmaram para ele que a organização política com duas casas dos homens só era potencialmente eficaz em aldeias muito populosas, onde existia uma intensa atividade faccional. Quando perguntou aos seus informantes Mekrãgnoti e Gorotire sobre o porquê de não restaurarem o sistema de metades em suas grandes aldeias contemporâneas, o autor ouviu que a outra casa dos homens só seria construída quando a população da aldeia fosse grande o bastante. Até então, dividir a casa dos homens existente em duas casas dos homens opostas só produziria mais conflitos faccionais. Em outras palavras, enquanto não chegasse o momento em que a comunidade ultrapassasse o nível de uma aliança instável entre grupos reunidos em torno de um chefe, relativamente autônomos e marcados pela desconfiança mútua (…), a forma institucional da estrutura de metades serviria apenas para articular e não para conter as rivalidades entre os grupos unidos em torno de um chefe (1992: 333).

Ao presenciar uma outra discussão entre os Mekrãgnoti sobre a melhor forma de acomodação de um novo grupo liderado por um chefe que possivelmente chegaria à aldeia, Turner ouviu que a ampla maioria dos presentes entendia que seria mais eficiente “juntar a todos [inclusive os possíveis novos moradores] numa única casa dos homens, para que as distinções entre seus vários líderes e seus grupos fossem apagadas pela incorporação de todos numa série única de grupos homogêneos baseados na idade” (Idem; grifo meu). Gostaria de reter aqui essa ideia apresentada pelos informantes de Turner sobre a organização por meio de categorias etárias como sendo uma forma de conter a rivalidade entre diferentes facções. Essa premissa nativa, parece ser coerente com a transformação ocorrida em Môjkarakô, onde houve justamente uma passagem da forma de organização calcada no faccionalismo para uma forma de organização baseada nas categorias de idade. Entre os Xikrin do Cateté, Vidal (1979) descreve uma situação oposta àquela apresentada por Turner. Aqui a transformação é no sentido contrário. De uma configuração inicial baseada no sistema de categorias etárias, os Xikrin estudados pela autora são conduzidos a uma divisão que enfatiza o faccionalismo. Antes do contato, os homens Xikrin se dividiam em dois grupos políticos baseados nas categorias etárias: um grupo maior de mekranure (homens com poucos filhos), liderado pelo “capitão novo” e um grupo menor de mekrakrãmti (homens com muitos filhos),


163 liderados pelo chefe da aldeia ou “capitão velho”, que exercia influência também sobre os menoronyre (rapazes sem filhos). Vidal afirma haver uma relação de hierarquia entre os chefes das respectivas categorias etárias. Essa relação é totalmente ignorada quando a Funai instaura um posto indígena na aldeia. O chefe de posto distribui equitativamente as mercadorias para os dois chefes que agora estão em “posição de status equivalente e tornaram-se verdadeiros chefes de turma”. Essa configuração se torna saliente sobretudo pelo fato dos homens das respectivas turmas praticamente abandonarem a casa dos homens como espaço comunitário, para se reuniram agora na casa dos seus respectivos chefes. Segundo Vidal, a distribuição equitativa das mercadorias para os dois chefes não levou em consideração nem o fato de que a turma dos mekranure era mais numerosa, devendo por isso e idealmente receber mais mercadorias, e menos ainda o fato de que o chefe dos mekrakamti deveria receber todos os presentes por ser também o chefe da aldeia. Diante dessa situação de interferência externa, coube aos Xikrin balancear os dois grupos burlando o sistema de categorias etárias. Mesmo que Vidal afirme “reinar uma perfeita harmonia entre os dois chefes, que são irmãos” e ainda que os Xikrin exagerem seu faccionalismo como uma estratégia “para explorar ao máximo a situação e finalmente controlar o próprio chefe de posto” (op. cit.: 139), ela não descarta a tendência ao faccionalismo gerada por esta nova situação. O resultado é que agora cada metade é composta de indivíduos que pertencem a categorias de idade diferentes. Então não são mais metades de categorias de idade, mais sociedades de homens (…). É provável que futuramente (…) se passe a falar dos homens de tal ou tal chefe como acontece entre os Gorotire (Turner, 1965). O chefe do posto, aliás, usa a palavra partido para se referir às metades. E os jovens já dizem que trabalham para tal ou tal chefe (Vidal, 1979: 138).

Temos, assim, uma configuração oposta aquela descrita por Turner para os Gorotire do sul do Pará e para os Mekrãgnoti do norte do Mato Grosso. Se os Xikrin demonstram uma tendência a uma reordenação no sentido do faccionalismo, os Gorotire e Mekrãgnoti parecem optar por uma configuração em que a organização política por meio de categorias etárias suplante as diferenças existentes entre os líderes e suas facções. Contudo, ao invés de postular cada uma dessas configurações como modelos teóricos distintos da organização política mebêngôkre, opto por entendê-las como variações na forma como os diferentes grupos mebêngôkre se constituem em agrupamentos políticos de acordo com seu contexto histórico e suas escolhas diante deste contexto. Trata-se, na verdade, de, parafraseando Oliveira (1995) – que comenta essas diferentes transformações apontadas por esses autores –, colocar em cheque a própria concepção de uma organização política (op. cit.: 80), alargando este conceito e introduzindo nele “o vetor temporal”


164 para dar vazão às variações percebidas nas formas pelas quais os Mebêngôkre contemporâneos se organizam politicamente (op. cit.: 77). No que se segue descrevo como essas formas são atualizadas pelos habitantes de Môjkarakô, dando especial ênfase ao processo temporal, processual e sempre reversível que permitiu a transformação de uma organização política baseada no faccionalismo, para uma em que o sistema de categorias de idade é privilegiado. Essa passagem tem a ver com o próprio processo de criação de laços de parentesco construídos entre as duas facções que se juntaram para formar a aldeia.

ɷɷɷ Quando os dois grupos de pessoas se encontraram na beira do Riozinho para fundar Môjkarakô, cada um deles era chefiado por um líder. Kaikware chefiava o grupo de Aúkre e Akjabôro era o chefe dos que vinham de Kubenkankrenh. Em conjunto com o grupo de Aúkre vinham dois caciques velhos: Moté e Kubenhikaêti, este último pai de Kaikware. Foram esses quatro indivíduos e suas respectivas esposas que assumiram as posições de chefia durante os primeiros anos de convivência em Môjkarakô, os dois primeiros sendo os chefes dos dois grupos que os seguiam e os dois últimos sendo os principais representantes no conselho de homens velhos que então se formava. Passados alguns anos, o conselho de homens achou por bem delegar um chefe específico para a categoria de idade dos mekranure (aqueles que possuem poucos filhos). Kokuí, filho de Moté foi o escolhido para ocupar o cargo de benadjwôronu, o chefe dos homens mais novos. A decisão dos chefes de escolher um líder para essa categoria de idade refletia a própria transformação pela qual já passava a nova aldeia. Logo que se encontraram, os dois chefes incentivaram os inter-casamentos entre as pessoas solteiras dos dois grupos. Em uma entrevista Akjabôro teceu alguns comentários a esse respeito. Foi assim. Primeiro a gente chegou lá em Môjkarakô Chêt (aldeia queimada), aí fizemos a aldeia, mas ficava cada um no seu canto. Não misturava não. Mas eu falei pro Kaikware, os jovens têm que casar, têm que juntar as pessoas para a aldeia ficar bonita, para a aldeia crescer, não pode ficar separado não. Aí teve reunião na casa do guerreiro e eu falei que tinha que juntar. Hoje todos são de Môjkarakô.

Passados quatro anos de convívio, muitos jovens, homens e mulheres, já haviam se casado e tido filhos, acedendo à categoria de idade dos mekranure. A escolha do chefe novo naquele contexto


165 já era, assim, efeito das relações de parentesco estabelecidas entre os dois grupos. Os chefes, como se pode notar na fala de Akjabôro, incentivaram claramente o estabelecimento dessas relações. Era preciso incentivar essa construção de laços de parentesco, dada a afinidade latente entre os dois grupos, sobretudo entre seus membros mais jovens, criando assim um grande contingente de homens e mulheres que em poucos anos acederam à categoria de idade dos mekranure (recém casados e/ou que possuem poucos filhos). A eles agora era necessário um líder e Kokuí, filho do cacique velho Moté, foi o escolhido. Ele lideraria os homens e sua esposa, como de praxe entre os Mebêngôkre, lideraria as mulheres dessa categoria de idade. Contudo, Kokuí não permaneceu muito tempo no cargo. Pinkà, seu irmão mais velho, assumiu seu lugar quando, no ano de 2001, Akjabôro foi escolhido como representante, na arena política brasileira55, das aldeias kayapó do sul do Pará . Ao assumir esse posto de elevado status e grandes responsabilidades, ele não podia mais se dedicar inteiramente à chefia da aldeia. Era preciso um homem de Kubenkankrenh para assumir seu lugar na liderança compartilhada com Kaikware. Pinkà, que já era “assessor” de Akjabôro e era também, como Kokuí, filho do cacique velho Moté, foi o escolhido. Com a saída de Kokuí da chefia dos mekranure e a entrada de Pinkà no lugar de Akjabôro, a lógica do faccionalismo passou a imperar novamente na organização política da aldeia. Os mekranure sem um chefe próprio, deixaram de ser representados formalmente na casa dos homens. Foi justamente essa disposição política que eu encontrei em 2009, quando cheguei pela primeira vez em Môjkarakô. Os grupos que se reuniam na casa dos homens estavam divididos, a primeira vista, por grupos etários: os mebengêt (velhos) de um lado, os mekrakrãmti ao centro e os mekranure do outro lado. Contudo, os mekrakrãmti estavam divididos em dois grupos, aqueles chefiados por Kaikware e em sua maioria provenientes de Aúkre e aqueles liderados por Pinkà, o substituto de Akjabôro, e provenientes na sua maior parte de Kubenkankrenh. Os mekranure permaneciam sem um chefe formal e os mebengêt eram considerados homens de respeito, caciques velhos ou xamãs respeitados, prescindindo de liderança, mas com grande influência nas decisões políticas. Deste modo, passados quase quinze anos da fundação de Môjkarakô, sua chefia permanecia sendo compartilhada por dois chefes representantes de cada uma das facções que se 55

Uma pequena matéria do jornal O Estado de São Paulo, noticiou da seguinte maneira o evento da eleição de Akjabôro: “os mais de 3 mil índios caiapós do sul do Pará acabam de escolher seu novo líder: é o cacique Okiaboro Caiapó [sic], de 34 anos. Ele foi eleito em Assembleia formada por caciques na aldeia Kaiapó de Gorotire. De acordo com Okiabôro [sic] dois problemas que precisam ser enfrentados por seu povo são as constantes invasões da reserva indígena em São Félix do Xingu e o assédio de garimpeiros. “Quem quiser derrubar a floresta para derrubar mogno que vá perturbar os grandes fazendeiros da região. Aqui dentro nós não queremos essa gente ruim”, salientou o cacique” (Oesp, 03/03/2001).


166 juntaram para criá-la. A cerimônia de posse dos novos caciques reembaralha essa organização. A posse dos dois novos chefes é concomitante à “aposentadoria” de Kaikware e Pinkà. Mas os novos chefes não são substitutos desses na posição de liderança de uma facção. Sua posição está agora baseada no sistema de categorias de idade: Moipá é o cacique dos mekrakrãmti e Játire é seu recíproco para os mekranure, aqueles que por quase uma década ficaram sem um chefe formalmente instituído na casa dos homens. A cerimônia de posse é o rito da instituição dos dois caciques, mas é também a concretização na esfera política do processo de fusão entre os dois grupos. Depois de uma década e meia de convivência entre eles, a ascensão dos novos caciques destitui os resquícios da lógica faccional que permaneciam na estrutura política de Môjkarakô. As divisões vinculadas ao pertencimento aos grupos que partiram dessa ou daquela aldeia, se diluem em uma organização política calcada nas categorias etárias. Nesse novo arranjo, Akjabôro assumiu posição destacada. Ele passou a ocupar essa posição, controversa na literatura mebêngôkre, que diz respeito ao chefe da aldeia como um todo. Turner (1966) e Verswijver (1992), afirmam não existir para os Mebêngôkre, “institucionalmente, a figura do chefe único, representando a aldeia inteira” (Gordon, 2006: 183). Gordon por sua vez afirma que essa controvérsia a respeito da existência ou não da posição do chefe de aldeia “decorre da nossa própria dificuldade em lidar com a questão da segmentaridade e com a lógica complexa da relação entre 'parte' e 'todo' na socialidade mebêngôkre” (Idem). Para o autor, a própria divisão política interna em que se encontra um chefe para cada grupo ou facção que compõe a aldeia, decorre justamente “do fato de que a aldeia é um 'todo' muito particular, nunca um 'todo' para todo mundo, o tempo todo” (Idem; grifo no original). Refraseando as colocações de Verswijver e Turner, Gordon conclui que não há institucionalmente a figura do chefe único representante da aldeia inteira, porque não existe institucionalmente a aldeia. A aldeia é uma entidade mais ou menos transitória, que pode manter-se como unidade por um certo tempo, como pode também fracionar-se em novas unidades, estruturalmente idênticas a anterior. Igualmente, essas unidades podem, em determinadas circunstâncias, condensar-se numa unidade maior. A chefia da aldeia é uma virtualidade, cuja atualização depende da história dos grupos mebêngôkre (2006: 183-184; grifo meu).

Esta passagem de Gordon me parece bem apropriada para descrever a situação de Akjabôro. Sua posição como representante das aldeias kayapó do sul do Pará parece ser resultado de uma dessas circunstâncias determinadas, nas quais essas unidades em contínuo movimento de desagregação e fusão denominadas aldeias se condensam em uma unidade mais ampla. Coube a Akjaboro ser o representante dessa unidade, que se é mais geral que outras, continua sendo, como


167 diz Gordon, um “todo muito particular”, pois diz respeito somente ao conjunto de aldeias do sul paraense. As aldeias que ficam ao norte do Mato Grosso tinham desde os fins dos anos de 1980 Raoni (Ropni) como o seu representante máximo 56. Não obstante, a elevação de Akjabôro ao status de grande chefe inter-aldeão o colocou em uma posição ambígua, mesmo com sua renúncia a um dos cargos de chefia da aldeia. Embora tenha se distanciado aos poucos de Môjkarakô para atender as demandas de sua posição, Akjabôro não deixou de ter participação importante nas questões internas. Na verdade, pode-se dizer que sua responsabilidade aumentou frente à comunidade, que ficou com muita expectativa ao ver um de seus fundadores se transformar em um benadjwôro ràjx (chefe grande). Mas além de atender as demandas e expectativas de seus seguidores, Akjabôro devia também atender as solicitações dos chefes das diversas outras aldeias. Por um desses golpes do acaso inerentes às pesquisas de campo, essa situação ambígua de Akjabôro, e as contradições que ela suscitou, atingiram o auge quando cheguei pela primeira vez à Môjkarakô. Um episódio envolvendo a distribuição de uma grande carga de miçangas doadas pelo Museu do Índio (Funai) havia estremecido os laços entre o grande chefe e os moradores da aldeia que ele fundara em conjunto com Kaikware. Por razões que desconheço, os habitantes de Môjkarakô ficaram de fora da repartição da volumosa carga de miçangas. Akjabôro tentou compensar esse fato através da distribuição de roupas e calcinhas para as mulheres da aldeia. Mas essa atitude por sua vez deixou os homens descontentes. Enfim, o fato é que quando retornou conosco para a aldeia depois da viagem ao Museu do Índio, no Rio de Janeiro, Akjabôro necessitava reatar os laços com a comunidade. Foi o que ele deixou claro em seu discurso durante a cerimônia, feita entre outras razões para nos recepcionar, e que marcou seu retorno à aldeia. Nessa ocasião, ele disse as seguintes palavras para os moradores que o ouviam na casa dos homens: Nós trouxemos vocês para a aldeia Môjkarakô, eu e Kaikware, quando nos encontramos. Vocês lembram? Agora, eu estou voltando para lutar aqui. Eu pensei e lembrei que eu vi vocês quando ainda eram pequenos e hoje vocês estão grandes. E outras pessoas já são adultas, já têm filhos. Vocês sabem que eu sou liderança de todas as aldeias kayapó. Todos vocês me viram trabalhando naquele cargo. Vocês sabem muito bem, por isso eu não ajudei muito Môjkarakô. Por isso que agora eu estou voltando para ajudar vocês. (…) Eu trouxe os vestidos para as mulheres. Aí vocês homens reclamaram para mim: “cadê as nossas roupas”? As roupas para as mulheres são para elas ficarem bonitas para vocês. Por isso que eu estou ajudando vocês. Nós temos que conversar juntos. Para vocês me ajudarem. Eu ajudo vocês também. Nós temos que ficar unidos, para alimentar as nossas 56

A própria escolha de um representante do sul paraense em oposição ao representante das aldeias do Mato Grosso, parece ter se dado porque Raoni se apresentava em inúmeras ocasiões em nome de todos os Kayapó. Mas se falava como representante geral da nação kayapó, os recursos captados através de suas articulações nacionais e internacionais eram canalizados para as aldeias do Mato Grosso, gerando insatisfação entre os chefes das aldeias do sul do Pará, que, por sua vez, resolveram então escolher um seu representante na arena política brasileira.


168 famílias. Todos têm que trabalhar juntos, para a aldeia crescer e ficar mais bonita. É isso que eu quero. Eu não gosto de fazer as coisas sozinho. Não!! Eu não sou muitos! Eu sou um só! Por isso que eu quero que vocês trabalhem comigo.

De fato, depois desse discurso de reconciliação, houve uma aproximação entre Akjabôro e os membros da aldeia. Um dos resultados concretos dessa reaproximação foi que Akjabôro construiu uma grande casa na aldeia com a ajuda de muitos jovens adultos da categoria de idade dos mekranure,, no mesmo lugar onde se situava aquela que ele havia praticamente abandonado. Agora intercalava suas viagens com longas temporadas em Môjkarakô e para se redimir de uma vez por todas do episódio das miçangas, conseguiu por intermédio de suas relações com o diretor do Museu do Índio, uma respeitável carga de 200 quilos de contas coloridas para serem distribuídas entre os moradores da aldeia. Depois desses eventos, Akjabôro agora despontava como o chefe da aldeia, cargo acumulado ao de representante único das aldeias do sul do Pará. Foi neste contexto que ele pôde interceder diretamente na escolha dos novos chefes, solucionando uma nova subdivisão que despontava em Môjkarakô e que quase levou a sua cisão. O fato aconteceu quando um grupo de cinco famílias logrou construir uma pequena aldeia com algumas habitações no castanhal explorado por eles na época das chuvas. Um dos homens desse grupo despontava no cenário político de Môjkarakô. Através de suas articulações externas ele era constantemente convidado para eventos culturais como a “Aldeia Multiétnica”, “Feira de Sementes Krahô”, dentre outros; e invariavelmente convidava as outras famílias companheiras de castanhal a participar de tais eventos. A relativa autonomia que esse grupo assumiu, passando quase um terço do ano no castanhal e, além disso, viajando juntos para diversos eventos, foi entendida pelos habitantes de Môjkarakô como uma vontade de separação da aldeia por parte do grupo 57. Rumores começaram a surgir e comentava-se a boca pequena que era questão de tempo a saída permanente daquele grupo. De fato, o grupo possuía todas as condições necessárias à conformação de uma nova comunidade. Havia, em primeiro lugar, um chefe prestigiado e com boas articulações externas. Havia também o fato de que a afiliação ao grupo era fruto das relações de amizade entre os casais que o compunham, não havendo relações de parentesco entre eles, o que garantia as condições de sua própria reprodução no tempo através de possíveis futuros casamentos entre os membros mais novos das diferentes famílias. Contudo, essa ameaça de cisão não chegou a se realizar de fato. Por acaso ou não, no mesmo período em que os rumores já haviam se espalhado pela aldeia, Kaikware e Pinkà começaram a 57

Entre os Mebêngôkre, segundo Turner, “a emigração costuma ser vista como uma manifestação de hostilidade ou, na melhor das hipóteses, uma mostra de desconfiança em relação à liderança e ordem local” (1992: 326).


169 manifestar o interesse em se “aposentar” de seus cargos de cacique, provocando o reordenamento político mencionado acima. O interessante neste ponto é que Moipá – o homem escolhido para substituir tanto Kaikware quanto Pinkà na chefia, não de determinadas facções, mas dos homens mais velhos, os mekrakamti – pertencia, justamente, ao grupo do castanhal. A escolha de Moipá para ser o chefe dos mekrakamti certamente impediu qualquer movimento no sentido da separação do grupo do castanhal. Como os Gorotire e Mekrãgnoti, descritos por Turner, os Mebêngôkre de Môjkarakô optavam aqui por dissolver a dinâmica faccional em um sistema baseado nas categorias de idade. Assim, não custa lembrar, Moipá assumia a chefia dos mekrakamti, os homens mais velhos, enquanto Játire assumia a chefia dos mekranure, os homens mais novos; já Akjabôro tornara-se reconhecidamente o chefe da aldeia. A escolha por essa estrutura hierárquica, baseada nas categorias etárias, por um lado, e no prestígio de Akjabôro, por outro, pode ser entendida como uma dupla solução contra a tendência ao faccionalismo mebêngôkre. Primeiro, ela produz uma reaproximação à aldeia principal do grupo do castanhal que já ensaiava uma separação. Segundo, e mais importante, ela é uma escolha coerente com o processo de aparentamento ocorrido nos mais de quinze anos de convivência entre os dois grupos que se encontraram para formar a aldeia. Como disse Akjabôro, agora todos eram de Môjkarakô, a fusão estava consolidada, não fazendo sentido, portanto, que a chefia continuasse a ser exercida por um representante de cada um dos dois grupos originários. Esse duplo movimento contra a tendência ao faccionalismo não quer dizer, contudo, que outras divisões faccionárias não poderão surgir no futuro, ou mesmo, que não estejam sendo esboçadas no presente. Em que pese essa possibilidade sempre latente, trata-se, na verdade, de perceber a eficácia dessa solução para um momento preciso da história de Môjkarakô. Momento esse celebrado e, pode-se mesmo dizer, concretizado na própria cerimônia de posse dos novos caciques. Ocorrida um ano depois do aniversário de quinze anos de Môjkarakô, a cerimônia de posse como que confirma no âmbito da política o processo de fusão entre os dois grupos de pessoas que se encontraram para fundar a aldeia. Tudo se passa como se a cerimônia de posse, e a reorganização política que ela simboliza, fosse um rito de confirmação da construção exitosa do parentesco, da constituição mesma de uma comunidade. Em termos políticos foi preciso então que as facções ainda reinantes e sempre atualizadas fossem diluídas ou, no dizer de Turner (1992), apagadas em uma série única de grupos homogêneos baseados na idade. É claro que se deve suspeitar dessa homogeneização provocada pela organização etária. Conflitos continuam e continuarão existindo, facções e outras formas de agrupamento também. Mas a escolha por conter as possíveis desavenças,


170 ao invés de incentivá-las, parece ser clara tanto para os habitantes de Môjkarakô, quanto para aqueles da aldeia Mekrãngoti descritos por Turner (1992). No caso de Môjkarakô, o mais importante, porém, é a coerência entre essa escolha e o processo histórico de fusão das duas facções que a fundaram, tal como vimos sendo concretizada na cerimônia de aniversário. A posse dos novos caciques confirma não apenas a beleza e as capacidades 58 daqueles indivíduos que estavam sendo escolhidos como chefes, mas também a beleza e as capacidades daquela comunidade de parentesco que se criou durante aqueles quinze anos. É isso que está sendo afirmado e confirmado durante a cerimônia também para os visitantes. Estes eram chefes e habitantes de aldeias que, não por acaso, haviam passado por cisões recentes, justamente por não conseguir conter divisões faccionárias. Mais uma vez, o “jeito” de Môjkarakô (seu kukràdjà) tornava-se exemplo a ser seguido pelas outras aldeias, sobretudo, por aquelas cujos chefes estavam presentes no evento. A forma mebêngôkre tal como atualizada pelos moradores de Môjkarakô, por seus chefes, guerreiros e guerreiras, se concretizava na cerimônia de posse não apenas por meio da expressividade da cerimônia e pela felicidade de seus participantes durante sua produção, mas também e sobretudo pela própria reorganização política consagrada pela festa – como vimos, realizada em um contexto específico, quando um grupo de moradores ensaiava sua partida. A cerimônia de posse, quando pensada em um plano inter-aldeão, não deixa de nos remeter aos processos de cisão entre as aldeias mebêngôkre e suas consequências para os grupos dissidentes. Primeiro, porque ela própria evidenciava a escolha feita pelos moradores de Môjkarakô de conter um grupo dissidente por meio de uma organização política mais afeita ao êxito do processo de fusão que se desenrolara entre eles. Segundo, porque ela estava sendo executada diante de chefes de duas grandes aldeias que haviam passado por cisões recentes. Aqui deve-se lembrar que tal como para os Krahô analisados por Azanha, também entre os Mebêngôkre estamos, pois, frente à um processo cismogenético de tipo simétrico (Bateson, op. cit.cap II e III), um processo de cissiparidade que redunda em uma diferenciação dos grupos sem mudança da forma original. A consequência deste processo é que ele coloca os grupos assim diferenciados frente a frente como “iguais”, estabelecendo uma rivalidade entre eles na medida em que cada um interpreta a “forma comum” à sua maneira (Azanha, 1984: 13; grifo no original).

A cerimônia de posse é, assim, o momento mesmo de objetificação da própria interpretação à maneira dos habitantes de Môjkarakô, dessa “forma comum”, e por isso poderosamente 58

Segundo Verswijver (1992: 68-70) as capacidades e qualidades esperadas de um chefe Mebêngôkre são as seguintes: 1) conhecer e executar o ben, um tipo especifico de oratória que é executada em contextos específicos; 2) ser um conhecedor da cultura kayapó (mekukràdjà kuni mari); 3) saber falar bem, ou seja, ser um bom orador; 4) conhecer remédios e plantas medicinais; 5) ser belicoso; 7) ser generoso.


171 comparável. Naquele contexto, objetifica-se a solução política encontrada e ritualizada pelos habitantes de Môjkarakô. Nela se atualiza, como vimos, o próprio “jeito” da aldeia, seu kukràdjà, aquilo que a faz diferente das outras. Para encerrar este capítulo pode-se, então, apresentar um outro dado da política em Môjkarakô e que acredito fazer parte da versão da forma mebêngôkre, tal como atualizada por seus moradores. Esse dado, que só agora trago à tona, diz respeito à própria forma com que a maioria de seus homens adultos, sobretudo, aqueles considerados mekrãre, faz política interétnica. Em Môjkarakô existe uma grande liberdade desses homens em conseguir “projetos” e parcerias com agências não indígenas, de modo que existia uma verdadeira equipe de guerreiros executivos prontos a sair à caça de seus kuben: Kokuí, Moipá, Kôkôranti, Krôiti, Mokuká, Ôro, Ekran, Tabata, Bepkaêti, Dukre, Jakuri, Ykaryry e Mokuká; todos estes homens fazem parte dessa equipe, todos eles estão em busca de parcerias para a comunidade. Através deles e de seus contatos, os habitantes de Môjkarakô recebem convidados vindos de longe, como representantes do Ministério da Cultura, jornalistas, arquitetos, políticos locais, representantes da Embrapa, antropólogos e, mesmo, turistas. Através deles tecem-se contatos e parcerias que enriquecem a aldeia no cenário local. Assim, se tomamos o caso de Môjkarakô como exemplo pode-se dizer que não existe entre os Mebêngôkre a figura institucionalizada do “dono dos brancos”, tal como ela aparece no Alto Xingu, por exemplo, entre os Kalapalo (Guerreiro Júnior, 2011). Se aqui como lá, “os brancos também precisam de um dono”, no caso mebêngôkre, ao menos tal como atualizado pelos habitantes de Môjkarakô, os donos dos brancos podem ser muitos e não um só. Parece ser justo essa incumbência, de ser o único dono dos brancos, que Akjabôro renega em seu discurso citado acima. Como se dissesse para seus guerreiros que o fato dele ser só um e não muitos o impedia de ser dono de muitos kuben. Por isso, os outros deveriam ajudar também. Assim, poder-se-ia dizer que qualquer um dos homens citados acima não só podem como são considerados dono de alguns brancos. A pulverização dessas possibilidades talvez tenha a ver com o aprendizado de seus dois chefes principais, Kaikware e Akjabôro, que abandonaram suas respectivas aldeias por motivos relacionados à atuação em atividades econômicas desenvolvidas junto às agências não indígenas. Talvez por isso, por essa experiência acumulada, eles houvessem “liberado” seus seguidores para também desenvolver parcerias com os kuben, ao invés de centralizar todas elas como ocorre na atuação da maioria dos outros chefes59, inclusive com aqueles com os quais tiveram as desavenças responsáveis por tirá-los de suas aldeias de origem. 59

Dentre os chefes contemporâneos vistos como centralizadores pelos habitantes de Môjkarakô destacam-se Mundico, chefe de Kôkraimôro e Nití, chefe de Kikretum.


172 A questão aqui, como diria Kracke (1993), diz respeito aos “estilos de chefia” empregados pelos chefes de Môjkarakô. Não há assim, uma centralização por parte do chefe da aldeia das relações interétnicas a serem estabelecidas. Embora se espere que ele também teça com sua maestria essas relações, ele é somente mais um a buscá-las e consegui-las. Por traz dele há uma verdadeira equipe de guerreiros ávidos por “projetos” e “parcerias”, por capturar kuben e trazê-los para a aldeia, para “ajudar a comunidade”. Este estilo de fazer as coisas, essa interpretação específica da forma mebêngôkre, faz de Môjkarakô uma aldeia que começa a ser admirada no cenário local por moradores de outras aldeias. Durante uma reunião de professores indígenas realizada em São Félix do Xingu, da qual participei durante a pesquisa de campo, um dos professores de outra aldeia aproximou-se para conversar comigo. Após se apresentar muito gentilmente, perguntou em qual aldeia eu trabalhava. Respondi que trabalhava em Môjkarakô e ele iniciou, então, um breve discurso sobre essa aldeia. Môjkarakô é uma aldeia aberta! Lá, os chefe não decidem tudo, outros guerreiros participam da organização, puxam os projetos para a aldeia. Por isso lá já tem computador, lá já tem filmadora, lá já tem cinegrafista. Na nossa aldeia não tem nada disso. Tem um chefe só trabalhando, não tem muitos guerreiros junto com ele. Parece que lá em Môjkarakô o pessoal já foi até para a França, todo ano vai para a Chapada [dos veadeiros], Brasília, Rio de janeiro. Môjkarakô é mejx kumrenx (muito boa, muito bonita). Eu quero morar lá também.


173

PARTE 2 INTERMEZZO

Figura 13: A mão negra de jenipapo de uma mulher kayapó segura uma quase imperceptível linha de naylon, onde serão depositadas miçangas coloridas.


174

Capítulo IV

Pintura corporal: sobre peles, tintas e corpos

Nós não crescemos sozinhos, nós crescemos com a pintura do jenipapo e os enfeites feitos pelas nossas mães. (Ruth Kayapó)

O presente capítulo trata de um tema clássico da etnologia mebêngôkre: a pintura corporal. Este tema tornou-se famoso com os trabalhos de Turner (1980) e, sobretudo, Vidal (1992). O primeiro, ao se debruçar sobre a importância da pintura corporal entre os Mebêngôkre, criou o termo social skin, termo que se tornou famoso e foi disseminado em revistas de divulgação científica, programas de televisão e filmes documentários sobre os Kayapó. A segunda, publicou seus resultados de pesquisa em artigo em inglês, assim como no clássico livro Grafismo indígena (1992), organizado por ela e que reunia uma série de artigos com resultados pioneiros de pesquisa sobre a “decoração corporal” dos povos das Terras baixas, muitos dos quais orientados e/ou produzidos em diálogo com Lux Vidal. Este capítulo não deixa assim de retomar esses trabalhos clássicos, apresentando, contudo, uma nova guinada na abordagem para este tema tão marcado na literatura mebêngôkre. No caso da abordagem aqui proposta, posso dizer que ela está respaldada nos desdobramentos ocorridos nos estudos sobre decoração corporal ameríndia e de modo mais geral, na própria antropologia da arte. Na introdução de um livro recente sobre grafismo e figuração entre os ameríndios, Lagrou e Severi (2013: 11), em diálogo direto com a iniciativa inovadora presente em Grafismo Indígena, afirmam: Os trinta anos que separam os dois livros testemunharam uma marcada guinada na abordagem teórica do tema: de uma ênfase na arte enquanto sistema de comunicação para uma abordagem praxiológica onde se dá destaque à centralidade da agência da imagem (uma proposta reveladora desta guinada se encontra em Gell, 1998).


175 O exercício proposto neste capítulo é o de aplicar os desdobramentos dessa abordagem praxiológica para o caso da pintura corporal mebêngôkre. Neste sentido, faço minhas as palavras de Barcelos Neto em seu estudo sobre às máscaras wauja, quando ele afirma que sua opção por uma teoria da agência, ao invés de teorias do simbolismo, deve-se ao fato da primeira oferecer possibilidades ainda muito pouco exploradas para a explicação das categorias de humano e não-humano na Amazônia. A perspectiva simbólica dos estudos antropológicos da arte procura saber o que a arte pode “dizer” sobre alguma coisa. Não digo que a arte não se presta a “dizer” isso ou aquilo sobre a “cultura” e a “sociedade”, mas não é essa a opção teórica que persigo aqui (2005: 14).

Parafraseando o autor e de acordo com outros que o antecederam (Lagrou, 1998 e 2002; Gell, 1998), penso que o problema social e cultural que a pintura corporal impõe é também o da sua condição de agente, coexistente à sua condição de símbolo. Fala-se, portanto, neste capítulo, sobre o que a pintura faz ou é capaz de fazer ou sobre o que as mulheres mebêngôkre são capazes de fazer com ela. Embora sejam empreendimentos diferentes, levando a resultados também diferentes, os referidos trabalhos de Turner e Vidal60 partilham um mesmo “vocabulário” sociológico, onde a ênfase recai sobre o aspecto comunicacional e intra-social da pintura corporal, não apenas como importante classificador de indivíduos e grupos, mas também como uma forma de socializar o corpo. Trata-se nestes estudos de decifrar uma linguagem simbólica: a pintura e os adornos corporais configuram um código social que deve ser interpretado pelo antropólogo. No caso de Turner, a decifração dessa linguagem simbólica da pintura se manifesta na ideia da imposição de uma segunda pele, uma pele social, sobre a pele biológica, nua do indivíduo. Esta segunda pele expressa simbolicamente a socialização do corpo humano – a subordinação dos aspectos físicos da existência individual aos valores e comportamentos sociais comuns (1980: 34).

Vidal, por sua vez, afirma que “deve-se enfatizar a importância de se considerar a pintura corporal como uma atividade em si, um meio de integração, controle e socialização, e uma maneira de, a cada momento, construir e reproduzir os princípios básicos da sociedade kayapó” (1992: 146). “Imposição”, “integração”, “controle”, “comunicação”, “socialização”, “significado”: é este o vocabulário comum aos trabalhos de Turner e Vidal. Sem querer questionar a importância das contribuições anteriores, gostaria de enfatizar outros sentidos da pintura corporal – mais voltados para agência e eficácia – que parecem ter sido ofuscados pelo vocabulário sociológico que marca a 60

Grosso modo, Turner (1980, 1995) se atém a todo o processo de produção do corpo, incluindo os adornos corporais, enquanto Vidal (1992) faz um trabalho mais minucioso no que diz respeito à sequencia de padrões utilizados em diferentes fases da vida, e em situações de reclusão e reintegração dos indivíduos na vida social, um trabalho portanto relacionado com a própria pintura corporal em si.


176 abordagem dos autores citados. Com esta abordagem voltada para a agência e eficácia apresento neste capítulo diferentes formas de constituir e reconstituir as superfícies que envolvem os corpos (Lagrou, 2011: 76). Este aspecto ganha relevo diante da ideia já difundida no americanismo tropical de que para os ameríndios o corpo “é um objeto de pensamento” e que é através de sua manipulação que pessoas são geradas e construídas (Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro, 1979). Trata-se de pensar a produção da pele e, consequentemente, do corpo ao longo do ciclo de vida, em sua relação com diversos tipos de pinturas e tinturas específicas que são aplicados a ela em contextos diversos. Gostaria, assim, de destacar a agência da pintura corporal na produção da pele e as transformações operadas por sua aplicação nas superfícies dos corpos ao longo da vida61. Concentro-me, neste sentido, nos momentos em que pinturas e tinturas são acionadas para proteger, reforçar, figurar e refigurar essa fronteira do corpo que é a pele em momentos como os períodos de resguardo, em que os corpos estão com suas superfícies enfraquecidas e por isso estão mais suscetíveis e vulneráveis às agências não humanas. Momentos em que eles estão desfigurados, ou ainda não totalmente figurados, não podendo ostentar os grafismos considerados “bonitos” (mejx) pelos Mebêngôkre. Utilizo o termo desfiguração a partir da leitura do livro Defacement (1999) de Taussig: “Um dos sentidos de defacement é estragar a superfície ou a aparência de algo previamente existente” (Taussig, 1999 apud Caiuby, 2006: 290). Taussig “associa a desfiguração àquilo que ocorre quando algo muito precioso nos é retirado. A desfiguração, ao trazer as profundezas para a superfície, revela mistérios”. Procuro entender o processo vivido pelos Mebêngôkre durante os resguardos como períodos de desfiguração momentânea, quando a superfície do corpo está, temporariamente, “estragada” e, por isso, vulnerável, podendo tanto ser invadida do exterior para o interior por agências não humanas como levar à tona aspectos de suas profundezas, como o sangue e a alma. Nestes contextos específicos, é a pintura que refaz paulatinamente a pele até que a pessoa possa voltar a circular pela aldeia pintada por um grafismo previamente escolhido na sessão de pintura coletiva com os membros do mesmo sexo e da mesma faixa de idade. No início da vida, como nos momentos de proximidade da morte, a pintura age sobre o corpo protegendo-o, endurecendo-o, vedando a pele e tendo, enfim, ação profilática e terapêutica sobre ele, no sentido de figurá-lo e refigurá-lo nos momentos em que a desfiguração está próxima.

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Lagrou demonstra, em sua tese de doutorado de 1998 (2007), como entre os Kaxinawa no rito de passagem para crianças a pintura age sobre a pele, ora abrindo-a para a intervenção ritual, através de desenhos largos e abertos, ora fechando-a para protegê-la contra a evasão ou invasão de espíritos (yuxin). A autora mostra que o grafismo age não somente sobre a pele mas também no espaço virtual como guia para o espírito do olho no contexto do xamanismo (ver também Lagrou, 1991 e 1996).


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Menire kukràdjà Sabe-se desde os trabalhos de Lux Vidal (1992) que a pintura corporal é uma arte eminentemente feminina. Em seu texto clássico sobre a pintura corporal mebêngôkre, e cuja pesquisa foi realizada entre os Xikrin, a autora não deixou de notar que pelo menos entre os Kayapó-Xikrin, a pintura é tarefa exclusivamente das mulheres, que a transformam num verdadeiro hábito, tanto quanto qualquer outra atividade básica, como ir à roça, cozinhar e cuidar dos filhos. Todas pintam, e portanto a qualidade de pintora é considerada como atributo inerente à natureza feminina. Os homens apenas passam tintura de carvão ou urucu na face e no corpo (Vidal, 1992: 146; grifo no original).

Assim, pode-se dizer que não apenas a pintura é tarefa das mulheres, mas também que são elas as responsáveis por todos os conhecimentos que envolvem a produção da pintura, tanto no que diz respeito ao processo de plantio e coleta dos frutos que depois se transformaram em tintas, quanto no que tange à produção das tinturas e às aplicações corporais feitas com elas e, ainda, as técnicas, os conhecimentos e a criatividade envolvidos nesta atividade cotidiana e ritual. Não seria errado dizer então que os conhecimentos sobre a pintura sejam menire kukràdjà, ou um saber eminentemente feminino, em oposição, por exemplo, à arte plumária que seria memu kukràdjà, já que feito exclusivamente pelos homens. Tal oposição não deve ser tomada como antagonismo, mas como complementariedade, afinal de contas, mulheres pintam homens, e homens coletam penas para enfeitar suas mulheres. O próprio termo kukràdjà, designa, como vimos, partes e todos, de modo que o menire kukràdjà e o memu kukràdjà podem ser vistos, ambos como partes do kukràdjà mebêngôkre. Como um primeiro passo para o desenvolvimento desse capítulo inicio com a descrição desse kukràdjà feminino, apresentando as técnicas e conhecimentos empregados na produção da pintura, que vão desde o preparo das tintas e dos usos dos instrumentos utilizados para sua aplicação como os pincéis, as mãos e os dedos, além de carimbos, até o conhecimento sobre a feitura dos grafismos em si e o conhecimento sobre as situações específicas em que se deve usar determinado tipo de pintura de acordo com determinado estado do corpo. O domínio desses três tipos de conhecimentos é necessário para que determinadas mulheres sejam consideradas 'ôk mari (especialistas em pintura).


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Técnicas Como todo kukràdjà mebêngôkre, também a pintura foi aprendida de outros seres. Neste caso, dos homens morcegos62. Então, eu vou contar a história da pintura. Foi o Kubenhêpre, o homem-morcego, que nos mostrou a arte da pintura. Ele nos deixou essa arte. Ele nos mostrou a pintura Meibê, a pintura [feita] com os dedos e a Mekjekrôri, que se faz na coxa. Todo tipo de pintura, a pintura da anta, Kukrytkra-ôk a pintura cerimonial, do Mutum, Àkre-ôk, a pintura Me-okuputi com os dedos, a pintura do mel, Pykakam-mei-ê e também o Mekakokreti, dos guerreiros, a Mekakodjwa-it e outros tipos de Mekakodjwa-it, que são usadas pelos guerreiros que matam os inimigos. Mekakokreti tem dois nomes. Foram essas pinturas que o morcego deixou para os Mebêngôkre, e desde então nós fazemos. A gente continua usando.

Mas nem todas as pinturas foram aprendidas com os homens-morcegos. Se estes últimos ensinaram muitos grafismos, outros como os Djôre, antepassados dos atuais Xikrin, ensinaram outras tantas. Foram os Djôre (Xikrin) que começaram a fazer a pintura da festa dos homens. Os Mebêngôkre, foram lá encontrá-los. Viram como eles faziam as pinturas e quando voltaram fizeram igual e continuam fazendo até hoje e é esta pintura que nós estamos usando. Lá na antiga aldeia Pykatôti nossos antepassados usavam estas pinturas e depois nossos pais, depois a gente... e depois as pessoas da aldeia Awarikraikunoin usavam. E as pessoas de Apiêtekrére aprenderam também. E as pessoas de Kubenkankrenh aprenderam também. E depois a aldeia de Kubenkankrenh foi dividida e as pessoas se espalharam e a pintura também. A pintura da festa da mandioca, da festa dos homens, a pintura do Bemp, a pintura da festa da Anta, e também a pintura do casamento, Meadjorekadjy, a pintura do noivo, da nossa tradição. Assim é a nossa tradição de pintura. Essa pintura com a mão por exemplo, eu posso fazer a qualquer momento. Basta eu estar sadio e a gente se junta para pintar. Então foi tudo isso que a gente aprendeu com o morcego e com os Djôre e continuamos fazendo até hoje.

Além de ensinar muitas pinturas, os Djôre são responsáveis por disseminar o uso do kwyky, o pincel feito da tala da folha da palmeira de Babaçu, traduzido para o português pela palavra “palito”. Assim, se os Kubenhêpre, os homens-morcegos, ensinaram os Mebêngôkre a pintar com os dedos, foram os Djôre que ensinaram as mulheres a pintar com o palito. Foram os Djôre que começaram a usar o palito [pincel]. Aí o pessoal daqui foi até eles e fizeram uma festa lá como a que temos até hoje, usando a pintura no corpo. As mulheres de lá pintaram os homens Mebêngôkre com o palito e eles levaram a pintura no corpo para as mulheres verem. Foi assim que começamos a usar a pintura feita com o palito. A pintura da chuva, do jabuti, a pintura diagonal, todas elas. Essas coisas e essas pinturas, todas as mulheres sabem fazer. É isso que usamos até hoje. É por isso que estou contando para vocês a história da pintura. Meu avô me contou, eu me lembro da história, eu conheço bem a história e por isso a conto.

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Os trechos que se seguem foram coletados em entrevista com o cacique Kaikware, durante a preparação do filme Documentário “Nossa pintura” (2013), realizado por Thiago Oliveira e Fábio Nascimento, como uma das atividades do “Projeto de Documentação da Cultura Kayapó”, sob minha coordenação. Nesta etapa do projeto não pude estar presente na aldeia Môjkarakô para a realização dos trabalhos.


179 Esta narrativa descreve um processo que continua ocorrendo atualmente, que diz respeito à contínua apropriação de grafismos considerados bonitos pelos Mebêngôkre. Vidal, por exemplo, menciona a apropriação de uma pintura “copiada dos Asurini do Xingu, um grupo tupi, que os Kayapó-Xikrin do Bacajá, encontram hoje na cidade de Altamira ou em reuniões indígenas” (Vidal, 1992: 185). Se naquele contexto a apropriação era ainda tímida, dizendo respeito a somente um padrão de pintura facial, aprendido por uma mulher “mais viajada e de personalidade bastante aberta para inovação”, o que dizer dos grafismos copiados pelas mulheres de Môjkarakô dos povos do Alto Xingu, sobretudo, dos Yawalapíti e dos Kamaiurá? Neste caso, que pude presenciar durante a pesquisa de campo, tratava-se de uma verdadeira moda. As pinturas foram aprendidas durante um encontro cultural denominado “aldeia multiétnica”, ocorrido todo ano na chapada dos veadeiros, em uma localidade próxima à cidade de São Jorge, no Estado de Goiás. Este evento reúne várias delegações de povos indígenas do Brasil, sendo os Mebêngôkre de Môjkarakô frequentadores assíduos. A “pintura dos xinguanos”, ou em língua nativa 'ôk xingu, foi produzida constantemente no ano de 2010, tanto em ocasiões cotidianas quanto festivas, por mulheres de diferentes categorias etárias, embora seja importante registrar que sua disseminação na aldeia foi trabalho das mulheres mais novas, que decidiram utilizá-la como marca distintiva de seu grupo de idade durante uma cerimônia Kwôre-Kangô. Depois dessa festa, as mulheres mais velhas também começaram a fazê-la e pude observar sua rápida disseminação por outras aldeia mebêngôkre quando um grupo de mulheres de uma outra aldeia, Kôkraimôro, portava o padrão xinguano durante a festa do dia do índio, realizada na cidade de São Félix do Xingu, no ano de 2011. Muito provavelmente, as mulheres de Kôkraimôro tiveram contato com a pintura xinguana através de DVDs da festa Kwôre Kangô realizada na aldeia Môjkarakô, que circulou por essa e por outras aldeias mebêngôkre do sul do Pará. Esses exemplos são importantes para situar a pintura corporal mebêngôkre enquanto uma atividade dinâmica, em constante transformação, embora permaneçam fixos os valores estéticos e técnicos de sua produção. E mais do que isso, para situá-la em relação às diversas tradições pictóricas existentes entre os povos ameríndios. Como afirma Lagrou (2009:77-78), no universo gráfico ameríndio “ressalta a onipresença da jiboia primordial ou sobrenatural como dono/a original de todos os motivos usados na pintura corporal”. Os Mebêngôkre não apenas não se enquadram nesse horizonte, pois como vimos foram homens morcegos e não jiboias sobrenaturais que lhes ensinaram os desenhos, como também parecem não escolher um único dono original de todos os motivos decorativos. Antes, os Mebêngôkre constroem sua tradição gráfica a partir de apropriações de diferentes povos humanos e não-humanos. Como se nota na narrativa de Kaikware, os morcegos


180 ensinaram diversos motivos de pintura para os Mebêngôkre, mas não todos, o mesmo ocorrendo com os Djôre. Outros tantos seriam e continuam sendo apropriados de diversos outros grupos indígenas, como os Assurini do Xingu, os Yawalapíti e os Kamaiurá. Na mitologia conhecida sobre os Mebêngôkre não há registro de um mito de origem da pintura como esse contado por Kaikware63. Até onde se sabe, os homens morcegos haviam ensinado cantos de uma cerimônia para os Mebêngôkre, depois que dois deles foram capturados em uma caverna, após um combate em tempos imemoriais. Por isso a importância desta narrativa, pois coloca a pintura no mesmo plano dos diversos conhecimentos mebêngôkre, apreendidos e apropriados por meio de relações de alteridade. Se diferentes motivos gráficos continuam sendo apropriados de outros, o mesmo não ocorre com as técnicas empregadas na produção da pintura. As mulheres mebêngôkre continuam utilizando as mesmas técnicas aprendidas dos Kubenhêpre e dos Djôre, respectivamente, a pintura com os dedos, mêibê, e aquela feita com o kwyky, o pincel feito com tala da folha da palmeira de babaçu. Outra técnica bastante comum é o uso de carimbos feitos com o próprio fruto do jenipapo. Ele é cortado ao meio e sua casca é entalhada. Depois passa-se a tinta no carimbo e se aplica no corpo. Em geral em partes vazias de um determinado padrão gráfico que vai sendo preenchido pelos carimbos. Uma outra técnica não utilizada pelas mulheres de Môjkarakô foi notada por Vidal como de uso constante pelos Xikrin. Trata-se do uso dos pentes riscadores que desenham linhas paralelas nos corpos a partir de uma faixa negra de jenipapo previamente pintada. Como ressalta Vidal, entre os Xikrin, “faixas de tinta de jenipapo são aplicadas com a mão e em seguida riscadas com um pente riscador de madeira” (1992: 146). Se as técnicas e certos motivos gráficos foram apreendidos com outros, o mesmo não se pode dizer da produção das tintas. Vejamos então como elas são produzidas pelas mulheres.

Tintas As mulheres mebêngôkre produzem tipos diferentes de tintas. Focalizo aqui aquelas feitas à base de jenipapo (m'rôti) e urucu (py), já que são as mais utilizadas na pintura corporal. No entanto, é preciso mencionar o uso de outras tintas como aquela feita à base de uma resina de cheiro forte, 63

Na mitologia mebêngôkre existem diversos mitos onde a pintura corporal aparece tematizada. Contudo, nenhum deles trata da origem da pintura e de suas técnicas. Uma exceção é o mito que conta a história de Bepgôrôrôti, o homem que se transformou na chuva. Para se metamorfosear na tempestade e, posteriormente, se vingar de seus companheiros de caçada que haviam sido avaros com ele, Bepgôrôrôti se pinta com carvão e produz bordunas de guerra. Acredito que esse mito trate da origem da pintura de guerra, tal como utilizada pelos guerreiros mebêngôkre, e não das pinturas feitas com jenipapo pelas mulheres. Para versões deste e de outros mitos que tratam da pintura corporal ver Lukesch (1976) e Banner (1958).


181 utilizada pelas mulheres para pintar a parte raspada da cabeça de seus filhos que conforma o corte de cabelo tradicional dos kayapó. Essa tinta chama-se ràp e seu uso, como o das tintas de urucu e jenipapo, é tanto estético como profilático e terapêutico. O cheiro forte da resina é reconhecido como ótimo espantador de espíritos causadores de doença. Por isso, as crianças são constantemente pintadas com essa matéria-prima, sobretudo nas ocasiões rituais, momento em que os espíritos dos mortos retornam à aldeia para acompanhar a festa de seus ex-parentes. Outra tinta utilizada e que parece ter caído em desuso – eu não encontrei informações sobre ela durante a pesquisa de campo – é uma tinta branca feita a base de argila, que segundo Verswijver “é somente aplicada em uma cerimônia específica e extremamente rara” (1992: 204). Também não consegui descobrir qual cerimônia era esta64. Existe ainda a tinta feita à base de carvão misturado com água. Ela é utilizada sobretudo pelos homens durante as expedições guerreiras e no retorno destas, quando fazem escarificações e passam nelas a tinta de carvão para fazer tatuagens que marcam sua participação nos ataques (Verswijver, 1992). Ela é utilizada também pelas meninas pequenas que estão aprendendo a arte de pintar, principalmente, como substituto do jenipapo, considerado perigoso quando manipulado por crianças. Vejamos agora como as mulheres preparam as principais tintas utilizadas na pintura corporal.

M'rôti (Jenipapo) Em Môjkarakô é comum encontrar um grande pé de jenipapo à frente ou atrás das habitações. Outros são plantados nas roças, mas a preferência por ter o m'rôti por perto se deve ao trabalho cotidiano da pintura realizado pelas mulheres em seus próprios corpos e nos corpos de seus parentes, sobretudo, em seus filhos, netos e maridos. Ocorre uma espécie de rodízio com relação às árvores cujos frutos serão coletados, tanto nas sessões coletivas de pintura, organizadas de acordo com grupos idade, quanto na pintura cotidiana, feita exclusivamente pelas mulheres em seus parentes próximos. No primeiro caso, cada mulher, adulta ou jovem, leva alguns frutos de sua própria árvore para a casa da esposa de algum dos chefes da aldeia, onde pintarão umas às outras. No segundo, mulheres que moram em lugares diferentes, mas que possuem algum laço de parentesco ou amizade repartem entre si os frutos de uma das árvores de sua casa, escolhida, por exemplo, por ter mais frutos verdes do que as outras. Essa alternância não impede contudo que as árvores de jenipapo tenham também suas donas. Geralmente as mulheres mais antigas das casas são 64

Lea (2012: 320) afirma que em uma cerimônia Memy Bijôk, presenciada por ela, “os homens usaram padrões de pintura de guerra, aplicada com lama ao invés de jenipapo”.


182 donas das árvores maiores, em geral plantadas por elas, e sempre incentivam as suas filhas a plantar seus próprios pés de Jenipapo, para que nunca falte. Embora sejam as donas das árvores frondosas e possuam muito orgulho delas, as mulheres mais antigas de uma habitação não se queixariam se suas filhas retirassem os frutos de suas árvores. Muito pelo contrário. É comum ouvir, nas ocasiões que antecedem a colheita cotidiana do jenipapo, uma mãe pedir a sua filha para ir buscá-lo para ela pintar os netos. A propriedade neste caso é menos sobre o fato de serem donas dos frutos e mais sobre a posse da beleza da árvore em si e sua capacidade de dar muito jenipapo durante o ano, pois ter jenipapo o ano inteiro faz com que as mulheres sigam mantendo suas relações de parentesco, sigam se pintando e pintando os seus parentes. Quando as filhas vão responder ao pedido da mãe para que coletem os frutos, elas convidam algumas de suas parentas próximas (cunhadas, por exemplo) para realizar a tarefa. Enquanto uma mulher sobe nas árvores para retirar o fruto verde, outras ficam embaixo recolhendo e dando instruções sobre a localização dos melhores frutos. Cada mulher que participa da ação leva consigo um pouco da colheita. O restante é levado para casa e entregue diretamente para a mãe que avalia o resultado da colheita e inicia o processo de produção da tintura, feita sempre com o fruto verde. Segundo as mulheres, o fruto ainda não maduro proporciona uma cor negra mais intensa, além de fazer a pintura durar mais tempo na pele. As mulheres apreciam sobretudo os frutos menores que, embora tenham pouca polpa, são considerados mais fortes justamente por estarem mais verdes. Outro ingrediente fundamental para produzir a tinta é o bàri prà, o carvão feito da casca de uma árvore específica chamada àkprà (pau do campo). Este se encontra nas imediações da aldeia, próximo às roças e em lugares mais afastados na floresta. As mulheres fazem pequenas expedições de coleta, quando trazem boa quantidade para a aldeia. Como a matéria base é uma casca de árvore, as mulheres retiram o envoltório com machados e facões e depois cortam a casca em pedaços menores. Quando chegam em casa, acendem um fogo e depositam os pequenos pedaços nele. É preciso que ele queime até virar carvão, para que seja possível transformá-lo em um pó de coloração preta, cuja adição na mistura visa dar a ela uma cor negra. A coloração preta é necessária para o melhor exercício da pintura geométrica, uma vez que, sendo a tinta de jenipapo transparente quando molhada, com a adição da cinza o desenho torna-se visível durante a execução da pintura. O aspecto macio da madeira, permite que quando queimada ela seja facilmente triturada pelas mãos das mulheres. Elas quebram o carvão até virar pó em cima da bacia onde a tinta será feita, geralmente quando o jenipapo já está triturado lá dentro e misturado com um pouco de água ou saliva. Enquanto a mistura é feita, uma das mulheres que a está produzindo parte alguns frutos,


183 geralmente os menores e mais verdes, e, com a ponta do facão, retira a polpa e a coloca na boca, mastigando até que sua boca se encha do sumo do jenipapo. Em seguida, cospe dentro da bacia enquanto a outra mulher mexe a mistura com as mãos. Faz isso repetidas vezes até que se considere a tintura no ponto correto. As mulheres não separam o liquido negro da parte sólida composta pelo bagaço do jenipapo. O resultado é uma mistura, cuja consistência permite que a pintora esprema com a mão a parte sólida, composta pelo bagaço do jenipapo misturado ao pó de carvão, para obter uma substância líquida que irá usar para pintar com os dedos ou com o pincel, a depender da ocasião. Não se guarda a tinta, cuja matéria base é o jenipapo. Assim, as mulheres fazem somente a quantidade necessária que vão utilizar. A não produção de excedente se deve ao fato da tinta estragar muito rapidamente, de um dia para outro, devido a seu aspecto cru. Diferentemente do que ocorre em outros grupos jê do Norte, como os Krahô e Apinajé, as mulheres mebêngôkre não cozinham o jenipapo para deste processo extrair sua tinta negra. Elas dizem que cozido o jenipapo fica mais fraco e a consistência liquefeita da tinta não permitiria o uso do seu pincel, fazendo a tinta escorrer pelos corpos, o que muito desagrada as mulheres, devido ao caráter indelével da tintura. A consistência da tinta deve ser líquida apenas o suficiente para permitir que a pintura seja feita de modo correto, sem que escorra pela pele, o que tornaria o desenho feio. A consistência deve ser tal que a tinta possa aderir à pele logo após secar, algo muito importante para os casos de tratamento, como veremos à frente. Essa adesão à pele, necessária à feitura correta da tinta de jenipapo, está expressa na própria categoria nativa para tinta, denominada 'ôk. Além de designar, como verbo, o ato de fazer pintura geométrica, este termo, enquanto substantivo, designa um outro campo semântico da pintura que parece agregar as suas qualidades materiais enquanto tinta ou tintura, resina e mesmo cola. A palavra delimita substâncias que estão entre o líquido e o sólido, podendo ser consideradas como algo pegajoso, que adere ao corpo, como a própria tinta de jenipapo – que nele permanece por mais de uma semana – e, também, algumas resinas e colas vegetais utilizadas para colar penas e a casca de ovo de um determinado pássaro, respectivamente, no corpo e no rosto das pessoas durante os rituais. Assim, bar'ôk, por exemplo, é borracha ou látex; môja 'ôk, por sua vez, é cola ou, literalmente, “coisa” que cola (Salanova, s/d). Uma boa tinta deve aderir com firmeza à pele e essa qualidade da tintura é motivo de debate entre as mulheres durante as sessões coletivas de pintura. Quando a tinta não está no ponto, ou quando seu efeito não é o esperado nos corpos, as mulheres se queixam umas às outras dizendo, por exemplo, 'ôk punure, 'ôk rerékre (tinta ruim, tinta fraca). Por isso, existem mulheres renomadas por


184 saber fazer uma tinta boa, na consistência correta, que não escorra facilmente no corpo e, mais importante, que seja capaz de durar por muito tempo na pele. A feitura de uma tinta correta é um conhecimento que as mães e avós ensinam a suas filhas e netas no cotidiano da aldeia. Certa vez, vi uma mãe se queixando com sua filha porque a tinta com a qual pintava seu neto (filho desta sua filha) estava fraca. Com a minha presença no ambiente, a filha se envergonhou e saiu com a bacia na mão para engrossar a mistura com mais jenipapo. Quando retornou com a tinta refeita, depositou a bacia na frente da mãe, que logo enfiou a mão na mistura testando a sua consistência e exclamando com um sorriso no rosto 'ôk mejx kumrem (“tinta boa, [com a consistência] correta”). Um homem adulto, quando pintado com tinta fraca, também pode reclamar com sua mulher, comparando a pintura forte (tyxt) de seus companheiros de idade com o resultado fraco (rerékre) da sua, como se dissesse que ela não sabe fazer a tinta tão forte como aquelas feitas pelas mulheres dos outros homens. Essa afirmação, desnecessário dizer, constitui uma grande ofensa para a mulher.

Py (Urucu) Diferentemente das árvores de jenipapo, o pé de urucu é plantado preferencialmente nas roças, onde as mulheres coletam seus frutos quando necessitam repor seu estoque de tinta vermelha. Ao contrário da tinta de jenipapo, consumida no momento da pintura e sempre refeita para cada sessão, a tinta de urucu é estocada pelas mulheres. Isto se deve a diferenças significativas no modo de produção das tintas e, também, a diferenças em relação aos modos de aplicação e aos contextos em que são utilizados. O longo processo de produção do urucu se inicia com a sua coleta na roça. Depois, as mulheres levam os frutos para casa, onde são abertos e deles retiradas as pequenas sementes de onde será extraída a polpa vermelha característica. Para tal, coloca-se as sementes na água, dentro de grandes bacias. Elas devem permanecer de molho por um dia inteiro. De vez em quando as mulheres espremem as sementes com as mãos para despregar a polpa. Quando percebem que a massa já se soltou por inteira, retiram o líquido vermelho, coando as sementes que são prontamente dispensadas. O próximo passo é colocar o caldo em uma grande panela e levar ao fogo por cerca de quatro horas, até que se forme um líquido espesso. Esse processo de cozimento faz com que o líquido diminua cerca de dois terços de sua quantidade. Feito isso, passa-se o líquido para um pedaço de pano que tem a função de coador e pendura-se esse pano numa árvore para que escorra o restante do líquido. Por fim, espreme-se o pano com força para que todo o líquido seja retirado. No fim do processo se obtém uma massa dura e compacta com a forma de uma grande batata, que é


185 guardada envolta em palha e atualmente com frequência em sacolas plásticas. Além da água em que as sementes são postas de molho, não se insere nenhum outro ingrediente no preparo do urucu. Apenas quando será aplicado ao corpo às mulheres espalham um pouco de óleo de babaçu nas mãos para em seguida esfregarem-nas na massa, obtendo assim a tinta vermelha nas próprias mãos. Passa-se então na superfície desejada, seja ela o próprio corpo ou partes dele. A qualidade preferencial do urucu está no aspecto compacto da massa assim obtida; quanto mais dura estiver, maior parece ser o tempo de preparo. Quando ela fica por demais mole, as mulheres, e até mesmo os homens, podem reclamar dizendo que as responsáveis por sua feitura não trabalharam direito, estavam com preguiça de fazer o trabalho até o fim, dentre outras afirmações neste sentido. Tanto quanto com a tintura de jenipapo, se produz desenhos com a tinta de urucu. Eles são feitos preferencialmente no rosto e com as mãos, sem o uso do pincel característico das pinturas feitas com o m'rôti. Contudo, a aplicação do urucu ocorre na maioria das vezes de modo homogêneo quando se espalha em todo o corpo, ou em determinadas partes dele, uma espessa camada vermelha e uniforme. Com o urucu não se produzem as mesmas pinturas que são feitas com o jenipapo. Seu modo de aplicação é designado pela expressão genérica kumen, e também pela expressão específica kunõ. Se a primeira expressa uma forma de aplicação genérica como na expressão me kumen, “pintar as pessoas com urucu”, a segunda se aplica quando se quer pintar de urucu alguma parte específica do corpo, como por exemplo nas expressões me kuka kunõ (“pintar o rosto inteiro [homogeneamente] de vermelho”) e me pari kunõ, (“pintar o pé de vermelho”) (Salanova, s/d). Enquanto substâncias distintas, são também distintos seus modos de designação linguística e de aplicação corporal, como também os efeitos (estéticos e terapêuticos) que se busca atingir com sua utilização. Contudo, num sentido mais geral, tanto o 'ôk, quanto o kumen ou kunõ, expressam uma vontade de embelezamento e fortalecimento, mesmo que seus efeitos, suas técnicas de aplicação, suas substâncias e expressividades sejam, como disse, distintas. ɷɷɷ Diferentemente da tinta feita a base de urucu, a tinta feita com jenipapo é vedada a crianças. Dizem que ela é perigosa, sobretudo, para as meninas quando são muito novas e já estão dando seus primeiros passos no exercício da pintura. Nestas ocasiões as meninas improvisam uma tinta feita com o carvão. Elas raspam um pedaço de carvão em cima de uma pedra, cospem ou derramam um pouco d'água em suas mãos, passando-as sobre a pedra e, ato contínuo, lambuzam o pincel com sua


186 tinta de brincadeira e passam em bonecas de plástico (hoje abundantes nas aldeias) ou em alguma parte de seu próprio corpo. As mães não permitem que as crianças pintem com jenipapo, deixando as sobras das tintas longe delas ou quando ocorre o contato retiram de suas mãos, lavando-as rapidamente. A consequência mais grave de tal manipulação é que a criança jamais fique curada ao adoecer, podendo morrer assim que contrair qualquer doença perigosa. Cohn (2000) relata algo semelhante entre os Xikrin. Ela afirma, contudo, que a principal razão pela qual as crianças são proibidas de pintar com jenipapo é o fato de sua tinta ser indelével ao corpo. As pinturas desordenadas feitas pelas meninas fugiriam dos padrões do rígido código estruturado que rege a pintura corporal mebêngôkre. O problema seria antes estético, pois as mães não gostariam de ver suas filhas pintadas com motivos inadequados. Gostaria de sugerir que este “código estruturado” é também uma cadeia de agências na qual se perfila uma interessante noção de contágio. Isto permite dizer que a pintura “inadequada das crianças” não só não está correta, como também não é saudável. É perigoso que uma criança manipule o jenipapo, mas talvez seja mais perigoso ainda que ela se pinte com aquela matéria-prima que pode lhe deixar doente, isto é, sem possibilidade de ser curada de doenças. O efeito da manipulação do jenipapo pelas crianças, a impossibilidade de cura de seus corpos, parece ser o efeito contrário que a pintura produz neles quando são pintados por suas mães ou avós. Quando aplicado por mulheres que podem ou sabem manipular a tintura de jenipapo, seu efeito no corpo da criança é, como já sugeriu Lea (1986), tanto estético, quanto profilático. A pintura desordenada feita pelas crianças com a tintura de jenipapo com certeza é considerada feia, mas não deixa de ser também extremamente perigosa para corpos, cujas superfícies não são ainda consideradas duras. As meninas não podem manipular a tintura tanto porque ainda não a conhecem suficientemente bem para fazer uma pintura corretamente, quanto porque seus corpos não estão prontos para manipular essa substância. Esse duplo processo é que desejo enfatizar aqui, pois ele ocorre continuamente entre os Mebêngôkre: ao mesmo tempo que se conhece uma determinada técnica, adquire-se paulatinamente a capacidade corporal de manipular as matérias-primas necessárias para a sua realização. Mas antes é preciso aprender com algo similar, uma matéria enfraquecida, geralmente denominada kaygó (falsa, substituta). As meninas exercitavam isso duplamente: tanto pela sua improvisação com uma tinta feita com carvão, quanto pelo fato de pintarem bonecas e não corpos. Seus exercícios de aprendizado são feitos também em caules de bananeiras, abóboras e cabaças que servem como superfícies que imitam o corpo. As mulheres elogiavam seu empenho e lhes mostravam como fazer, ao pintar o corpo de uma outra mulher com o pincel.


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Figura 14: Menina pinta o corpo de sua boneca.

Na arte de produzir cestos ocorre algo similar. Como demonstra Silva (2000) em sua etnografia da cestaria Xikrin, um aprendiz na arte de fazer cestos deve iniciar sua prática com uma matéria distinta daquela que o mestre usa e que é considerada verdadeiramente bela (mejx) e, por isso, perigosa. Como afirma a autora, ao descrever uma situação de aprendizado, a primeira coisa que o velho artesão recomendou que o aprendiz fizesse foi coletar folhas novas da palmeira tucum, a fim de que seu primeiro treinamento se desse com aquele tipo de matéria-prima. Somente depois quando tivesse um maior domínio da técnica é que ele repetiria a manufatura com a palha de babaçu. O aprendiz, então, reproduziu com a palha de tucum o que estava sendo realizado pelo instrutor com a palha de babaçu (:164-165).

Se assim não tivesse feito, o aprendiz correria o risco de ficar doente (op. cit.: 169). Neste sentido, conclui a autora: “a possibilidade de compreender ou de fazer determinada coisa como, por exemplo, executar um canto durante um ritual ou produzir um cesto implica (…) que o indivíduo tenha alcançado uma determinada maturidade biológica e reconhecimento social” (Idem). Acredito


188 que seria mais interessante comparar a produção de cestos não com os cantos rituais, mas com a pintura corporal, na medida em que ambas as atividades podem ser vistas como criações de corpos. Como a própria autora afirma em outro trabalho, os Mebêngôkre entendem a feitura de cestos como a produção de um novo corpo (Silva, 2000). Assim refraseando a afirmação feita acima por Silva poderíamos dizer que para fazer novos corpos e para fazê-los belos é preciso que o indivíduo tenha alcançado uma determinada maturidade biológica e reconhecimento social. E é justo isso que faltava às meninas aprendizes da arte da pintura corporal e aos rapazes que estão aprendendo a fazer os cestos. Por outro lado, é essa relação madura com a técnica e o conhecimento incorporado que faz de uma pessoa um especialista na arte de produzir corpos sem que coloque seu próprio corpo em risco. Deve-se destacar portanto um tema bastante mencionado na literatura etnográfica sobre os Mebêngôkre, mas, ao mesmo tempo, pouco desenvolvido por seus etnógrafos: o lado eminentemente terapêutico e profilático da pintura corporal em suas relações específicas com o sangue, a pele e a alma da pessoa em contextos específicos como o parto, a doença e as situações de resguardo, assim como, nas grandes cerimônias de nominação. Então, para ser uma 'ôk mari, uma especialista em pintura, a mulher deve dominar esses três conjuntos de técnicas intimamente relacionados que consistem nas técnicas de produção da tinta, no conhecimento de sua aplicação correta e bela dos desenhos e nos poderes terapêuticos que as tinturas possuem em contextos específicos. Ademais, a própria denominação mari é sistematicamente referida na literatura, sobretudo para aqueles especialistas “que possuem o poder de cura através do conhecimento das plantas medicinais” (Giannini, 1992: 175). Quero sugerir que as plantas mobilizadas na feitura das pinturas, essas, cujas técnicas de feitura foram descritas acima, são também plantas medicinais. O conhecimento de suas ações terapêuticas poderia ser incluída na esfera de conhecimento e do campo de ação da categoria denominada por Giannini como Kwatui-mari, que segundo a autora se refere ao conhecimento medicinal restrito ao núcleo residencial. Este conhecimento é adquirido pelas mulheres através de suas Kwatui (MM, FM, FZ, MBM...). Como exemplo, teremos: certas defumações para diminuir as dores corporais; a planta que é colocada na testa da criança para acabar com o soluço; certos cuidados com parentes colocando envira em torno de um lugar dolorido; o que deve ser feito durante um parto e os cuidados com o recém-nascido (banhos com ervas, massagens no corpo do recém-nascido) (Idem).

Não por acaso são as kwatui que desde cedo se empenham em ensinar às meninas e moças as técnicas da pintura corporal e são elas também que pintam com esmero seus netos em uma atividade tanto estética quanto terapêutica, algo que observei mais de uma vez durante a pesquisa de campo. Em uma das ocasiões, estava na casa de Moetyk esperando para ser pintado por uma de suas


189 filhas para uma festa que iria ocorrer na aldeia. Enquanto esperava não deixei de observar Moetyk pintando seu neto Paurim, ao mesmo tempo que fazia defumações no corpo dele com a fumaça de seu cachimbo. O menino estava deitado, quase dormindo, em um pano estirado no chão. Moetyk soltava a fumaça em direção ao corpo da criança em um movimento cadenciado no qual a fumaça de suas baforadas acompanhava os traços que ela fazia na pele, como se a pintura potencializasse o efeito da fumaça que ela expelia sobre o corpo do menino. Além das defumações, outros dois exemplos de kwatui-mari mencionados por Giannini – “o que deve ser feito durante o parto e os cuidados com o recém-nascido” – estão diretamente relacionados ao uso das tintas, cujo preparo descrevi acima. No parto, como em outros contextos, as tinturas de urucu e jenipapo são aplicadas nos corpos da parturiente e do recém-nascido sem a feitura de desenhos, deixando entrever com mais clareza essa sua função curativa de planta medicinal. Mais a frente apresento exemplos dessa ação tomando os contextos de resguardo como situação privilegiada, motivada em geral pelo contágio com sangue humano ou não humano, onde as peles dos afetados como que retornam à consistência mole de quando nasceram.

'Ôk mari Como afirma Lea (2012: 229), “o verbo ma significa 'ouvir/saber/entender'. Mari é a forma não temporal do verbo e é usado também como substantivo. Neste último caso, pode ser usado como especialista”, ou, em outras palavras, como aquele que sabe, conhece, entende profundamente uma ou mais especialidades comumente relacionadas aos tratamentos em casos de doença. Por isso, mari é mencionado na literatura como especialista em fitoterapia (Lea, 2012) ou em plantas medicinais (Giannini, 1992; Turner, 1993; Posey, 1991). Este sentido específico da palavra é também contrastado com o termo wayangá (xamã). Turner distingue estas categorias ao afirmar que ao contrário do mari, o wayangá “adquire sua condição por um processo de excorporação da alma, alcançado por transe, estado comatoso ou sonho, seguido de um longo aprendizado junto a um xamã praticante” (1993: 55). Já o mari é aquele que é “o conhecedor de uma cura (me be kane mari)” não sendo por isso um xamã, já que “qualquer um pode conhecer uma cura e muitos remédios e técnicas mágicas são de domínio público, ou são transmitidas entre parentes” (Idem). Giannini (1992:175-181), na esteira de Turner, define as duas categorias diferenciando o mari, como “conhecedor de plantas medicinais” e o wayangá como o xamã capaz de se comunicar com seres distintos do cosmos. Segundo ela, “há uma nítida diferença entre os mari e os wayangá. Os mari são detentores de um conhecimento restrito: eles não fazem feitiço, não tiram feitiço, não são


190 donos controladores de espécies. O mari é simplesmente um indivíduo que sabe diagnosticar e curar através das plantas”. Dentre estes autores, é Posey, contudo, que estabelece uma distinção fundamental entre as duas categorias, de acordo com a etiologia kayapó. Segundo o autor, existem duas formas de doenças entre os Mebêngôkre: aquelas causadas por espíritos (almas) e aquelas não causadas por estes últimos. Os mari seriam aqueles especialistas que curariam doenças “não espirituais”; já as causadas por espíritos seriam tratadas pelos wayangá. Nas palavras do autor: As doenças não espirituais podem ser tratadas por especialistas em cura que não são xamãs, esses especialistas, chamados de me kute pidjà mari (conhecedores de plantas medicinais), conhecem certas plantas e suas propriedades terapêuticas. Esses especialistas são geralmente consultados em primeiro lugar nas doenças amenas; se suas curas não surtem efeito, assume-se que a doença é causada por espírito e tem que ser tratada por xamã (1991:25).

Lea (2012), por outro lado, oferece uma visão menos opositiva dessas categorias, tornando sua argumentação mais interessante para o objetivo aqui proposto, justamente por não distinguir claramente o mari do wayangá, preferindo salientar que “há certa ambiguidade” na distinção entre eles (2012:229). Sua ênfase está antes na comunicação e captura do que nos processos de excorporação que, como afirmam Turner e Giannini, é uma das características próprias ao wayangá. A este respeito – e mantendo propositalmente a ambiguidade em sua análise – Lea afirma que “o mari não necessariamente viaja para fora de seu corpo” (2012:229). Essa definição ambígua de Lea, interessa particularmente por enfatizar certas características que o mari compartilha com o wayangá e não as nítidas diferenças existentes entre eles tal como notadas por Giannini e Turner. Neste sentido, a autora afirma que “alguém é definido como mari quando utiliza fitoterapia e quando consegue se comunicar com o ente de sua especialidade, para trazer cantos, praticar feitiçaria, ou simplesmente para caçar ou pescar. Nesse caso é considerado o dono-controlador (mari djwoj; entender/dono, ou, o verdadeiro dono)” (2012: 229). Na abordagem de Lea percebe-se antes semelhanças entre o mari e o wayangá, do que diferenças. E é justo estas semelhanças que gostaria de enfatizar no uso que faço da categoria 'ôk mari (especialista em pintura). As mulheres kayapó devem saber fazer além de belos desenhos, boas tintas seguindo receitas específicas. Mas como vimos para ser um mari é preciso mais do que isso, demanda um saber terapêutico que gostaria de sublinhar como uma das características específicas da pintura corporal entre os Mebêngôkre e que, ao contrário do que afirma Posey, está intimamente relacionada com espíritos e almas.


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Pele, sangue e alma

Certa vez, estava acompanhando os homens em uma caçada coletiva para a realização da festa de ano-novo – cerimônia que os Mebêngôkre passaram a realizar depois do acirramento do contato com os não índios. Estávamos preparados para ficar dez dias na mata, cada vez avançando mais floresta adentro, quando no quinto dia soubemos que o cacique Akjabôro estava voltando à aldeia para acompanhar o parto de sua filha. Segundo notícias trazidas de lá, o parto havia se complicado, e a esposa mandou chamar o cacique para o caso de acontecer alguma tragédia. 65 Sem o chefe por perto, todos os guerreiros resolveram voltar no dia seguinte. Durante a última noite no acampamento, um velho guerreiro me contou como era o processo de produção do feto. Primeiro, o homem tem que trabalhar muito com a mulher, tem que deitar todo dia para poder fazer perna e braço, para poder fazer a cabeça e a pele. É o meýry (sêmen) do homem que faz. Faz até a barriga ficar grande, assim, do tamanho de um mamão. Depois que dá para ver barriga, aí pára, não pode mais deitar com a mulher. Já tá na barriga e o karõ (alma, espírito) também. Aí o resto é a mulher que faz, é o sangue da mulher que termina de fazer, porque se o homem continua fazendo, pode nascer punu (ruim, feio, com alguma deformidade). 66

O processo de formação do feto pode ser entendido como um processo de figuração, no sentido de dar-lhe forma humana, pois é também o momento de constituição de seus órgãos internos (Gordon, 2006) e de sua pele. Se ele possui uma consistência líquida, sem forma definida, sua solidez e sua forma vão sendo constituídas a cada injeção de sêmen no corpo da mulher. Assim, tanto a superfície que dá forma ao corpo do feto, a pele (kà), como também os ossos (‘i), sua estrutura e a carne (nhin), seu preenchimento, são constituídos inicialmente por sêmen. Quanto à alma (karõ), seu elemento imaterial, é o único elemento que os Mebêngôkre, seguindo uma tônica amazônica, dizem não saber de onde vem. Cada um destes aspectos constitutivos do corpo mebêngôkre possui uma conotação específica, muito próxima daquela registrada por outros autores entre os povos Jê do Brasil Central, mais especificamente entre os Timbira (DaMatta, 1976; Melatti, 1976; Carneiro da Cunha, 1978). Tanto para os Timbira como para os Mebêngôkre, o sangue é “entendido como algo que serve para sustentar o corpo” (Carneiro da Cunha, 1978: 101). Se, para os Krahô, “um corpo sem sangue fica todo encolhido”, para os Mebêngôkre as pessoas com pouco sangue são consideradas fracas. Isso porque o sangue é “um elemento considerado ‘duro’ e deve ser mantido numa quantidade certa: se o indivíduo possui pouco sangue ele fica mole (rérékre) e amarelo, se possui sangue demais ele fica 65 66

Chegando à aldeia, soube que nada grave ocorrera durante o parto. Esta narrativa é similar àquelas obtidas por Lux Vidal (1977), Vanessa Lea (1986, 1994), Isabel Giannini (1991), Clarice Cohn (2000) e César Gordon (2006); seguindo um certo padrão jê, ao menos em sua porção setentrional, já evidenciada também por DaMatta (1976), Melatti (1976) e Carneiro da Cunha (1978).


192 preguiçoso” (Giannini, 1992: 148). A quantidade de sangue no corpo é um importante operador na diferenciação de corpos segundo o gênero e a idade. Assim, velhos e crianças possuem pouco sangue e são considerados fracos e moles (Gordon, 2006; Giannini, 1992; DaMatta, 1976). As mulheres são, por sua vez, consideradas mais lentas que os homens porque têm sangue em excesso. Os homens são considerados preguiçosos (mykangare) quando acumulam sangue em demasia no corpo e sofrem constantemente escarificações para retornar à situação ideal de “balanço sanguíneo” (Gordon, 2006: 318). Outra característica do sangue compartilhada pelos Mebêngôkre com os Timbira diz respeito ao fato de o sangue ser “o veículo e o suporte material do karõ” (Gordon, 2006: 319). Como salienta Gordon, o balanço sanguíneo do corpo visa controlar não apenas a quantidade do sangue, o que diferencia os humanos entre si, mas também sua qualidade, o que diferencia os humanos dos outros seres que habitam o mundo (animais, plantas, espíritos, inimigos). Portanto, sendo o sangue aquilo que transporta a alma, “o contato imediato com sangue exógeno implica a absorção de um karõ exógeno resultando em doença e eventualmente em morte” (Gordon, 2006: 319). O sangue é assim um elemento extremamente perigoso, e tanto no Brasil Central como “em muitas partes da Amazônia, considera-se que o sangue derramado, e especialmente seu cheiro, tem um poder transformador sobre a experiência vivida” (Belaunde, 2006: 229). Se o controle da quantidade de sangue no corpo visa a diferenciação de humanos entre si (homens, mulheres, velhos, crianças), o controle de sua qualidade visa justamente não possibilitar a relação com agentes não humanos, sobretudo animais, o que se acontecesse ocasionaria a tão temida transformação. É por isso, e não por outro motivo, que todas as precauções relativas ao sangue evidenciam um interessante princípio enunciado por Carneiro da Cunha (1978) para os Krahô – e depois generalizado por Belaunde em sua proposta de uma hematologia amazônica –, a saber: sangues diferentes (de humanos e não humanos, por exemplo) não podem ser misturados (Carneiro da Cunha, 1978: 103).67 É neste sentido que, para os Krahô, tal como para os Mebêngôkre e os Apinajé (DaMatta, 1976), as situações de resguardo visam justamente a tentativa de “restabelecimento do discreto”, isto é, de separar sangues diferentes que transportam karõ também diferentes (Carneiro da Cunha, 1978: 106-7). Isso fica mais evidente no resguardo do assassino, onde, segundo DaMatta, “o sangue indica precisamente a substância vital que foi tirada do morto e que contaminou o assassino” (1976: 86). Como veremos a seguir, todo o trabalho de resguardo entre os Mebêngôkre visa a retirar o 67

Ou podem sê-lo somente em contextos excepcionais e em rituais que visam exatamente um processo controlado de “alteração”, como no caso dos Kaxinawa e de outros grupos Pano que consomem o coração e/ou os olhos da jiboia para incorporar suas capacidades agentivas, tornando-se parcialmente jiboia (Lagrou, 1996, 1998, 2007).


193 sangue do morto do corpo do assassino, restabelecendo a qualidade correta do sangue. O sangue do pós-parto e da menstruação também são considerados exógenos, não necessariamente pertencendo à pessoa que os expurgou. Manuela Carneiro da Cunha retira daí uma importante conclusão comum à diversas situações de reclusão: “estar diretamente envolvido no derrame de sangue é expor-se a ser penetrado por ele” (1978: 106). Outra importante característica das situações de resguardo é aquela que põe em evidência a relação entre sangue e pele. A pele é justamente o que precisa ser violado para que o sangue exógeno penetre no corpo, provocando alteração e desequilíbrio. Entre os Mebêngôkre, seus etnógrafos são unânimes ao registrar o fato de que tanto doentes como recém-nascidos, e também pessoas em situação de resguardo, têm a pele enfraquecida e mole (Vidal, 1992, 1977; Giannini, 1991; Gordon, 2006). Assim, um dos procedimentos necessários às situações de resguardo ou de doença pouco comentado na literatura é justamente o restabelecimento dessa fronteira existente entre o sangue e o mundo externo. A palavra para pele (ká) tem o sentido geral de “envoltório”, sendo utilizada para “casca de árvore”, “pele/couro de animal”, “roupa” e, em palavras compostas, “vestido” (kuben kà), “sapato” (pat kà ou pari kà) e “avião” (màt-kà, “envoltório de arara”), por exemplo (Giannini, 1992: 152; Lea, 1986: 117; Coelho de Souza, 2002: 574). Entre os Krahô, Carneiro da Cunha registra significados parecidos para o termo khö e conclui realçando que todos “eles poderiam ser condensados na noção de ‘limite’ ou ‘fronteira’. (…) A pele é pois concebida como a ‘fronteira’ do organismo” (1978: 107). Conclusão semelhante é defendida por Terence Turner quando define, para os Mebêngôkre, “a superfície do corpo como uma fronteira comum entre a sociedade, o self-social e o indivíduo psicobiológico” (1980: 112). Turner, trabalhando dentro da clássica oposição entre natureza e cultura que viria a ser questionado por uma nova geração de antropólogos a partir do final dos anos 1980, afirma que a pintura corporal conforma uma segunda pele, social, que visa a socialização dos poderes naturais presentes no interior do corpo. Destas características da pele entre os Mebêngôkre, gostaria de sublinhar sua capacidade de envolver o sangue do indivíduo, retendo tanto o sangue como a alma ao corpo. A relação entre pele e sangue nas situações de resguardo foi explorada por Belaunde em sua proposta de uma hematologia amazônica. A autora afirma que, “embora o sangramento seja em princípio definido como um atributo feminino, verter sangue, para ambos os gêneros, leva a uma mudança de pele/corpo” (2006: 217). Neste sentido, a autora aproxima as situações de resguardo aos momentos em que é necessário “trocar de pele” ou, em outras palavras, reconstituir o invólucro pelo qual o sangue escapou ou penetrou68. Quero sustentar que a pintura corporal atua justamente na 68

Precursores na associação entre resguardo e “sangramento” masculino e feminino são os trabalhos de Albert (1985), Hugh-Jones (1979) e Overing (1986). Em todos estes casos, assim como nos resguardos do nascimento e da


194 reconstituição dessa fronteira que é a pele, possibilitando um processo que Caiuby (2006), apoiada nos escritos de Taussig (1999), denominou “figuração do corpo”. Tanto na infância como nos períodos de resguardo é através do trabalho de manipulação da pele através de tinturas específicas, ou de pinturas sem grafismos, que se processa a figuração do corpo no sentido de dar forma a ele. Vejamos, primeiramente, como isso ocorre na infância, momento em que a pele da criança deve ser paulatinamente preparada desde o nascimento para que seu corpo suporte a beleza (e o perigo) dos nomes e dos nekrêjx (bens cerimoniais), quando reconectados a seus antigos donos durante as grandes cerimônias de nominação.

Nascimento, infância e nominação Quando chegamos à aldeia – depois da caçada coletiva interrompida pelo parto da filha do cacique – manifestei minha vontade de acompanhar o nascimento de seu neto. Akjabôro desconversou e depois da minha insistência disse que ele também não veria e que, aliás, homem nenhum poderia assistir ou mesmo estar próximo do lugar onde seria realizado o parto. Durante todo o trabalho de parto que durou cerca de três horas, ele permaneceu sentado, imóvel, dentro de sua casa. Diante da impossibilidade de acompanhar o evento, pedi à enfermeira da aldeia que me fizesse um relato sobre o que ela tinha assistido. Ela disse que o parto é realizado em um lugar afastado da casa e que o chão é coberto com folhas de palmeira. A mulher fica de cócoras e, por baixo dela, entre suas pernas, senta-se sua mãe ou uma parente próxima, para literalmente segurar o recém-nascido (rwýk nýre).69 Outras mulheres próximas, geralmente irmãs e cunhadas, seguram os braços da parturiente. Logo depois de nascer, o recém-nascido é embrulhado em um pano, depois corta-se o cordão umbilical (na ocasião, segundo a enfermeira, esse procedimento foi feito com uma lâmina de gilete). Em seguida, espera-se a descida da placenta, que é posteriormente enterrada. Enquanto isso, a criança recebe uma série de massagens nas pernas, no tronco e na cabeça, feita pela avó no sentido de dar a primeira forma humana a seu corpo. Essa massagem é feita com tintura de urucu, que vai sendo espalhada pelo corpo do bebê enquanto as mãos da avó materna vão modelando a cabeça e os membros.70 Depois, a mãe também espalha urucu no corpo e no rosto e

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primeira menstruação entre os Kaxinawa (Lagrou, 1998), se trata de uma troca da pele, muitas vezes associada à troca da pele da anaconda (Lagrou, 1998, 2007). Onde rwyk tem o sentido de “descer”, e nyre, de “recém”. Rwyk nyre, portanto, quer dizer literalmente “recém descido”. “Quando de um nascimento que pude observar, da oitava filha de um casal, não havia urucu guardado na casa, e a avó paterna, que cuidava da criança logo após o parto (embora seja normalmente a avó materna que ajuda no parto e cuida do recém-nascido nas primeiras horas, sua nora não tinha mais mãe), mostrou-se aborrecidíssima não só de ter que recorrer a outras casas para tingi-la com o urucu, mas especialmente pela demora em fazê-lo.


195 toma um chá feito à base dessa planta para que estanque a hemorragia do pós-parto. 71 O urucu é aqui um importante agente na formação do corpo e sobretudo da pele da criança. É a substância utilizada na primeira camada de tinta, espalhada uniformemente por toda a superfície do corpo. Como me informou depois Mokuká, o urucu é importante neste momento para, em suas palavras, “não deixar karõ (alma, espírito) sair”. É sabido, pelas etnografias de Vidal (1977) e Giannini (1992) que “desde a concepção o feto possui karõ. (…) Durante a gestação, o karõ da criança pode deixar seu corpo e brincar, perambulando pela aldeia e pelas adjacências. Isto é considerado normal, pois o corpo ainda está fraco: tem pouco sangue, pouca carne, está mole”. (Giannini, 1992: 143; Crocker, 1986)72. Mokuká me explicou que o urucu agia no sentido de ser uma primeira forma de endurecer a pele da criança, pois uma vez que ela havia nascido, o karõ deveria permanecer dentro do corpo: “se karõ sair, fica fraco, pega doença e não vive não.” 73 Deve-se sublinhar, portanto, o caráter agentivo do urucu, no sentido de não permitir que o karõ saia do corpo. Ele age bloqueando a pele no sentido do interior para o exterior. A pele pintada de urucu atua como uma barreira para o karõ do recém-nascido, e isso é fundamental no início do processo de maturação corporal, cujo primeiro objetivo é dar forma humana ao corpo (Vidal, 1977), figurá-lo aos moldes mebêngôkre. A pintura de urucu, seguida das massagens, pode ser entendida como um primeiro esforço no sentido de humanizar a criança e endurecer sua pele vedando a possibilidade de o karõ sair do corpo. Essa característica específica do urucu pode ser realçada pelo fato de que assim como os Krahô, os Mebêngôkre definem o urucu antes como tintura do que como pintura (Carneiro da Cunha, 1978). Além de seu caráter eminentemente estético, quando cobre certas partes do corpo durante as

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Reclamou que a criança já tinha nascido havia tempo (e isso se dava em sua primeira hora de vida), mas que permanecia kà iaka, com a pele nua, sem ter passado o urucu” (Cohn, 2000: 145). Vidal descreveu processo similar entre os Xikrin do Cateté, um subgrupo mebêngôkre: “[Depois do parto] a mãe instalou-se sobre uma esteira e espalmou o rosto e o corpo com urucu. A avó também passou urucu no recémnascido e, com a palma da mão esquentada sobre o fogo, massageou constantemente a testa e o occipício da criança. A cabeça foi submetida a uma verdadeira modelagem e as parentes (…) se revezaram na operação” (1977: 88). Entre os Bororo, “os bebês nascem com pouco sangue. Por esse motivo, seus espíritos estão conectados de forma fraca a seus corpos, têm pouco conhecimento e podem facilmente ficar doentes e morrer” (Crocker, 1986 apud Belaunde, 2006: 214). Com a minha ingenuidade de etnógrafo iniciante, solicitei à enfermeira que, se tivesse oportunidade, tirasse uma foto do momento recente do pós-parto. Quando a indaguei sobre a fotografia, ela me disse que foi proibida não só de fotografar, mas de segurar a máquina fotográfica enquanto assistia ao parto. As mulheres envolvidas na ação disseram terminantemente que a máquina podia capturar o karõ da criança naquele momento de extrema vulnerabilidade. Em outra ocasião, eu quis registrar a foto de uma mulher muito idosa. Quando empunhei a câmera, um de seus filhos veio em minha direção e entrou na minha frente, como que bloqueando o corpo da velha, cuja imagem seria capturada pela minha fotografia. E era justamente isso que ele queria impedir, pois me disse que não podia fotografar velhos porque, como acontece com o recém-nascido, seu karõ poderia ser capturado. Não é à toa, portanto, que os Mebêngôkre chamam a fotografia também de karõ. Considera-se que a fotografia possa causar danos a pessoas que estão em situação muito vulnerável, recém-chegados à vida, como as crianças que acabam de nascer e, mais próximos da morte, como velhos e pessoas doentes ou de resguardo.


196 cerimônias, gostaria de destacar o caráter terapêutico que o urucu possui em diversas ocasiões. Não sendo apenas expressivo, como queria Vidal (1992), nem somente relacionado a certas partes do corpo (como a cabeça, o rosto, os antebraços, as canelas e os pés) que estão mais próximas do contato com a “natureza”, como aponta Turner (1980), sugiro que esta tintura tem conotações de um poderoso “remédio”, utilizada não apenas para comunicar à sociedade certas condições específicas do corpo, mas também para tratá-lo em determinados contextos. É por isso que o urucu é constantemente utilizado nos momentos de doença, espalhado no rosto e por todo o corpo, tal como é feito com o recém-nascido, e também em forma de chá servido à parturiente no período do pósparto. Além disso, à tintura de urucu são adicionadas outras plantas, consideradas pidjô (remédios), quando ela é aplicada em doentes, resguardados e recém-nascidos. Aqui, tal como para os Apinajé, “a noção de processo é fundamental”, pois tanto “a criança é feita aos poucos” (DaMatta, 1976: 88) como também é aos poucos que o corpo dos doentes ou dos resguardados se recupera. Lux Vidal (1992) em seu trabalho precioso sobre a pintura corporal xikrin demonstrou a existência de uma estrutura pictórica recorrente nas peles de recém-nascidos, doentes e resguardados. Em todos eles, o primeiro procedimento concedido ao corpo é marcado pela aplicação de urucu na pele. Diante desse fato recorrente, pode-se estender o que disse Mokuká sobre o efeito do urucu sobre a pele do recém-nascido para essas outras ocasiões em que os corpos voltam a estar moles e fracos como o dos bebês. Trata-se, assim, de compreender o urucu como uma primeira ação no sentido de figurar (no caso do recém-nascido) ou de refigurar (no caso dos doentes e resguardados) o corpo, através da reconstituição imediata desse invólucro que configura a pele. Não permitir que o próprio karõ saia do corpo parece ser um procedimento coerente quando se está em contato com sangues (e, portanto, karõ) exógenos. Outro efeito parece ter a pintura de jenipapo sobre a superfície do corpo. O bebê, por exemplo, só recebe uma primeira pintura com essa substância quando cai o cordão umbilical, ocasião em que já foi pintado de urucu, estando a pele já preparada para tal. Como veremos a seguir, o mesmo ocorre com outros corpos em estados similares ao do recém-nascido. Certa vez, conversando sobre esse assunto com Bepunu, ele me disse que a primeira pintura recebida na vida de um Mebêngôkre era “toda preta, sem desenho. Porque pintura com desenho é muito forte (àkre)”.74 Segundo ele, o corpo do recém-nascido não suportaria o grafismo: “Se fazer assim, com o kwyky (pincel), vai ficar na pele a vida toda.” Repetidas vezes, quando conversávamos 74

Vidal já havia notado que, para os Xikrin, o recém-nascido era pintado com o motivo Tep ibe, “desenho constituído de linhas paralelas, verticais (…) aplicado a dedo [que] representa indiscriminadamente a mancha do couro da anta nova, do veado novo ou do pequeno peixe” (1992: 161). Por outro lado, Cohn (2000: 145) afirma que “quando cai o cordão umbilical, ela é pela primeira vez pintada com jenipapo, com o motivo ibê (…). No Bacajá, as pessoas dizem apenas ibê e explicam que esse nome se refere ao modo como a pintura é aplicada, com os dedos”.


197 sobre este tema, Bepunu me disse que o grafismo de jenipapo era muito forte e que quando aplicada em pessoas doentes demoraria muitos anos para sair, pois ultrapassaria a superfície mole do corpo, chegando ao seu interior. O mesmo parece ocorrer com o recém-nascido, por isso ele deve receber primeiramente um motivo neutro, sem grafismo, feito com a mão. Sua condição liminar – ainda não sendo totalmente humano, tendo a pele mole, em fase de endurecimento – não permite que ele receba as pinturas consideradas bonitas (mejx), feitas com pincel muitas e muitas vezes durante a infância. Um processo análogo a esse foi notado por Cohn (2000: 145) entre os Xikrin: Quando cai o cordão umbilical, ela [a criança] é pela primeira vez pintada com jenipapo, com o motivo ibê, com os dedos. (…). Uma criança deve ser pintada com essa técnica até que tenha a pele “dura”; de fato, os Xikrin sempre apontam para o absurdo que seria a utilização do pincel na pele frágil (kà rérékre) de um recém-nascido.

Essa passagem é bem representativa da forma como é entendida pela autora a pintura corporal durante a infância. Segundo ela, a pintura é um importante marcador temporal das fases vividas pela criança, através de sua presença constante na “transição vivida na infância”, quando a criança adquire uma autonomia relativa através da aquisição da habilidade de se movimentar sozinha (2000: 160). Embora afirme que a criança “deva ser pintada com essa técnica [ibê, com os dedos] até que tenha a pele dura”, a autora não se refere ao fato de ser justamente o ato de pintar a pele com essa técnica, ou mais especificamente com essa tinta, que a faz endurecer. Seguindo os estudos de Turner (1980) e Vidal (1992), a autora interpreta a pintura corporal na infância segundo uma visão sociológica, de acordo com a qual as mudanças na sua “ornamentação” através da pintura e de outras técnicas corporais são vistas como etapas importantes na demarcação da identidade social da criança. A sequência de pinturas de jenipapo com grafismos que o bebê começa a receber depois da pintura neutra, “toda preta”, age como um importante preparador da pele da criança para o momento da transformação ritual em que terá contato direto com agências não humanas. Trata-se do início de um processo paulatino de endurecimento da pele que visa, na verdade, o embelezamento, a preparação para o ritual de nominação, em que os corpos das crianças nominadas devem suportar a máxima “beleza” (México) mebêngôkre, quando são adornados com penas, cocares, colares de dentes, braceletes, braçadeiras, pulseiras, colares de miçangas, máscaras de casca de ovo de azulão, penugens de periquito, dentre outros adornos, geralmente adquiridos, roubados e produzidos através de relações de alteridade (com inimigos, seres animais, vegetais, sobrenaturais, espíritos; enfim, não humanos). Outra característica que os Mebêngôkre compartilham com os demais Jê, sobretudo com os


198 Timbira, é o fato de os nomes serem apreendidos pelos xamãs de animais ou seres sobrenaturais (Vidal, 1977; Turner, 1995; Lea, 1986; Coelho de Souza, 2002; Gordon, 2006). Daí advêm a força, a potência e a beleza tanto de nomes como de nekrêjx (Gordon, 2006: 318). Os rituais de nominação mebêngôkre são momentos em que ocorre “a ressubjetivação dos nomes bonitos [e também] de toda a parafernália cerimonial, tudo aquilo que é pensado como apropriação de outrem e que faz sua aparição no ritual. Neste contexto, eles estão novamente reconectados a seus donos originais, voltam a ser animalizados e, por isso, tornam-se verdadeiramente bonitos (idem) ”75. Os nomes e nekrêjx são, portanto, altamente perigosos, e para recebê-los o corpo deve estar devidamente preparado, com a pele endurecida pelas inúmeras camadas de pintura recebidas pelas crianças durante a infância. A pintura corporal de jenipapo age assim como um importante protetor da pele, acostumando a criança para que no contexto ritual seu corpo possa suportar o “peso” agentivo dos nomes e não seja violado pelas substâncias perigosas presentes nos nekrêjx. É importante notar que no contexto do ritual as crianças, tal como os adultos, têm a pele cuidadosamente pintada com grafismos e que é justamente sobre ela que serão postos os nekrêjx. Além disso, Coelho de Souza tem apontado para a face mais especificamente “pele” do nome, no sentido de que este “veste” a pessoa. Esse aspecto do nome, sugiro, corresponde à objetificação das relações que constituem a pessoa como parente e, assim, às transações entre cruzados e paralelos, nominadores e genitores, mentores e propagadores, bem como maternos e paternos (…) Mas o nome é também sob outros aspectos ‘alma’, ele sobrevive à morte e está ligado ao ritual e a seus personagens (2002: 573).

Sugiro que no cotidiano, quando as mulheres da aldeia pintam os seus filhos, maridos, sobrinhos e netos, elas compartilham com eles uma substância a mais do que os fluidos corporais necessários para a reprodução dos grupos domésticos (Melatti, 1976; DaMatta, 1976); compartilham a tintura de jenipapo que reage na pele, produzindo parentesco. Neste sentido, a pintura possui uma face comum a dos nomes. As sessões de pintura corporal seriam, numa chave sociológica, a própria concretização cotidiana, processual, da produção do parentesco no âmbito doméstico. Entretanto, enquanto no ritual o nome mostra sua face “alma”, visando a transformação devido a sua reconexão com seus antigos donos, a pintura, neste contexto, reage a isso. Embora outros autores (como Vidal, 1992; e Giannini, 1992) tenham apontado para o que poderíamos denominar a face “alma” da pintura, quando é usada no ritual como parte das técnicas de transformação do corpo, quero realçar outra particularidade de seu uso nestes contextos. Sugiro que 75

“Certamente, essa ‘animalização ritual’ visa no fim das contas à distinção entre humanos (Mebêngôkre) e animais, e entre Mebêngôkre e kuben [branco, inimigo, indivíduo de outro grupo indígena ou de outra natureza que não a humana] – afinal o ritual está ali para contar como, justamente, os animais (e kuben) foram os ‘donos’ desses itens no tempo pretérito, tendo-os perdido” (Gordon, 2006: 323).


199 é ela a responsável por não permitir que as agências dos nekrêjx colados ao corpo penetrem em seu interior, o que poderia provocar a desfiguração máxima, que é a morte. Ela é assim parte importante dos procedimentos que permitem que a criança suporte, no momento ritual, o lado “alma” do nome, sua reconexão (e a dos nekrêjx) a seus antigos donos, uma vez que reforça ou mesmo constitui essa fronteira que é a pele. Em contraste com o urucu, que quando adicionado à pele prende o karõ no corpo, o jenipapo age no sentido contrário, bloqueando a possibilidade de outros karõ (ou do karõ de outros) penetrarem em seu interior. O uso da tinta de jenipapo parece ter realmente um valor, não apenas estético, mas também profilático, como destacou pioneiramente Lea: “os espíritos dos mortos [mekarõ] temem a tinta preta de jenipapo” (1994: 97) 76. A pintura possui esse mesmo valor profilático quando cobre os corpos dos participantes dos rituais, e a isso se deve à importante noção de contágio existente entre os Mebêngôkre. Como vimos acima, o contato corporal com certos elementos animais pode causar sérios danos à saúde, que são acentuados quando o contato ocorre através do sangue, pois na hematologia mebêngôkre o contato com sangues de outros implica necessariamente a possibilidade de absorção de um outro karõ (Gordon, 2006: 319). Contudo, não é apenas o sangue o veículo do karõ. Certas partes de animais, como as peles, as penas, os dentes, ou representações zoomórficas deles, como as máscaras, também podem transmitir karõ e provocar doenças através de outras formas de contágio que não ocorrem pelo sangue. Em relação às máscaras, a própria visão delas pode acarretar sérios danos à saúde de crianças e mulheres77. E é para proteger o corpo da agência dessa outra pele, do envoltório de um outro, que os homens só vestem a máscara com a pele devidamente pintada de preto78. As penas, por sua vez, também possuem agência significativa entre os Mebêngôkre. Giannini registra que, durante o resguardo por homicídio, os homens dançavam com ornamentos feitos de cipó batido, para somente depois, ao fim do resguardo, quando o corpo já estivesse novamente reconstituído, se ornamentarem com artefatos plumários (1992: 172). Neste sentido, ela destaca que a plumária é utilizada gradativamente durante a infância, devido ao seu alto teor de 76

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E não apenas ela, outra substância utilizada para combater a possibilidade de penetração dos mekarõ no corpo da criança durante os rituais é a resina ráp, que possui um cheiro forte e é aplicada em forma de grafismos diagonais nas duas extremidades da parte raspada do couro cabeludo que compõe o corte de cabelo mebêngôkre. Durante a festa de nominação Kokô, quando os Mebêngôkre confeccionam as perigosas máscaras Pát (tamanduá bandeira), as cômicas máscaras kubut (macaco prego) e kukôire (macaco guariba), e as misteriosas máscaras Kokô, os homens se retiram da aldeia para a mata para produzi-las, porque mulheres e crianças não podem vê-las, muito menos tocá-las ou vesti-las. Fausto notou recentemente que entre os Kuikuro, o uso da máscara do Turbilhão “requer que o mascarado receba antes uma pintura corporal – neste caso, não um motivo gráfico sofisticado, mas um enegrecimento do corpo” (2013: 324).


200 agência, resultante do fato de as aves serem “criação dos heróis mitológicos”, sendo os artefatos plumários, portanto, “os últimos elementos a serem simbolicamente incorporados”. Em relação ao uso de penas durante a infância, ela registra que crianças que ainda não andam (...) não podem tocar ou manipular penas, pois isto causar-lhes-ia a morte. Somente depois de andar, quando já tem o corpo “duro”, a criança poderá suportar os artefatos plumários e bem mais tarde (aos 8 ou 10 anos) é que poderá ser ornamentada com ovo de azulona na face. (Giannini, 1992: 173).

Essa dimensão processual, como vimos acima, foi destacada por Cohn (2000; 2009) em sua pesquisa sobre a infância entre os Mebêngôkre. Neste mesmo trabalho, a autora interpreta o fato de que as mães submetem as crianças, frequentemente, a uma pesada ornamentação – prerrogativa a que somente elas têm direito – como uma “forma de afirmar e reafirmar continuamente” sua identidade social, de modo a fazer conhecer aos demais membros da comunidade seus bens cerimoniais (2009: 25). Contudo, pode-se interpretar este fato de modo diverso quando se nota que as mães só começam a fazer essa ornamentação quando a criança já é relativamente autônoma (já fica em pé e anda sozinha), ou seja, quando sua pele já foi paulatinamente endurecida pelas pinturas que receberá de quinze em quinze dias até aquele momento de seu desenvolvimento corporal. É somente depois disso que as crianças são adornadas com nekrêjx. Estes, por sua vez, como bem notou Giannini, estão referidos à categoria das aves. Segundo a autora, o “termo não pode ser empregado para máscaras, braçadeiras, franjas e hastes. Quanto a enfeites, colares, braçadeiras, cocares, cintos, chocalhos, eles serão considerados riquezas Xikrin (nereia) se possuírem penas de aves” (1992: 96). Sugiro que, além de demarcar a identidade social da criança, concedendo visualidade às suas prerrogativas rituais, a ornamentação esporádica torna visível o processo de produção da pele da criança, tanto no sentido de prepará-la para o contato com as penas e outros agentes relacionados aos animais, como no sentido de bloquear seu corpo, não permitindo sua contaminação quando esse contato efetivamente ocorre no cotidiano e, sobretudo, no ritual. O que estaria em jogo, então, não seria somente a afirmação da identidade social da criança, mas a afirmação e a reafirmação contínuas do próprio fato de que o corpo da criança suporta os nekrêjx e os suportará por ocasião do ritual de nominação, sem perigo de contágio e, consequentemente, de doença e morte. A partir dessa hipótese, torna-se possível repensar outra afirmação recorrente na etnografia de Vidal (1992) e, posteriormente, incorporada por Cohn (2000; 2009) em seu estudo sobre a infância mebêngôkre. Trata-se da conclusão das autoras de que “a criança é um agente passivo, pintada por sua mãe de acordo com sua [da mãe] escolha de momento e motivos” (Cohn, 2000: 136). Na leitura de Vidal (1992: 174), “as crianças são agentes passivos que, deitados na esteira e


201 meio adormecidos, ficam submetidos à carícia constante e regular do pincel materno”. Gostaria de chamar atenção aqui para o lento processo de preparação da superfície do corpo da criança, que exige dela também uma ação, ou melhor, uma reação corporal. Torna-se possível diferenciar então duas formas de agência: uma passiva que se observa no comportamento da criança durante as sessões de pintura, que é também um aprendizado; e outra, ativa, que corresponde a uma agência corporal, pois a pele da criança precisa reagir às camadas de tinta durante o lento trabalho da pintora. No primeiro caso, e nos termos propostos por Gell (1998), pode-se pensar a pele da criança como um “paciente”, pois reage à agência da pintura. Neste sentido, a criança pode ser vista tanto como um “agente passivo” (tal como salientado pelas autoras) quanto como um “paciente ativo”, isto é, “another ‘potencial’ agent, capable of acting as an agent or being a locus of agency” (Gell, 1998: 22). A importância de produzir a pele da criança para que reagindo à pintura ela possa receber penas (ou enfeites que contenham penas) encontra ressonância mitológica na história de Àkti, o Grande Gavião. Antigamente, os índios eram mansos, fracos e não tinham armas. Eles viviam à mercê de Àkti, o gavião gigante, que os caçava, os carregava pelo céu até seu ninho e os devorava. Um dia, uma mulher velha foi ao mato com seus dois sobrinhos (netos) pequenos para tirar palmito. Ali ela foi atacada por Àkti diante dos meninos, que fugiram aterrorizados para a aldeia. O pai (ou tio) dos meninos (irmão da mulher devorada pelo grande gavião), movido pelo sentimento de vingança, descobre um meio de liquidar o monstro, transformando seus sobrinhos em super-homens. Ele coloca os meninos dentro de um grotão, alimentando-os com beiju, banana e tubérculos para que cresçam bastante e fiquem fortes. Passam-se os dias, e é como se os meninos fermentassem dentro d’água. Depois de um tempo, eles haviam crescido e se tornado enormes, mais fortes e capazes que qualquer índio. Caçavam antas e outros animais grandes como se elas fossem pequenos roedores. Um dia, então, Kukry-uire e Kukry-Kakrô saem para caçar Àkti munidos de borduna, lança e um apito de taquara, armas feitas pelo tio. Ergueram um abrigo de palha no chão, de onde se via o ninho do gavião. Ao pé da árvore havia uma pilha de restos humanos, como ossos e cabelos. Os irmãos atraíram Àkti soprando o apito. A imensa ave descia pronta para o ataque, mas eles escondiam-se no abrigo, deixando-a desnorteada. Fizeram assim muitas vezes, deixando o pássaro cada vez mais furioso e desorientado, até que mostrou sinais de cansaço. Os irmãos, então, mataram-no com lança e borduna. Como troféu tiraram as penas de Àkti e puseram na cabeça. Cantaram. Celebraram. Depois depenaram a ave e retalharam-na em pedaços pequenos. Sopraram as penas, e elas foram transformando-se em pássaro. As penas maiores deram origem às aves maiores (gavião, urubu, arara); as plumas menores, aos pequenos pássaros, como o beija-flor. (Gordon, 2006: 213-214)

Além de evidenciar, nas palavras de Gordon (2006), uma “inflexão perspectivista” mebêngôkre, este mito reencena o processo que venho descrevendo aqui, feito e refeito pelas mães e avós em seus filhos e netos durante a infância, visando a um momento ápice em que o corpo, depois de longamente produzido, deve ser testado. Todos estes procedimentos corporais visam, por um lado, à figuração do corpo humano e, por outro, à preparação dele para o momento em que será refigurado pela transformação ritual. Visam, no mesmo sentido, a produzir o “ator social ordinário”,


202 o “parente”, mas também o “agente”, aquele que pode se transformar no ritual (Turner, 1995; Coelho de Souza, 2002; Gordon, 2006). Parece-me que é justamente este último processo que está evidenciado no mito de Àkti. Para se tornarem agentes, os heróis (que no mito são meninos) recebem uma dieta especial à base de bananas, beiju e tubérculos. Em outra versão desta narrativa, coletada por Vidal (1977: 225), podese ler que, além da dieta, os corpos dos garotos foram submetidos a um tratamento na pele, à base de urucu e coco, depois de serem limpos “da sujeira e do melado do peixe” com talhas de palmeiras, as mesmas utilizadas pelas mulheres na pintura corporal. Essa preparação do corpo visa ao seu aumento e ao seu fortalecimento para um momento especial de enfrentamento do inimigo. O interessante é que não só a preparação, mas o próprio rito está contido no mito. Depois de matarem o grande gavião, os heróis roubam-lhe as penas, colocam na cabeça, dançam e celebram. Apoderam-se da beleza do inimigo, suas penas, e rapidamente as colocam para circular no sistema cerimonial mebêngôkre como sua principal riqueza. O mito de Àkti, além de demonstrar a passagem dos Mebêngôkre de presas a predadores, de fracos (rérékre) a fortes (týxt), de mansos (uabô) a bravos (àkre) (Gordon, 2006), assinala justamente o processo necessário para atingir tal objetivo. Para que se tornem heróis mitológicos e possam não apenas enfrentar o grande predador e matá-lo, mas também inventar a plumária, a riqueza máxima mebêngôkre (e todos os perigos que ela implica), os meninos são submetidos a um período de reclusão, durante o qual são alimentados por uma dieta específica e têm sua pele tratada com substâncias também específicas: um procedimento comum entre os Mebêngôkre nos momentos em que os corpos estão mais vulneráveis às agências não humanas. Seja em situações cujo objetivo é o enfrentamento direto com o inimigo, como no caso dos meninos heróis mitológicos, das expedições guerreiras, das caçadas coletivas e da iniciação masculina; seja em contextos em que é necessário se resguardar ao máximo de qualquer possibilidade de contato com não humanos, como no caso dos momentos de resguardo por nascimento do primogênito, por luto, por homicídio ou, ainda, por doença. Gostaria de me ater agora a estes contextos, para perceber a agência da pintura nestes momentos de vulnerabilidade e sua relação com as substâncias e os limites do corpo Mebêngôkre.


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Resguardo e luto A morte é dura. Ainda mais dura é a tristeza. (Provérbio dos índios Fox) Durante a pesquisa de campo presenciei o funeral de uma criança de pouco mais de seis meses de idade e o posterior luto obedecido pela família. Recordo que fiquei muito impressionado, como outros pesquisadores dos Jê, com a violência manifestada pelos parentes quando expressam sua dor depois da perda de um ente querido. Já havia me impressionado quando presenciei o choro ritual realizado no encontro de dois parentes que não se veem há muito tempo, mas nada comparado às ações de autoagressão multiplicadas durante o funeral. Transcrevo aqui um trecho do diário de campo escrito alguns dias depois destes acontecimentos marcantes: Quando estávamos prestes a almoçar, eu e a enfermeira ouvimos o barulho do avião que traria o corpo da criança. Era por volta de duas da tarde, e eu não imaginava tudo que iria enfrentar durante o resto do dia. Quando o avião pousou, uma multidão de crianças invadiu a pista. Rapidamente, o pai, acompanhado da mãe, saiu do avião com o corpo da criança nos braços, enrolado em um manto azulescuro, e seguiu em cortejo fúnebre pela pista de pouso. A tristeza era geral e absoluta. Estando um pouco atrás do pai da criança momentos antes de ele entrar em sua casa, pude ouvir – no momento em que ele adentrou pela porta – o estalar dos corpos dos parentes se debatendo no chão. Todos se machucando muito, se jogando no chão, esmurrando o próprio rosto, cortando a própria cabeça com facão. A dor em toda casa era lancinante. E era tudo muito tumultuado com pessoas se autoagredindo e outras tentando evitar que as outras se machucassem. O corpo da criança foi sendo passado de mãos em mãos entre os parentes próximos, todos eles se agredindo muito enquanto seguravam o bebê no colo. Por fim, o corpo chegou aos braços da avó materna, sem dúvida a mulher mais alterada do funeral. Depois de chorar muito e de discursar em nome do neto, ela se acalmou por um tempo, despindo-o e colocando-o de bruços em seu colo para que uma outra mulher, da mesma classe de idade dela, pintasse o corpo do bebê. Aquela cena que vi muitas vezes no cotidiano da aldeia era agora encenada pela última vez naquele corpo, envolta em uma névoa de tristeza e desconsolo. Enquanto a criança ia sendo lenta e cuidadosamente pintada com o grafismo do jabuti (kapran ôk), um silêncio cortante caía sobre a aldeia. As mulheres conversavam sussurrando, e de vez em quando o silêncio era quebrado por um pranto forte de algum parente se debatendo no chão. Assim foi durante toda a pintura, que durou cerca de duas horas. Quando terminou, a avó, ajudada pela irmã da mãe, foi enfeitando lentamente o bebê. Primeiro, com um grosso colar de miçanga azul e amarelo (obikaniere). Depois, os brincos e as braçadeiras, seguidos das pulseiras, tornozeleiras, dos cintos e brincos, todos feitos com miçangas. Dois shorts completavam a vestimenta da criança. Por fim, a avó cortou com gilete o cabelo do neto, à moda mebêngôkre, e depois raspou-lhe as sobrancelhas, arrancou-lhe os cílios e passou-lhe óleo de babaçu nos cabelos, enrolando-o num manto azul. Enquanto a criança era enfeitada, a mãe separou seus pertences, como roupas, fraldas, colchão, coisas de higiene pessoal, sua rede, roupas de cama, travesseiro, enfeites, tudo que seria sepultado em conjunto com o corpo. Terminada a arrumação da criança, houve um novo surto de crises de autoagressão, com praticamente todos os parentes próximos da criança se debatendo no chão. E tudo foi muito rápido. Quando vi, um dos tios maternos saía da casa com a criança no colo. Fui atrás, junto com a enfermeira. Quando chegamos ao cemitério, o corpo estava sendo colocado em um


204 caixão doado pela FUNASA, que logo foi depositado na cova retangular, junto com os pertences. Depois cobriram o buraco com um colchão, posteriormente encoberto com lona e terra. Outra lona foi finalmente colocada por cima do monte de terra. Depois do sepultamento, voltamos à casa dos pais, que estava praticamente destruída. Já era noite, e os parentes próximos ao morto estavam deitados em esteiras e colchões depositados no chão do que restara da casa. Estavam com os corpos muito machucados e com os rostos inchados de murros e lágrimas. Eu estava muito cansado, completamente sujo e com a roupa rasgada. Sentei num toco do lado de fora da casa, acendi um cigarro e, ouvindo os murmúrios de dor dos parentes, não pude conter as lágrimas. (Diário de campo, cinco de fevereiro de 2010)

Algum tempo depois desses acontecimentos, com o distanciamento necessário para voltar novamente aos fatos, gostaria de destacar o processo de desfiguração que a morte de uma pessoa desencadeia, neste caso não no próprio morto (Caiuby, 2006), mas nos corpos dos seus parentes próximos. Sem tempo nem espaço para analisar todo o funeral aqui, quero enfatizar esse processo de desfiguração dos próximos realizado através dos atos de violência empreendidos no próprio corpo, além do processo de refiguração do morto realizado durante o luto. Em sua etnografia imagética a respeito do funeral Bororo, Caiuby afirma que “é preciso figurar bem aquilo que será desfigurado”; por isso, ocorre todo o trabalho de embelezamento do morto, para que com o enterro se inicie o processo de desfiguração (2006: 290). Mas e os parentes próximos? A eles me parece ocorrer o contrário. No caso dos Mebêngôkre, é preciso desfigurar bem aquilo que será refigurado. É este processo que o luto desencadeia: a refiguração de corpos dilacerados pela dor. Tudo se passa como se para figurar pela última vez o morto, todos os seus parentes próximos devessem se desfigurar, arranhar a superfície do corpo, agredi-la através de socos e golpes de facão, destruí-la parcialmente se debatendo no chão. É como se, para pintar pela última vez a pele do morto, sacrificassem a própria pele, que não voltará a ser pintada por um longo período. Demonstrei acima como após o nascimento a criança tem primeiro seu corpo tratado com urucu, cuja ação na pele do recém-nascido visa justamente prender o karõ ao corpo no momento em que o bebê ainda não está preparado para suportá-lo. Já o jenipapo, como vimos também, age na preparação da pele durante toda a infância, no sentido de endurecê-la, bloqueando o corpo da possibilidade de penetração de karõ exógeno. Gostaria de estender essa hipótese para os casos de luto e resguardo por homicídio entendidos aqui, seguindo a sugestão de Belaunde, como momentos de “troca de pele” (2006: 228), momentos que exigem um trabalho específico sobre a superfície do corpo, seja no sentido de refigurá-lo, seja no sentido de, posteriormente, protegê-lo. No período de luto, que durou pouco mais de um mês, os pais da criança, e também seus avós e tios maternos e paternos, permaneceram em casa, comendo uma dieta específica à base de


205 batata doce, inhame e banana, não saindo nem para tomar banho no rio, o que era feito na torneira localizada do lado de fora da casa. Alguns dias após o funeral, Mokuká me contou que na cultura deles “era assim mesmo. Ninguém pode sair. O corpo tá fraco, fica mole de novo. Fica kanet (doente)”. O perigo de ter o corpo mole é agravado pelo fato de sua superfície estar dilacerada, coberta de feridas e hematomas causados durante o funeral. O luto para os Mebêngôkre, diferentemente do que é para os Krahô, é também um momento de derramamento de sangue. Carneiro da Cunha registra que para os primeiros o luto difere das outras ocasiões de resguardo porque “não supõe nenhuma restrição alimentar, pois não é um resguardo de sangue” (1978: 54, grifo da autora). O mesmo não ocorre entre os Mebêngôkre: tal como nos outros contextos de resguardo, os pais da criança morta observaram séria restrição alimentar e permaneceram sem sair de casa por um longo período. Se, como afirma Mokuká, os parentes não podem sair de casa, isto ocorre porque, tanto como os humanos, os mortos sentem saudade (aumá) e retornam constantemente para tentar levar consigo, para a aldeia dos mortos, os parentes próximos. A saudade destes, por outro lado, faz com que suas almas fiquem vulneráveis ao movimento de exteriorização e desprendimento do corpo, e queiram se juntar novamente ao parente morto, correndo o risco de que venham a se instalar com ele na aldeia dos mortos. Esse poder de atração pela saudade que o mekarõ do morto exerce sobre seus parentes é extremamente perigoso. É por isso que os enlutados devem ser isolados do convívio social. Devem permanecer em casa, espaço que, tal como o corpo, precisa ser paulatinamente reconstituído como que numa metáfora da própria reconstituição do envoltório dos corpos que ali habitam. Durante o luto, a aplicação do urucu só começou a ser realizada uma semana após o sepultamento, tempo necessário para as feridas curarem minimamente através dos banhos de ervas tomados pelo casal. Marido e esposa permanecem durante um período de aproximadamente duas semanas se pintando esporadicamente com urucu, como que reconstituindo a pele, fazendo permanecer seu próprio karõ no corpo, e preparando-a para a pintura de jenipapo que viria em seguida. Na última semana do luto, quando começaram a esboçar os primeiros movimentos para fora da casa, tanto o pai como a mãe cortaram o cabelo à moda Kayapó e pintaram corpo e rosto com a tintura negra de jenipapo que conforma o motivo me týk. Processo semelhante pode ser observado durante o resguardo dos guerreiros que cometeram homicídios. Dizem os Mebêngôkre que, quando um homem comete assassinato, o contato com o sangue do morto faz com que o karõ deste penetre no corpo do assassino. Todo o trabalho de resguardo dos guerreiros visa a retirar o karõ do morto de seu corpo, através da expurgação e da secagem do sangue por meio de escarificações e banhos de sol, e também com aplicações de urucu


206 e jenipapo, banhos de ervas e dieta específica. No relato coletado por Giannini após um ataque coletivo que ocasionou a morte de um homem Araweté, um matador descreve todo o processo: Quando matamos Kubenkamrit não podíamos comer nada. Fomos para acampamento no mato (…) e fomos banhar no rio e esfregar forte no corpo folhas do mato que só velho sabe. Depois pintou de urucu e carvão. Não pode comer nada, só depois de pintado é que pode comer carne de jabuti branco: tá duro. O veado e outra caça, não pode: tá mole. (...) Não pode falar com elas [mulheres e crianças], não pode olhar senão ficam amarelas e morrem. Ao chegar na aldeia tem que buscar pedras, tem que cobrir o chão do ngob [casa dos homens] e ficar sentado em cima. (…) Tem que ficar no sol, em cima das pedras, primeiro de frente, depois de costas. (…). Os velhos fazem escarificação com dentes de aruanã. Os velhos e homens casados com filhos são escarificados na frente, os rapazes atrás. Agora fica sentado secando o sangue no sol. Não pode dormir, se dormir não acorda mais. De noite vai banhar no rio. Faz isto durante vários dias. Depois vai banhar de tarde, volta e dança, usa só enfeite de cipó. Depois que secou bem o sangue, os homens se pintam no ngob [casa dos homens] com jenipapo, todo de preto. Vai dançar e depois pode ir para casa (1992: 149150; grifo meu).

A aplicação do urucu visa permitir que o guerreiro ingira carne de um animal específico que só pode ser consumido depois que a pele estiver devidamente pintada. Ao utilizar a expressão “tá duro”, acredito que o “guerreiro” se refira ao fato de seu próprio corpo já estar duro o suficiente, depois dos banhos de ervas e da pintura com urucu, para comer a carne de jabuti, estando ainda mole para comer a carne de veado e outras caças. Não se trata, assim, de a carne do jabuti ser considerada dura (Giannini, 1992: 151), mas do próprio fato de que, para comer essa carne, o corpo deve estar minimamente preparado. Sem esse primeiro endurecimento, sem essa proteção mínima, possivelmente, o corpo já debilitado seria totalmente ocupado pelo karõ do morto, provocando a temida desorganização interna. O jenipapo, por sua vez, é utilizado somente depois de o sangue ter secado, no momento em que o resguardo está chegando ao fim, quando estão retornando às atividades cotidianas. O motivo é o mesmo aplicado no fim do luto, no corpo do recém-nascido e no de sua mãe e de seu pai: me tyk, “todo preto”. Essa passagem do urucu ao jenipapo nos períodos de resguardo já havia chamado a atenção de Vidal (1992), que, como notei acima, foi a primeira a revelar a existência de uma estrutura pictórica recorrente nestes contextos, atualizada pela pintura de urucu no início do período e pela pintura de jenipapo com o padrão me tyk (todo preto), realizada em seu fim. Vidal interpreta o uso das duas tinturas nestes momentos afirmando que “a pintura de jenipapo é essencialmente informativa, comparando-a com a tintura de urucu, que teria conotações mais expressivas, e está fortemente relacionada ao processo de socialização e controle social” (1992: 174). Essa afirmação me parece importante ao diferenciar as duas tinturas mais utilizadas pelos Kayapó nos termos de seus significados. Mas, pensando em termos de agência, pode-se resgatar o aspecto profilático, terapêutico e regenerativo da pintura, a partir do qual o urucu e o jenipapo, embora diferentes em cor e função, seriam acionados em dois momentos de um só processo de refiguração que parece


207 dizer respeito aos cuidados com o corpo, no sentido de restabelecer suas fronteiras nos momentos de resguardo, doença, luto, restrições pós-guerra, preparação pré e pós-ritual, quando os corpos estão mais vulneráveis à agência não humana. Estes seriam momentos em que, como afirma Cohn, “a pintura atua como marcador temporal das etapas internas aos momentos de transição” (2009: 26). Seguindo o caminho trilhado até aqui, sugiro que essas tinturas vegetais agem na refiguração paulatina do corpo e na sua proteção nesse momento de vulnerabilidade. Neste sentido, é preciso ressaltar, como o faz Giannini (1992: 172), a importância do elemento vegetal no processo de reconstituição do ser que possui sua configuração interna desordenada. Dos banhos de ervas, passando pelas aplicações de urucu até a primeira pintura de jenipapo, o corpo vai sendo refigurado e a pele vai sendo novamente endurecida, protegendo o indivíduo dos perigos que envolvem tanto as situações de resguardo como a quebra das restrições impostas por ele. Analisando os momentos de troca de pele em várias sociedades amazônicas, Belaunde afirma a existência de uma ideia recorrente: “Enquanto estão ‘trocando de pele/corpo’, homens e mulheres ficam suscetíveis a passar por uma transformação descontrolada que os transformaria em outros e os alienaria de seus parentes. Na pior das possibilidades, essa alienação os mataria” (2006: 229). Entre os Mebêngôkre, a “troca de pele”, ou sua completa refiguração, só se concretiza quando, de volta às atividades cotidianas, as pessoas que estavam de resguardo têm seu corpo pintado com uma pintura com grafismo, denominada ‘ôk mejx (pintura bonita), escolhido e aplicado coletivamente por pessoas do mesmo gênero e da mesma faixa etária. Contudo, antes da refiguração completa, como que para ir testando o corpo, os resguardados (assim como o recém-nascido) são pintados com o motivo me tyk. Como vimos, ele sinaliza o fim do resguardo, quando o indivíduo volta a desempenhar as tarefas cotidianas. Não foi em vão que ele foi interpretado por vários autores (Vidal, 1977, 1992; Verswijver, 1992; Cohn, 2000) como uma forma de comunicar à sociedade o retorno dos pais, sobretudo a volta do pai à esfera pública e cerimonial traduzida aqui pela “casa dos homens”. Contudo, sua utilização parece comunicar algo mais ou, em outras palavras, sua utilização visa a comunicação com alguém a mais que os humanos. Ela parece apontar para um momento em que o corpo já não está tão frágil quanto esteve logo nos primeiros dias do resguardo, quando a pessoa deve permanecer em casa, mas também ainda não se encontra totalmente protegida para que volte a circular pelas esferas não domésticas sem a devida proteção. Aqui talvez seja mais produtivo seguir a sugestão de Ewart (2000) para os Panará de não falar em “periferia” nem em “centro” e de opor o doméstico, não ao “cerimonial” ou ao “público”, mas à esfera do não doméstico, em outras palavras, ao âmbito do não humano, dos mekarõ (espíritos) que


208 perambulam pelas roças, pelas matas, pelo rio e, em ocasiões rituais, pela casa dos homens e pelas casas da aldeia, e cujo perigo a tintura negra de jenipapo busca combater. É importante registrar, neste sentido, uma afirmação de Lévi-Strauss sobre os Bororo, resgatada por Carneiro da Cunha em seu trabalho sobre a morte entre os Krahô. Segundo o antropólogo francês, registra a autora, os Bororo acreditam que a cor preta torna invisível aos mortos. Um Krahô por sua vez afirmou-nos que os mekarõ têm medo do preto; por isso, o assassino passa carvão no corpo inteiro enquanto dure o seu resguardo, para que o karõ de sua vítima, assustado, se afaste. Assim, também, por ocasião de diversos rituais, aqueles que estão mais vulneráveis aos ataques dos mekarõ traçam por precaução riscos pretos no canto da boca e no peito (1978: 117, grifo meu).

Essa passagem exemplifica com clareza as ideias apresentadas até aqui. Trata-se mesmo de um uso da pintura naquelas pessoas que estão “mais vulneráveis aos ataques dos mekarõ”. Neste sentido, os Mebêngôkre parecem estar mais próximos dos Krahô do que dos Bororo, mas, diferentemente dos dois, elaboraram outra forma, embora com a mesma cor preta, para afastar os espíritos. Pintam-se todos de negro quando consideram seu corpo ainda fraco, com a pele, a fronteira do corpo, ainda não totalmente dura para voltar aos espaços não domésticos sem a possibilidade de ser violada. ɷɷɷ Essas ideias permitem chegar a duas possíveis conclusões a respeito do uso da pintura com jenipapo, toda preta, sem grafismo, que os Mebêngôkre denominam me tyk. Primeiro, ela prepara o corpo do indivíduo para receber a “pintura bonita”, com grafismo. No caso do luto, ela é o último estágio da refiguração do corpo que esse momento de troca de pele exige. Depois dele, os corpos podem voltar a suportar o modo belo (mejx) e correto (kumrem) de se apresentar (Vidal, 1992). Segundo, a pintura me týk bloqueia a pele e protege o corpo exatamente no período em que o indivíduo retoma suas tarefas cotidianas e passa a estar novamente exposto aos riscos de, quando estiver caçando na floresta ou plantando na roça, encontrar pela frente um mekarõ ou ser contaminado pelo sangue de algum animal. Para que isso não aconteça, é preciso fixar uma forma homogênea, toda preta, na superfície do corpo, para que suas fronteiras sejam vedadas 79. Essas conclusões podem realçar um aspecto pouco mencionado nos estudos sobre a pintura corporal mebêngôkre. Trata-se da relação da pintura com os seres extra-sociais, invisíveis, como são 79

Interessante notar que entre os Kaxinawa, distantes em termos regionais e linguísticos, sequência similar é notada nos períodos de reclusão que seguem o parto e o luto, começando com o vermelho do urucu, passando pelo preto que cobre o corpo todo, para finalmente chegar no corpo coberto por grafismos (Lagoru, 1998, 2007).


209 os mekaron. Como destacou Gallois (2003), no prefácio de um importante trabalho sobre arte ameríndia (Van Velthen, 2003), os estudos sobre a pintura corporal dos grupos jê, dando sequência à abordagem utilizada por Lévi-Strauss em seu estudo da pintura corporal Kadiwéu (1955), tinham como objetivo desvendar a estrutura social e, principalmente, o 'estilo' da sociedade estudada, compreendendo como são construídas, através da arte, referências sobre a vida em sociedade: sexo, idade, parentesco (Gallois, 2003: 29).

A pintura corporal aparece nestes estudos como uma expressão “legível” e “visível” da estrutura social. Em contraste com estes estudos estão aqueles desenvolvidos entre as sociedades amazônicas, nas quais a arte estaria relacionada ao outro polo da dicotomia estrutura social / cosmologia. Como destaca a autora, “este outro enfoque revelaria que nem todas as sociedades optam por privilegiar conceitos mais especificamente ligados às relações entre indivíduos e grupos sociais”, enfatizando as relações da arte “com aspectos de sua cosmologia” (Idem). As ideias apresentadas aqui visam justamente demonstrar que ambos os aspectos, o de relacionar a pintura à estrutura social e o de relacioná-la à cosmologia, podem conviver numa mesma sociedade, também entre os Jê conhecidos pela relação entre grafismo e organização social. Diante desse fato, abre-se a possibilidade de reconsiderar a relação entre a pintura mebêngôkre e outros temas como, por exemplo, o xamanismo. E aqui é preciso destacar a forte relação existente entre as mulheres, o mundo vegetal e os seres invisíveis. Se os xamãs (wayangá) mebêngôkre são impreterivelmente homens, existe, como vimos, uma outra classe de especialistas em ervas e plantas medicinais denominados mari, onde as mulheres tem papel de destaque. São elas também as responsáveis pela produção das tinturas de urucu e jenipapo utilizadas, respectivamente, de modo terapêutico e profilático. Se como afirma Giannini (1992), aos homens mebêngôkre cabem a concepção, o poder de vida e os ossos, os elementos não perecíveis do corpo humano; às mulheres, além da casa, dos nomes e prerrogativas, cabe também a pele, e as formas de manipulála, no sentido de endurecê-la e protegê-la, constituindo as fronteiras idealmente intransponíveis dos seus próprios corpos e dos de seus filhos, netos e maridos. Neste sentido, as mulheres mebêngôkre não deixam de ser xamãs. Em outras palavras, não deixam de elaborar a seu modo, através de seu extenso conhecimento sobre a pintura corporal, “'técnicas de mediação' que mostram realidades não observáveis a olho nu” (Lagrou, 2011: 91). Às mulheres também, o cosmos!


210

Capítulo V

Miçangas: artefatos em transformação

No capítulo anterior tratei especificamente de um kukràdjà eminentemente feminino que diz respeito às técnicas, saberes e práticas envolvidas na produção da pintura corporal. Neste capítulo, enfoco outro kukràdjà dominado pelas mulheres mebêngôkre. Trata-se da produção de artefatos em miçanga e do domínio das técnicas, saberes e práticas que envolvem essa produção. Mais do que isso, trata-se do domínio de técnicas de transformação da cultura material mebêngôkre. O conhecimento feminino no qual adentramos agora, com sua expansão nas últimas duas décadas, foi capaz de provocar modificações visíveis na vida artefatual mebêngôkre. Trata-se, neste capítulo, de refletir sobre o efeito do encontro das mulheres mebêngôkre e de seus processos criativos com grandes quantidades de miçangas, e descrever as transformações que esse encontro produziu nos objetos e em seu regime de subjetivação e diferenciação. Sob a forma de questões, esses objetivos poderiam ser elaborados da seguinte maneira: Quais as consequências para os regimes de diferenciação mebêngôkre da entrada de uma quantidade massiva de contas nas aldeias? Como a presença cada vez maior das miçangas nos enfeites mebêngôkre opera transformações no próprio conceito de nekrêjx? As respostas para essas perguntas começam a ser respondidas através da leitura e análise de dois mitos que expressam diferentes formas de relação com a alteridade. Como veremos, capturadas pela guerra ou pela troca, coletadas na árvore mítica ou compradas em lojas especializadas nas grandes cidades, as miçangas, como diz Lagrou, tecem caminhos entre mundos distantes, expressando “de modo exemplar as diferentes maneiras adotadas pelas populações indígenas de lidar com a alteridade, através de uma incorporação estilisticamente controlada de itens provindos do exterior” (2013: 22). Em termos mais gerais, estamos diante das formas de produção de si através de partes ativas do outro, um procedimento caro às populações ameríndias conhecidas por sua 'abertura ao outro', sobretudo no que tange à produção de pessoas, corpos e artefatos.


211 As miçangas, se são exemplares dessas formas de lidar com a alteridade, é porque sua incorporação segue princípios sócio-cosmológicos específicos, o que não nos permite entender a sua presença cada vez maior nos artefatos ameríndios como índice de processos aculturativos influenciados por exigências externas de mercado, por exemplo, ou como fenômenos de hibridismos pós-modernos e multiculturalistas. Para entender as especificidades da apropriação da miçanga entre os diversos povos ameríndios é necessário, antes de tudo, ir “contra uma abordagem purista que vê na miçanga um sinal de poluição estética, resultante da substituição de matéria-prima extraída do ambiente natural por materiais industrializados”, e partir da própria concepção estética ameríndia alheia a esse purismo, para ver como objetos, matéria-prima e pessoas, são por eles domesticados e incorporados através do processo da tradução e ressignificação estética. Objetos rituais e enfeites que contém miçanga não devem, portanto, ser analisados como hibridismos, mas como manifestações legítimas de modos específicos de se produzir e utilizar substâncias, matérias-primas e objetos segundo lógicas de classificação e transformação específicas. Porque assim como o conceito de incorporação da alteridade, enquanto processo de construção da identidade, o conceito de transformação tem grande centralidade na visão de mundo e práxis ameríndia: coisas e pessoas podem ser transformadas, domesticadas, pacificadas e incorporadas (Lagrou, 2009: 56; grifo da autora).

Nas páginas que se seguem a atenção se volta para as especificidades que esses processos transformacionais tomam entre os Mebêngôkre.

Das origens da miçanga e de suas formas de captura Iniciemos este tópico com um mito sobre a origem da miçanga contado por Akjabôro durante uma das etapas do Projeto de Documentação da Cultura. Antes de apresentá-lo cabe, contudo, uma breve nota sobre o contexto de sua narração. Ela foi realizada durante a visita de uma equipe de trabalho do Museu do Índio (Funai) à aldeia Môjkarakô, com vistas a produzir material fílmico e fotográfico especificamente sobre as miçangas para uma exposição temática sobre os usos (e significados sociais, simbólicos e cosmológicos) das contas entre diversos grupos ameríndios a ser realizada naquela instituição80. Para produzir as imagens e engajar a comunidade na participação das atividades planejadas a instituição forneceu uma preciosa carga de 200 quilos de miçanga a ser distribuída entre os habitantes da aldeia. É preciso notar também, pois isso repercute diretamente na narrativa de Akjabôro, que estava presente na equipe do projeto que visitou a aldeia, o Diretor do Museu do Índio, José Carlos Levinho. 80

A referida exposição tem a curadoria de Els Lagrou, que pesquisa o tema das miçangas entre os ameríndios desde 2006 e se defrontou com a centralidade da miçanga no mito e rito kaxinawa, ao analisar o rito de passagem nixpupima (Lagrou, 1998, 2007). Para mais informações conferir Lagrou, 2009; 2012; 2013.


212 Como de praxe, os habitantes da aldeia organizaram uma grande cerimônia de recepção para o diretor do Museu do Índio. Ao chegar de avião na pista de pouso da aldeia, o Diretor foi recebido por dois guerreiros que lhes deram boas vindas. Logo também chegou Bepdjá, o organizador da cerimônia que explicou ao homenageado como seriam os procedimentos cerimoniais de sua recepção. À espera do Diretor, próximo a pista de pouso estavam as 'rainhas', três meninas totalmente paramentadas com suntuosos enfeites de miçanga e portando o grande diadema de penas de arara, um personagem cerimonial inventado pelos Mebêngôkre para atuar nas recepções de autoridades nas aldeias. O organizador explicou, então, ao Diretor que as rainhas o conduziriam até a casa dos homens. Disse para ele dar as mãos a duas das rainhas enquanto a terceira seguia na frente, segurando uma grande bandeira do Brasil. E assim seguiu o cortejo até a casa dos homens, onde os homens e mulheres esperavam o diretor, todos paramentados, cantando e dançando forte. Ao chegar no ngá, o diretor cumprimentou os dois outros caciques da aldeia e agora de mãos dadas com eles era conduzido até a casa do cacique Akjabôro, onde estava depositado o precioso volume de contas. À frente da comitiva vinham as rainhas, seguidas pelos caciques que conduziam a autoridade e um pouco mais atrás os homens e mulheres dançando e cantando. Ao chegarem na casa do cacique, o diretor, os caciques e as demais pessoas encontraram a pesada carga de miçanga depositada em cima de uma lona azul à frente da habitação. Akjabôro se posicionou na frente dos inúmeros pacotinhos de contas de diversas cores e recebeu o diretor com um efusivo abraço. Neste momento novamente entra em cena o organizador. Ele conversa com o cacique e com o Diretor explicando que eles deveriam tirar uma foto representando a entrega das miçangas. O Diretor então, enche suas mãos com um punhado de pacotinhos de contas e, num gesto solene, os entrega a Akjabôro, ambos voltados diretamente para as máquinas fotográficas e filmadoras que registravam aquele momento.


213

Figura 15: O organizador Bepdjá orienta o diretor do Museu do Índio na entrega das miçangas para o cacique Akjabôro. (Foto: Thiago Oliveira)

Figura 16: O diretor do Museu do Índio entrega as miçangas para o cacique Akjabôro. (Foto: Thiago Oliveira)


214 Realizada a cerimônia da entrega, todos retornam à casa dos homens. Novamente o organizador avisa o Diretor que ele irá cumprimentar todos os habitantes da aldeia presentes na cerimônia. Em uma longa fila, homens, mulheres e crianças, nesta respectiva ordem, cumprimentam a autoridade em um gesto cerimonioso de boas vindas à aldeia. Findados os cumprimentos, é chegada a hora dos discursos. O organizador apresenta o Diretor para a comunidade e lhe concede a palavra. Não me lembro ao certo das palavras do Diretor, mas recordo que ele iniciou sua fala dizendo que havia ficado muito emocionado com a recepção feita pelos Kayapó. Ao fim do discurso, traduzido para os ouvintes pelo organizador, um grupo de mulheres adentra a casa dos homens com grandes bolos de mandioca recheados com peixe e carne de caça. Depois da comida, as pessoas vão se dispersando. Quando apenas a equipe do projeto e um pequeno grupo de guerreiros permanece na casa dos homens Akjabôro toma a palavra e começa a contar a história que se segue.

A árvore de miçanga Eu vou contar a história para vocês para explicar porque que os Mebêngôkre estão usando essas miçangas atualmente. Antigamente, quando os portugueses ainda não tinham chegado ao Brasil, dois Mebêngôkre estavam andando no mato e encontraram uma árvore muito grande chamada an'gà bàri (árvore da miçanga). Nela, eles avistaram miçangas de vários tamanhos e cores (amarelo, vermelho, azul, branco, verde, preto, laranja). Olharam em volta do seu enorme tronco e começaram a catar as miçangas coloridas caídas no chão. Cataram muitas e encheram suas bolsas de palha com elas. Retornaram à aldeia e apresentaram a novidade para os parentes. Logo eles começaram a fazer os enfeites com miçanga e fios de algodão. Escolheram um homem e uma mulher para testar os enfeites que foram colocados nos braços, pernas e pescoço 81. Com o corpo todo enfeitado, eles viram como ficava bonito: “com isso agora a gente vai enfeitar mesmo, enfeitar muito para dançar”. Os parentes perguntaram aonde ficava a árvore, pois todos queriam ter miçangas também. Os viajantes apontaram a direção e toda a aldeia começou a se preparar para partir no outro dia de manhã bem cedo. Durante a noite os velhos cantaram82: nhym ri na an'gá tire but dja ua nhym ri na an'gá tire but dja ua Aonde está a miçanga grossa? 81

82

Akjabôro enfatiza que os enfeites, assim como a miçanga eram diferentes dos de hoje em dia: “os antigos não sabiam fazer esses enfeites como é feito agora”, diz ele, apontando para a pulseira, “hoje a miçanga é feita na fábrica e os enfeites são feitos com linha de pesca. Antes dava na árvore e os antigos usavam linha de algodão, feita por eles mesmos”. Antes os enfeites não eram todos feitos com miçanga. A miçanga era colocada nos enfeites para torná-los mais bonitos. As miçangas enfeitavam os enfeites. Aqui Akjabôro enfatiza a sequência ritual necessária para a preparação e execução das expedições “no mato”. Ele diz: “[À noite] os velhos foram cantando, cantando, cantando. De manhã cedo todo mundo foi pra lá [aonde estava a árvore]. As pessoas não podem sair correndo não. Antes de sair os velhos tem que cantar.”


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kam ana gu men aben ne maki ia kam ana gu men aben ne maki ia As pessoas estão gritando. Vamos todos para esse lugar! nhym ri na an'gá ngure but dja ua nhym ri na an'gá ngure but dja ua Aonde está a miçanga pequena? kam ana gu men aben ne maki ia kam ana gu men aben ne maki ia As pessoas estão gritando. Vamos todos para esse lugar! Cantaram, cantaram até de manhã quando todos partiram em busca da árvore da miçanga. Assim que chegaram, foram catando as miçangas e cada um que pegava dizia: “agora eu quero registrar essa vermelha” e virava o dono dela. E o outro dizia: “agora eu quero registrar essa amarela” e virava o dono dela. E fizeram assim com todas as cores. Cada um que pegava uma cor, registrava e ficava dono dela83. Mas isso foi antigamente. Hoje miçanga não tem dono mais. Todo mundo pode usar à vontade todas as cores. Então, foi assim que o Mebêngôkre descobriu o que era a miçanga e como ela era bonita para fazer enfeite. Então todo ano o pessoal ia para lá pegar miçanga. Todo ano, todo ano era a mesma coisa. Depois o português chegou ao Brasil com uma miçanga que era fabricada e apresentou ela ao Mebêngôkre. A gente não aceitou as miçangas de início. Tinha medo do português, porque não conhecia ele, achavam ele muito feio. Mas os índios foram chegando, foram vendo de longe, até que o português mostrou para eles aquele caroço maior que era a miçanga antiga. Então o português falou: “olha índio isso aqui é para você”. O índio olhou e falou: “olha pessoal é miçanga, é miçanga”. Todo mundo falou: “é miçanga, é miçanga”. E todos apareceram querendo pegar as miçangas do branco. Pegaram tudo e o branco foi buscar mais miçanga para trocar pelas coisas do índio. O português pegou o artesanato e trouxe muita miçanga para os índios. Foi assim que o pessoal começou a usar essa miçanga fabricada pelo branco e continua usando até hoje. É por isso que nós estamos aqui hoje precisando de muita miçanga. Todos os Kayapó, todos as etnias, mas principalmente os Kayapó, precisam de muita miçanga. Por isso que eu quero que o governo dê miçanga para nós. Porque acabou a árvore. Eu não sei onde está essa árvore. Eu só ouvi a história da árvore de miçanga que eu estou contando para vocês, mas eu não sei onde ela fica.

ɷɷɷ

83

Neste momento da narrativa Akjabôro aproxima o mito da miçanga ao mito de origem do milho que também foi encontrado em uma grande árvore, onde estavam todas as espécies de milho. Quando conseguiram derrubar a árvore, cada grupo que se apropriava de uma espécie de milho se diferenciava enquanto etnia, declarando para os demais o nome de seu grupo. Foi assim que surgiram os grupos jê.


216 É possível dividir este mito em três partes: primeiro temos a narrativa da descoberta casual da árvore da miçanga, onde os dois homens que a encontraram levam a matéria-prima para a aldeia e compartilham-na com os parentes. Depois, temos o episódio de retorno à árvore pela comunidade, culminando em um momento de apropriação das diferentes cores de miçanga por proprietários distintos que passam a ser os donos de contas de cores determinadas. O fato de que “hoje em dia não é assim mais”, nos leva ao tempo presente. É a deixa para que sejamos colocados diante de uma alegoria do contato, onde a miçanga desempenha papel fundamental. Como personagens agora temos os Mebêngôkre que desempenham o papel do índio genérico, habitante original do Brasil, e os portugueses, representantes dos brancos, europeus, colonizadores. Cada um desses episódios que compõem a narrativa configura domínios de relações específicos, primeiro entre os descobridores da árvore e a comunidade; depois entre os indivíduos da própria comunidade entre si, diferenciados pelas cores das contas; por fim, entre a etnia, no papel de todos os índios e o estrangeiro, no papel dos colonizadores. Nos dois primeiros episódios temos relações entre pessoas que compartilham uma mesma cultura, à qual a miçanga é adicionada como matéria-prima valiosa. No meio do mito ela se transforma em agente de segmentação interna entre os donos e os não donos das contas de diferentes cores. No último episódio, porém, e do ponto de vista dos Mebêngôkre, a miçanga configura-se como uma importante motivação para o contato interétnico. É justamente para obtê-la que os Mebêngôkre se arriscam a se relacionar com os “portugueses”. A miçanga pode ser compreendida então como o veículo de todas essas relações, o motor que faz girar esses episódios e a teia de relações que os compõem. Ela é, como já notou Lagrou (2012: 36), um material relacional por excelência, conectando mundos diversos e longínquos. Sua dupla origem (das plantas e dos outros), sua dupla qualidade (vegetal e fabricada) conformam o duplo vínculo que ela comporta entre o universo vegetal, voltado para as relações de parentesco entre humanos, e o universo exterior, voltados para as relações com seres considerados não humanos. Por outro lado, a narrativa de Akjabôro apresenta a miçanga como o vínculo entre o tempo mitológico, a alegoria do contato e o presente. Ao fim da narrativa e por meio da miçanga, Akjabôro nos faz retornar ao presente, onde somos lançados quando ele atualiza a relação entre “índios” e “brancos” com seu pedido, em tom de convencimento, de mais miçangas para o governo, tendo a mitologia como justificativa cultural. O que Akjabôro parece estar querendo dizer é que a partir da entrada dos Mebêngôkre na história ocidental, os brancos, mimetizados na figura dos portugueses, passaram a ser a nova árvore da miçanga, pois é, sobretudo, através de relações com os brancos que


217 a miçanga passa a ser conseguida. Como afirma Akjabôro, os Mebêngôkre contemporâneos não sabem mais onde está a árvore. Assim, os portugueses, ou seja, os brancos e o 'governo' passam agora a ocupar o lugar antes ocupado pela árvore mítica no fornecimento de miçangas. Nota-se assim a passagem entre duas modalidades diversas de captura das contas. A primeira modalidade está relacionada à coleta das miçangas na grande árvore, que mobiliza todo o grupo e estabelece a segmentação interna entre os donos e não donos das contas de determinadas cores. Na parte final do mito, porém, a coleta na grande árvore de miçanga é substituída pela modalidade da troca, que põe em relação índios (Mebêngôkre) e brancos (Portugueses). Mas esta, é preciso dizer, não é qualquer troca. Sob a roupagem da alegoria do contato, ou seja, do encontro cultural e da posterior troca entre índios e colonizadores, nota-se uma modalidade de reciprocidade muito específica e contemporânea: aquela estabelecida entre os Mebêngôkre de Môjkarakô e o Museu do Índio. Assim, não é o ouro tão desejado pelos colonizadores europeus que interessa aos portugueses no contexto do mito. O que interessa a esses outros, são os objetos dos índios, ou no dizer de Akjabôro, seu “artesanato”. Akjabôro atualiza a relação de troca entre índios e brancos no tempo da colonização para uma relação contemporânea estabelecida entre os Mebêngôkre de Môjkarakô e o Museu do Índio: enquanto a instituição oferece as contas, em troca, os Mebêngôkre entregam seu artesanato. Mas isso não é tudo. Diferentemente do que ocorre no mito, os Mebêngôkre não entregam simplesmente o seu artesanato ao Museu. Na verdade, eles o vendem. E com dinheiro resultante compram ainda mais miçangas para produzir mais enfeites que serão novamente vendidos e resultaram em mais contas, em um ciclo que parece nunca ter fim. Para esclarecer essa parte do mito criativamente contada por Akjabôro, bem como as associações que estou fazendo, torna-se necessário descrever as relações entre a comunidade e o Museu do Índio, no que tange à aquisição dos objetos em miçanga.


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A árvore e o museu Uma expedição etnográfica pelo Brasil Central é preparada [em Paris] no cruzamento da rua Réaumur com o bulevar Sébastopol. Ali estão reunidos os atacadistas de artigos de costura e de moda; é lá que se pode esperar descobrir as mercadorias próprias a satisfazer o gosto difícil dos índios. Claude Lévi-Strauss

O início das relações entre Akjabôro e o Diretor do Museu do Índio ocorreu quando em 2008, ele e alguns outros guerreiros kayapó estiveram no Rio de Janeiro justamente para comprar miçangas. O Diretor os recebeu e os levou para comprar as contas. Em 2009, quando conheci Akjabôro e outras pessoas de Môjkarakô, eles estavam no Museu do Índio para realizar apresentações culturais no âmbito da programação do dia do índio daquele ano. À pedido da curadoria da exposição sobre miçanga a ser organizada no Museu, o diretor solicitou a Akjaboro a venda dos enfeites de miçanga que trouxeram para o Rio. Para ficar bonito para a apresentação, cada integrante da delegação havia levado consigo grandes quantidades de enfeites de miçanga tanto para usar quanto para vender. Uma equipe de pesquisadores 84 presentes no evento registrou a venda dos artefatos para realizar a qualificação dos objetos, filmando e entrevistando cada um dos homens que entravam na sala do setor de museologia a respeito dos objetos que eles traziam consigo. Não era difícil perceber certo constrangimento no comportamento dos homens quando era sua vez de falar diante das câmeras. O constrangimento se devia às características específicas dos artefatos que eles traziam. Em sua maioria eram enfeites de miçangas, feitos pelas mulheres de suas casas, tanto daquela em que nasceram, sua casa materna, quanto daquela em que viviam atualmente com a esposa, respeitando a uxorilocalidade característica dos Mebêngôkre. Os enfeites eram de suas parentes: mães, esposas, sogras, tias, avós e filhas. Enfim, o importante a registrar aqui é que o dinheiro obtido com a venda dos artefatos deveria se transformar, como me confidenciaram alguns homens, em mais miçangas. Assim, no dia anterior à partida do grupo para a aldeia, a pedido dos Mebêngôkre, os funcionários do Museu 84

Essa equipe era formada por membros do NAIPE (Núcleo de arte, imagem e pesquisa etnológica) e do NEXTIMAGEM (Núcleo de experimentações em etnografia e imagem), ambos ligados ao PPGSA/IFCS/UFRJ, e sob a coordenação de Els Lagrou e Marco Antônio Gonçalves, respectivamente, ambos participantes do registro. A coleção de miçanga Kayapó viria a ser uma das primeiras coleções de artefatos em miçanga constituídas pelo Museu na preparação da exposição.


219 organizaram uma visita a uma grande empresa distribuidora de miçanga para que eles retornassem para a aldeia devidamente fornidos de contas, como, aliás, assim esperavam os parentes que haviam enviado os enfeites para que fossem vendidos ao Museu. A escolha da visita a essa empresa também não se deu por acaso. Alguns dias antes os Mebêngôkre haviam visitado algumas lojas especializadas na venda de miçangas localizadas no mercado do Saara, na região central do Rio de Janeiro. O fato é que voltaram dessa visita com uma péssima impressão a respeito da qualidade das contas oferecidas nas referidas lojas. Lembro claramente que durante a visita ao Saara, homens e mulheres observavam detidamente os pacotes de miçangas coloridas, constatando com cara de poucos amigos que as contas eram de qualidade duvidosa para os seus padrões estéticos. Me surpreendi quando um dos homens presentes perguntou a uma vendedora sobre a procedência daquelas contas. Ao não obter resposta da vendedora, que não sabia ou não queria dizer a procedência das miçangas, o homem exclamou em bom português: “eu sei que elas são chinesas. Pode olhar, elas são tortas”; e emendou: “você tem miçanga jablonex?”. Com a negativa da vendedora, o homem afirmou: “jablonex é miçanga boa, vem da Europa. Essas chinesas não prestam não”. A visita ao Saara se constituiu assim em uma busca sem fim pelas tais “miçangas jablonex que vinham da Europa” 85. Ao visitarem mais de quatro lojas sem encontrá-las, a delegação decidiu então retornar ao Museu e solicitar aos seus funcionários que os levassem a uma loja onde pudessem comprar miçangas boas. E assim foi feito no dia anterior à viagem de volta. Na tal empresa, situada na bairro de São Cristóvão, os Mebêngôkre, enfim, encontraram as tais miçangas jablonex, e melhor ainda, com um preço em conta. No dia da viagem de volta à aldeia, vi alguns homens deixando no hotel as roupas que haviam trazido para que a grande carga de miçangas adquirida coubesse em suas malas recém-compradas. Além de fornecer ao leitor informações sobre as formas contemporâneas de obtenção das miçangas, a descrição acima é também importante para precisar o gosto refinado dos Mebêngôkre no que tange à qualidade das contas 86. De qualquer modo, o importante a ressaltar aqui é o fato de 85

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Como vim a descobrir com os próprios Mebêngôkre durante a visita às lojas, as miçangas jablonex são infinitamente mais simétricas do que as chinesas, ou seja, sua forma é padronizada, o que não ocorre com aquelas vindas do oriente. Este gosto refinado dos Mebêngôkre a respeito da qualidade das contas parece ser generalizado em toda a América indígena. Pelo menos é o que se pode depreender de uma interessante passagem presente nos Tristes Trópicos de Lévi-Strauss (1999) na qual ele tece comentários importantes sobre a qualidade das miçangas a serem adquiridas para sua expedição aos confins do Brasil Central (ver epígrafe): “Num bairro de Paris que me era tão desconhecido quanto o Amazonas, eu me dedicava, pois, a estranhos exercícios diante dos olhares de importadores tchecoslovacos. Ignorando tudo a respeito de seu comércio, faltavam-me termos técnicos para especificar minhas necessidades. Podia apenas aplicar os critérios indígenas. Empenhava-me em selecionar as menores contas de bordar, chamadas de rocaille [miçangas], cujos novelos pesados enchiam os escaninhos. Procurava mordê-las para testar-lhe a resistência; chupava-as a fim de verificar se eram coloridas na massa e se não havia perigo de desbotarem ao primeiro banho de rio; variava a importância de meus lotes dosando as cores segundo o cânone indígena: primeiro, o branco e o preto, em igual quantidade; depois o vermelho; bem lá atrás, o amarelo; e, por desencargo de consciência, um pouco de azul e de verde, que provavelmente seriam menosprezados” (1999: 233).


220 que os Mebêngôkre de Môjkarakô encontraram no Museu do Índio um importante canal de acesso às miçangas de qualidade, e mais do que isso, o repositório ideal para os seus enfeites de contas. Isso ficou evidente durante a fala de Akjabôro no contexto da qualificação dos enfeites de miçanga. Em certo momento da entrevista ele disse: Nós compramos esse material de miçanga e levamos para a aldeia para as mulheres fazerem esse trabalho. Nós [homens] não sabemos fazer esse trabalho com miçanga. Só mulher que sabe fazer isso. Mas porque que eu vim deixar aqui para vender para o museu? Para registrar aqui, que essa é a cultura que nós fizemos lá, nós compramos, mas fizemos lá. E também nós vamos deixar aqui, vamos vender e vamos comprar mais miçanga, porque esse aqui já foi usado [diz apontando para os enfeites]. Nós já dançamos com eles. Então, só para registrar aqui: só mulher que sabe fazer esse trabalho. Nós [homens] não sabemos nada.

Além de evidenciar claramente que a produção de enfeites de miçangas é uma tarefa feminina, essa passagem esclarece também as intenções dos Mebêngôkre a respeito da parceria estabelecida com o Museu. Isto fica evidente quando Akjabôro diz que estão deixando (leia-se, vendendo) os enfeites no Museu porque eles já foram usados, ou seja por que já dançaram com eles. E com o resultado das vendas irão comprar mais miçangas para fazer novos enfeites. Essa passagem esclarece também a dinâmica própria da produção do kukràdjà mebêngôkre como algo dinâmico em constante transformação em que, como vimos, novos aportes são sempre necessários. Assim, os enfeites de miçangas não são relíquias que devem ser guardadas, ao contrário, eles devem ser constantemente refeitos a cada nova cerimônia, com novas combinações de cores, novos designs, novos grafismos e imagens. Os enfeites estão, assim, em constante transformação, podendo ser refeitos, quando por exemplo, as mulheres desfazem braceletes e colares para fazer outros novos. Mas para quê ou porquê refazê-los se eles podem ser vendidos para o Museu? Ou ainda, porquê refazê-los se com o resultado da venda pode-se ter acesso a ainda mais miçangas? Essa é a lógica que parece estar por trás da fala de Akjabôro e que também aparece na parte final do mito. Uma lógica que é coerente com a própria dinâmica cultural mebêngôkre, na qual o que nós denominamos cultura material está em constante transformação. A assunção do Museu do Índio como canal privilegiado de acesso às contas tornou-se ainda mais evidente quando o Museu assumiu uma política sistemática de constituição de coleções de peças em miçanga no contexto da preparação da exposição sobre o tema entre os diversos povos indígenas do Brasil87. Como mostrado acima, esse projeto envolve uma parceria para a confecção e 87

O problema encontrado pela curadora da exposição e pelo Museu do Índio, em 2006, quando iniciaram as conversas sobre uma exposição sobre o tema, era a inexistência de coleções de arte em miçanga feita pelos povos indígenas no Brasil por causa de uma resistência ao colecionamento destes itens. Foi preciso engajar os projetos associados ao Museu com o projeto da exposição para mudar este quadro e transformar o Museu no repositório de uma das maiores coleções de arte em miçanga da América do Sul. Os pesquisadores foram orientados pela curadoria sobre como proceder na qualificação dos acervos.


221 aquisição de artefatos de miçangas, onde o Museu doa ao grupo uma certa quantidade de miçanga e, em contrapartida, o grupo produz os artefatos, criando as condições para as atividades de documentação acontecerem. Além disso, o Museu também se compromete a adquirir parte dos enfeites produzidos com a miçanga doada. O fato do Museu ser ao mesmo tempo doador da matéria-prima e comprador dos enfeites feitos com ela, o colocou, sob a ótica kayapó, em uma posição ainda mais privilegiada como parceiro de troca e destinatário ideal dos enfeites. Com essas informações em mãos, podemos agora retornar à parte final do mito da árvore da miçanga como protótipo dessa modalidade contemporânea de troca estabelecida entre os Mebêngôkre de Môjkarakô e o Museu do Índio. Digamos que, para utilizar uma conhecida expressão de Sahlins (2008), a parte final da narrativa de Akjabôro é uma metáfora mítica que visa dar sentido a uma realidade histórica presente, a saber: da própria relação entre os Mebêngôkre de Môjkarakô e esse parceiro privilegiado que é o Museu do Índio. É nestes e não em outros termos que se deve compreender o pedido final de Akjabôro, de que o governo, representado naquele contexto pelo diretor do Museu do Índio, deve dar muitas miçangas aos kayapó. Afinal de contas, se a árvore de miçangas não existe mais, é preciso que alguém ocupe o seu lugar.

Da guerra como forma de captura Nas seções anteriores vimos através do mito da árvore da miçanga duas formas de captura das contas realizadas pelos Mebêngôkre: a coleta na própria árvore e a relação de troca com o estrangeiro. A partir da relação estabelecida com o Museu do Índio, vimos também uma terceira forma contemporânea de aquisição, que diz respeito à compra de miçangas em lojas especializadas, realizada com o dinheiro resultante da venda de enfeites para a instituição. Nesta seção, tratarei de uma outra forma de captura da miçanga, providencialmente não mencionada ou mesmo evitada por Akjabôro no mito da árvore da miçanga. Trata-se da guerra como forma de obtenção das contas, mas também de armas, mercadorias, enfeites plumários, cativos de guerra, enfim de kukràdjà mebêngôkre. Como afirma Verswijver (1992), o saque, roubo ou butim, é uma das estratégias mais mobilizadas pelos Mebêngôkre para aquisição de novas matérias-primas, enfeites, cantos, conhecimentos e mesmo rituais inteiros. A ponto do autor afirmar que a diversidade da cultura material mebêngôkre, em comparação com outros grupos jê, se deve a sua intensa atividade guerreira contra grupos não jê, sobretudo, tupi (1992: 142). Antes de apresentar a narrativa que se segue é preciso salientar a importância da guerra para


222 os Mebêngôkre como mecanismo de preensão simbólica (Gordon, 2006; Cohn, 2005), um tema que, segundo Gordon, “não foi tratado de maneira satisfatória pelos antropólogos que estudaram os Mebêngôkre” (2006: 96), embora ele estivesse presente em diversas descrições etnográficas e mitológicas produzidas e coletadas por estes antropólogos. Neste sentido, Gordon nota uma diferença crucial entre as formas de captura mebêngôkre e aquelas de outros complexos guerreirocanibais, como por exemplo o Tupi, que serviu de modelo para a própria formulação da ideia de um regime de predação ontológica ameríndio baseado na antropofagia como forma prototípica de relação com o outro (Viveiros de Castro, 1986). Assim, escreve Gordon: Para os Mebêngôkre, não se trata efetivamente de comer o inimigo, ou arrancar-lhe a cabeça, ou domesticar-lhe a alma. Trata-se menos de capturar o corpo (ou partes do corpo) e o espírito do inimigo do que sua cultura (imaterial e material), ou sua riqueza, sua beleza, enfim, suas propriedades não imediatamente corpóreas, mas relacionadas ao corpo: nomes, cantos, adornos, matérias-primas, formas, coisas. A predação mebêngôkre destina-se a absorver a diferença do estrangeiro objetivada em sua cultura material, seu conhecimento, seus saberes, sua expressividade técnica e estética (2006: 97-98; grifos no original).

Neste mesmo sentido, continua o autor: o signo da apropriação mebêngôkre não é o canibalismo – sabemos que eles não são canibais, não comem o inimigo –, o signo é uma espécie de captura. (…) Na predação mebêngôkre, em alguma medida a destruição física do inimigo pode ser dispensável. Aqui a enfase está menos na morte que no butim: objetos, materiais, adornos, armas, cantos. (2006: 99; grifo no original).

É sob o signo da captura como forma privilegiada de relação com a alteridade que deve-se compreender a narrativa que se segue.

O roubo da miçanga88 Um grupo de oito guerreiros mebêngôkre saíram da aldeia para uma longa caçada. Durante a expedição sentiram vontade de encontrar os “parentes” que eles não conheciam ainda. Queriam encontrar “parentes” de outra etnia. Depois de andarem muito em busca deles e não encontrá-los, resolveram montar um acampamento. Descansaram, e de manhã bem cedo decidiram se dividir em dois grupos de quatro, um dos grupos permaneceria no acampamento, enquanto o outro continuaria a busca. Depois de procurarem por muito tempo, quando já estavam cansados e quase desistindo, encontraram uma trilha no mato. Antes de seguir por ela, resolveram dividir novamente o grupo. Desta vez, dois guerreiros permaneceram no início da trilha e dois seguiram adiante. Andaram, andaram, andaram até que avistaram a aldeia dos kubenkakriti (índios de outra etnia). Ficaram olhando por muito tempo procurando nekrêjx (enfeites), até que avistaram pequenas bolsas de pano em formato de meia, de onde, vez por outra, um kubenkakrit retirava miçangas coloridas. Ficaram impressionados com a quantidade de cores e voltaram correndo pela trilha já com 88

Essa versão foi narrada por Axuapé na aldeia Môjkarakô, em janeiro de 2010.


223 a ideia de roubar as miçangas. Encontraram os outros dois que esperavam no início do caminho e, com eles, retornaram ao acampamento para preparar o saque. Um dos guerreiros era wayangá (pajé, xamã) e disse para os outros que ia fazer údjy (feitiço) para deixar os kubenkakrit rérékre (fracos). O efeito do remédio, explicou o pajé, faria com que toda a aldeia ficasse dormindo, facilitando o ataque. O feitiço deveria ser colocado à noite no início da trilha que eles haviam descoberto. O pajé preparou o feitiço dentro de uma cabacinha e fez o mesmo com um antídoto à base de ervas. Depois entregou as duas cabacinhas para os mesmos quatro guerreiros que encontraram o rastro dos kuben. O pajé, então, explicou: “esse aqui é para soltar no caminho da aldeia, esse outro aqui é para vocês passarem no corpo depois. O feitiço é muito perigoso e pode fazer vocês dormirem também”. Os guerreiros seguiram caminho mata adentro e já era noite quando avistaram a trilha. Esperaram por um vento forte e abriram a cabacinha com o feitiço no ar. Imediatamente correram na direção oposta até alcançar um igarapé, onde tomaram banho esfregando no corpo o antídoto entregue pelo pajé. Após o banho de ervas ficaram de tocaia por toda a noite, lutando contra o sono. Na madrugada, um pouco antes do amanhecer, os guerreiros invadiram a aldeia e não tiveram trabalho para matar os inimigos com suas bordunas, pois o feitiço fez com que eles dormissem pesado. Assim, tiveram tempo para pegar todas as miçangas dos kubenkakrit. De posse delas, retornaram ao acampamento e mostraram aos demais guerreiros. Todos ficaram impressionados com sua beleza, porque eram diferentes, não eram como as miçangas antigas. Eles voltaram para a aldeia e mostraram as contas para as pessoas, que também gostaram delas. Mas ninguém sabia usar essas miçangas. Acharam bonito mas não sabiam se enfeitar com elas. Até que um velho, que lembrava dos enfeites antigos, fez um fio de algodão e enfileirou as miçangas nele. Aí as mulheres aprenderam como trabalhar com a miçanga e fizeram muitos enfeites bonitos para as pessoas dançarem e todo mundo ficou muito feliz.

ɷɷɷ Esta narrativa, diferentemente do mito da árvore da miçanga, é uma história de guerra e não de troca. Nela pode-se entrever a estratégia guerreira mobilizada pelos Mebêngôkre para realizar o roubo e, antes, matar os inimigos. São exemplos dessa estratégia as seguidas divisões no grupo de guerreiros que planeja o ataque, bem como o uso de feitiço para adormecer os inimigos. Note-se que o importante não é o inimigo em si, mas o que ele possui de valioso para os mebêngôkre, a saber: as miçangas. Desde o início da narrativa o desejo de encontrar “parentes” de outras etnias, parece mesmo um pretexto para encontrar, na verdade, o que se quer roubar, ou seja, os enfeites tão desejados. A confiar nos escritos de Verswijver (1992) sobre a guerra mebêngôkre, essa narrativa trata de uma modalidade específica de ataque bélico mobilizada, sobretudo, contra grupos não-jê. Ao pesquisar o tema da guerra entre os Mekrãgnoti, um subgrupo mebêngôkre, Verswijver concluiu que, em geral, pode ser dito que os Mekrãgnoti apresentavam nenhum ou pouco interesse na aquisição de


224 butim durante ataques contra outros grupos kayapó ou contra os Kree Akrore [Panará]. Isto é compreensível, uma vez que os Mekrãgnoti compartilham com eles um background cultural comum e uma cultura material redundante. Os agressores, portanto, têm pouco interesse em obter objetos que eles mesmos faziam no interior de sua própria comunidade. Entretanto, as coisas são completamente diferentes durante os ataques às aldeias de grupos mais distantes culturalmente, tal como os kubenkakrit (grupos não-jê) (…). Em tais ocasiões, o saque não somente é realizado, como também tal procedimento figura entre os principais motivos para esses ataques específicos. (1992: 145)

No caso da obtenção das preciosas contas de vidro é importante ressaltar as transações e guerras mobilizadas pelos Mebêngôkre com os Juruna (Yudjá), chamados por eles pelo nome Ngôren que na língua kayapó quer dizer “remadores” e diz respeito à habilidade que os Juruna possuem na arte de produzir canoas e de navegar pelos rios. Além de bons navegadores, os Juruna se tornaram conhecidos na região do Rio Xingu, por volta do século XIX, por serem portadores de grandes quantidades de contas adquiridas no comércio com viajantes e mercadores que navegavam pelo Xingu naquele período (Verswijver, 1982; Lima, 2005). Um desse viajantes foi o corógrafo francês Henri Coudreau, que viajou pelo Xingu em fins do século XIX. No relato de sua Viagem ao Xingu, Coudreau conta como e porque resolvera se desfazer de um abastado carregamento de miçangas, depositando-o no alto de uma grande pedra, nos confins do Brasil Central. Após levar consigo quilos e quilos de contas durante um longo percurso de viagem, Coudreau se ressente da decisão, frustrado por não ter encontrado “os verdadeiros índios”. Assim, escreve o viajante: Sobre a pedra encontramos cacos de cerâmica à guisa de ex-voto. Acrescento a esta oferenda de algum benfeitor anônimo da caruara (porque a pedra seca é uma verdadeira pedra sagrada, e também um autêntico templo primitivo da quase já extinta, mas ainda primitiva tribo dos Jurunas), acrescento a esses fragmentos uma dádiva de fanático ou de príncipe das finanças: quarenta e cinco quilos de contas, nem mais nem menos! É o resto de um estoque que tenho trazido comigo há vários anos, a fim de dá-los aos verdadeiros índios, a cada dia mais difíceis de serem encontrados, de vez que atualmente todos vêm sendo absorvidos, quer pela civilização, quer pela morte. Será que os juruna que erram por estas paragens, esquecendo sua dignidade de índios vestidos de farrapos, irão se apropriar destas bijuterias, aí deixadas evidentemente com alguma intenção misteriosa, no alto desta pedra, alguns quilômetros ao sul da qual ardem, neste momento, no centro dos campos da vertente meridional, grandes fogueiras que certamente foram acesas pelos carajás-suiás? Deixo ali estas contas em testemunho de uma fé que tive, mas já não mais tenho. Fica para atestar que um dia acreditei na possibilidade da sua utilização pelos índios. Isso talvez fosse possível há um tempo não muito remoto. Quando comecei a acreditar nessa possibilidade ela já começava a não mais existir. Este estoque de miçangas é um estoque de ilusão que deixo, ritualmente, sobre a Pedra Seca dos Carajás (1977: 79-80; grifo meu).

Qual não foi a surpresa dos Juruna quando descobriram as contas profeticamente depositadas por Coudreau na Pedra Seca. Comentando essa passagem em sua etnografia dos Juruna, Lima (2006: 106) descreve que da perspectiva destes a descoberta dessa 'jazida' de miçangas foi interpretada como sendo um indício de que estavam próximos das terras de Senã'ã, seu magnifico xamã mitológico. A autora demonstra também como, contrariando as previsões um tanto


225 pessimistas de Coudreau, as miçangas foram muito bem utilizadas pelos Juruna quando chegaram ao Alto Xingu. Foi com as miçangas de Coudreau que os Juruna conseguiram construir boas relações com os Kamaiurá e os Suyá, mesmo que tempos depois elas tenham, como de praxe, descambado para a guerra. Parece ter sido essas mesmas miçangas que um grupo de Mebêngôkre visavam quando decidiram ir morar próximo aos Juruna no fim do século XIX. Graças a um interessante e desconhecido texto de Verswijver (1982), torna-se possível perceber com clareza as relações que os Juruna e os Mebêngôkre estabeleceram entre a segunda metade do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX. E mais do que isso, torna-se possível entrever neste texto algumas das estratégias mobilizadas pelos Mebêngôkre para adquirir miçangas. Além da guerra, da troca e da coleta na grande árvore mítica, Verswijver demonstra em seu texto uma outra estratégia que diz respeito ao aparentamento. O autor afirma que em fins do século XIX um pequeno grupo mebêngôkre liderado por Motere separou-se da grande aldeia Gorotire para morar na mesma aldeia que os Juruna, entusiasmados que estavam com a grande quantidade de miçangas que estes últimos possuíam. Como afirma Verswijver: “[este grupo] procurava viver em termos amigáveis com esta tribo para obter miçangas. (…) Eles procuraram aceitar os Juruna como ombikwá (parentes)” (1982: 307). Obviamente, a estratégia de Motére e seu grupo não deu certo por muito tempo. Os Juruna já haviam perdido muitos dos seus em guerras contra os Mebêngôkre. Logo as relações que se iniciaram pacíficas descambaram para o conflito armado, como nos conta Verswijver: Motere e seu grupo (os Mekrãgnoti) visitavam os juruna regularmente. Mas eles estavam com medo de Tamarikô e Kadját-nhinti [os dois principais chefes Juruna], porque toda vez que os Mekrãngoti visitavam-nos, eles cantavam a canção da agressividade [uma canção com dança performada antes de um ataque]. Um dia, um grupo de Mekrãgnoti foi até a aldeia juruna para conseguir miçangas. Os Juruna lavaram todos os Mekrãgnoti para a beira do rio procurando sinais de me irê [marcas feitas nas costas, nos ombros ou na face pelas mulheres durante relações sexuais com homens não casados]. Aqueles que tinham o me irê foram dispensados: eles receberam dos Juruna um pouco de miçangas brancas, amarelas, verdes e azuis e foram enviados de volta à sua aldeia. Aqueles que não possuíam o me irê foram permitidos na aldeia: eles não foram dispensados. Uma boa quantidade de grandes miçangas brancas e azuis foram dadas a eles, e eles ficaram na aldeia juruna. Mas então, os Juruna começaram a matar eles um por um (1982: 310).

Ao trazer essas histórias à tona, não estou querendo sugerir que os kubenkakrit presentes no mito do roubo da miçanga sejam os Juruna, mesmo que alguns indícios possam nos levar a essa conclusão. Mais importante do que descobrir qual grupo seria aquele que foi roubado pelos mebêngôkre, está o fato de chamar a atenção para as modalidades de captura das contas que, como vimos, podem oscilar entre a guerra, a troca, a coleta e a possibilidade de familiarização. Todas elas e, sobretudo, a guerra e a troca são, como afirma Cohn, – e como já afirmara muito antes LeviStrauss (1946) - “meios alternativos, intercambiáveis, de apropriação de material para confecção de


226 adornos” (Cohn, 2005: 84). Uma última modalidade advém, também, dos escritos de Verswijver (1992). Trata-se do que o autor denomina “troca indireta ou silenciosa de matérias primas” (: 142). Segundo o autor, esta modalidade consistia em deixar em determinados lugares da floresta tubos de bambu contendo penas em seu interior e devidamente vedados com cera de abelha, para se buscar os objetos ou matérias-primas deixadas posteriormente no mesmo local pelo outro grupo. Embora Verswijver não forneça informações sobre como essa troca silenciosa era combinada entre os respectivos grupos, ele não deixa de registrar que, por esta modalidade indireta de comércio, os Mekrãngoti trocaram, na segunda metade do século XIX, penas de arara por miçangas de vidro com os Juruna (1992: 142). Neste ponto, deve-se se sublinhar que estas diferentes modalidades de captura são mobilizadas não apenas para obter contas. Enfeites, penas, conchas, sementes e mesmo cantos, rituais inteiros e mercadorias diversas (como armas, machados, ferramentas e roupas) são adquiridos por meio de relações de troca diretas ou indiretas, ou por meio do saque e da guerra. Contudo, como dito acima, parece haver certa especialização nos tipos de pessoas com os quais se faz a guerra ou se comercializa para obter determinado objeto ou matéria-prima. Como vimos, o butim não é a motivação para os ataques intergrupais. Estes são mobilizados para demonstrar belicosidade ou para capturar mulheres (Verswijver, 1992; Gordon, 2006). Os brancos, ou brasileiros eram atacados preferencialmente para a aquisição de mercadorias como armas, machados, ferramentas e roupas; enquanto outros grupos indígenas, os kubenkakrit, sobretudo os não-jê, eram atacados, como mostra o mito, para aquisição de miçangas e enfeites. Esta questão fica ainda mais evidente nesta fala de Akjabôro durante a qualificação dos enfeites de miçanga que estavam sendo vendidos ao Museu do Índio. No início eram outras etnias que tinham essa miçanga. Tinha caroço, tinha bolinha, tinha vários tipos que o pessoal chamava an'gà króróre. Agora não tem mais desse tipo. Hoje tem esse trabalho novo. Naquele tempo era outro tipo de miçanga. Agora hoje o material é esse aí, com várias cores. Naquele tempo não. Então, naquele tempo nossos antepassados, muito velhos, foram vigiando no mato, vigiando até encontrar uma etnia que já estava com todos os enfeites de miçanga. Aí ele viu assim e pensou: “vou matar eles tudinho para tomar essas miçangas”. Eles fizeram guerra e mataram eles tudinho. Aí outras aldeias de outras etnias vieram atacar nossos parentes também. Mataram eles. Os dois [grupos] brigaram por causa dessa miçanga. Então, aquele pessoal que levou as miçangas, levou também alguém para ensinar para eles como é que usa as miçangas. O pessoal foi e carregou todas as miçangas que tinha na casa dos outros, levaram tudo. E ainda levaram os filhos dessa outra etnia, para ensinar como é que usa. Não tinha branco aqui no Brasil não. Esta história é de muito tempo, é muito antiga. Só tinha índio aqui. Então, no início foi assim. Foi outra etnia que mostrou o outro tipo de miçanga. Aí depois, nós viemos comprar na cidade. Esse tipo aqui saiu agora, mas quando não tinha branco aqui no Brasil, só tinha outro tipo de miçanga.

Há que se mencionar ainda os ataques feitos pelos Xikrin aos Assurini com o objetivo de


227 obter um tipo de semente utilizada por eles na produção de contas. A este respeito, afirma Vidal: Os Xikrin também hostilizavam os Assuriní (Kuben-kamrek-ti). As expedições contra estes índios tinham como fim roubar-lhes entre outras coisas, colares de sementes pretas (akrodjá) que os Assurini furavam e usavam como contas. Estas sementes não existem em território Xikrin e eram indispensáveis para acompanhar o colar ngob de plaquinhas de itã [nota no original: hoje enfeitam o colar com miçangas] (1977: 50; nota 96).

Comentando esta citação de Vidal, Cohn tece algumas considerações importantes. Segundo a autora: Este exemplo, diga-se de passagem, é bom para demonstrar que não é o objeto em si, ou sua origem aqui ou ali, mas a exterioridade (genérica) e a possibilidade de produção de colares de uso ritual que interessam. Sementes cuidadosamente perfuradas pelos Kubenkamrekti ou miçangas de vidro são intercambiáveis, assim como aqueles que a produzem e com quem se guerreia/troca. Ele nos ajuda a perceber, com uma clareza ímpar, que esse processo não teve início com o contato ou o advento da colonização das fronteiras interiores, mas vem se somar a uma longa história de relações com Outros e preensões para a produção de pessoas e coletividades mebengokré; que o que se faz com miçangas (...) já estava sendo feito com outros objetos preendidos. Diferenciemos então o valor e os meios de preensão. O valor da preensão de itens para confecção de objetos é associado ao valor que esses objetos tomam para os Mebengokré, e extrapola razões técnicas ou utilitaristas. Ao contrário, podese dizer que o valor maior está dado na preensão mesma; se há dificuldade ou impossibilidade de produção própria, isto é apenas uma razão (ou uma complicação) agregada, não a principal. Porque o valor desses recursos está na produção de objetos rituais, que produzirão, por sua vez, pessoas (2005: 83-84).

Esta passagem de Cohn me parece pertinente porque coloca a questão da apropriação ou, em suas palavras, da preensão, como um tema importante da etnologia mebêngôkre. Ela é importante também por precisar o fato de que as modalidades de preensão e os processos que elas engendram não tiveram início com o contato com os brancos e com o “advento da colonização das fronteiras”. De fato, estamos falando de um processo de apropriação constitutivo da própria socialidade mebêngôkre que, como salienta Cohn, diz respeito à uma longa história de relações de alteridade e apropriações mobilizadas na constituição de pessoas e coletividades mebêngôkre. Contudo, me vejo obrigado a discordar de Cohn quando ela afirma que o valor dos objetos e matérias-primas apreendidas “está dado na preensão mesma”, deslocando o foco das matériasprimas apreendidas para a própria configuração das relações que permitem sua obtenção; e sugerindo que talvez não exista para os Mebêngôkre uma predileção pelas miçangas em detrimento das sementes que outrora usavam. Com esse argumento Cohn exclui do escopo de análise as próprias qualidades especiais que os Mebêngôkre concedem à miçanga, seu poder de agir, de fazer não somente pessoas belas para os Mebêngôkre, mas também para os outros, para aqueles que os observam e ficam impressionados, justamente pela quantidade de enfeites de miçanga que possuem atualmente. Assim, a questão que se coloca a partir dessa passagem de Cohn diz respeito ao porquê da produção de pessoas e coletivos mebêngôkre se fazer atualmente com o uso cada vez maior de


228 miçangas a ponto de várias matérias-primas utilizadas na produção de objetos estarem sendo substituídas pelas contas. Deste modo, não acredito que seja apenas uma questão de substituição de sementes por miçangas, sem que haja nessa passagem uma escolha deliberada dos Mebêngôkre por materiais esteticamente privilegiados por eles. Digo isso, porque um estudo recente (Sol, 2011: 26-63) sobre o uso de sementes para fins decorativos entre os Mebêngôkre, constatou que eles preferem as miçangas em detrimento das sementes e que estas últimas são utilizadas sobretudo na produção de objetos para fins de comercialização, feitos de acordo com o gosto de uma freguesia que entende as sementes como objetos “autênticos” dos povos da floresta e vê na miçanga um componente de “aculturação”89. Assim, se os objetos com sementes são produzidos para enfeitar os Kuben, as miçangas são um item privilegiado de consumo interno, mobilizado na construção de pessoas e coletividades mebêngôkre. Enfim, essa passagem de Cohn, me parece importante para precisar esse ponto, a saber, de que o extensivo uso contemporâneo de miçangas pelos Mebêngôkre, em detrimento das sementes, é uma escolha deliberada por um material esteticamente valorizado por eles, justamente, na produção de beleza, na construção de corpos belos, de belas festas. Deste modo, dizer simplesmente que miçangas e sementes são intercambiáveis para enfatizar as relações de preensão simbólica da alteridade, além de deixar de lado uma série de concepções nativas de beleza que fazem da miçanga uma matéria prima privilegiada pelos mebêngôkre contemporâneos; não explica o fato mesmo da substituição, ou seja, os valores nativos que fazem com que ela ocorra de modo tão característico nos enfeites contemporâneos. Pois a miçanga, como veremos, é uma matéria que pode substituir não apenas sementes, mas toda e qualquer matéria-prima utilizada pelos mebêngôkre para produzir enfeites, seja ele de uso comum, seja ele de propriedade de poucas pessoas.

As miçangas e os nekrêjx Sabe-se que entre os Mebêngôkre existe uma categoria denominada nekrêjx (nekrêtch, nekret) que diz respeito a determinadas prerrogativas cerimoniais transmitidas em conjunto com os nomes, segundo uma regra90. Para Lea (1986), que analisou essas prerrogativas em seu trabalho 89

90

O mesmo parece ocorrer entre os Krahô que produzem objetos para consumo externo com as contas de tiririca – uma pequena semente que depois de furada é largamente utilizada na feitura de pulseiras, colares, gargantilhas e demais adornos – preferindo as miçangas para a produção de enfeites para consumo interno (Morim de Lima, 2014). Para fenômeno similar entre outras etnias no Brasil ver Lagrou, 2012, 2014. A regra de transmissão de nomes e nekrêjx continua sendo a mesma registrada nas etnografias de Vidal (1977), Lea (1986) e Verswijver (1983). Nomes e nekrêjx são transmitidos “através do sistema bilateral de parentesco (oposto ao laço culturalmente prescrito da unifiliação) e os laços diádicos de ingêt (pai do pai, pai da mãe, irmão da mãe) a


229 sobre “nomes e nekrets” como “riquezas”, elas podem ser classificadas da seguinte maneira: “(a) para ambos os sexos, o direito de confeccionar e usar certos adornos, atuar em papéis rituais específicos, e colecionar ou estocar determinados bens em sua Casa; (b) para os homens, o direito a cortes específicos da carne de caças de grande porte; (c) para as mulheres, o direito de criar certos animais de estimação” (Lea, 1995: 208-209). Outro ponto de destaque colocado por Lea diz respeito ao fato de que tais prerrogativas, em conjunto com os nomes (comuns e bonitos), além de produzirem pessoas, são possuídas pelo que ela denomina Casas ou Matricasas, grupos corporados que se diferenciam do termo casa (habitação) justamente por serem detentoras de nomes e prerrogativas transmitidas por via uterina. Segundo essa ideia de Lea, nomes e prerrogativas podem circular entre diferentes pessoas, porém, sempre retornando a sua Casa de origem, uma vez que são parte de um patrimônio que diferencia uma Casa das demais. Inspirada no conceito de societés à maison (sociedades de casa) apresentado por LeviStrauss (1984), a noção de Casa sistematiza, segundo a abordagem de Lea, um conjunto de características da organização social mebêngôkre como a uxorilocalidade que regula o padrão de residência depois do matrimônio, os sistemas de transmissão de nomes e nekrêjx, bem como o lugar específico ocupado por cada Casa na aldeia, que segundo a autora remontaria a uma aldeia ideal, ou mesmo mítica, de onde teriam se originado as diferentes Casas que compõem as aldeias atuais 91. Como afirma Cohn (2005: 88), “este é um debate acirrado nos estudos sobre os Mebêngôkre (Kayapó)”. Se, por um lado, a noção de Casa encontra ecos nos estudos de Verswijver (1983) e nos dados sobre os Xikrin apresentados por Vidal (1977), por outro, ele é questionado por Turner. Retomemos sua afirmação, em artigo recente, já citada na introdução deste trabalho: “nomes e nekrêtch são, ao contrário do que tem sido afirmado por Lea (cf. 1986, 1992, 1995), propriedades dos indivíduos que os dão e os recebem, e não de qualquer sociedade comunal ou habitação considerada como uma corporação” (2009: 158). Sem querer entrar neste debate complexo a respeito da propriedade individual ou coletiva dos nomes e nekrêjx, gostaria de salientar alguns pontos. Primeiro, que na discussão que se segue utilizarei a palavra nekrêjx para se referir só e somente só às prerrogativas descritas no item (a) mencionado por Lea, uma vez que estou interessado nos enfeites mebêngôkre e no modo como o uso cada vez maior de miçangas provoca transformações neles. Ressalto também que não são todos os enfeites (kunhêre) que se enquadram na categoria nekrêjx. Alguns deles, como veremos à frente,

91

tàbdjwy (neto ou neta para ego masculino e feminino, filho da irmã para ego masculino e filha do irmão para ego feminino), para homens; e de kwatyi (mãe da mãe, mãe do pai, irmã do pai) a tàbdjwi, para mulheres” (Verswjver, 1983: 104) No que tange a este último aspecto, alguns autores demonstraram que as posições das casas na aldeia podem ser contextuais quando, por exemplo, certas questões políticas se sobrepõem à forma da aldeia ideal, tal como proposto por Lea (Vidal, 1978; Oliveira, 1995).


230 são de uso comum, ou seja, não há qualquer restrição a seu uso, mesmo que se possa dizer através dos dados de Lea (1986; 2012) e Verswijver (1995) que muitos deles algum dia foram nekrêjx92. Outra questão importante a este respeito e que já está colocada no mito da árvore da miçanga é o fato de que os variados tipos de miçanga não possuem donos, podendo ser utilizados por qualquer pessoa para produzir adornos diversificados. Neste ponto é preciso atentar para o fato de que se todas as pessoas podem usar miçangas, isso não quer dizer que todos os enfeites de miçanga possam ser usados por todo mundo. Muitos dos enfeites, cujas transformações são descritas abaixo continuam sendo nekrêjx, ou seja continuam sendo transmitidos geracionalmente e não perdem essa sua característica por serem feitos com miçanga. Ao contrário, e como veremos, a inserção de grandes quantidades de miçanga provoca uma aceleração na produção de novos nekrêjx, ao mesmo, tempo que promove sua comunização. Desses dois processos concomitantes e paradoxais, decorre o que denomino comunização diferenciante. Um segundo ponto importante se depreende da leitura que Gordon (2006) faz do trabalho de Lea em comparação com o trabalho de Turner. Seguindo este autor, acredito que o passo fundamental empreendido por Lea, em relação ao trabalho de Turner, é o de oferecer “uma formulação alternativa acerca do que poderia ser a riqueza ou o valor na sociedade kayapó que desliza da pessoa para os nomes, objetos (adornos e relicário) e prerrogativas rituais” (Gordon, 2006: 93), permitindo assim a passagem de uma economia política do controle – onde o bem escasso a ser controlado são pessoas, notadamente mulheres (Gordon, 2006, Viveiros de Castro, 2002; Lea, 1986) – para uma economia simbólica da alteridade, onde as transações giram em torno da aquisição de partes ativas de outros, como nomes, objetos, matérias-primas, etc (Gordon, 2006). Terceiro, e ainda concordando com Gordon, acredito que a grande contribuição do trabalho de Lea foi o de “pensar a 'propriedade' de tais bens, e o direito de transmiti-los, não como definidores de grupos corporados perpétuos [como as Casas], mas como marcadores de prestígio e distintividade pessoal e coletiva” (Gordon, 2006: 93; grifo no original). Comentando esta característica pouco mencionada do importante trabalho de Lea (1986), Gordon cita uma passagem desta autora que merece ser reproduzida aqui: Os nekrets não são meros emblemas das Casas. São também uma fonte de prestígio para seus detentores. Alguém que desempenha papéis cerimoniais destaca-se pessoalmente. Uma pessoa sem enfeites é considerada pobre, enquanto alguém que tem muitos enfeites atesta, através deste fato, que ele tem o respaldo de uma parentela numerosa, dotada de nekrets bonitos. As Casas kayapó são pessoas jurídicas, mas internamente seus membros diferenciam-se bastante uns dos outros, pela quantidade e qualidade dos nekrets que têm. Algumas pessoas compartilham suas prerrogativas com vários outros detentores simultaneamente. As pessoas mais prestigiosas, em termos de nekrets (e não em termos absolutos), são os detentores exclusivos (Lea, 1986: 361; grifos de Gordon (2006: 93)). 92

Uma outra forma de colocar essa questão é, como o faz Lea (1986: 266), apontar para o fato de que existem nekrêjx comuns e belos.


231

Em outro de seus textos, Lea (2005) chega mesmo a falar de um certo “individualismo” mebêngôkre, movido pela vontade de diferenciação e pela busca constante por novos objetos que venham a se tornar novas prerrogativas. Assim, ela escreve: Uma exceção contrária aos ensinamentos de Dumont (1966, 1985), para quem o individualismo é uma produção histórica e uma das características definidoras da modernidade, é o fato dos Mebêngôkre presarem altamente a exclusividade. Pessoas estão prontas para afirmar que eles são os únicos (pydji) proprietários (djwoj) de algum papel ou adorno específico. Quando um nome ou adorno [nekrêjx] torna-se vulgarizado por seu uso excessivo ele pode ser abandonado por seus proprietários, baseado no argumento de que muitas (krampti) pessoas estão usando ele (Lea, 2005: 91).

Uma outra característica que gostaria de mencionar e que se torna o quarto ponto apresentado, diz respeito ao caráter visual que as prerrogativas assumem no ritual. Os nekrêjx não são como os nomes que devem ser confirmados ritualmente, sua consagração está no fato de serem mostrados no ritual, sobretudo, se quem o usa for o único portador. Aqui, como o faz Cohn, deve-se dar especial destaque à categoria nativa amerin, “que se refere à ideia de aparecer, expor, explicitar” (2005: 89). Assim, os nekrêjx e sua exclusividade devem ser mostrados no ritual, os que o usam devem dar a ver aos outros aquilo que os fazem distintos, e, por isso, belos. É neste sentido que tanto Lea (1986: 272), quanto Cohn (2000: 98) afirmam que a forma privilegiada de transmissão de um nekrêjx ocorre quando os transmissores fazem ver a todos no ritual os papéis cerimoniais e adornos que estão transmitindo ao carregarem no colo a criança que irá recebê-los e/ou desempenhá-los. É essa exposição pública para toda a coletividade que confirma a beleza dos nekrêxj. Por fim, resta considerar uma afirmação de Verswijver que reúne todos esses pontos e os permite reconectá-los com as seções anteriores sobre os mitos de aquisição da miçanga, sobretudo no que tange às modalidades de aquisição das contas através da guerra e do contato com outros grupos indígenas. Assim, diz o autor: O esquema institucional de privilégios rituais [nekrêjx] pode ser visto como um dos principais impulsos na cultura material kayapó. Privilégios rituais abarcam a maioria dos ornamentos que são de propriedade de segmentos residenciais e o uso destes itens é por definição restrito a indivíduos específicos. Esta imposição restritiva de certa forma estimula a pesquisa por novas variações, onde o uso de novas matérias-primas ocupa um lugar importante. E esta pesquisa por inovações provavelmente levou os Kayapó a fazer contatos ocasionais com sociedades vizinhas, das quais eles se apropriaram de novas técnicas, novos ornamentos, novos materiais e novas ideias (1992: 149; grifo meu).

Segundo o autor, é o sistema de privilégios rituais que move a transformação contínua dos artefatos mebêngôkre, sobretudo, no que tange aos seus enfeites cerimoniais. A busca por


232 diferenciação, que tem a ver com a própria produção de beleza, faz com que novas variações dos enfeites possam ser continuamente criados. É neste ponto que deve-se notar uma característica peculiar das miçangas no processo de invenção que é sua qualidade maleável, capaz de substituir praticamente todas as matérias-primas conhecidas pelos mebêngôkre na produção de enfeites. Antes, contudo, de adentrar nas transformações produzidas pela miçanga na cultura material mebêngôkre é preciso apresentar as formas de invenção de novos adornos. Embora este seja um tema pouco explorado no extenso trabalho de Lea (1986; 2012) sobre os nekrêjx, uma vez que ela focaliza sobretudo suas formas de transmissão e circulação, o tema da invenção de novos adornos aparece de modo notável nos escritos de Verswijver (1992; 1995). Este autor nota que além dos enfeites capturados mediante a guerra ou a troca com outros grupos indígenas ou não indígenas, existe também uma outra forma de obtenção de novos enfeites que diz respeito à criação pessoal. Sobre os dois primeiros tipos de aquisição, Verswijver afirma que se o novo ornamento, apropriado pela guerra, ou conseguido por meio da troca, “desperta qualquer interesse entre outros membros da aldeia, então, a pessoa que importou tal ornamento passa a considerá-lo como sua 'riqueza', e assume o direito exclusivo de transmiti-lo aos membros de sua família” (1995: 44)93. O mesmo ocorre quando uma pessoa cria um novo adorno. Se despertar o interesse dos outros, logo passa a ser considerado uma riqueza pessoal do criador. A diferença entre as modalidades de incorporação de novos adornos e de sua invenção não está em sua forma de circulação interna, que é a mesma para todas as modalidades. A diferença é que no caso da invenção, ao invés de obter um enfeite totalmente novo, o criador ou criadora promove variações em enfeites já existentes. Como salienta Verswijver, tais variações podem ser feitas de duas maneiras: transformar a forma do adorno ou substituir o material empregado em sua produção (1995: 46). Além disso, Verswijver oferece outra informação preciosa: a de que “os elementos usados para distinguir as variações de um determinado adorno são as seguintes: o material utilizado; a cor ou a combinação de cores; a forma e os pingentes” (Idem). É justamente sobre estes elementos que o uso da miçanga irá intervir, criando múltiplas versões de um novo adorno de acordo com a combinação das cores das contas, da inserção de novas partes nos objetos, ou da alteração na forma produzida pela própria e simples alteração da matéria-prima. A capacidade de criação de novos objetos ganha relevo se se considerar o fato de que não é somente o enfeite em si que é transmitido, mas também o direito de portá-lo em certos rituais. O 93

Um exemplo clássico dessa forma de apropriação diz respeito à aquisição pela guerra contra trabalhadores brasileiros de um vestido e um chapéu vermelho (cf. Verswijver, 1992; Lea, 1986). Outro exemplo, envolvendo agora relações de troca entre os Mebêngôkre e os Karajá, é o do toucado de penas brancas denominada róri-róri (cf. Verswijver, 1995: 44).


233 que se transmite, portanto, em conjunto com o direito de portar o enfeite na festa, são designs de objetos, são conhecimentos imateriais sobre as formas, matérias e cores empregadas em sua produção. Assim, os nekrêjx não são relíquias de um culto ao passado (Lea, 2005: 91), não são, tampouco, simplesmente bens materiais como as nossas mercadorias. Ao contrário, são, na bela expressão que dá título ao livro de Lea (2012), “riquezas intangíveis de pessoas partíveis”. São atualizações de formas e cores e estão abertos à criatividade de seus produtores, sobretudo no que diz respeito à utilização e à substituição de matérias-primas e as transformações que elas provocam. Novamente, uma passagem de Cohn permite colocar, como contraponto, a questão da importância concedida à miçanga pelos Mebêngôkre. Ressoando com as colocações de Verswijver citadas acima, a autora afirma: Assim, temos dois modos de criar (inventar) novos adornos – mudar a forma ou o material; em ambos realiza-se uma variação sobre adornos existentes. O material pode ser substituído por qualquer novo material que se revelar interessante – como disse acima, são nossos olhos que privilegiam as mercadorias, ou os produtos industrializados, como veículos de modificação, mas esses materiais, se em algo diferem dos outros, é apenas pelo fato de que dependem necessariamente de uma relação para sua aquisição, não podendo ser adquirido pela caça, coleta ou pelos meios de produção mebengokré. Talvez isso lhe agregue valor, já que faz deles uma matéria prima que tem que ser obrigatoriamente preendida fora, dado ser impossível produzi-la, e no fim, para os processos de que tratamos aqui, é de relações que se trata. Suspeito, porém, que o valor do objeto criado está em sua inovação, em um conjunto, e nesse caso as mercadorias são apenas meios de modificação. (Cohn, 2005: 90; grifo meu)

A questão aqui parece ser menos a de um vício de olhar dos antropólogos, como manifesta a autora, do que um interesse propriamente nativo por um certo tipo de mercadorias que são, justamente, um meio privilegiado de modificação dos enfeites. Assim, as miçangas não são (como as outras mercadorias) apenas meios de modificação, elas são o principal meio de transformação dos adornos contemporâneos. Isso porquê, como disse acima, a propriedade versátil das contas permite às mulheres mebêngôkre produzir alterações nos enfeites ao substituir diversas matériasprimas, criando, assim, novos enfeites, com novas combinações de cores, novas formas, novos pingentes e novos designs. Não por acaso, as miçangas, como já ressaltou Lea (2012:146), podem ser “utilizadas como moeda ou notas bancárias”, entre os Mebêngôkre. É dessa sua capacidade de atuar como dinheiro que falaremos agora.

A miçanga como dinheiro O fato das miçangas serem uma matéria-prima valiosa para os Mebêngôkre é atestado pelo seu uso como meio de troca universal, algo facilitado também pelo fato delas, atualmente, não


234 possuírem donos, ou seja, não terem seu uso restrito a determinadas pessoas, diferentemente do que ocorria no tempo mitológico descrito por Akjabôro em sua narrativa sobre a árvore da miçanga. Assim, embora seja um material de grande valor do ponto de vista mebêngôkre, a miçanga enquanto matéria-prima não entra no sistema de privilégios rituais que regem a apropriação e transmissão de nomes e nekrêjx.

Ao constatar o uso da miçanga como dinheiro entre os

mebêngôkre, Lea ressalta este ponto: as miçangas tornaram-se uma espécie de moeda universal para os mebêngôkre, antes deles descobrirem que a finalidade disso era dinheiro. Entre os mebêngôkre, miçangas podem ser trocadas com qualquer um por qualquer serviço, ou outros bens industrializados. Isso contrasta com as regras bem estabelecidas que regem a circulação dos itens tradicionais de riqueza. Cada artigo dessa riqueza tem seu devido lugar e é usado por uma quantidade pequena de pessoas (2012: 36).

O que faz da miçanga tanto uma mercadoria diferenciada quanto uma “riqueza” específica é justamente o seu caráter generalizante. Como no caso da maioria das mercadorias, todos podem usá-las (Gordon, 2006), seja para com elas se enfeitarem ou para enfeitar seus nekrêjx, seja para transformar seus nekrêjx em enfeites que são pura miçanga. Elas podem ser dadas por mães e pais aos filhos, pelos maridos, namorados ou amantes, às suas respectivas esposas, namoradas e amantes, como, inclusive, se faz com dinheiro (Gordon, 2006). Com elas pode-se pagar serviços e adquirir mercadorias ou mesmo fazer um agrado a um parente de outra aldeia. Por outro lado, as miçangas, como já constatou Lea, são um dos itens “mais visados de roubo”, tendendo a “não serem encontrados nunca mais”, pois os enfeites produzidos com elas “podem ser facilmente desmontados e as miçangas reagrupadas em novas combinações, tornando-as irreconhecíveis aos donos originais (2012: 36). A ideia de transformar contas em moeda universal não é nova, tampouco restrita aos grupos kayapó. Para citar apenas um exemplo de extensa profundidade histórica, pode-se remontar a chegada dos holandeses e ingleses na costa americana, por volta século XVI, em busca de peles de castor coletadas por alguns povos indígenas. Como afirma Lagrou, citando Graeber, estes estrangeiros “chegavam armados com grandes provisões de miçangas” para serem trocadas com os nativos pelas peles, a ponto de a miçanga se tornar “uma moeda de troca regular” entre índios e estrangeiros durante um certo período(Graeber, 2001: 119 apud Lagrou, 2013: 29). Lagrou destaca ainda a estreita relação das contas em transações comerciais com povos que vivem em diferentes partes do mundo, “por serem fáceis de transportar” e, mais importante, “por representarem alto valor de atração subjetiva através de sua ligação com a decoração corporal” (2013: 23). Esta característica, a miçanga compartilha com outras formas nativas de moeda, cuja principal diferença em relação ao dinheiro é, conforme Graeber (2001: 192), o fato de serem


235 matérias-primas utilizadas principalmente como objetos de ornamentação. Como afirma o autor, ouro e prata são somente os exemplos mais óbvios: seria possível igualmente citar o caurim [cowries] e as conchas de espôndilo da África, Nova Guiné e Américas, bem como o dinheiro de penas de New Hebrides, ou mesmo qualquer outro tipo similar de moeda nativa. Na maior parte dos casos, dinheiro consiste em coisas que existem, senão para serem vistos. (Idem).

Comentando essa passagem de Graeber, Lagrou afirma que é exatamente esta capacidade de tornar visível e palpável um poder normalmente invisível que consiste, segundo o autor, na diferença entre as contas como moeda de troca e o dinheiro enquanto qualidade abstrata. Graeber chama a atenção para um complexo processo de alternância entre as políticas indígenas de ostentação e ocultamento de valores e poderes. Segundo o autor trata-se de uma distinção recorrente entre o poder de agir diretamente sobre outros, um poder de agência que permanece invisível aos olhos, e o poder de mobilizar outros a agirem de acordo com o desejo da pessoa que se mostra, onde a pessoa usa os adornos para produzir o efeito desejado em quem a vê (2013: 23).

A miçanga entre os Kayapó parece compartilhar das características que essas diferentes moedas nativas possuem nos mais longínquos lugares em que são utilizadas. Não é por outro motivo, senão o de aparecer belo na festa, e mostrar-se aos demais a sua beleza ou a beleza de seus filhos e parentes próximos, que os mebêngôkre desejam cada vez mais quantidades de miçangas, utilizando-as em larga escala em enfeites de uso comum e naqueles que são nekrêjx. Como aponta Lagrou, a miçanga, se para algumas sociedades é uma forma de dinheiro, não compartilha desse aspecto abstrato, invisível. A ela está ligada uma certa visualidade necessária, mobilizada não apenas pela massiva presença de enfeites de contas sobrepostos ao corpo em contextos de ritualização, mas também pela presença de uma série de imagens estampadas nestes enfeites. Imagens que são produzidas exclusivamente com esta matéria-prima e que além de embelezar aqueles que os portam, visam também, impressionar, produzir, como afirma Lagrou, um efeito desejado em quem as visualiza. Neste sentido, e se diferenciando novamente do nosso dinheiro, as miçangas não tem valor porque são simplesmente acumuladas. A riqueza não está em sua acumulação, como acontece com o dinheiro nas nossas sociedades capitalistas. Ela está na sua capacidade de ser menos “uma coisa do que um signo de relação” (Gordon, 2006: 279). Como de resto parece também ser esse o valor concedido pelos mebêngôkre ao dinheiro, já que ele também não é acumulado. Em sua etnografia dos usos do dinheiro entre os Xikrin, Gordon demonstra como eles são grandes devedores no comércio local, justo porque sua concepção de riqueza não se configura pela acumulação, tampouco pela dívida, mas sobretudo “pela capacidade de adquirir objetos estrangeiros (…) e expressar por meio deles determinadas relações sociais” (2006: 280). Mas há outras razões para que a miçanga se torne dinheiro entre os Mebêngôkre. Acredito


236 que miçanga se torna dinheiro, ou seja, um valor universal, sobretudo porque ela, ao contrário do nosso dinheiro, não serve simplesmente para adquirir mercadorias ou serviços. Ela serve como valor universal porque com ela pode-se fazer qualquer tipo de enfeite, substituir qualquer matériaprima, mesmo as mais valiosas como as penas e, ainda assim, continuar agregando beleza ao enfeite, continuar diferenciando aquele que o porta. Para os Mebêngôkre a agência das miçangas, sua capacidade peculiar, está no fato delas serem nem tanto um item de exclusividade, nem apenas um valor universal, mas de serem, na verdade, um substituto universal das matérias-primas “naturais”. Para compreender as consequências dessa afirmação, deve-se retornar a uma característica dos nekrêxj já mencionada por Lea, que diz respeito à sua exclusividade. Segundo a autora, um nekrêjx é tanto mais bonito e distingue tanto mais uma pessoa, tanto mais seja ele exclusivo. Para manter esse seu sobrevalor é preciso reter a sua circulação, mantê-lo, para agora utilizar uma expressão de Gordon (2006: 371), “em estado cru”. Seguindo as conclusões de Lea de que a beleza dos nekrêjx (mas também dos nomes, e de certo modo, de todo kukràdjà mebêngôkre) está depositada em sua não-circulação, ou seja, na manutenção de sua exclusividade; e se apropriando da clássica terminologia lévi-straussiana do “cru e do cozido”, Gordon entende a circulação dos nekrêjx como uma forma de cozimento, no sentido de dessubjetivação 94. Em suas palavras, a própria circulação pode ser vista como um tipo de cozimento ou processo de dessubjetivação. Pelo menos é assim que entendo a desvalorização dos nekrêjx (e kukràdjà) que circulam demais e se tornam nekrêjx ou kukràdjà de “todo mundo” deixando de ser verdadeiramente bonitos. Tornam-se comuns, ordinários e, por conseguinte, mais mansos (uabô), menos poderosos (djâkre); com isso tornam-se menos distintivadores, menos capazes de efetuar a transformação ritual (2006: 383-4; grifo no original).

Sugiro que a inserção cada vez mais intensa de miçangas e a não menos importante capacidade da miçanga de em tudo virar, de transformar qualquer enfeite, permite aos Mebêngôkre realizar uma operação paradoxal, uma forma de comunização diferenciante: aumentando a circulação de diferentes objetos considerados nekrêjx, e mantendo de algum modo e com alguma intensidade o seu aspecto cru, de subjetivação ritual e portanto de diferenciação. A miçanga, e seus quilos e quilos, vem para subverter, ao menos em parte, a passagem de Gordon mencionada acima: pois que permite, para continuar nas metáforas culinárias, um cozimento “mal passado”, uma forma de fazer algo se tornar de todo mundo, justamente porque permite a esse todo mundo, uma forma de todo mundo continuar sendo diferente. Em outra passagem, Gordon afirma: “a desvalorização [dos 94

Gordon está aqui dialogando com um ensaio de Carlos Fausto (2002) sobre o consumo cru (canibal) ou cozido (alimentício) como duas modalidades de relação com a alteridade: a primeira que conforma o canibalismo como o “consumo da parte ativa do outro”, subjetivado, e por isso cru; e a segunda que “supõe um processo de dessubjetivação” (2002: 19).


237 nekrêjx] implica que um determinado item deixa de conferir o mesmo quociente de beleza (e distinção) ao portador, na medida em que essa beleza passa a ser dividida entre muitas pessoas” (2006: 368). Diferente dessa posição, estou sugerindo que comunização não necessariamente implica em desvalorização, uma vez que as capacidades da miçanga e a criatividade das mulheres mebêngôkre são responsáveis pela produção de diferentes versões dos mesmos enfeites, garantindo um quociente de beleza à seus portadores. Os nekrêjx alterados pelas miçangas continuam sendo únicos (diferenciantes), mesmo quando comunizados. Este aspecto paradoxal define a miçanga como uma mercadoria especial95, diferente daquelas que foram apropriadas dos brancos como nekrêjx e logo comunizadas. A miçanga também foi comunizada, como vimos no mito da grande árvore, mas nem por isso deixou de ser um elemento diferenciante, tal como ocorreu, com os facões, machados e espingardas. Neste quesito, as miçangas parecem estar entre, por um lado, o vestido ou o chapéu vermelho, apropriado dos kuben como nekrêjx, e tendo a sua circulação restrita e, por outro, as mercadorias citadas acima, que logo foram comunizadas, perdendo o seu valor distintivo. Assim, o melhor lugar para a miçanga, se assim podemos encontrar um lugar para ela entre os Mebêngôkre, é mesmo o lugar do dinheiro, do equivalente geral que, se em nossas sociedades capitalistas é uma forma abstrata de adquirir qualquer mercadoria, para os Mebêngôkre é uma forma concreta de substituir qualquer matériaprima, alterando as formas e as cores dos enfeites, gerando beleza e distintividade, e impressionando os outros. A miçanga permite que muitos nekrêxj sejam comunizados sem, contudo, deixarem de ser poderosos produtores de distinção e capazes de efetuar a transformação ritual. Eles continuam sendo consumidos “crus” nos rituais, porque continuam tendo a alteridade como referência na sua produção que agora é invadida por diversas imagens e figuras do mundo dos kuben. Como veremos a seguir, as miçangas abriram novas possibilidades de produção de imagens, tanto aquelas antes restritas à pintura corporal como os grafismos e padrões geométricos, quanto aquelas figurativas, que são exclusivamente feitas nos enfeites de miçanga. Neste sentido, a multiplicação de versões sempre diferentes dos nekrêjx feitos de miçanga, decorados com imagens também diferentes, ao mesmo tempo que democratiza o acesso a itens antes pertencentes a poucos, continua mantendo um “coeficiente de alteridade” (Lima, 2005). Afinal de contas, para quê controlar a circulação dos nekrêjx, porquê garantir sua exclusividade, se agora, com sua miçangalização, cada uma de suas variadas versões pode ser exclusiva? Esse movimento duplo, paradoxal, feito do encontro dos Mebêngôkre e todo seu background 95

Gordon (2006: 342) inclui as miçangas dentre aquelas mercadorias que fazem parte do que ele denomina consumo diferencial.


238 cultural com quantidades extraordinárias de contas de vidro, será demonstrado agora através de uma etnografia dos artefatos em transformação que tem como fio condutor os movimentos de diferenciação e comunização que o uso e apropriação criativa das miçangas proporcionam.

Uma etnografia dos artefatos em transformação Entre os Mebêngôkre a arte de trabalhar com miçangas é uma arte feminina. São as mulheres que aprendem esta arte desde os tempos de menina e dominam esse kukràdjà, conhecimento ampliado à medida que a idade avança. Por conseguinte, são as mulheres que decidem, nos momentos que precedem as grandes festas, quais as cores e formas que serão combinadas nos enfeites de miçanga de uso comum, utilizados por todos os participantes. Esta escolha está relacionada ao motivo da pintura corporal que os diferentes grupos de gênero e idade portarão durante o ritual. As mulheres procuram formas e cores que combinem com os grafismos geométricos feitos com tintas pretas e vermelhas (respectivamente, a base de jenipapo e urucu), pintados nos diferentes corpos dos participantes. Tal decisão é permeada por divisões em grupos de idade e gênero. As mulheres mais velhas, que já possuem filhos e netos, decidem entre si quais serão os seus enfeites e os de seus maridos. O mesmo acontece com o grupo de mulheres da geração precedente que, em geral, possuem apenas filhos e não netos. As mekurerere, as moças púberes, encarregam-se de escolherem as formas e cores de seus colares e dos menoronyre, os rapazes solteiros da aldeia. É interessante notar também que somente as mulheres participam das distribuições públicas de miçangas, como aquelas doadas pelo Museu do Índio à aldeia Môjkarakô. As miçangas são distribuídas segundo as categorias etárias mencionadas acima, sendo que as mulheres mais velhas, aquelas que já possuem netos, além de receberem mais miçangas que as outras, têm o privilégio de receberem pacotes de miçangas com as cores consideradas mais bonitas pelos Mebêngôkre, como vermelho, amarelo, laranja, azul e branco. As mulheres que apenas possuem filhos recebem alguns poucos pacotes dessas cores, e mais pacotes de cores consideradas menos belas, como azul claro, verde escuro e preto. Já as mekurerere, as moças que não possuem filhos, tem que se contentar apenas com miçangas da cor azul claro. As conversas sobre os enfeites podem acontecer quando as mulheres, novamente divididas em grupos de idade, se reúnem para se pintarem entre si em longas sessões coletivas de pintura corporal. Podem acontecer quando as mulheres vão às roças ou quando vão buscar lenha para seus fornos de pedra, ou mesmo, durante os animados banhos de rio durante o pôr do sol. A atividade de


239 tecer com miçangas é feita de modo coletivo e individual. Às vezes as mulheres se reúnem para fazer os colares, braceletes e tornozeleiras no fundo da casa da mulher de um dos caciques. Mas quando os homens saem para caçar ou pescar, elas podem ocupar a casa dos homens, no centro da aldeia, para realizarem seu trabalho com as contas. Essas produções em grupo ocorrem, sobretudo quando as mulheres estão fazendo enfeites de uso coletivo, para um determinado ritual. Contudo, na maior parte do tempo as mulheres tecem sozinhas em casa, ocupação que preenche boa parte do cotidiano feminino da aldeia. O tempo gasto na produção de enfeites tem aumentado consideravelmente nos últimos anos graças ao fato das mulheres poderem produzir com o auxílio da miçanga praticamente todos os enfeites que antes eram feitos pelos homens. Este fato, que será demonstrado com mais rigor nas próximas páginas, tem transformado totalmente a divisão sexual do trabalho no que tange à produção de adornos. Em uma detalhada publicação sobre a vida artefatual mebêngôkre, cujos objetos foram coletados, sobretudo, até meados dos anos setenta do século XX, ou seja, antes do uso massivo de contas pelos Mebêngôkre, o antropólogo belga Gustaaf Verswijver (1995: 68) anotava que as mulheres produziam apenas ocasionalmente alguns enfeites ou preparavam alguns de seus componentes, sobretudo, no manejo do algodão com a técnica do crochê, ou na produção de linhas e amarrações específicas. Estas seriam, para o autor, as contribuições essenciais das mulheres no processo de produção de muitos ornamentos. Além disso, destaca Verswijver, as mulheres frequentemente preparam as sementes e outros componentes que são usados em uma extensa variedade de ornamentos. Por outro lado, elas nunca manuseiam dentes de animais ou conchas de madrepérola, que são propriamente manuseados por especialistas masculinos. Com a exceção de um cinto ornamentado, as mulheres nunca fazem enfeites de penas (…) A grande maioria dos trabalhos manuais, no que tange a produção de ferramentas e enfeites, são feitos pelos homens (Idem).

No que diz respeito ao manuseio de penas, dentes e conchas de madrepérola, as afirmações de Verswijver continuam valendo. De fato, as mulheres continuam evitando o manuseio destes elementos considerados contagiosos e perigosos para elas e para as crianças e mesmo para os homens que não são especialistas em seu manuseio. Estes objetos possuem karõ dos seus antigos donos animais e podem produzir doenças ou o seu agravamento. Contudo, no que tange ao fato dos homens serem os principais produtores de artefatos, a realidade mudou. Os homens continuam sendo os produtores exclusivos de artefatos de palha, bem como ferramentas e armas, mas no que se refere aos enfeites isso não se aplica. Pois como já o sabemos, agora eles dividem essa ocupação com as mulheres graças às qualidades das miçangas que permitem a elas produzirem muitos enfeites, substituindo matérias-primas manuseadas somente pelos homens. Assim, acontece com os colares de madrepérola, com os adornos de palha e envira e


240 timidamente o mesmo começa a acontecer com os enfeites de penas. Se os homens continuam produzindo enfeites plumários, que eu diria ser a especialização masculina do momento no que diz respeito aos adornos, todo o restante da indumentária mebêngôkre é agora feito pelas mulheres através do manuseio de grandes quantidades de contas. De modo que existe atualmente uma divisão sexual do trabalho na produção de enfeites que polariza mulheres e homens como respectivamente produtores de enfeites de miçangas e de penas. É preciso lembrar, contudo, que alguns dos enfeites de penas estão começando a serem feitos também com miçangas, sendo que o contrário, neste caso, não se aplica. Deve-se imaginar as profundas alterações que essa substituição de matéria-prima provoca no que denomino, por falta de uma palavra melhor, o look mebêngôkre96, ou seja, na composição da indumentária ritual, agora feita e refeita com novas possibilidades de combinações de formas e cores. Antes de falar desse assunto, que nos ocupará adiante, é preciso descrever minunciosamente e com o auxílio de imagens as transformações operadas nos artefatos que, se antes eram somente enfeitados com as contas, atualmente, passaram a serem totalmente feitos com elas. ɷɷɷ

Aĩ Iniciemos nossa apresentação com o exemplo do aĩ, uma bandoleira de palha trançada utilizada no cotidiano pelas mulheres para carregar seus filhos e netos. Em ocasiões cerimoniais certas pessoas têm o direito de usar uma versão menor como nekrêjx. Até bem pouco tempo atrás a palha era a matéria-prima predominante neste enfeite, como continua sendo para aqueles de uso cotidiano. Estes, como mostra Verswijver (1995: 238), são enfeitados com pingentes de fios de algodão tingidos de preto ou vermelho adicionados ao pa kajpre (“braço entrelaçado”), uma peça cilíndrica de madeira responsável por unir as duas pontas do aĩ, à qual enrola-se linhas de algodão entrelaçadas com fios de palha, formando um grafismo denominado akjêká'ôk. Já o aĩ para uso ritual, é produzido da mesma forma que o de uso cotidiano, a diferença entre os dois residindo nos pingentes que são feitos com miçangas, coquinho de tucum e peninhas vermelhas de arara, também adicionados ao pa kajpre.

96

O uso dessa categoria será problematizado no capítulo VII.


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Figura 17: Aĩ de palha com detalhe do pa kajpre. Extraído de Verswjver (1995: 238).

As versões contemporâneas do aĩ cerimonial substituíram totalmente a palha, o tucum e as peninhas de arara por miçangas. A parte trançada agora é feita de um tecido de miçangas de cores homogêneas com grafismos estampados de outra cor, e os pingentes imitam a forma das penas de arara. Do mesmo modo, o grafismo presente no pa kajpre agora é feito de contas coloridas, eliminando o tubo cilíndrico de madeira, mas mantendo a dobra que ele produzia no artefato.

Figuras 18 e 19: Aĩ de palha e Aĩ de miçanga.

É interessante notar algumas transformações operadas na substituição da palha pela miçanga, como matéria-prima primordial deste objeto. Primeiro, a propriedade de fazer esses


242 objetos mudou de mãos. Como em muitos outros povos indígenas a arte de tecer com palha é entre os Mebêngôkre, uma arte masculina (Ribeiro, 1980). Os homens fazem diversos tipos de bolsas, cestos e máscaras com as palha de buriti, açaí, babaçu, dentre outras palmeiras. Mas os homens não sabem tecer com miçangas, atividade feita exclusivamente pelas mulheres. A nova versão cerimonial do aĩ, portanto, é uma versão feminina. Outra transformação interessante é aquela que diz respeito ao potencial criativo aberto pela substituição dos materiais. Nos aĩ antigos a variação entre os enfeites encontrava-se precisamente nos pingentes, nos quais os artistas poderiam colocar penas vermelhas de arara, ou amarelas de rei congo, ou mesmo verdes de papagaio. As cores agora ocupam todo o objeto. Sua estrutura antes trançada com palha foi substituída por um trançado de miçanga monocromático, às vezes branco, às vezes vermelho, às vezes verde ou azul, com grafismos de cores também variadas, ao sabor das escolhas da mulher que o produziu. Os pingentes também demonstram esta capacidade de variação e invenção de combinações de cores alcançada pela miçanga, sobretudo, porque neles contas de diferentes tamanhos e cores são utilizadas. As pessoas portadoras do direito de usar o aĩ, agora podem portá-los em cores diferentes, escolhidas pelas mulheres que os vão fabricar.

Figura 20: Mulher portando aĩ cerimonial feito de miçangas verdes.

Kadjàt'yr Uma outra tipoia de uso exclusivo para fins cerimoniais é aquela denominada kadjàt'yr.


243 Diferentemente do aĩ, esta tipoia é usada exclusivamente em par, trançado em diagonal no corpo da pessoa. Também, ao contrário do aĩ, o kadjàt'yr é produzido originalmente com a técnica do crochê com linhas de algodão, cuja cor é invariavelmente vermelha. Da metade de cada uma das tipoias pende um pingente feito de miçangas, penas de arara e coquinhos de tucum. Verswijver (1995: 250) afirma que a técnica do crochê foi aprendida pelas mulheres Gorotire e Irã'ãmranh-re com os Karajá e Tapirapé, no início do século XIX. A partir do aprendizado dessa técnica elas desenvolveram essa tipoia trançada, que só pode ser usada por crianças que estão sendo honradas durante uma cerimônia de nominação.

Figura 21: Kadjàt'yr de crochê (Verswijver, 1995: 250).

A versão contemporânea da kadjàt'yr foi totalmente refeita com miçangas. Essas versões mantêm a cor vermelha característica da tipoia trançada, mas, no entanto, como nos aĩ contemporâneos, grafismos podem ser feitos utilizando miçangas brancas, assim como também os pingentes são agora produzidos com miçangas que imitam a forma das penas de arara. A alteração da matéria-prima utilizada provocou também a mudança de seu nome. As tipoias deste estilo feitas com miçanga são chamadas an'gà tyr.


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Figura 22: Casal enfeitado durante uma cerimônia Bemp, na aldeia Môjkarakô. A moça e o rapaz portam o an'gà tyr. Note-se que o rapaz porta o aĩ de miçanga amarela com grafismos por cima de seu an'gà tyr vermelho. (Foto: Bepunu Kayapó)

Wôrekà Alguns objetos passaram por transformações ainda mais drásticas em termos de volume e expressividade. Este é o caso dos braceletes denominados wôrekà97. Até pouco tempo atrás este bracelete era feito com uma envira chamada pinkà que, enrolada de modo circular, encontrava em sua base inferior um feixe de coquinhos do campo (mr`y y kà), adornados com tufos de cordinhas de algodão tingidas de preto. Uma outra variação deste enfeite tinha o pinkà como base e a ele se sobrepunha um trançado de palhas amarelas e pretas, formando um grafismo geométrico específico. Os feixes de coquinhos do campo eram adornados com pingentes de penas vermelhas de arara e amarelas de rei congo. Contudo, quando se olha para os wôrekà contemporâneos, nada se reconhece desses materiais. Toda a forma do enfeite foi coberta por miçangas, os grafismos feitos com as palhas ganharam a expressividade da combinação de cores diversas, os coquinhos deram lugar à contas grandes, verdes ou brancas, os feixes de algodão tingidos de preto agora cintilam em cordões de contas amarelas e vermelhas, o mesmo acontecendo com os pingentes que mimetizam as formas 97

A denominação genérica para bracelete entre os Mebêngôkre é me iĩ.


245 das peninhas de araras, também em diversas cores. O próprio pinkà foi providencialmente substituído por um largo pedaço circular de cano PVC que dá forma ao bracelete, permitindo às mulheres tecer com miçangas sem o risco de quebrá-lo.

Figura 23, 24 e 25: A transformação do wôrekà.

Novamente, nota-se na produção do wôrekà contemporâneo uma transformação de gênero. Verswijver (1995: 256) afirma que a versão antiga do wôrekà era “feita por homens especialistas” em sua produção. “Estes artesãos, continua Verswijver, são recompensados com comida ou outra compensação”. Atualmente, o wôrekà é uma produção totalmente feminina. Até onde pude pesquisar não há mais especialização, sendo o artefato produzido pelas mães ou avós das crianças


246 que o irão portar durante um ritual de nominação em que serão honrados. Outro detalhe importante sobre o uso do wôrekà é que eles são utilizados sempre em par e até cinco pares de wôrekà podem ser usados simultaneamente por uma única criança, a depender da quantidade de miçangas disponíveis para fazê-los. Em geral usa-se de dois a três pares. Resta dizer, como o faz Verswijver, que o wôrekà é um artefato estritamente pessoal, conservado durante toda a vida de uma pessoa, sendo enterrado em conjunto com o corpo de seu proprietário quando este morre (1995: 261).

Figuras 26 e 27: Diversos wôrekà são portados por uma menina durante um ritual. (Fotos: Thiago Oliveira)


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Iĩkamrêk O iĩkamrêk é um tipo de bracelete feito de envira da palmeira do buriti trançado em argolas, atadas por cordas do mesmo material e pintado de vermelho com urucu. Ele é utilizado pelos iniciados durante a fase final do ritual de iniciação masculino, podendo também ser utilizado durante qualquer outra grande cerimônia ocorrida depois da iniciação (Verswijver, 1995: 266).

Figura 28: Iĩkamrêk de envira com pingentes de contas, coquinhos e penas. Extraído de Verswijver (1995: 263)

Atualmente, a envira de palmeira de buriti pintada de vermelha foi totalmente substituída por um tecido de miçangas, também vermelhas, mantendo a forma das amarrações com cordões de miçangas brancas98. Verswijver (1995), destaca sobre este nekrêjx que depois de sua utilização eles são guardados em bolsas e pendurados em um dos cantos da casa materna do rapaz nominado. Quando ele se casa os iĩkamrêk são, então, retirados de lá durante a primeira cerimônia memy bjôk (festa dos homens pintados), sendo posteriormente desfeitos e pendurados nas duas extremidades da casa dos homens (1995: 266). Isso não ocorre com os iĩkamrêk feitos de miçanga. Embora sejam desfeitos no período posterior à mesma cerimônia, as contas são preciosas demais para que sejam depositadas na casa dos homens. Os braceletes são assim desfeitos e suas contas são utilizadas na produção de outros enfeites. 98

Observei também o uso de cordas industrializadas vermelhas na produção deste enfeite.


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Figura 29: Rapaz usando o iĩkamrêk de miçanga durante a emplumação das crianças honradas na cerimônia kwôre-kangô realizada na aldeia Môjkarakô. (Foto: Bepunu Kayapó)

Este objeto quando feito com miçangas sofre novamente transformações no que diz respeito às pessoas responsáveis por sua produção. Verswijver (1995: 264), diz que o iĩkamrêk feito de envira é produzido pelos amigos formais dos jovens iniciandos logo no início da cerimônia. Aquele feito com miçanga é produzido não mais pelo amigo formal do jovem, mas por sua avó ou tia materna e, também, não mais no início da cerimônia, mas antes dela acontecer, já que sua produção com as contas leva muito mais tempo. Bemp nhikre kakô Em outro enfeite, o bemp nhikre kakô – um longo brinco de madeira enrolado por fios de algodão e enfeitado com pingentes de penas de arara e concha de madrepérola – a transformação dos materiais foi presenciada por mim durante o trabalho de campo. O bemp nhikre kakô é um enfeite que é considerado nekrêjx, ou seja, somente podem portá-los os homens que já tiveram seus nomes confirmados em um festival de nominação chamado Bemp99. 99

Para um estudo sobre o uso simbólico dos adornos auriculares entre os Jê e suas relações com a valorização da faculdade da audição, ver Seeger, 1980.


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Figura 30: o bemp nhikre kakô, adornado com algodão cru e pingente de contas azuis e brancas, coquinhos e peninhas de arara. Extraído de Lea (2012: 255).

Certa vez, nos momentos que antecediam a um ritual Bemp, quando as mulheres estavam produzindo uma série de enfeites de miçanga para usar na festa, Kokuí me chamou até a sua casa para me mostrar o novo enfeite que sua mulher tinha feito. Era um bemp nhikre kakô coberto por uma capa de miçangas brancas, fazendo às vezes das linhas de algodão enroladas na estrutura de madeira, e cujos pingentes, tal como os do aĩ de miçangas, imitavam as formas das penas de arara. Kokuí pegou os objetos nas mãos, colocou-os na orelha e me disse: “eu vou ser o primeiro a usar durante a festa. Todo mundo vai ver como eu vou ficar bonito”. E, de fato, foi isso o que aconteceu. Entretanto, alguns meses depois, em outra festa, apareceram outros homens portando o bemp nhikre kakô coberto por miçangas brancas. Talvez em um futuro próximo variações deste objeto alcancem diferentes cores, com cada portador tendo o privilégio de utilizar esta ou aquela cor primeiro, movimentando a dinâmica criativa dos objetos feitos com miçanga.


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Figura 31: O bemp nhikre kakô de miçanga de Kokuí, feito por Xôkre, sua mulher. (Foto: Thiago Oliveira)

Õkre tã O colar õkre tã apresenta transformações muito recentes. Trata-se da substituição de um adorno feito com penas, por um adorno feito inteiramente com miçangas, o que parece ser uma tendência contemporânea. Algo ainda não registrado por autores como Lea (1986; 2012) e Verswijver (1995), que se dedicaram ao estudo das transformações na cultura material mebêngôkre, mais especificamente, ao seu sistema de privilégios rituais. Pois bem, o õkre tã é um colar originalmente feito com cordas de algodão atadas, nas quais se prende uma série de penas de arara ou papagaio atadas a um fino palito de madeira por uma amarração também de algodão. Cada uma das penas são arrematadas com um pingente de penas menores, geralmente de cor diversa. O efeito final do adorno é similar ao de uma gravata. O uso do õkre tã é, como destaca Verswijver (1995: 191), privilégio daqueles garotos que vão passar pelo rito iniciático. Depois de efetuado o rito, os homens que passaram por ele podem


251 continuar usando o enfeite durante qualquer ocasião ritual. O õkre tã é, assim, “um símbolo de seu status de iniciado” (Idem). Atualmente, o õkre tã pode ser feito inteiramente com miçangas que substituem tanto as penas de arara ou papagaio e os pingentes que os arrematam, quanto os cordões de algodão onde elas são atadas. Agora, a parte superior do colar, aquela que se envolve ao pescoço, é feita com vários fios de miçangas de cores homogêneas de onde pendem de seu centro uma série de outros fios de contas de tamanho maior e em geral de cores diferentes daquelas da parte superior. Esse fios de contas grandes que agora substituem as penas são arrematados com miçangas menores e de cores também diversas, à guisa de pingentes.

Figura 32: Durante um festival Bemp um rapaz iniciado (a direita) e seu “pai-substituto” portam diferentes versões do o õkre tã, de miçangas e penas respectivamente. (Foto: Bepunu Kayapó)

Novamente temos uma transformação na propriedade de fazer este adorno. Sabe-se que entre os mebêngôkre a atividade de produzir adornos plumários é exclusivamente masculina. São os homens que não apenas caçam os pássaros, como colhem suas penas e as estocam em caixas e bolsas de palha e tubos de bambu. São eles, portanto, que detém o conhecimento de produzir os adornos plumários e, como vimos, essa especialização masculina tem a ver com a manipulação de


252 matérias-primas consideradas perigosas. As penas, embora não sejam tão perigosas quanto as conchas de madrepérola, podem contaminar determinados tipos de pessoas como mulheres e crianças (Giannini, 1992). Contudo, o an'gà õkre tã, como é denominado o õkre tã de miçangas, é feito inteiramente pelas mulheres, pois são elas, como sabemos, as especialistas na produção de adornos com contas. Assim, não são mais os amigos formais masculinos dos jovens iniciados que produzem este adorno depois de serem fornecidos com penas pelos pais dos jovens. Agora quem os produzem são as avós, tias maternas ou paternas, ou mesmo as mães dos jovens que irão passar pela iniciação.

Ngàp õkredjê Me õkredjê é o nome genérico entre os Mebêngôkre para colar. Os colares são um dos itens da cultura material que mais sofreram transformações. Tomemos o exemplo do ngàp õkredjê, o clássico colar de madrepérola produzido pelos Mebêngôkre. Em um mito recolhido por Vidal (1977: 238; mito 24), pode-se ver como a produção do ngàp õkredjê foi aprendida com os Karajás. Este colar é produzido com plaquinhas de itã, uma concha de madrepérola presente nas pedras dos rios que cortam o território mebêngôkre. Cada plaquinha é furada e adicionada, uma ao lado da outra, à uma corda feita de fios de algodão que dá sustentação ao colar. Verswijver (1995: 200 ) afirma que, se por um lado qualquer homem adulto pode fazê-lo; por outro, existem especialistas em sua produção. O caráter especializado da produção do ngàp õkredjê, parece estar relacionado ao aspecto perigoso que as conchas de madrepérola possuem para os Mebêngôkre. As madrepérolas são consideradas a matéria-prima mais perigosa dentre todas as existentes. Seu manuseio e a produção dos colares envolvem o conhecimento de plantas medicinais utilizadas para evitar as doenças que a madrepérola pode causar. Assim, diz Verswijver: “antes de trabalhar com as conchas, o artesão primeiro lava-as em um líquido que contém ervas medicinais. E quando ele vai iniciar a manufatura do enfeite, ele esfrega seu corpo com a mesma mistura de plantas” (1995: 70). Lea (2012: 360) também afirma o caráter perigoso das conchas de madrepérola entre os Metyktire e relata que “durante uma cerimônia, um dos donos legítimos do colar de madrepérola disse que não estava usando o colar dele porque seu filho era muito novo ainda, e que a madrepérola poderia deixar inchado e duro o estômago do bebê”. Parece ser por este caráter perigoso da madrepérola que diversas versões do ngàp õkredjê tem surgido nos últimos anos, substituindo as conchas por outras matérias-primas menos perigosas. Pelo menos é o que se pode entrever na seguinte passagem de Lea que, embora trate de um brinco, pode também ser estendida ao referido colar: “Outro homem


253 explicou que os brincos usados pelos homens na vida cotidiana têm um botão de kuben embaixo, em vez de madrepérola, porque esse material tem a tendência de penetrar o corpo de forma mística, causando doença” (2012: 360). Não por acaso, uma das variantes do ngàp õkredjê mencionada por Verswijver (1995: 203) é produzido justamente com “botões de kuben”. Outras versões mencionadas pelo autor são aquelas feitas com plaquinhas de alumínio, no lugar da madrepérola e também aquela feita totalmente com miçangas. Durante a pesquisa de campo encontrei uma outra versão feita com pedaços recortados de cano PVC.

Figuras 33, 34, 35: Diferentes versões do ngàp õkredjê. Da esquerda para a direita, de madrepérola, de plaquinhas de alumínio e de dentes de anta. Extraído de Verswijver (1995)

Figuras: 36, 37, 38: Diferentes versões do ngàp õkredjê. Da esquerda para a direita, de plaquinhas de PVC, de pontas de penas e de miçangas grandes e brancas arrematadas com contas vermelhas e pingente. (Reserva técnica do Museu do Índio)

O interessante é que a substituição dessa matéria-prima perigosa permitiu que mulheres e até


254 crianças usassem versões do ngàp õkredjê feitas com outros materiais considerados não perigosos pelos Mebêngôkre.

Figura 39: Menino usando ngàp õkredjê feito com botões verdes e arrematado com pingente de tecido em miçanga com grafismo colorido (Foto: Thiago Oliveira)

A versão original feita de madrepérola só pode ser usada por homens. Se por um lado, no passado era considerado nekrêjx, tendo seu uso restrito somente aos homens que herdaram o direito de portá-lo, por outro, no presente, o uso deste colar parece ter se vulgarizado. Lea, por exemplo afirma que hoje em dia, muitos Metyktire usam colares de madrepérola; é também um dos itens mais vendidos aos kuben. Uma velha se queixou de que os jovens usam esse colar de forma ilegítima (kajgô), e outra mulher alegou que os jovens estão todos usando esse nekretx dela. Afirmou que, antigamente, seria motivo suficiente para um duelo, e se os velhos nhengêt de sua Casa não estivessem mortos iriam expropriar os colares dos usuários ilegítimos (2012: 359).

Processo semelhante de comunização é descrito por Verswijver para a versão do ngàp õkredjê feito com miçangas, denominada angà-o õkredjê. Segundo o autor, esta versão emergiu no início do século XX, quando as miçangas ainda eram extremamente escassas. Naquele tempo, o direito de portá-lo era restrito àqueles homens que o haviam apropriado como privilégio ritual específico. Hoje, com o crescente influxo de tais miçangas, o uso deste colar de contas tem se tornado verdadeiramente generalizado: em alguns grupos Gorotire tal como os Mekrãngoti do sul, já em 1970 ele estava sendo usado praticamente por todos os homens (1995: 203).

Se, por um lado, o angà-o õkredjê tornou-se um objeto de uso comum, sendo também


255 utilizado por mulheres e crianças, por outro, a substituição das conchas de madrepérola pelas miçangas abriu possibilidades infinitas de variação deste adorno. Não apenas por causa das cores e combinações de cores, mas também por modificações na própria forma do enfeite. Verswijver (1995: 201) já havia notado que alguns ngàp õkredjê possuíam pingentes de penas de arara e coquinhos como distintivos que os ligavam a um determinado proprietário. Quando transformado em um objeto feito com miçanga, os pingentes não apenas deixaram de serem feitos dessa maneira, como também assumiram uma forma inteiramente nova. Agora, a maioria quase absoluta deste tipo de colar, independente da matéria-prima com a qual é feita, possui um pequeno tecido de miçanga, no qual encontram-se estampados diferentes grafismos ou mesmo diferentes imagens, como símbolos de marcas de roupa ou tênis, como Puma e Nike, siglas de partidos políticos como PT e escudos de times de futebol.

Figuras : 40 , 41 e 42 : Versões dos pingentes de miçanga do ngàp õkredjê.


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Assim, mesmo sendo um objeto comunizado, ou seja, que pode ser usado por todos, desde que tenham condições de adquirir a matéria-prima, ele continua sendo um enfeite que produz diferenciação, na medida em que cada uma das versões é diferente da outra, seja pela combinação de cores utilizada, seja pelo grafismo ou imagem estampado no pingente. Algo semelhante ocorre com a conhecidas “braçadeiras kayapó” que hoje se fazem presentes em grandes quantidades nas lojas de “arte indígena” das grandes cidades brasileiras.

Padjê A braçadeira denominada padjê talvez seja em conjunto com o cocar meaká, também chamado pelos índios de “capacete”, um dos principais ícones da identidade étnica mebêngôkre. Ambos são os itens básicos com os quais se apresentam os “guerreiros kayapó” na esfera da luta política e cultural com a dita sociedade envolvente. Mas o padjê que hoje adorna o braço de Raoni em uma foto de capa do jornal A folha de São Paulo, ou aquele que pode ser visto no noticiário da televisão, enfeitando os braços dos guerreiros kayapó nas manifestações contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, passou por um profundo processo de transformação, ou com o perdão do neologismo, por um verdadeiro processo de miçangalização. Os espécimes mais antigos dessas braçadeiras que se usam em pares idênticos eram feitos com linhas de algodão manuseadas pela técnica do crochê. Podiam ser tingidas ou deixadas na cor natural, e geralmente possuíam um pingente de penas de arara, ou rei congo, adornado com coquinhos. Os Gorotire copiaram esse ornamento dos Juruna, segundo nos conta Verswijver, no início do século XX. Logo o uso do padjê rapidamente se disseminou, sendo usado por todos os homens. É um caso raro de objeto incorporado que não se tornou nekrêjx, tanto que Lea (2012: 353384) não o menciona em sua longa lista de enfeites que se enquadram nesta categoria.


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Figura 43: Padjê kaygó

Esses espécimes do padjê feito de algodão cru, apenas levemente adornados, parecem ter durado pouco. Logo contas vermelhas, azuis e brancas começaram a ser incrustadas nas linhas de algodão que, firmemente atadas, davam sustentação às braçadeiras. Como lembra Verswijver, que etnografou essas mudanças, devido à crescente importação de contas de vidro nas últimas quatro décadas [1950-1990], pessoas começaram a decorar seus braceletes de crochê adicionando a eles numerosas miçangas azuis e brancas, cobrindo quase inteiramente sua área feita de crochê: somente um pequeno segmento, correspondente ao lugar onde o braço toca o corpo, permanecia não decorado. Em 1970, apenas homens velhos ainda usavam a versão elementar do bracelete, que passou então a ser referida como padje kajgo ('bracelete falso'), enquanto a versão decorada foi chamada padje kumrenhtx ('bracelete verdadeiro') (1995: 255).

Um interessante caso de inversão, onde o protótipo do objeto, que aos olhos ocidentais poderia ser considerado o mais original ou autêntico, é denominado pelos índios como falso, não verdadeiro, substituto, enquanto aquele que consiste em uma alteração da peça original torna-se, por causa da beleza das contas, o objeto verdadeiro, e para dizer como os mebêngôkre, o objeto mejx, isto é, belo.


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Figura 44: Padjê kumrenx

É possível que atualmente esse espécime considerado kumrenx, ou verdadeiro, venha a se tornar também um objeto kajgo, já que, uma vez mais, a forma do padjê foi alterada com a entrada ainda mais massiva de miçangas nas aldeias. Verswijver também registrou essa transformação, segundo ele, efetuada graças às transações que alguns grupos Mebêngôkre estabeleceram com a empresa britânica “The Body Shop”. Desde o final da década de 1980, extraordinárias quantidades de contas de vidros tornaram-se acessíveis aos Kayapó. Muitas delas foram importadas pela The Body Shop, uma empresa britânica de cosméticos, que as distribuiu para os índios para que eles produzissem um outro tipo de bracelete que não mais requeria o suporte feito de crochê, pois era feito com um tecido de miçangas. Os índios vendiam a maioria destes braceletes para a cadeia britânica de cosméticos mas sempre ficavam com uma larga quantidade para eles mesmos. Como resultado, os braceletes de crochê são agora raramente feitos, tendo sido inteiramente substituídos pela nova versão (Idem).


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Figura 45: Padjê de miçanga com motivo gráfico.

Não se deve, contudo, creditar essas transformações única e exclusivamente à solicitação da empresa para que os Kayapó produzissem esse tipo de braçadeira. Mais interessante seria pensar que o encontro dos Mebêngôkre com a empresa de cosmético como que acelerou uma transformação que já estava prestes a acontecer. O motivo dessa transformação, acredito, está menos na solicitação, por parte da empresa, de um bracelete em um novo formato, do que no despejar de uma extraordinária quantidade de contas nas aldeias mebêngôkre que permitiu às suas mulheres tecer um objeto no qual as contas ocupassem toda a sua estrutura, fazendo do padjê um objeto intercultural, pois que mantinha a cadeia de transformações pelo qual passou o objeto, sua miçangalização, e, ao mesmo tempo, agradava os padrões estéticos veiculados pela empresa. Algo que Verswijver não menciona são as imagens presentes nestes objetos. Talvez porque, como suspeito, essas inovações gráficas sejam posteriores à publicação de sua obra, datada de 1995. Tal como nos pingentes incorporados nas novas versões feitas com miçangas do ngàp õkredjê, às braçadeiras dos guerreiros são incorporadas uma série de imagens, tanto geométricas quanto figurativas. As primeiras são produzidas tendo como base os grafismos da pintura corporal reinventados com as múltiplas possibilidades de combinações de cores e formas que as miçangas proporcionam. Assim como os grafismos feitos com a pintura ou com a palha, aqueles feitos com miçangas são também designados pelo termo 'ôk, palavra que expressa o ato de traçar com precisão linhas em determinado suporte, sendo utilizada também para designar o ato de escrever, pi'ôk no 'ôk.


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Figuras 46: Padjê de miçangas com motivos gráficos coloridos

Já as imagens figurativas são produzidas somente com miçangas. Como na maioria dos grupos indígenas brasileiras os Kayapó não produzem imagens figurativas com a pintura corporal (ver Lagrou, 2011). É importante registrar ainda que as imagens figurativas produzidas com as miçangas são designadas karõ, termo polissêmico, cujo espectro semântico recobre conceitos como o de imagem, fotografia, espírito, sombra, alma, enfatizando relações miméticas e metonímicas com corpos e modelos (para a recorrência deste dualismo conceitual ver também Lagrou, 2011). Assim, deve-se ressaltar o caráter figurativo que os mebêngôkre querem enfatizar quando dizem que certas imagens feitas nas braçadeiras de miçanga são karon e não 'ôk. Se os grafismos evocam os designs nas peles de animais e plantas, as imagens em miçanga são retratos fiéis da pesquisa feita pelas mulheres no vasto repertório não indígena atualmente a disposição delas. A televisão, as vitrines da cidade de São Félix do Xingu, as viagens para eventos culturais em diversas capitais brasileiras, as revistinhas que ensinam técnicas de miçanga, as visitas dos não indígenas às aldeias; em todas essas ocasiões as mulheres apreendem motivos e modas diversas para testar nos braços de seus homens. Os resultados dessas pesquisas são materializados pela aquisição de imagens de marcas esportivas como Puma e Nike, símbolos da Funai e do Banco do Brasil, bandeiras do Brasil, escudos de times de futebol e da seleção, siglas de nomes de aldeias e de partidos políticos.


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Figuras: 47, 48, 49, 50, 51, 52: Dieferentes versþes do Padjê de miçangas com motivos figurativos coloridos.


262 A diversidade de imagens presentes no padjê masculino, nos cintos e nos pingentes do angà-o õkredjê, contrasta com a combinação de cores homogêneas de outros enfeites como as tornozeleiras, jarreteiras e pulseiras. Assim como as braçadeiras, estes são enfeites comunizados, pois todas as pessoas podem utilizá-los durante as cerimônias. Contudo, tais enfeites, cujas cores e formas são previamente escolhidas pelas mulheres, suas produtoras, definem, na verdade, coletividades. Nas festas, performances e rituais elas fornecem ao espectador uma noção dos diferentes grupos de pessoas presentes em uma aldeia mebêngôkre. Na maioria das cerimônias contemporâneas é comum ver os integrantes de uma dada categoria etária, masculina ou feminina, utilizando tornozeleiras, jarreteiras e pulseiras com as mesmas combinações de cores ou, em casos mais raros, com os mesmos grafismos. Estes enfeites têm estreita relação com os padrões de pintura corporal também escolhidos previamente e usados de forma homogênea por todos, homens e mulheres, que pertencem a determinadas categorias etárias masculinas ou femininas. Tal como os padrões de pintura corporal eles são refeitos a cada cerimônia, repondo a diferença entre as diversas coletividades que compõem uma aldeia.

Figura 53: Mulheres descansam durante uma festa Menire Bijôk. Note-se a homogeneidade de cores e formas dos enfeites de miçanga.


263 As braçadeiras constituem-se também como enfeites de rápida reposição. São continuamente desfeitos e refeitos em novas combinações de grafismos ou imagens, distinguindo constantemente seus portadores. O padjê parece ser um dos objetos que saltou, por assim dizer, uma das etapas do processo que estou descrevendo. Como vimos, desde suas primeiras incorporações ele não foi tomado como nekrêjx por nenhuma pessoa. Com a sua constante miçangalização, o padjê que era um objeto neutro por excelência, ou melhor, padronizado, feito sempre respeitando alguns padrões de cores e formas, transformou-se no suporte de uma infinidade de imagens apropriadas de novas redes imagéticas contemporâneas pelos quais passaram a circular os Mebêngôkre. Imagens continuamente refeitas em miçangas, para distinguir, diferenciar seus portadores.

Figura 54: homens dançando com braçadeiras similares (1989). (Foto: Vencent Carelli)


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Figura 55: Homens da aldeia Kôkraimôro dançam durante a festa do dia do índio, São Félix do Xingu. Note-se a variação das imagens presentes nos padjê dos diferentes dançarinos (Foto: Thiago Oliveira)

Neste sentido, as braçadeiras parecem ser um índice preciso do processo de comunização diferenciante que a inserção da miçanga proporciona. Pois o que temos visto até agora, por meio da descrição das transformações dos enfeites, é que uma das características notórias da inserção das miçangas diz respeito à uma certa “democratização” ou comunização do acesso à beleza, através da possibilidade colocada pelas miçangas de multiplicar a quantidade de versões de diferentes enfeites. Lea, na nova versão do seu livro sobre os nomes e nekrêjx, parece estar atenta às alterações que as miçangas proporcionaram no sistema de privilégios rituais: As miçangas são muito significativas para a transformação do conceito de nekretx. Possibilitaram uma maior igualdade entre as pessoas na medida em que qualquer um pode usá-las independentemente de sua herança individual. Podem ser usadas em qualquer ocasião e em qualquer cerimônia, ao contrário dos itens de riqueza mais tradicionais que são usados apenas durante as cerimônias, e mesmo assim, só durante momentos específicos. Hoje em dia, qualquer mãe pode embelezar seu filho adornando-o com uma abundância de miçangas, independentemente de dispor dos recursos necessários para transformá-lo numa “pessoa bonita”, ao ser honrado em uma cerimônia longa e custosa (2012: 146-7; grifo meu).

Essa passagem de Lea é muito instrutiva para o fenômeno que estou descrevendo. De fato, como já vimos, miçangas não possuem donos, todos podem usá-las irrestritamente, assumindo


265 inclusive a forma de dinheiro. Seguindo Lea, pessoas podem se tornar bonitas simplesmente por usá-las, independente do fato de terem passado por um ritual de nominação. Aqui é preciso diferenciar, como o faz Lagrou (2013), a miçanga como matéria-prima e os enfeites feitos com ela. Essa diferença crucial é importante para lembrar novamente que se todas as pessoas podem usar miçangas, isso não quer dizer que todos os enfeites de miçanga possam ser usados por todo mundo. Muitos dos enfeites descritos acima (como o õkre tã, bemp nhikre kakô, iĩkamrêk, wôrekà e o kadjàt'yr) continuam sendo prerrogativas daqueles indivíduos que passaram por cerimônias de nominação ou por ritos iniciáticos. No primeiro caso, é bom lembrar também do aumento progressivo de pessoas cujos nomes foram confirmados cerimonialmente, tal como mencionado na introdução da tese. Este fato crescente também favorece a comunização desses nekrêjx, multiplicados em diferentes versões feitas com miçanga. Voltando a passagem de Lea, gostaria de destacar a afirmação de que a miçanga produz uma maior igualdade entre as pessoas. De fato, com a inserção massiva de contas muitos enfeites foram reinventados e passaram a ter novos donos, e mesmo, muitos deles passaram a ser comunizados. O melhor exemplo desse processo de comunização é o do ngàp õkredjê, que de prerrogativa cerimonial de poucos indivíduos, quando feito em miçangas passou a ser utilizado por todos sem restrição em diferentes versões de cores, imagens e formas. As braçadeiras padjê passaram por processo inverso: se nas suas primeiras apropriações não foi considerada nekrêjx, com o processo de miçangalização e embora continue não sendo nekrêjx, passou a diferenciar seus portadores a partir da combinação de cores, grafismos e imagens presentes nas diferentes versões deste artefato. Assim, essa igualdade entre as pessoas, mencionada por Lea, não pode, portanto, ser confundida como uma uniformização dos adornos. Estes, em sua maioria, continuam sendo produzidos de modo diferenciado, com novas combinações de cores e formas, com novos grafismos e imagens, que são como vimos, a forma nativa de inventar novos nekrêjx. Assim, é justamente por um maior acesso à possibilidade de diferenciação que as pessoas tornaram-se, por assim dizer, mais iguais, o que ressoa, de modo interessante, em uma frase significativa de Manuela Carneiro da Cunha, quando ela diz que a diferença se manifesta no esforço para permanecer igual (2009). A comunização dos nekrêjx, se quer dizer, por um lado, que os adornos perderam um único dono, e que outras pessoas podem usá-los, não quer dizer, por outro lado, que todas as pessoas utilizem ou produzam o mesmo adorno: o que continua sendo feito são versões multiplicadas, mas sempre de algum modo distintas umas das outras. Neste sentido, cada possuidor continua sendo o único dono de seu adorno, porque os detalhes diferenciantes se multiplicam: agora, se todos podem usar o ngàp õkredjê, é preciso então diferenciá-lo, o que se faz pela combinação de cores distintas e,


266 sobretudo, pela produção de grafismos, emblemas, siglas, marcas, letras e imagens em cada ngàp õkredjê de cada pessoa. Deste modo, mesmo quando um nekrêjx é comunizado, quando perde a exclusividade de pertencer a um ou a poucos donos, ele contínua mantendo um “coeficiente de diferenciação” (Lima, 2005), que não deixa de ser um coeficiente de beleza. Isso, graças à criatividade das mulheres mebêngôkre que mantêm novas produções a cada ritual, fazendo, desfazendo e refazendo enfeites; mas graças também ao caráter versátil das contas, que permitem às mulheres transformar praticamente todos os enfeites mebêngôkre (que não são poucos) em enfeites de miçangas, substituindo suas matérias-primas, alterando seus designs e suas superfícies, multiplicando seus grafismos e imagens. ɷɷɷ Antes de passar para o último tópico deste capítulo, permitam-me sintetizar os argumentos expostos até aqui. Iniciei o capítulo expondo as diversas formas de captura das miçangas: coleta na grande árvore mítica; escambo e guerra com diferentes grupos de indígenas e não indígenas, dentre os quais destacam-se os Juruna (Yudjá) e os colonizadores, personagens do mito da árvore; compras em grandes cidades brasileiras; e um tipo peculiar de “parceria” com o Museu do Índio, que permite aos Mebêngôkre de Môjkarakô ter um acesso privilegiado a grandes quantidades de miçangas e também garantir um depósito ideal para seus enfeites já utilizados nas festas. Destas modalidades, inferi algumas consequências: primeiro, que a “parceria” com o Museu do Índio expressa um modo de reposição contínua de contas para criar novos enfeites, para serem usados em novas festas, que depois serão novamente vendidos ao museu e gerarão mais dinheiro para se adquirir novas miçangas e assim continuar fazendo novos enfeites, ad infinitum. Segundo, que as modalidades de guerra e troca devem ser compreendidas segundo a chave da predação ontológica (Gordon, 2006), isto é, enquanto formas de captura de partes agentivas do outro, propriamente objetificadas em cantos, nomes, adornos, matérias-primas, conhecimentos rituais os mais diversos. Vimos que essa predação de coisas e não de sujeitos – como o seria o modelo do canibalismo tupi – alimenta redes internas de circulações motivadas por regras específicas de transmissão que, por sua vez, potencializam a captura ou invenção de mais e mais nekrêjx. O próximo passo foi observar as possíveis transformações que a miçanga proporciona no conceito de nekrêxj e aí identifiquei dois movimentos distintos, mas inter-relacionados: um de comunização e outro de diferenciação. Trata-se, como vimos, de um processo de comunização


267 diferenciante que proporciona a diferentes pessoas o uso de enfeites anteriormente pertencentes a um único dono, possibilitando a comunização dos enfeites e, ao mesmo tempo, garantindo um coeficiente de diferenciação a seus portadores, consagrado pelo fato dos enfeites nunca serem os mesmos. Isso acontece devido às possibilidades infinitas que essa matéria-prima proporciona em termos de combinações de cores, de formas e de substituição de outras matérias-primas; mas também, ao constante exercício de captura e aprendizado feito pelas mulheres das mais diversas imagens presentes nos circuitos imagéticos em que os Mebêngôkre contemporâneos estão inseridos. O processo de comunização diferenciante perpetuado pela entrada de quantidades volumosas de contas na socialidade mebêngôkre foi explicitado na descrição etnográfica das transformações ocorridas nos enfeites, nos últimos cinquenta anos. Processo que denominei miçangalização dos artefatos. Para encerrar este capítulo cumpre evocar os diferentes contextos rituais em que os enfeites de miçanga são usados. Cumpre colocá-los, por assim dizer, in context. Este movimento de contextualização ritual permitirá observar dois aspectos ainda não explorados. Primeiro, as relações entre os enfeites e sua sobreposição ao corpo na composição de diferentes indumentárias rituais, formando o que denomino de look mebêngôkre, refeito a cada ritual com o intuito deliberado de impressionar, seja uma audiência, sejam os inimigos, seja uma audiência composta de inimigos. E segundo, o aspecto propriamente sacrificial do ritual mebêngôkre (Gordon, 2006), que gasta por assim dizer a beleza dos enfeites, provocando a contínua produção de novos looks, a cada novo ritual e repondo a beleza entre seus diferentes participantes.

Os enfeites em relação ou da composição do look mebêngôkre Artefatos não fazem seu trabalho cognitivo no isolamento; eles funcionam porque cooperam sinergicamente uns com os outros. Alfred Gell (1999: 163)

Após a retomada dos principais argumentos esboçados até aqui podemos retornar ao ponto onde paramos. Falávamos dos efeitos que o processo de miçangalização produziu na composição do look mebêngôkre. É demonstrando essa transformação que finalizo este capítulo, dedicando-me não mais ao processo de composição dos artefatos, e sim ao processo de sobreposição dos artefatos ao corpo, e as relações que eles estabelecem entre si e com seu suporte privilegiado. As transformações na indumentária ritual mebêngôkre podem ser visivelmente


268 compreendidas através da comparação de algumas imagens de rituais realizados em períodos distintos. Iniciemos com as transformações em um dos principais trajes mebêngôkre: o look utilizado por pessoas que estão sendo honradas em determinada cerimônia. Tomemos como exemplo uma fotografia presente no recente livro de Lea (2012: 322; figura 41), de duas moças ornamentadas durante uma festa menire bjôk, realizada em 1982, em uma aldeia Metyktire.

Figura 56: Moças durante uma festa Menire Bjôk, aldeia Metyktire, 1982. Extraído de Lea (2012: 322)

Nesta foto nota-se a presença de alguns enfeites de miçanga no corpo das mulheres: alguns colares e bandoleiras, braçadeiras e pulseiras. Nota-se também a emplumação característica


269 dessas ocasiões feita com pequenas plumas de periquito sobrepostas à pele pintada com grafismos de jenipapo e o uso, pelas duas moças, da versão cerimonial do aĩ de palha, adornado com pingentes de penas de arara. A mulher que segura o maracá está usando um colar ngàp õkredjê, que parece ser feito de placas de alumínio, ao invés das plaquinhas de itã. Ambas portam o grande diadema Akrotiri, produzido com retrizes de arara azul e vermelha. Ambas também estão nuas, mas em uma delas, a emplumação produz um padrão visual ao descer dos ombros para o peito em sentido diagonal, deixando os seios expostos e formando um modelo semelhante a um macacão que, se avança até as pernas, mantém nu o púbis. Na outra moça a emplumação é mais uniforme, cobrindo o ombro e os seios, e tampando praticamente toda região pubiana. Quando comparamos essa foto de 1982 com uma outra, tirada quase trinta anos depois, em 2010, durante a mesma festa, pode-se notar sensíveis transformações no look.

Figura 57: Meninas durante uma festa Menire Bjôk, aldeia Môjkarakô, 2010.


270 A quantidade de novos enfeites de miçanga sobrepostos ao corpo é notável. Destacam-se as bandoleiras denominadas obikaniere que cortam transversalmente os corpos das duas meninas. Se na foto de 1982 elas possuem apenas quatro voltas, agora as voltas são incontáveis: formam uma grossa camada de contas que percorre o corpo em duas direções e não apenas em uma, como antes. Cada uma das meninas porta não um, mas dois volumosos obikaniere que, quando dispostos no corpo, se complementam em cores distintas, sobrepondo-se em sua base inferior ao cinto de linhas coloridas de algodão e à calcinha também colorida. Na parte superior do corpo, aos obikaniere são sobrepostos não apenas uma, mas três tipoias de miçanga. A que está por cima é a versão do aĩ cerimonial feito com miçanga branca. As que cortam o peito transversalmente são versões do kadjàt'yr vermelho, antigamente feito com linhas de algodão da mesma cor. Na menina que está à esquerda do observador, um colar ngàp õkredjê, feito de botões e não de madrepérola ou alumínio, completa o look, se sobrepondo às tipoias e aos obikaniere com um destacável pingente de miçangas, onde se pode ver exposto um grafismo colorido arrematado com incontáveis fios de miçangas. As braçadeiras padjê, também são totalmente diferentes daquela da foto de 1982. Se ali as mulheres portavam braçadeiras idênticas, o que em conjunto com as pulseiras, bandoleiras e penas concedia uma certa uniformidade azul ao look; agora as braçadeiras não apenas são distintas em cada uma das meninas, como também se destacam pelo aumento de seu tamanho, pela alteração de sua forma e, sobretudo, pela composição de imagens com as miçangas. Na menina da esquerda, estrelas amarelas podem ser visualizadas, enquanto na menina da direita, são borboletas de diferentes cores que se fazem ver. Acompanhando o movimento dos braços encontramos, nos pulsos de cada uma das meninas, dois pares distintos da versão contemporânea do wôrekà, o bracelete que antes era feito com palha trançada ou casca de árvore e agora é feito com miçangas de diversas cores, com as quais são produzidas diferentes grafismos coloridos. Destacam-se, nesses braceletes, os enormes pingentes de miçangas que mimetizam aqueles anteriormente feitos com penas. Aliás, é digno de nota a completa exclusão das penas dos pingentes que adornam os enfeites na foto de 2010. Todos eles, sem exceção, são feitos com miçangas. Os únicos elementos idênticos nos looks apresentados nas duas fotos são o krôkrôti (o grande diadema de retrizes de arara) e os enfeites de penas que caem das braçadeiras. Também na emplumação encontramos algumas diferenças. Se em ambas as fotos encontramos a emplumação com penas de periquito, naquela de 2010 ela se mostra diferente. Cobre praticamente todo o dorso das meninas, seguindo até as pernas depois de ser interrompida pelas calcinhas coloridas. Nesta foto, nota-se também uma forma de mascaramento não encontrada na foto anterior, aqui feita com linha de algodão triturada fazendo as vezes da casca


271 do ovo do pássaro azulão, utilizada antigamente. Do mesmo modo, nota-se, na foto de 2010, o uso de uma lanugem de algodão no cabelo, elemento também ausente na foto mais antiga. Por fim, destaco o uso de jarreteiras e tornozeleiras feitas de miçanga e com grafismos e faixas coloridas, substituindo aquelas feitas de linha de algodão vermelha e utilizadas pelas moças da foto antiga. Os efeitos da miçangalização dos enfeites mebêngôkre tornam-se assim visíveis a olho nu. Exemplos desse processo poderiam ser exaustivamente apresentados pela comparação de imagens contemporâneas com imagens mais antigas. Mas continuar nesse método nos levaria a uma tediosa descrição de imagens, algo que gostaria de evitar sem, contudo, deixar de apresentar apenas mais um conjunto de imagens que demonstram esse processo. Agora, tomemos como exemplo três fotografias: uma da década de 1970, apresentada por Verswijver (1983), outra da década de 1980, apresentada por Lea (2012) e ainda uma outra registrada por mim na mesma festa Menire Bjôk, realizada em 2010, na aldeia Môjkarakô. Ao invés de meninas e moças temos nestas fotografias imagens de meninos que estão recebendo nomes.


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Figuras 58, 59, 60: Três meninos paramentados em diferentes contextos rituais. Da esquerda para direita: Menino em cerimônia de nominação na aldeia Mekrãngoti, década de 1970. Extraído de Verswijver (1983: 34); Menino em cerimônia de nominação na aldeia Metyktire, década de 1980. Extraído de Lea (2012: XX); Menino em cerimônia de nominação na aldeia Môjkarakô, 2010.

Esse conjunto de fotos foi escolhido porque demonstra o processo de transformação pelo qual passaram certos artefatos, sua miçangalização, como proponho chamá-lo. Iniciemos essa comparação falando do wôrekà, o bracelete descrito há algumas páginas atrás como um dos artefatos que passaram por uma intensa transformação. Na foto tirada por Verswijver, nota-se que o menino está usando uma versão antiga do wôrekà, feito de palhas de babaçu que conformam um grafismo específico e onde são anexados grandes quantidades de coquinhos dos quais pendem longos pingentes de penas de arara. Já na foto de Lea temos uma variação do wôrekà, que parece estar a meio caminho daquele apresentado na foto de Verswijver e daquele presente na foto de 2010. Tal como a versão mais recente, o wôrekà registrado por Lea apresenta uma alteração na base do


273 bracelete: a palha de babaçu foi substituída por um tecido de miçangas azuis e amarelas que conformam um grafismo colorido. Contudo, como no enfeite presente na foto mais antiga, os coquinhos permanecem como a matéria-prima que adorna a parte inferior do objeto, de onde também pendem pingentes similares. Agora quando olhamos para a foto mais recente, temos a substituição completa dos coquinhos por contas grandes de onde pendem pingentes não mais adornados com penas de arara, mas com miçangas que mimetizam a forma das penas. Comparando as fotos dos meninos, notam-se transformações similares àquelas encontradas na comparação das fotos das moças. Destaca-se novamente o aumento da braçadeira padjê e a inserção de imagens nela; a substituição do material utilizado nas tipoias; a inserção de um pingente de miçangas com grafismo colorido que pende do angà-o õkredjê; e o uso de um volumoso obikaniere colorido. Em termos gerais, e, sobretudo, se comparado à foto tirada por Lea, o look do menino da foto de 2010 é muito mais colorido. No garoto da foto de Lea, as cores predominantes são o vermelho, o azul e o branco; enquanto que na foto de 2010, se o vermelho é a cor predominante; temos também a presença de variações de amarelo e laranja, bem como a presença do verde, do azul e do branco em diferentes enfeites. Tomadas em conjunto, as fotos de 2010 realçam não apenas uma maior diversidade de cores, mas também e sobretudo, uma lógica na composição do look já presente nas fotos mais antigas. Trata-se de uma lógica da sobreposição dos enfeites ao corpo, realçada pelo excesso que caracteriza os corpos enfeitados nas fotos recentes. Se nas fotos antigas já encontramos essa sobreposição, ela torna-se particularmente saliente nas fotos recentes, justamente pela abundância de enfeites que se apõe ao corpo. O processo de sobreposição se inicia com a pintura corporal que se sobrepõe à pele no sentido de, como vimos, proteger o corpo dos perigos dos enfeites e suas matérias-primas. Ela conforma o fundo negro de onde se destacam os enfeites coloridos. Por cima da pintura corporal, tem-se a emplumação e por cima dela inicia-se a sobreposição dos enfeites. Nas fotos recentes, o primeiro objeto a ser colado ao dorso do corpo são os pesados obikaniere, ausentes nas fotos antigas. Por cima deles, colocam-se as tipoias cruzadas an'gà tyr e por cima dela se sobrepõe a versão contemporânea do aĩ. Por fim, sobreposto a todas essas camadas de contas encontramos o angà-o kredjê, em sua versão contemporânea, cujos pingentes com grafismos coloridos estampados é destacado do fundo de enfeites de cores homogêneas anteriormente sobrepostos. Encontramos a mesma lógica de sobreposição na parte inferior do corpo, onde os longos obikaniere se sobrepõem ao cinto de linhas de algodão que por sua vez se sobrepõe à calcinha colorida no caso das moças. Nos braços, encontramos lógica semelhante quando se observa o uso de dois ou mais pares de


274 wôrekà, dispostos por cima de braceletes formados por fios de contas enrolados ao pulso. Nas pernas, por sua vez, encontramos jarreteiras e tornozeleiras sobrepostas às espessas camadas de urucu que tingem de vermelho os pés e as canelas. Mas nem todas as partes do corpo mebêngôkre devem ser cobertas por enfeites. Digamos que a variação dos diferentes looks concentra-se também nos espaços deixados descobertos. Gordon (2009), ao analisar a apreciação que alguns xikrin faziam de uma coleção de enfeites coletados por Lux Vidal, extrai alguns “critérios de apreciação” dos objetos, dentre os quais destaca: em primeiro lugar, a adequação a um determinado padrão (ou forma, própria a cada objeto), culturalmente estabelecido, bem como a adequação aos sentidos de harmonia, proporção e simetria. Os elementos que formam um determinado objeto (ou conjunto) precisam obedecer a uma disposição ideal e preconcebida, de tal modo que o resultado seja um sistema harmoniosamente composto de alinhamentos e separações, aproximações e afastamentos dos elementos uns em relação aos outros. Tanto o padrão quanto o conhecimento necessário para reproduzi-lo de maneira adequada e correta são chamadas kukràdjà. (Gordon, 2009: 09; grifo do autor).

Aqui, trata-se de estender esses critérios à composição não apenas dos artefatos, mas desse artefato primordial que é o corpo, sobretudo, quando enfeitado. De fato, na composição desses looks, e de outros que veremos à frente, existe uma intensa preocupação tanto com a adequação a uma determinada forma preexistente e estabelecida culturalmente, quanto com a adequação a alguns sentidos como a simetria, harmonia e proporção. No caso dos enfeites, nota-se claramente que sua transformação ocorre pela variação de sua forma, realizada, como vimos, pela alteração da matériaprima e pela inserção de novos elementos a essa forma, sem contudo alterá-la completamente. Com os looks ocorre o mesmo processo. É a variação dos enfeites sobre o corpo que produz diferentes looks. No caso da comparação entre looks antigos e recentes, se temos uma maior concentração de enfeites no corpo, concedendo mais cores e mais volume ao resultado final, nota-se, por outro lado, que os enfeites são dispostos nas mesmas partes do corpo, respeitando um arranjo composto, como diz Gordon, de alinhamentos e separações, aproximações e afastamentos dos elementos uns em relação aos outros. A justaposição dos enfeites ao corpo respeita esses princípios, o que se comprova pelo fato de que algumas de suas partes não devem ser preenchidas senão pela pintura corporal e pelo penugem de periquito. Quando comparamos looks recentes, como o das duas meninas que posam na festa menire bjôk realizada em 2010, a variação encontra-se expressa nas cores das miçangas utilizadas e nos diferentes grafismos e imagens que hoje estampam alguns enfeites de contas. A disposição dos enfeites, contudo, segue a mesma lógica formal. Neste ponto, podemos trazer outros looks à cena. Agora aqueles não dos nominados ou homenageados no ritual, mas de seus outros participantes. Aqui vemos também essa lógica operar, mas com o detalhe de que a maior parte dos enfeites, assim como o padrão de pintura corporal,


275 diferenciam os corpos não de pessoas, mas dos diferentes coletivos que participam da cerimônia. Já vimos exemplos dessa diferenciação na descrição das cerimônias de aniversário e de posse dos novos caciques, realizadas pelos habitantes de Môjkarakô, identificando essa e outras formas de diferenciação coletiva, como os passos de dança e as canções. Gostaria de destacar dois dos looks coletivos femininos utilizados por diferentes grupos de mulheres na festa menire bjôk. As mulheres mais velhas, consideradas mebengêt, destacavam-se com um look, cujas cores predominantes nos enfeites eram o verde e o amarelo.

Figura 61: Mulheres mebengêt descansam durante uma festa menire bjôk na aldeia Môjkarakô, 2010.

Já as mulheres mekrakamti, que possuem apenas filhos e não netos, por sua vez, vestiam um look onde predominava o vermelho e o branco.


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Figura 62: Mulheres mekrakamti descansam durante uma festa menire bjôk na aldeia Môjkarakô, 2010.

Gostaria de destacar alguns pontos a partir desse conjunto de fotos. Primeiro, o fato de que a homogeneidade dos padrões de cores expressos em determinados enfeites estabelece uma clara relação entre eles. Temos, assim, nas duas fotos, um conjunto determinado de enfeites que se relacionam entre si pela semelhança do padrão colorido, compondo o look que diferencia os grupos de mulheres umas das outras. Aqui, nota-se também os princípios de simetria e alinhamentos e afastamentos anteriormente descritos. Os enfeites são produzidos e utilizados em pares simetricamente alocados em determinadas partes do corpo, que não deixam de lembrar a noção de representação desdobrada desenvolvida por Lévi-Strauss (1999), a partir das máscaras dos índios da América do norte e da pintura facial Cadiuéu. O efeito de desdobramento é realçado pelos


277 alinhamentos e afastamentos dos enfeites, uns em relação aos outros. O interessante é que neste caso não é uma máscara, nem um grafismo que se desdobra em dois, mais o próprio corpo enfeitado. Outro ponto a se destacar é que existe sempre um detalhe nos corpos das mulheres que foge ao padrão estabelecido. Assim, pode-se ver na primeira foto que, se todas as três mulheres utilizam braçadeiras, jarreteiras, bandoleiras e pulseiras idênticas, assim como versões similares do colar angà-o õkredjê, inclusive com um mesmo padrão gráfico estampado em seu pingente; apenas uma delas usa a versão de miçangas azul-claro do obikaniere. Do mesmo modo, apenas duas mulheres portam o brinco kre kam ngàp, utilizado somente por pessoas que já foram honradas em uma cerimônia. Na segunda foto nota-se algo similar: o que diferencia minimamente o look das mulheres são as cores diferentes do obikaniere. Para encerrar esse capítulo, que já vai demasiado longo, gostaria de destacar um último ponto. Ele diz respeito ao fato desses enfeites que definem coletividades serem aqueles mais constantemente desfeitos e refeitos em novas combinações para a participação em novos rituais. Eles podem ser repetidos algumas vezes em determinada sequência de cerimônias, mas o padrão é que se transformem em outros enfeites, com outras combinações e formas para a cerimônia seguinte. Com essa constatação eu arriscaria mesmo a dizer que cada ocasião cerimonial impõe novos looks coletivos, e mesmo individuais. Essa tendência de transformação contínua dos enfeites me parece ter a ver com o que Gordon destaca como sendo o caráter mais propriamente sacrificial (do que totêmico) do ritual mebêngôkre. Se utilizando da análise da lógica sacrificial apresentada por Viveiros de Castro (2002) a respeito do ritual antropofágico tupi, Gordon propõe um exercício analítico similar para o caso dos rituais mebêngôkre. Segundo ele, o sujeito do sacrifício são aqueles que passam pelo processo de embelezamento: os nominados ou celebrados, isto é, os que resultaram belos, mereremejx. O objeto do sacrifício, aquilo que é consumido ritualmente, não é nenhum cativo ou vítima, mas só podem ser os nomes e nekrêjx que foram apropriados de não humanos (co-sujeitos do sacrifício), quer em tempos míticos, quer em tempos históricos. Ressubjetivados, nomes e nekrêjx são, então, incorporados nos indivíduos celebrados (e no corpo coletivo), passando a compor uma parte bela, ou um aspecto belo de sua própria pessoa, e da humanidade mebêngôkre em geral (2006: 326; grifos no original).

Seria interessante pensar essa proposta analítica tomando como sujeitos do sacrifício, não apenas os celebrados, mas também os celebrantes, aqueles que compõem a congregação ritual. Do mesmo modo, seria interessante tomar como objeto do sacrifício não apenas nomes e nekrêjx, mas também outros objetos, como os enfeites de uso comum, cujas cores e grafismos definem as diferentes coletividades que participam do ritual. Se assim o fizéssemos, seria possível estender e


278 mesmo generalizar o consumo sacrificial para esses objetos. Tudo se passaria como se a maquinaria ritual mebêngôkre não permitisse qualquer espécie de fixação dos enfeites coletivos em uma única combinação de cores, gastando por assim dizer sua beleza, e obrigando as mulheres mebêngôkre a uma contínua reposição para que sejam novamente mostrados no próximo ritual e para que possam continuar garantindo sua capacidade de produzir pessoas, corpos e coletividades belas. Isso porquê os sujeitos do sacrifício não seriam apenas os nominados. Não seriam somente eles que sairiam belos do ritual, mesmo que aceitemos que eles sairiam mais belos que os demais. Seria interessante pensar então que o ritual replica os seus efeitos sacrificiais nos nominados e em seus nomes e nekrêjx para todos aqueles que participam dos rituais e a todos os enfeites que estes últimos usam. Como já demonstraram outros autores, o ritual mebêngôkre é um momento de totalização do sócius, tanto em seu sentido simbólico, uma vez que traz à cena as diferentes coletividades que compõem a aldeia, simbolicamente diferenciadas (Lea, 1993); quanto em seu sentido emocional, já que o ritual cria um sentimento unificado de felicidade (Fisher, 2003). Nesse sentido mais amplo, o ritual embeleza não apenas pessoas, mas também coletividades e mesmo comunidades inteiras. Pois não parecem ser apenas os nomes e nekrêjx, os elementos incorporados ao corpo coletivo: os diferentes looks que embelezam distintamente seus participantes também são incorporados, objetificando a beleza de um ritual específico, cujas imagens, muito provavelmente, irão circular em uma ampla rede imagética nativa e não nativa. Ao circularem nessa rede, a beleza objetificada na cerimônia – que envolve não apenas os enfeites e suas variadas composições, mas também a produção de novas canções e de novos passos de dança, bem como a atuação coordenada de diferentes coletivos – é, por assim dizer, consumida pelas outras aldeias, impondo julgamentos estéticos nativos sobre ela e, ao mesmo tempo, impondo uma nova produção de corpos, de pessoas, enfeites, looks, canções e performances a serem novamente apresentados, executados e filmados para retornarem novamente a esse circuito imagético e serem novamente consumidas. Assim, quando ampliamos o aspecto sacrificial do ritual mebêngôkre torna-se possível conectar as duas formas de consumo apresentadas por Gordon: uma dada pelo ritual e a outra dada pela circulação. A primeira ocorre quando os nomes e nekrêjx, mas também os looks, as canções e passos de dança, são consumidos 'crus' – para continuar utilizando a metáfora culinária empregada pelo autor –, transformando as pessoas honradas em pessoas belas, e também objetificando a beleza e a felicidade expressas coletivamente na cerimônia, o que torna todas as pessoas belas, mesmo que umas saiam mais belas que as outras. Neste caso, é o processo de objetificação da beleza da cerimônia o responsável pelo consumo sacrificial. É ele que 'cozinha' os objetos do sacrifício.


279 A segunda forma de consumo seria o consumo em forma de imagens, o consumo desse processo de objetificação da beleza resultante da produção da cerimônia. Assim, quando as imagens de uma cerimônia “caem na rede” e passam a circular entre as aldeias, uma outra forma de consumo do ritual se estabelece: um consumo imagético que sacrifica não a beleza dos objetos do sacrifício, mas as formas próprias de objetificação dessa beleza. Digamos que se a primeira forma de consumo sacrificial é interna, pois que faz belos os membros da comunidade, a segunda forma se dá pelo consumo externo, pela circulação da beleza objetificada em imagens em um circuito inter-aldeão. Essas duas formas de consumo sacrificial incentivam a criatividade mebêngôkre, a ser acionada a cada novo ritual. Essa criatividade é, certamente, ampliada pelas possibilidades de transformação e pelas capacidades de maleabilidade e rápida reposição oferecidas pela miçanga enquanto matéria-prima especial. Seu consumo em larga escala é uma função do sacrifício ritual mebêngôkre e das formas de produção e circulação de beleza. Ele alimenta e retroalimenta, como vimos, outras formas de consumo que exigem tanto novas produções e objetificações rituais de beleza, quanto à criatividade na manutenção e no estabelecimento de novas redes de relações para se adquirir mais contas. No que tange à constituição destas redes, os Mebêngôkre de Môjkarakô bem sabem que hoje a árvore mítica das miçangas acabou virando estória para guardar em museu.


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PARTE 3 NA CIDADE

Figura 63: Família mebêngôkre vai às compras no comércio de São Félix do Xingu durante a festa do dia do índio. (Foto: Thiago Oliveira)


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Capítulo VI

A Festa do dia do índio

A cerimônia que é o tema central deste capítulo é um exemplo marcante da profícua vida ritual contemporânea dos Mebêngôkre. Não apenas por sua extrema espetacularização, mas também pela forma como as diversas aldeias mebêngôkre presentes na cerimônia se apropriam da festa, em uma disputa estética e imagética sem precedentes. No centro da cidade e para uma grande população não indígena, cada uma das aldeias participantes apresenta suas versões do variado kukràdjà mebêngôkre e mais do que isso, apresentam ali, no ginásio de São Félix do Xingu, kukràdjà(s) recém apreendidos dos kuben. Esse dinamismo cultural não é, contudo, recente, e muito menos essa forma de relação com os kuben. A própria festa do dia do índio atualiza uma história longínqua de relações entre indígenas e não indígenas que remonta à própria fundação da cidade outrora denominada São Félix da Bôca do Rio. É com esta história que inicio este capítulo.

Breve história da festa As origens do município de São Félix do Xingu, segundo contam alguns de seus antigos moradores, remontam ao ano de 1889, quando uma expedição chefiada por um tal Mestre Caratinga, vinda da recém-fundada missão da Imperatriz (atual cidade de Altamira), aportou em uma grande praia na confluência entre os rios Xingu e Fresco. Se recorro a estas origens o faço pela importância que os “temerosos” Kayapós tiveram para que a referida expedição não seguisse em frente, aportando na praia grande e formando o acampamento que em alguns anos se transformou no povoado de São Félix da Bôca do Rio. Pelo menos é o que nos conta um dos cronistas dessa história: Em 1889, uma expedição organizada com um grupo de vinte e dois nordestinos, chefiados por Manoel Ferreira dos Anjos (Mestre Caratinga), a mando de Agrário Cavalcante, um dos fundadores da Missão da Imperatriz (atual Altamira), alcançou a região do Alto Xingu e, exatamente no dia 1 de novembro de 1889, penetrou na embocadura de um pequeno rio, afluente da margem direita do Xingu e, na tarde desse mesmo dia, detiveram-se com uma grande e bonita praia, que denominaram de praia de Todos os Santos, em homenagem ao dia que a Igreja Católica festejava os bem aventurados. Desde as grandes cachoeiras, até a entrada neste rio, a expedição havia enfrentado graves perigos, os índios que habitavam as terras altas e próximas das margens do Xingu: as tribos dos Xipaias e Jurunas ocupavam as áreas ribeirinhas, enquanto os temíveis Kayapós e Assurinis


282 viviam nas terras recuadas. Ao chegarem na praia já mencionada a expedição encontrou um grande número de índios jurunas, ali aldeados, que não ofereceram resistência e sim aceitaram a paz, oferecida pelos civilizados (brancos). Eles alertaram os expedicionários para que não continuassem a viagem, pois corriam perigo se alcançassem as terras onde estavam os Kayapós. O chefe da expedição consultou seus companheiros e resolveram retroceder e mesmo já estavam desfalcados de rancho, para prosseguir em tão demorada e audaciosa aventura (Santana, 2007: 06; grifo meu).

O temor aos Kayapó, aclamado pelos Juruna aos expedicionárias, rapidamente se transformou em destemor quando o caucho e a seringa foram confirmados em abundância na região. Tal como ocorrera em Conceição do Araguaia, Marabá e Altamira, São Félix da Boca do Rio foi tomada por inúmeros grupos de seringueiros e caucheiros chefiados por patrões: termo este usado para designar aqueles que aliciavam trabalhadores (brabos) para a extração da borracha. Em pouco tempo os “barracões da borracha” se multiplicaram pelas margens do rio Fresco e do Riozinho, contando-se mais de quarenta em cerca de trinta anos (Santana, 2007). O que aconteceu neste período já foi relatado por Turner (1991) e Veswijver (1992). Turner denominou a época dos barracões da borracha como uma verdadeira “corrida armamentista” realizada pelos diversos subgrupos mebêngôkre que guerreavam entre si e atacavam os barracões em busca de armas para continuar a guerra intergrupal. Muitas histórias desse período circulam entre os moradores mais antigos da atual São Félix do Xingu. Fala-se de parentes (sobretudo, de crianças) que foram raptados pelos índios, como o caso de Vicente, um menino que foi capturado no rio Iriri e anos depois foi utilizado como “parlamentário da paz” pelos Gorotire para fazer contato com os moradores da vila de Nova Olinda, em meados da década de 1930 100. Fala-se também de histórias de massacres que os índios faziam quando tomavam um barracão ou de massacres dos destemidos moradores perpetrados contra os índios. De modo que não há dúvidas sobre a belicosidade dos Mebêngôkre enquanto vizinhos, antigos e contemporâneos, dos moradores de São Félix. Um de seus antigos moradores, escreveu em suas memórias uma passagem digna de nota a este respeito. O Xingu é habitado por diversas tribos de índios, muito embora só uma delas, a dos Kayapó, tenha constituído obstáculo para a ocupação da região. Como filho do Xingu, o historiador é testemunha viva de todas as lutas entre os brancos e os Kayapós – por sinal: uma testemunha de muita sorte, pois nunca teve qualquer membro de sua família assassinado nos costumeiros ataques dos índios (Santana, 2007: 48). 100

Sobre a história de Vicente, ver Verswijver, 1992; Turner, 1991; e Nimuendaju, 1952.


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Foi contra este sentimento de hostilidade mútua (que de certo modo ainda perdura entre os moradores de São Félix do Xingu e os Kayapó) concretizada em diversas situações de conflito, que se teve a iniciativa de realizar uma festa para os índios na cidade. Em entrevista 101, uma das moradoras da cidade apresenta o ponto de vista dos kuben sobre a história da festa: A Festa do dia do Índio foi uma forma que o Prefeito que tinha na época, seu Vildo, Raimundo Pinto de Mesquita, achou para a gente não ficar com medo dos índios, nem eles com medo da gente. Nesta época, sempre que eles vinham aqui o pessoal fechava o comércio, todo mundo fechava suas portas. Eles vinham com tudo, com arco com flecha, com borduna, às vezes até armado mesmo. Vinham pintados prontos para guerra. Aí Seu Vildo disse: 'vou fazer uma festa, faço um grande churrasco, convido eles para virem para a cidade, para ter um contato com o pessoal'. Foi assim que eles começaram a frequentar, a vir em São Félix sem brigar. Isso foi há uns 30 anos atrás, 1985, mais ou menos. Depois o seu Vildo saiu, entraram outros prefeitos e a festa parou. No ano 2000, quando entrou o Denimar Rodrigues, ele colocou essa festa no calendário municipal. Depois do Denimar, agora todo ano eles vêm para a festa.

Para os grupos mebêngôkre que circundavam a cidade, sobretudo os habitantes das aldeias Kôkraimôro, Kubenkankrenh e Gorotire, o convite para a festa significava, pode-se supor, uma forma de fazer política. Também para seu Vildo por certo. E não haveria melhor forma de fazer diplomacia, senão por meio de uma festa paga pelo prefeito. Lembremos que a política mebêngôkre, tal como realizada a partir da pacificação de índios e brancos, é uma política interétnica, cujo cerne está, como diz Turner, “na habilidade dos líderes kayapó (…) [em] obter presentes e concessões políticas da sociedade envolvente externa” (1992: 334). A festa continua sendo uma concessão política, eivada de presentes. Não por acaso, um dos prefeitos mais recentes, como conta a moradora de São Félix, a inseriu no calendário festivo da cidade. A Festa do dia do Índio, tal como a conheci, foi realizada durante a gestão de um único prefeito, no período de 2008 à 2012. A festa era produzida pela secretaria de educação da Prefeitura, cuja secretária foi a responsável por introduzir o concurso da miss kayapó como uma de suas atrações principais. Naquelas festas que presenciei (2010 e 2012), vi o prefeito e a secretária dançando com os índios na cerimônia de encerramento, bem como visitando cada uma das escolas que hospedavam as aldeias para fazer reuniões com os chefes, de modo que esse elemento político, permanece presente na organização da festa. Na verdade, ele tem sido ampliado pelo contínuo processo de espetacularização pelo qual passou a festa do dia do índio. Hoje a festa pode ser considerada um mega-evento, pois recebe na cidade aproximadamente três mil indígenas a cada edição. Toda a estrutura de transporte,

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Durante a pesquisa de campo realizei algumas entrevistas com moradores de São Félix do Xingu sobre a história da festa e da própria cidade.


284 alimentação e alojamento de cada uma das dez aldeias 102 participantes é bancada pela prefeitura. Durante os quatro dias de festa, São Félix recebe turistas vindos de longe, bem como equipes de reportagem dos principais jornais do Estado do Pará e de algumas redes nacionais de televisão, além de visitas de autoridades políticas como deputados, senadores e governadores. Todos estão ali por causa dos índios. Se esses representantes do poder público certamente lucram política e simbolicamente com a festa, os Kayapó e seus chefes sabem muito bem do poder de atração que seu kukràdjà possui para os kuben. Tanto que nas vezes em que determinados prefeitos sugeriram a realização da festa em uma aldeia, ou nas aldeias, os chefes reunidos decidiram que a festa deveria acontecer na cidade. Essa exigência demonstra a clara consciência que os Mebêngôkre tem do impacto de sua presença na cidade e dos ganhos políticos que ele produz no contexto local.

Organização, estrutura e programação da festa Como disse acima, a Festa do dia do Índio é organizada pela Secretaria de Educação de São Félix do Xingu, mas ela envolve também a participação de outras secretarias como a de Esportes e a de Cidadania e Assistência Social. A primeira é responsável por organizar as competições esportivas, enquanto a segunda se responsabiliza por tirar documentos dos índios que não os possuem, bem como por cadastrar e recadastrar famílias indígenas em programas sociais do governo, como bolsa família e bolsa escola. A organização conta ainda com o apoio da Funasa, que presta serviço de saúde aos indígenas durante a festa. Na Secretaria de Educação, a equipe formada para organizar a festa conta com a participação ininterrupta de dois professores indígenas, Bepdjá e Bôkajêre, respectivamente das aldeias Môjkarakô e Kôkraimôro. Bepdjá, com quem eu tive bastante convivência durante a pesquisa de campo, exercita nos eventos realizados na aldeia todo o conhecimento adquirido na organização da festa do dia do índio, inclusive criando versões similares da festa na aldeia. Exemplo disso são os Jogos Tradicionais da Aldeia Môjkarakô, evento que presenciei e que constitui o modo como os moradores de Môjkarakô se apropriaram da Festa do dia do índio. Este evento, cuja análise e descrição fica para uma ocasião futura, possui a mesma programação da festa com suas cerimônias de abertura oficial, premiação e encerramento, com suas competições esportivas e com o concurso da miss, no sábado à noite, como a atração principal. Bepdjá é o principal organizador deste evento, sendo também o mestre de cerimônias deste e de diversos outros rituais similares como a festa de aniversário da aldeia, a 102

São elas, Kôkraimôro, Kremaiti, Kawatire, Môjkarakô, Apêxjti, Kikretum, Ngômejxti, Gorotire, Pykararãkre e Aùkre.


285 cerimônia de posse de novos caciques, a recepção de políticos e autoridades na aldeia e a celebração do dia da independência. A participação destes dois nativos na equipe de organização na cidade facilita a resolução de uma série de mal entendidos gerados durante a organização da festa. Por outro lado, a presença dos professores indígenas na organização é uma forma dos Mebêngôkre se apropriarem da estrutura da festa para fazer exigências de toda ordem a respeito do transporte, da alimentação e da hospedagem dos participantes. Para se ter uma ideia das proporções do evento, em 2012, segundo me contou a Secretaria de Educação, foram consumidos pelos Mebêngôkre que participaram da festa: 14 bois, 500 quilos de frango, seis toneladas de arroz, 2 toneladas de farinha de mandioca, duas toneladas de macarrão, 500 quilos de feijão e centenas de caixas de bolacha e de litros de refrigerante 103. Lembro-me de presenciar um dos chefes de uma aldeia dizendo à Secretária durante uma das reuniões de organização da festa que naquele ano eles queriam guaraná e coca-cola, que eles não iriam aceitar refrigerante “espoca-bucho” e que também queriam comer carne de frango, além da bovina. Outra vez, vi os chefes reclamando das instalações em que estavam hospedados, dizendo que a Secretaria deveria contratar mais gente para trabalhar na limpeza, pois os banheiros estavam ficando sujos muito rapidamente e, para piorar, estava faltando água. Durante os quatro dias de festa, os habitantes de cada uma das dez aldeia se alojam em escolas municipais. A prefeitura utiliza os ônibus do transporte escolar para levar os índios das escolas até o ginásio no centro da cidade onde transcorre a maior parte da programação do evento, e também para o estádio municipal e para o parque de exposição onde acontecem as competições esportivas. Os ônibus também são utilizados, por solicitação explícita dos índios, para, ao fim do dia, levar as pessoas para tomar banho no rio Fresco. As refeições são feitas na escola, onde trabalha, ininterruptamente, uma equipe de cozinheiras. As famílias se dividem nas salas de aula, dormindo em redes ou em barracas de camping, muitas das quais cedidas pela prefeitura. O ginásio da escola se transforma em pátio de dança, para os diversos ensaios que antecedem as apresentações noturnas. Por toda a cidade se vê grupos de indígenas circulando por lojas e supermercados, comprando calcinhas e bermudas para se apresentar à noite ou roupas para seus filhos e parentes; comendo em restaurantes e lanchonetes; frequentando lan houses; ou simplesmente passeando pelas ruas da cidade. A programação esportiva da festa envolve equipes femininas e masculinas das aldeias na disputa de diversas modalidades como futebol de campo e de salão, vôlei, cabo de guerra, sinuca e corridas individuais e de revezamento. Os três primeiros lugares masculinos e femininos de cada 103

Segundo a secretária, só com comida foram gastos mais de 180 mil reais na edição de 2012 da festa.


286 modalidade são premiados com medalhas e troféus e a aldeia que obtiver o maior número de pontos em todas elas é decretada campeã na cerimônia de encerramento da festa, recebendo um grande troféu como prêmio. É digno de nota que esse modelo de premiação esteve em voga nas edições de 2008 à 2011. Em 2012, como pude presenciar, a forma de premiação mudou. Devido a grande competitividade estabelecida entre as aldeias nas três edições anteriores, a equipe organizadora, com o consentimento dos caciques das aldeias participantes, resolveu suspender a premiação dada à aldeia campeã, antes que houvesse qualquer conflito entre os participantes das modalidades esportivas. Assim, ao invés de um grande troféu para a aldeia campeã, foi distribuído um troféu simbólico para cada uma das aldeias. É digno de nota também que essa decisão foi tomada justamente na edição da festa em que participariam pela primeira vez delegações de duas aldeias recém-criadas, Ngômejxti e Apêxjti, cindidas respectivamente das aldeias Aùkre e Kikretum. A retirada da premiação principal, me parece, assim, uma estratégia dos organizadores da festa e também dos caciques para evitar, ou mesmo, dirimir conflitos políticos advindos das cisões. Essa decisão explicita o fato da existência de certa rivalidade durante as competições esportivas, assumindo também que ela é potencializada durante o evento. De fato, preexiste um espírito agonístico entre as aldeias participantes, sejam elas cindidas ou não. Mas ele não se manifesta somente nas competições esportivas: sua forma de manifestação primordial se concentra, acredito, naquilo que os organizadores kuben chamam de “apresentações culturais” ou “danças indígenas”, que ocupam parte importante da programação noturna da Festa, como se pode ver no folder do evento de 2010.


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Figura: 64: O folder da festa do dia do índio de 2010, com a programação do evento Os eventos que os kuben abarcam nestes nomes genéricos são entendidos pelos Mebêngôkre como ritual. A participação de cada aldeia no evento é precedida de ensaios, e da escolha do repertório de enfeites, canções e passos de dança que serão exibidos na festa para defender a beleza das aldeias umas em relação às outras. As ditas apresentações culturais correspondem, para os diferentes participantes, ao evento que nos rituais mebêngôkre é chamado de ami a pran: o dia da festa grande. Na festa do dia do índio, como em qualquer cerimônia mebêngôkre, para que o ami a pran ocorra é preciso um longo período de produção que envolve tanto a aquisição e preparação do alimento ritual (indispensável, como vimos, para a criação do estado coletivo de ânimo vivido neste dia), quanto a realização dos ensaios e a criação do repertório de canções e passos de dança, mas também dos enfeites de miçanga e dos padrões de pintura corporal. Cada um desses procedimentos rituais é realizado por cada aldeia durante as semanas que precedem a festa do dia do índio; com exceção da aquisição e preparação da comida, esta última patrocinada, como sabemos, pelos organizadores da cerimônia por meio do orçamento da prefeitura. Neste ponto encontramos relações possíveis de serem traçadas entre a festa do dia do índio e o conhecido Encontro de Altamira, realizado em 1989 por lideranças mebêngôkre (como Raoni e Paulinho Payakan) – com a ajuda de antropólogos, organizações de cunho ambiental e religioso, e celebridades internacionais como o cantor Sting – contra a polêmica construção da hidrelétrica de


288 Belo Monte. Graças à pena de um dos participantes ativos do Encontro de Altamira, o antropólogo norte americano Terence Turner, é possível acessar uma descrição etnográfica deste grande evento histórico e político feita do ponto de vista de seus organizadores. Em um texto ainda pouco conhecido fora dos círculos antropológicos, e denominado Baridjumoko em Altamira, Turner demonstra como “a armação do encontro” foi pensada por seus organizadores “dentro do esquema típico de uma cerimônia kayapó” (1990: 337). A cerimônia escolhida para armar o Encontro foi a festa do milho novo, não por acaso, como diz Turner, a única a ser realizada por todas as aldeias kayapó no mesmo período do ano (Idem). Segundo Turner, a produção do evento “como uma construção cultural nos termos da cultura tradicional kayapó”, visava criar o engajamento das diferentes aldeias participantes e de sua população unilíngue. Como afirma o autor, [as] ações coletivas, coordenadas pelas formas de ritual tradicional, foram uma forma efetiva através da qual a massa kayapó unilíngue presente em Altamira pôde manifestar sua participação e sua reação aos discursos no plenário do encontro. Constituíram-se numa solução efetiva ao problema de encontrar uma média de participação significativa pelos Kayapós unilíngues de cultura tradicional, num evento altamente contemporâneo e ideologicamente sofisticado (1990: 338).

Digamos que na festa do dia do índio a solução para o engajamento dos participantes é similar àquela encontrada pelos organizadores do Encontro de Altamira. A armação da festa do dia do índio segue, como vimos, a estrutura de referência presente nos rituais mebêngôkre. Mas aqui, não se trata de executar apenas uma festa, realizada por todas as aldeias no mesmo período. Ao contrário, durante as ditas “apresentações culturais” cada aldeia performa um repertório próprio, extraído do vasto kukràdjà mebêngôkre. Tudo se passa como se os participantes de uma determinada aldeia preparassem uma versão mais curta de um ritual de nominação a ser executado não na aldeia onde fora preparado, mas na cidade e durante a festa. Pude assistir durante as “apresentações noturnas” trechos condensados de uma série de rituais de nominação, como Bemp, Kôko, Bô kam metoro, Takàk e Kwôre-Kangô. Neste sentido, há que se reconsiderar o sujeito homenageado nestas versões dos rituais exibidos na festa. Sugiro que no contexto interétnico e de disputa inter-aldeã, as pessoas honradas na cerimônia dão lugar a coletividades. Pois essas versões rituais feitas para serem exibidas na cidade buscam afirmar não a beleza de uma pessoa, mas a de uma comunidade inteira, cujos membros executam o ritual no ginásio da cidade. Neste ponto, podem-se voltar à rivalidade existente entre as aldeias durante as denominadas “apresentações culturais”. A medida que no primeiro dia da festa as delegações das diferentes aldeias são chamadas a adentrar o Ginásio da cidade, elas estão claramente disputando por meio das versões dos rituais que executam, qual aldeia é mais bonita, mais forte e mais poderosa; o que envolve a apreciação da performance pelo público


289 mebêngôkre presente, em seus próprios termos estéticos, mas também a reação que a performance causa no público kuben que lota as arquibancadas do ginásio.

Preparações, ensaios e treinos Era com esse espírito de rivalidade que os moradores de Môjkarakô preparavam suas participações nas edições da festa do dia do índio. Pude presenciar dois contextos de preparação, nos anos de 2010 e 2012. Em 2010, os moradores, incentivados por Bepdjá (o professor indígena que participa da equipe executora da festa), decidiram fazer uma versão da cerimônia de nominação feminina Kôkô, onde entram em cena as grandes máscaras Pát (tamanduá-bandeira), Kubut (macaco aranha), e Kukôire (macaco prego), além da máscara Kôkô (peixe), que dá nome ao ritual. São meninas herdeiras de nomes com esse prefixo cerimonial, que os terão confirmados na cerimônia104. Mas os moradores de Môjkarakô sabiam que não se tratava de executar na cidade um ritual de nominação. Por isso, decidiram que somente alguns personagens desse ritual iriam fazer parte da versão da cerimônia a ser executada na cidade. Os personagens escolhidos foram os Pát. Para entendermos essa escolha temos que conhecer esse personagem e sua participação no ritual. As máscaras do tamanduá são sempre feitas em par, pois formam um casal. Geralmente, uma versão em miniatura é produzida à guisa de filhote e amarrada nas costas do tamanduá feminino. Durante cerca de duas semanas presenciei a lenta produção das grandes máscaras, feitas das talas de folhas de Buriti trançadas em uma estrutura cônica, previamente produzida para dar forma ao corpo do Tamanduá. Durante este período, diversos homens jovens, auxiliados pelos velhos, se revezavam na amarração das tiras de buriti na estrutura cônica. Quando esta ficou pronta, esses mesmos homens, agora com o auxílio dos menoronure, realizaram uma expedição à floresta para coletar e tingir de preto as tiras de uma envira usada na feitura do rabo e da crista do bicho e também na feitura de uma espécie de saiote amarrado na parte inferior da estrutura cônica. A cabeça do tamanduá é praticamente toda formada por uma grande tromba feita em cera de abelha e coberta com diversas voltas de linha de algodão vermelha, em cuja extremidade é modelada uma pequena boca de onde pendem pingentes de miçanga à guisa de língua. No que seria o pescoço do bicho é amarrado um sino que tintila aos seus passos. Após ficarem prontas, as duas máscaras foram depositadas na casa do cacique velho Moté, o homem que possui o direito de guardá-las. Somente quando faltavam três dias para a festa, elas foram retiradas de lá e levadas à casa dos homens para serem animadas durante uma performance ao nascer do sol. 104

Para descrições da cerimônia Kôko, ver Turner (1993; 1998), Lukesch (1976), Banner (1958).


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Figura 65: Os Tamanduás dançam em Môjkarakô na frente da casa dos homens.

No ritual Kôkô, os pàt desempenham uma espécie de dança do acasalamento, com movimentos simétricos em que ambos se referenciam mutuamente, concretizando uma performance com grande efeito plástico. Certamente foi por isso que essas máscaras e não outras foram escolhidas para a cerimônia. Objetivava-se mostrar ao público indígena e não indígena, como eles, os moradores de Môjkarakô, sabiam fabricar e presentificar os pàt. Mas há outras razões para essa escolha. Ao fim da cerimônia Kôko, as máscara do tamanduá são fincadas em dois grandes mastros de madeira. Duas equipes de homens se juntam para realizar a tarefa de erguer os mastros diante da casa dos homens, e gritam longamente quando o fazem, dançando em conjunto na sequência. Pois bem, foi também por essa performance final que os moradores de Môjkarakô escolheram o pàt, como personagem para estar presente na festa do dia do índio. Só fui compreender isso no último dia da festa de 2010, quando as máscaras enfim, depois de um longo mistério, apareceram publicamente. Após a entrada triunfal no ginásio da cidade, que arrancou aplausos de índios e brancos, dois homens de Môjkarakô executaram os movimentos característicos do Pàt.


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Figura 66: Os Tamanduás dançam no ginásio da cidade.

Em seguida, em um raro momento de performance coletiva de todas as aldeias, todos os homens de outras comunidades presentes naquele instante formaram os dois grupos responsáveis por levantar às máscaras fincadas nos mastros e ao fazê-lo gritaram em conjunto, criando algazarra e levando o público presente ao delírio. Ao engajarem coletivamente membros de todas as aldeias presentes, os moradores de Môjkarakô conseguiram atingir seu objetivo: agregar beleza à aldeia no âmbito da disputa interaldeã que acontece durante a festa. Lembremos que um dos aspectos do belo e da felicidade para os Mebêngôkre consiste justamente em engajar e coordenar coletivamente diferentes coletivos de pessoas que participam de um determinado ritual. Quando isso ocorre, como afirma Turner (1993: 94), estamos diante “do valor supremo kayapó de beleza, que é ao mesmo tempo social, moral e estético”. Ao fazê-lo, os moradores de Môjkarakô sustentaram o título, reconhecido por índios e kuben, de aldeia mais bonita e mais alegre daquela edição da festa 105, mesmo que tenham perdido das outras aldeias nas competições esportivas. 105

Visando o mesmo objetivo, em 2012, as mulheres de Môjkarakô criaram uma apresentação baseada na dança das Yamurikumálo, as hiper-mulheres xinguanas.


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293 Figuras 67, 68, 69: Sequência de fotos da performance final dos Tamanduás na cidade.

Esse reconhecimento veio a público quando Paulinho Payakan, convidado ilustre, que havia improvisado uma locução em português da performance final dos pàt, saudou a ideia dos moradores de Môjkarakô de terem levado as máscaras para a cidade, dizendo que aquilo ali era a verdadeira cultura kayapó, e solicitando ao público uma salva de palmas para eles.

Figura 70: Payakan exalta a apresentação dos habitantes de Môjkarakô.

No ônibus, ao retornar para a escola que os hospedava, os moradores de Môjkarakô estavam muito felizes e o demonstravam cantando e dançando dentro do coletivo. Ao chegarem na escola, todos se reuniram no pátio para dançar com o casal de tamanduás até alta madrugada.

ɷɷɷ


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O concurso da miss kayapó é o ápice dessa disputa estético-ritual inter-aldeã que ocorre durante a festa do dia do índio. É durante o concurso que a beleza assume ares de potencia máxima. Durante as competições esportivas, digamos que estão em jogo outras capacidades corporais muito valorizadas pelos guerreiros mebêngôkre, tais como força e agilidade. A disputa de cabo de guerra é um exemplo claro da concretização da força como capacidade corporal, valorizada pelos homens e pelas mulheres. As corridas, por sua vez, evidenciam a agilidade e velocidade como outra capacidade enfatizada pelos Kayapó. O futebol e o vôlei, mesclam estas duas capacidades. Tudo isso é potencializado pelo espírito de rivalidade que acomete a todas as equipes durante as competições. De modo que cada feito conseguido por uma equipe, como vencer uma partida de futebol, ou chegar em primeiro em uma determinada corrida, é comemorado coletivamente com cantos e danças ao modo kayapó de se estar feliz. Há que se mencionar aqui, mesmo que de modo breve, que esse sentimento de rivalidade é construído na aldeia, durante os período de treinos das diversas modalidades disputadas na festa. Em 2010, mesmo com meus parcos conhecimentos de educação física e de táticas futebolísticas, fui convocado a ajudar nos treinamentos físicos das equipes masculina e feminina de futebol. Os jogadores e jogadoras se empenhavam nos treinamentos de um modo que eu só havia visto na programação futebolística dos canais de televisão. Mesmo nos coletivos (partidas disputadas entre a equipe titular e a reserva) o espírito de rivalidade tomava conta dos jogadores, o que ocasionava algumas entradas duras e jogadas perigosas. Jogava-se para ganhar, tal como seria feito durante a festa do dia do índio. Não por acaso esse período de treinamentos coincide com o da preparação do repertório ritual e de seus ensaios. Em Môjkarakô, o mês anterior à festa era praticamente todo dedicado aos treinos esportivos, realizados à tarde e aos ensaios rituais, realizados à noite. De manhã, as pessoas realizavam os trabalhos mais pesados do dia a dia, como ir à roça, cozinhar, caçar ou pegar lenha; mas as mulheres sempre arrumavam algum tempo para tecer os enfeites de miçanga que seriam mostrados na festa. Ao fim do período de preparação, na véspera da viagem, foi organizado um verdadeiro ensaio geral em que cada um dos grupos de idade presentes na aldeia exibiu seu repertório de pinturas e enfeites, canções e passos de dança. Depois dessa demonstração, as máscaras do tamanduá se fizeram presentes, com sua característica dança do acasalamento. Ao fim, como de praxe, todas as pessoas, homens, mulheres e crianças, se uniram em um bloco único que cantava e dançava sincronizadamente no pátio da aldeia, percorrendo voltas sinuosas sem deixar de bater o pé com firmeza no chão para marcar o ritmo das canções.


295 Havia, no contexto da partida para a festa, uma grande expectativa sobre a quantidade e a qualidade (sobretudo a respeito do tamanho) dos barcos que viriam buscar os moradores. Esta expectativa advinha não somente da preocupação em acomodar praticamente toda a aldeia nas embarcações106, mas também de uma expectativa sobre o evento da chegada das aldeias na cidade. Isso porquê a programação da festa inicia-se, na verdade, com um evento não divulgado nos cartazes e folders como parte de sua programação oficial, evento este que é justamente o da chegada na cidade das diversas aldeias participantes da festa. A este evento dedico algumas palavras a partir de agora.

A chegada Para falar desse momento crucial deve-se começar pela quantidade de embarcações fretadas pela prefeitura para trazer as pessoas das aldeias. Em 2012, a secretaria de educação me disse que foram necessários duas balsas de grande porte, vinte e dois barcos de médio porte e vinte voadeiras, para realizar o transporte de ida e volta de todos os participantes. Só para a aldeia Môjkarakô, e para o sossego de seus moradores, foram enviados quatro barcos e três voadeiras. O evento da chegada dos índios na cidade é, sem dúvida, um dos momentos mais marcantes da festa do dia do índio. Os barcos saem de manhãzinha de várias “comunidades” (como dizem os índios) situadas à beira dos rios Xingu, Fresco e do Riozinho. Ao cair da tarde é formada uma cena ritualizada, prenhe de sentido histórico em suas múltiplas relações interétnicas, pacíficas e violentas, tantas vezes vivenciadas por índios e não índios naquele beira rio. Como numa viagem do descobrimento às avessas, desta vez os que estavam na margem eram os não índios. Os nativos eram os navegantes e vinham nas embarcações ao encontro dos kuben, que os saudavam com fogos de artifícios, fotografias digitais, carros de som e discursos de autoridades locais. Não era para menos. Os homens e mulheres de cada uma das delegações mostravam seus enfeites, e cada uma delas, portava agora em seus barcos uma bandeira branca, com o nome da aldeia escrito em vermelho. Um homem enfeitado a balançava no ar, enquanto os barcos de cada aldeia eram alinhados e em conjunto com as embarcações de todas as outras, formavam um grande arco diante do trapiche da cidade outrora denominada São Félix da Boca do Rio.

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Praticamente todas as pessoas da aldeia, ou seja, aproximadamente umas trezentas e cinquenta pessoas, entre adultos, crianças e jovens, descem anualmente para a festa. Em geral, ficam na aldeia somente a missionária, a enfermeira e alguns poucos velhos que decidem permanecer.


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Figura 71, 72: As delega莽茫o de M么jkarak么 e de Kikretum chegam na cidade. (Foto: Thiago Oliveira)


297 No momento em que o arco de embarcações se forma, os habitantes de todas as aldeias dançam e cantam uma única música formando uma unidade sonora e performática direcionada para o grande público de kubens que se amontoa nos barrancos para ver a chegada dos índios na cidade. Foguetes são disparados e o locutor no carro de som anuncia, uma a uma, as aldeias que começam a aportar no trapiche. O desembarcar de cada delegação desfaz a unidade criada anteriormente. Cada uma delas sobe o trapiche em formação ritual, cantando em uníssono, empunhando bandeiras no início e no fim da fila de dançarinos. Cada uma delas é anunciada pelos organizadores do evento. Entre eles estavam os dois professores indígenas, Bepdjá e Bôkajêre, que se revezavam com um locutor kuben na apresentação das delegações, saudadas com fogos e salvas de palmas pelas centenas de habitantes da cidade presentes na cerimônia.

Figura 73: Delegação de Môjkarakô sobe em formação de dança o trapiche de São félix do Xingu. (Foto: Thiago Oliveira)

Essa grandiosa recepção era contrastada com o discurso do cacique Akjabôro, em que ficavam evidentes tensões históricas e desconfianças mútuas nas relações interétnicas naquela região. De cima do carro de som, com microfone na mão, “capacete” de pena na cabeça e grafismos pintados na pele, Akjabôro dizia em bom português, para os Kuben que saudavam seus parentes:


298 Obrigado participantes, obrigado vocês kubens que estão aqui. É a primeira vez que eu estou participando da festa, que vai ser grande. Sempre eu estou viajando [para] fora. Eu sou daqui, eu moro aqui. Mas eu nunca tive como participar dessa festa. Pela primeira vez eu estou participando, agora nesse momento. Eu sou líder da Nação Kayapó, sou membro da Comissão Nacional de Política Indígena, representante do Pará. Sempre fui convidado para fora, mas dessa vez eu cancelei a minha viagem, meus convites, para primeiro participar desse encontro em São Félix do Xingu. É por isso que precisa respeitar o meu povo. Precisa respeitar o meu povo! Tem que receber bem o meu povo! É isso que eu estou pedindo para vocês participantes que estarão aqui conosco. E pedindo também para os meus parentes: vamos respeitar um ao outro. Porque eu estou aqui, eu sou o chefe deles todos e estou pedindo para eles para se respeitar aqui na nossa terra. Porque todo mundo sabe muito bem que nós somos índios brasileiros legítimos. Todo mundo sabe que nós somos índios brasileiros legítimos! Falam por aí que foi descobrimento do Brasil, mas os índios já existiam aqui no Brasil. Não foi descobrimento não. O Brasil foi invadido! Por isso que precisa respeitar o nosso pessoal. Eu preciso falar: os outros que chegavam de Portugal aqui, respeitavam? Negativo! Chegavam aqui e massacravam, roubavam as índias, estupravam as índias. E até hoje é por isso que o Brasil todo está com o sangue do índio. Vocês todos estão com o sangue do índio. E Deus que está dando a nossa língua diferente. Eu não posso tirar meu cabelo e colocar ele para vocês. Nós somos diferentes. Todo deputado federal e deputado estadual só quer dinheiro. Só quer aproveitar do nosso povo. Por isso que eles querem tomar a terra indígena, querem acabar com a floresta, para pegar fogo no Brasil. Se não fosse o índio, se não fosse o índio que está cuidando da Amazônia, já tinha pegado fogo aqui no Brasil. Mas são os índios mesmos que estão segurando a floresta, protegendo a floresta. E hoje em dia nós temos um ar bom, hoje nós estamos respirando novamente. Hoje nós estamos aqui vivos ainda e estamos cuidando da vida de todo o Brasil, na questão da Amazônia. Por isso tem que respeitar o meu povo! Então muito obrigado, eu vou passar a palavra para o meu sobrinho que vai apresentar os nossos parentes da aldeia Kôkraimôro. Muito obrigado.

Esse duro discurso de Akjabôro tinha o intuito de garantir a convivência pacífica entre o povo da cidade e os “seus parentes” durante os dias que viriam. Sua preocupação era, sobretudo, com o comportamento dos brancos, pois seus parentes já haviam sido devidamente aconselhados nas aldeias a ter um comportamento e uma apresentação mejx kumrenx (correta, bela) na cidade. Mas não era demais relembrar. Na aldeia Môjkarakô, durante os preparativos para a festa, vi o próprio Akjabôro fazendo discurso no “boca de ferro” (alto-falante da comunidade) sobre como eles deveriam se portar durante a festa. Segundo sua fala, estava terminantemente proibido o consumo de bebidas alcoólicas, e todos deveriam respeitar os kuben e não aceitar provocações. Este último recado era dado especialmente para os menoronure, o grupo de idade dos homens mais jovens. Não deveria também haver brigas entre parentes, pois isso denegriria a imagem deles na cidade. Era notório na fala de Akjabôro, a preocupação não apenas com o comportamento, mas também com a forma de apresentação dos Mebêngôkre na cidade, que deveria ser bela, conforme os padrões estéticos deles próprios. Pois se na cidade estavam proibidas a bebida e as confusões com os brancos, tampouco seria permitido o uso de camiseta, óculos escuros e tênis durante as


299 apresentações, itens que não iam de encontro com a imagem “tradicional” que se queria apresentar. As mulheres como de praxe deveriam dançar de calcinha, com os seios descobertos; e os homens de bermuda e com o dorso nu, todos, homens e mulheres, calçando as já incorporadas e coloridas sandálias “hawaianas”. Havia, portanto, nessa como em outras ocasiões interétnicas contemporâneas um contínuo controle dos modos de apresentação mebêngôkre, ou, em outras palavras, uma preocupação constante com aquilo que Turner, em um outro contexto, denominou de “brilhante e sutil 'administração da imagem' levada a cabo pelos Kayapó” (1992: 65). Era isso que Akjabôro fazia na aldeia falando ao boca de ferro, estabelecendo os padrões éticos e estéticos da participação dos Mebêngôkre na festa. Era isso também que ele fazia com grande maestria em cima do carro de som, no primeiro dia do evento, diante da plateia que aplaudia as delegações. Akjabôro utilizava-se em sua fala de uma imagem dos índios criada pelos próprios brancos, apropriadamente utilizada como estratégia retórica: “nós somos índios brasileiros legítimos. Por isso tem que respeitar meu povo”. Por outro lado, reatualizava para o contexto local a já desgastada narrativa do descobrimento, dando a ela as roupagens violentas que merece, formando assim uma contra imagem, negativa, dos ancestrais da plateia que o escutava. Invertia os termos da relação interétnica, os “selvagens” eram os portugueses, e eram os não índios que ouviam aquela história, aqueles que não sabiam se comportar corretamente, aos moldes kayapó. Mantinha, contudo, e de modo proposital certa ambiguidade em sua fala. O “chegar aqui”, ao qual Akjabôro se refere quando fala dos portugueses, abre a possibilidade para a atualização contextual da narrativa do descobrimento, uma vez que não se sabe ao certo se este “aqui” refere-se ao Brasil de modo geral, ou à própria região de São Félix do Xingu, em específico. De uma maneira ou de outra, esse possível deslizamento de significados visava tornar mais potente a eficácia do discurso. Principalmente, quando o “chegar aqui” vem acompanhado de episódios de violência (“[os portugueses] chegavam aqui, estupravam índias, roubavam índias e massacravam meu povo”), que atualizam as históricas relações conflituosas entre os subgrupos mebêngôkre e os kuben, justo naquela região defendida por Akjabôro como território indígena. A atualização dos massacres dos colonizadores para aquele contexto específico buscava constranger o povo da cidade, visando a transformação de seu comportamento através de uma estratégia discursiva que colocava os próprios habitantes da cidade, e seus antepassados, como os “selvagens” da relação, aqueles de que não se espera, aos olhos dos Mebêngôkre, um comportamento mejx kumrenx. Eles não deveriam agir como os colonizadores do Brasil, nem mesmo como os colonizadores da região, seus antepassados mais próximos. Ao contrário destes, eles deveriam, por sua vez, “aprender a respeitar os Mebêngôkre”.


300 De todo modo, é importante destacar o tom didático da fala de Akjabôro para o povo de São Félix. Em outra ocasião o vi fazendo discurso similar no Museu do Índio para as crianças da rede municipal de educação do Rio de Janeiro. Nos dois contextos, o objetivo era ensinar os kuben a respeitar os seus “parentes”, torná-los menos selvagens que seus ancestrais colonizadores. Esse objetivo não deixava de ser também uma forma de “pacificar os brancos”, para utilizar uma expressão em voga na etnologia contemporânea. Procedimento que, como Akjabôro aprendera com seus pajés, devia sempre ser refeito em todas as ocasiões em que compartilhavam o mesmo espaço com os kuben. Certa vez, Akjabôro me disse que era esse um dos seus papéis como “líder da nação kayapó”: Eu aprendi muito com meu tio Moipá, que era guerreiro brabo e pajé também. Ele sabia botar remédio para chamar kuben, para deixar kuben manso. Sabia também remédio de afastar, de colocar kuben para correr da nossa terra. Ele me ensinou muitas coisas. Mas depois eu tive que aprender mais, porque agora o kuben chegou de vez. Aprendi a ensinar o kuben a respeitar o meu povo, sem brigar com ele. Esse é meu trabalho hoje. Por isso que eu vivo viajando para Brasília.

Tarefa difícil essa encarada por Akjabôro. Em que pese todo o seu esforço em administrar a boa imagem dos Mebêngôkre na cidade, seus efeitos pareciam ser muito pequenos na população local. Ainda reina na região aquele sentimento que DaMatta (1976) nomeou muito bem como “evolucionismo rudimentar”, tão caro às populações regionais do Brasil Central quando se trata de classificar os índios. As imagens negativas dos índios, como “sujos” e “preguiçosos”, por exemplo, nada favorecem os Mebêngôkre. O papel de lideranças como Akjabôro é o de tentar desestabilizar essas imagens mostrando, ao contrário, como o seu povo é belo, ordenado e respeitoso, e como eles são notadamente diferentes dos kuben. Assim, não seria exagero dizer que seu trabalho é o de proporcionar, no plano local, o famoso processo de alargamento da visão ocidental, defendido por Lévi-Strauss no Pensamento Selvagem. Outros estereótipos, contudo, não são totalmente negados, mas ao contrário sempre relembrados em situações de contato interétnico. Esse é o caso de serem vistos pela população local como extremamente belicosos e hostis. O que diferencia esse estereótipo dos outros é que ele de fato encontra ressonância entre os próprios Mebêngôkre, naquilo que os etnólogos desse grupo denominaram belicosidade (Verswijver, 1992; Turner, 1991; Vidal, 1977; Gordon, 2006; Cohn, 2005); um componente da própria produção da pessoa mebêngôkre, presente como atributo desejado na constituição de pessoas e coletivos. Um atributo valorizado por eles enquanto modo de conduta adequado em ocasiões específicas como nas expedições de caça, na atividade guerreira, nos rituais, nas reuniões políticas com os kuben, mas também nas competições esportivas, nos eventos


301 culturais e nas viagens para a cidade. Como vimos, os Mebêngôkre logo passaram a tirar proveito desse estereótipo, quando sua presença na cidade se tornou mais constante. Isso nos permite dizer que os Mebêngôkre ajudaram a construir este estereótipo sem, contudo, deixar de ganhar com isso, e que atualmente ajudam a, de certo modo, mantê-lo sempre presente nas cabeças das pessoas da cidade. Akjabôro exercitava essa manipulação em seu discurso. Não apenas através das palavras duras dirigidas aos kuben, mas, sobretudo, pelo tom de sua fala, por sua performance em cima do carro de som. Para os Mebêngôkre, essa era uma característica esperada de seu chefe, o “falar duro” (kaben tyjt), como deve ser nos encontros com os kuben, afinal, estava em jogo ali a própria capacidade akrê de Akjabôro, sua bravura. Sua capacidade de colocar os kuben no centro da roda – como diz Gordon (2006: 203) sobre os Xikrin e suas reuniões com os executivos da CVRD – e constrangê-los contra “uma massa de índios pintados e paramentados”. De cima do carro de som, com microfone em punho, falando duro, Akjabôro contemplava a chegada dessa “massa de índios pintados e paramentados” que ocupariam os colégios da cidade por uma semana. Eram cerca de três mil kayapós, vindos de dez aldeias da região do sul do Pará. A quantidade de pessoas faz da festa do dia do índio um evento de massas, prenhe de sentido simbólico. Talvez, não seria exagero dizer que ali os Mebêngôkre performatizem a situação em que tomariam de assalto a cidade, como tantas vezes se noticiou pelos boatos espalhados pelos seus moradores. Mas os tempos são outros, são tempos de paz, quando a bravura deve ser aliada da “cultura”. Quando a violência da guerra propriamente dita dá lugar a uma guerra de signos, imagens, performances, discursos e estratégias políticas e visuais. Se de algum modo essas formas de relação se transformaram no decorrer da história, permanece latente um desejo de captura e, consequentemente, de controle da relação com o kuben. Uma das hipóteses que gostaria de arriscar aqui é a de que esses mecanismos de controle e captura do outro deslizaram do conflito armado propriamente dito, ou seja, da guerra e da violência como forma de se relacionar com esse outro, para modos performatizados, diria mesmo, imagéticos e estéticos, de controle da relação, onde a violência, mesmo sendo parte constitutiva tanto das imagens, quanto das performances, só pode ser levada às últimas consequências quando “a brilhante e sutil 'administração da imagem' levada a cabo pelos Kayapó” (Turner, 1992: 65) é insuficiente para manter o controle da relação. Como afirma Guerreiro Júnior, para o caso do Alto Xingu, seria o caso de levar a sério as afirmações nativas de que os rituais, contemporaneamente, “estão no lugar da guerra” (Guerreiro Júnior, 2008:45). Como afirma o autor, é preciso tomar essa afirmação não “como uma oposição (o


302 ritual como negação da guerra)”, e sim, em um sentido “mais literal do pensamento indígena: diz-se que o ritual está no lugar da guerra porque talvez seja algo equivalente a ela”. “Semelhante consideração”, continua o autor, “permitiria tomar a hostilidade inerente ao ritual (...) como parte constitutiva de sua eficácia, e não como mera 'encenação'” (Guerreiro Júnior, 2009: 12). Também no plano intra-étnico sustento que os rituais, com toda a sua carga performática e estética e com suas imagens circulando em um verdadeiro circuito inter-aldeão de trocas imagéticas, ocupa o lugar da “guerra dos antigos”, dando novo sentido às relações entre os subgrupos mebêngôkre, que agora disputam, em certas ocasiões, o controle de seus kubens. Neste plano, é preciso lembrar das fissões intergrupais e da concomitante deflagração de guerra entre grupos que outrora habitavam uma mesma aldeia, algo que acredito ter sido fundamental para o processo de expansão dos grupos mebêngôkre. É preciso investir, então, na diferenciação característica dos processos de cisão. Se “no tempo dos antigos” esse processo redundava necessariamente em guerra, agora ele parece ser feito por outros meios, performáticos, imagéticos, estéticos. Não que o caráter agonístico não deixe de ser prevalecente nos atuais processos de fissão inter-grupal. O que ocorre, acredito, é que o lado estético da guerra mebêngôkre, seu caráter eminentemente expressivo, ocupou o lugar da violência entre os subgrupos. Ao invés do enfrentamento bélico como recurso para aquisição de glória e para demonstração de beligerância e bravura (Verswijver, 1992; Gordon, 2006), os modernos Mebêngôkre se enfrentam em eventos culturais, competições esportivas, circuitos imagéticos e concursos de beleza. A guerra agora é sobretudo estética e nunca antes os Mebêngôkre puderam executar tão bem o primoroso aforismo de Clastres (1995: 172), quando diz que entre os ameríndios “não se vai fazer a guerra, se vai representá-la”. É através da criteriosa participação nesses eventos contemporâneos que os Mebêngôkre capturam os kuben, demonstrando a sua capacidade de articular lógicas culturais distintas (Madi, 2011), criar zonas de “mútua inteligibilidade” (Gow, 1992, Losonczy, *) e desencadear processos de “partilha e apropriação em perspectivas multidirecionais” (Gonçalves, 2010: 87). Aqui, tal como para os Xinguanos descritos por Guerreiro Júnior (2012: 399), se tem claro conhecimento do poder de atração que a estética ritual indígena produz sobre os brancos. “Mostrar a cultura”, como diz o autor, é uma forma de atrair intencionalmente os brancos. Aqui, como lá não há uma separação entre o ritual e aqueles que supostamente apenas o assistem, pois estes estão subordinados à sua lógica e postos a serviço das máquinas de produção indígenas: produção de beleza e alegria, produção de grandes chefes e coletivos. Tendo isso em conta, vê-se que não se trata simplesmente de produzir 'festas bonitas para o branco ver', isto é, produzir uma objetivação (estética) da socialidade indígena sem efeitos sobre os índios ou os brancos. Não seria possível imaginar semelhante movimento no mundo ameríndio, nem em lugar algum. Aqui, agora, como em outros lugares e tempos (Gell, 1998), toda objetificação é, ao mesmo tempo, índice e causa de relações entre sujeitos (Barcelos Neto, 2008, p. 34; Lagrou, 2007): toda objetificação exibe, de


303 alguma maneira, as relações que a produziram, enquanto cria ou afeta outras relações (pois só se objetifica algo a fim de exibi-lo ou oferecê-lo para alguém que se deseja afetar) (Guerreiro Júnior, 2012: 413).

Talvez sejam, de fato, os grupos Xinguanos e os Mebêngôkre, os exemplos mais conhecidos dessa forma de captura contemporânea dos brancos e de seus recursos, para a produção de rituais. Talvez, essas formas de apropriação sejam uma resposta nativa ao custo que se tem por ser “metáfora de si mesmo” (Viveiros de Castro, 1979). Talvez, seja um uso consciente do paradoxo, da “faca de dois gumes” que governa os regimes de objetificação da “cultura” (Carneiro da Cunha, 2009: 312). Para os Mebêngôkre, como para os Xinguanos, demonstrar performaticamente a cultura parece não ser uma obrigação, mas uma transformação cara a isso que alguns autores começam a chamar de “economia cosmolizada”107 (Arisi, 2011; Calávia & Arisi, 2013) e não apenas globalizada. Afinal, para os Mebêngôkre ou para os Xinguanos, ser “metáfora de si mesmo”, demonstrar obrigatoriamente a sua “cultura”, é algo que encanta os brancos, e mais do que isso, que os fazem participantes e patrocinadores de grandes festas, que os colocam a serviço dessa máquina de produção de diferentes pessoas e coletividades que é o ritual. Com a ressalva de que para os Mebêngôkre, à diferença dos Xinguanos, essa forma de captura operada pelo ritual envolve não somente a performatização da “cultura” mebêngôkre, mas também da “cultura” dos brancos, suas modas e ritmos de sucesso, suas danças e festas. Com isso, voltamos ao contexto da Festa do dia do Índio.

A festa em uma noite A organização espacial do local onde transcorre a maior parte da programação da festa do dia do índio lembra as formas de organização do espaço de uma aldeia mebêngôkre. Há de se notar nela algo da espacialização jê, tão comentada nos anais da etnologia ameríndia. O ginásio, com sua quadra cercada com grades e suas arquibancadas de ambos os lados, não forma todo o espaço ritual. Mesmo que a quadra seja considerada o centro do espetáculo e as arquibancadas, a sua periferia, o espaço da cerimônia, como há de convir neste caso, acessa o exterior. Como que para estender o 107

Arisi (2011) propõe esta categoria para analisar as diversas transações políticas, econômicas e simbólicas que os Matis, povo Pano que habita as florestas do Estado do Acre, estabelecem com animais, espíritos e gringos (estrangeiros de todo tipo (turistas, antropólogos, cinegrafistas de redes de televisão internacionais) que os visitam periodicamente). A proposição deste conceito visa, segundo a autora, não separar ou dividir as diversas relações conduzidas pelos Matis com diferentes seres do cosmos em termos de relações tradicionais (por exemplo com os animais) e não tradicionais (por exemplo, com os gringos). Ao invés disso, a autora propõe tratá-las de modo interrelacional, como parte de complexos sistemas de trocas e transações diversas.


304 perímetro de cada uma das arquibancadas, são montadas tendas brancas com o nome de cada uma das aldeias participantes. Essas tendas são dispostas alinhadamente formando retas que conformam uma figura semelhante à metade de um retângulo, cuja outra metade é composta pela estrutura do ginásio. Ao centro deste meio retângulo, forma-se uma enorme praça de dança, com as diversas delegações das aldeias se apresentando, muitas vezes conjuntamente.

Figura 74: Mulheres de Môjkarakô dançam diante da tenda da aldeia durante a festa do dia do índio em São Félix do Xingu. (Foto: Thiago Oliveira).

Neste momento, elas estão se preparando para adentrar ao palco principal, no centro do ginásio cujas arquibancadas estão lotadas de pessoas. A cada noite de festa, cada delegação é chamada a se apresentar ali e a sentar no chão, em volta das grades, depois de passar pelo enorme portão que agora os separa do restante do público. O grosso da população que fica do lado de fora e que lota as arquibancadas e as beiras dos alambrados é composta por kubens. Esta disposição forma uma interessante estrutura em camadas, onde os brancos ocupam a borda mais exterior em relação aos Mebêngôkre que estão em volta da quadra, em cujo centro se desenvolvem as performances.


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Figura 75: Público indígena e não indígena é separado pela grade do ginásio onde ocorre a festa. (Foto: Thiago Oliveira)

Separados pelas grades, kubens e Mebêngôkre se misturam no espaço ao lado do ginásio, onde está montada uma praça de alimentação e um parque para as crianças. Nas tendas, onde as delegações se acomodam, uma das principais relações que se estabelecem entre índios e brancos são as vendas de pintura corporal, atividade econômica na qual as mulheres mebêngôkre têm se especializado cada vez mais, através de uma verdadeira pesquisa sobre os gostos dos fregueses. As mulheres oferecem “cardápios” de escolham suas ká karon (tatuagens).

padrões geométricos e figurativos para que os fregueses


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Figuras 76, 77, 78: Propaganda para venda de pinturas corporais e tatuagens; “Cardápio de pintura”; Um kuben escolhe sua pintura corporal. (Fotos: Thiago Oliveira)


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O gosto da freguesia se vê pelas imagens. Sem abrir mão de seu pincel característico, as mulheres pintam as mais diversas figuras, cujo preço varia de acordo com a complexidade do desenho. Um rapaz inovou na técnica de pintar os kuben produzindo carimbos feitos com a casca do tronco da cajazeira, onde ele esculpia as imagens que, segundo ele, “os kuben gostam mais”. Com esse carimbo, o tempo gasto na pintura era muito menor, o que aumentava o lucro do rapaz. O empenho das mulheres nesse comércio era tamanho que presenciei uma discussão entre duas mulheres de Môjkarakô, onde uma acusava a outra de não querer dançar para “ficar só pintando kuben”. Nas tendas também vende-se enfeites, muitos deles produzidos para a ocasião, buscando novamente agradar o gosto e o bolso do freguês. São colares e pulseiras de miçanga, estas últimas com variados temas imagéticos. As mais vendidas eram as que possuíam escudos de times de futebol.

Figura 79: Enfeites de miçanga vendidos durante a festa. (Foto: Thiago Oliveira)


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Esses objetos eram bem mais baratos do que aqueles chamados “originais” pelos próprios Mebêngôkre, como diademas de penas, bordunas, arcos e flechas e os enfeites usados na própria festa. Ao ajudar algumas pessoas de Môjkarakô a vender enfeites na tenda da aldeia, os ouvi comentando sobre o mal hábito dos kuben de pechinchar, algo deplorável para eles. Não foram raras as ocasiões em que os vi desistindo da venda de um objeto “original”, porque o possível comprador começava a pechinchar. De qualquer modo, vende-se muito bem nessas ocasiões e os Mebêngôkre sabem disso, tanto que preparam seu estoque de mercadorias a serem expostas nas tendas. Outro modo de relação estabelecido por brancos e índios neste espaço da festa são as solicitações para se tirar fotos. Não há venda de fotos nestas ocasiões. Os Mebêngôkre simplesmente aceitam ou negam os pedidos dos kuben para serem fotografados, geralmente em conjunto com o solicitante. Aliás, as máquinas fotográficas e filmadoras abundam em todos os ambientes da festa. Dentro do ginásio, diversos fotógrafos e cinegrafistas, inclusive indígenas, correm atrás do melhor quadro e da melhor cena. No interior da quadra, na extremidade oposta ao portão vigiado por seguranças fardados, os organizadores da festa montam uma espécie de tribuna de honras, formada por fileiras de cadeiras de plástico e por painéis coloridos, à guisa de enfeites decorativos. Acima desses enfeites decorativos está pendurada uma grande faixa com os dizeres Amnesiar a bômbax México, algo que poderia ser traduzido como “Sejam bem vindos”. Na tribuna de honras se sentam, na primeira fileira, todos os principais chefes de cada aldeia, chamados um a um, para discursar. É ali que também se sentam as autoridades convidadas para o evento, como o prefeito da cidade e a secretária de educação e também o governador do estado do Pará, deputados e representantes de organizações como a Funai e a Funasa. Essas autoridades são anunciadas pelo locutor da festa, que divide seu trabalho com Bepdjá e Bôkajêre, os professores indígenas participantes da equipe de execução. A relação entre as falas do locutor kuben e dos locutores indígenas não são necessariamente de tradução. Muito discursos dos líderes kayapó não são traduzidos, o mesmo ocorrendo com os discursos das autoridades locais. Tem se a impressão que estão claramente apresentando o evento para públicos distintos.


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Figura 80: Os locutores.

A programação noturna continua. Depois das apresentações de cada aldeia e dos discursos das autoridades locais e indígenas, o locutor convida a todos para cantar o Hino Nacional em Mebêngôkre. Mokuká se apresenta para executar sua já conhecida performance. Acompanham-no um casal de jovens. O som do hino começa a sair pelo alto-falante, depois dos primeiros acordes Mokuká começa a cantar gesticulando os braços, como se estivesse regendo uma orquestra. Todo o público está de pé. Brancos e índios levam a mão ao peito, os primeiros sem entender as palavras do hino. Seguindo a programação, inicia-se uma série de apresentações que a equipe organizadora havia preparado. Primeiro, uma dançarina de dança do ventre toma a quadra. Depois, meninas de uma escola local formam um grupo que apresenta coreografias de passos de funk, como nas batalhas do passinho que hoje são a febre da juventude das favelas e periferias cariocas. Para surpresa de todos, depois da apresentação das meninas, o locutor indígena apresenta, ao microfone e em língua mebêngôkre, um jovem dançarino indígena. Vestido como um garoto kuben, de calça jeans, camisa colorida e um par de all-star nos pés, o jovem leva o público ao delírio com sua coreografia funk.


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Figura 81: Rapaz Mebengôkre dança o “passinho” no ginásio da cidade.

O sucesso foi tanto que ao término da música, o locutor, concordando com os gritos de “mais um” vindos da arquibancada, solicitou ao Dj que tocasse outro funk para o rapaz dançar de


311 novo. Ao fim dessa apresentação o rapaz saiu ovacionado do ginásio. E o locutor indígena, em um raro momento em que falou em português ao microfone, disse: “Nós Mebêngôkre também sabemos dançar funk. Não é só kuben não. Mas vocês, kubens, não sabem dançar a nossa dança. Viva o povo mebêngôkre!”. O primeiro dia de festa chegava ao fim. No sábado a noite, as candidatas à miss entrariam em cena.


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Capítulo VII

A Miss Kayapó

Para iniciar108 esse capítulo deixe-me justificar o uso do termo look, amplamente utilizado anteriormente, pois ele continuará sendo empregado na descrição e análise dos concursos da miss kayapó realizadas a seguir. Sem sombra de dúvidas tal termo é empregado pela falta de uma palavra melhor em português109, ou mesmo na língua mebêngôkre, para expressar o fenômeno da composição das diferentes formas de enfeitar o corpo em também diferentes ocasiões. Expressões como “indumentária ritual”, “apresentação visual”, “forma de apresentação”, poderiam substituir o termo look. O problema que encontrei nestes termos foi o de serem demasiados gerais e não expressarem com clareza a qualidade relacional dos enfeites, tanto entre si quanto em relação ao corpo que está sendo enfeitado. Minha escolha por este termo visa, portanto, enfatizar não apenas as relações dos enfeites entre si, mas também entre eles e os outros elementos que compõem diferentes looks, como as contemporâneas calcinhas e bermudas coloridas, os padrões de pintura corporal e os cortes de cabelo. Um outro termo que poderia expressar esse fenômeno é o termo moda. Ele tem a 108

109

Os dados etnográficos apresentados neste capítulo advêm de uma sequência de concursos da Miss Kayapó ocorridos nos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013, como parte da programação da Festa do dia do Índio. Presenciei somente o concurso de 2010. Aquele realizado no ano de 2011, foi fotografado e gravado em vídeo pelos cinegrafistas kayapó, assim como aquele realizado em 2013. Quando retornei ao campo, em abril de 2012, com o objetivo principal de acompanhar o concurso, ele não ocorreu. Segundo um boato noticiado via rádio pelas diversas aldeias kayapó, alguns kuben de São Félix do Xingu haviam postado fotos e vídeos do concurso em sites pornográficos. Assim, durante a reunião que antecede a Festa do dia do Índio, e que conta com a presença dos caciques e lideranças das diversas aldeias do sul do Pará que participam da festa, eles decidiram, como medida de retaliação a estes atos, cancelar o concurso, contrariando a equipe organizadora do evento que o havia programado como atração principal da Festa. Como o cancelamento do evento gerou alguma repercussão, considero o concurso de 2012, mesmo que ele não tenha ocorrido. Além dos dados obtidos nessa sequência de concursos na cidade, apresento também dados etnográficos coletados na aldeia Môjkarakô, tanto sobre a preparação de uma das candidatas que iria concorrer como representante da aldeia na cidade, durante a festa em 2010, quanto sobre o que denominei, as “prévias do concurso”: momentos em que garotas de uma determinada aldeia, disputam internamente o direito de representar essa aldeia no concurso que se realizará na cidade. A melhor palavra que encontrei na língua portuguesa para substituir o termo look advêm das gírias faladas por jovens das periferias das grandes cidades brasileiras, sobretudo, aqueles jovens identificados com as culturas do hip hop e do funk. Trata-se do termo “visual”, ou “visu”, utilizados por esses jovens para destacar a composição de uma determinada indumentária utilizada em ocasiões específicas, e que definem o estilo hip-hop ou funk de se vestir. Contudo, considerando o amplo campo semântico abarcado pelo termo “visual” na antropologia e no campo das ciências humanas como um todo, preferi não utilizá-lo aqui.


313 peculiaridade de ser do mesmo campo semântico da categoria look, sobretudo, no contexto de atuação dos estilistas de onde os dois termos foram extraídos. Mas lá como aqui, moda parece envolver um fenômeno mais amplo, um sistema, como o denominou Barthes (XXXX); enquanto look, parece ser, nesse contexto, a forma de apresentação corporal e contextual dos elementos que formam uma determinada moda, ou que compõem um determinado estilo. Esta última palavra, estilo, também poderia ser um substituto para look, sobretudo se levássemos em conta a formulação que Gell (1999) propõe para este conceito. Mas aqui teríamos outros problemas. A conceituação de Gell para estilo, embora seja uma forma renovada de tratar de um conceito praticamente abolido das reflexões antropológicas, tem como ponto central a proposição de uma análise formal de um conjunto de artefatos, algo que não me propus a fazer aqui, pois estou preocupado não apenas com os enfeites e suas relações, mas também com a composição de diferentes formas de apresentação visual, de diferentes looks, e sua relação estreita com a produção do corpo em contextos rituais. Mesmo assim, algumas das colocações de Gell podem ser úteis para o empreendimento que se segue. Destaco, em primeiro lugar, a ideia de Gell (1999: 153) de pensar os artefatos como parte de uma “coletividade”. Em suas palavras, artefatos nunca são apenas entidades singulares; eles são membros de categorias de artefatos e sua significância é crucialmente afetada pelas relações que existem entre eles, como indivíduos, e outros membros da mesma categoria de artefatos e as relações que existem entre esta categoria e outras categorias de artefatos dentro de um todo estilístico (…). Artefatos, em outras palavras, associam-se em famílias, linhagens, tribos, totalidades populacionais, tal como pessoas (1999: 153).

Assim, e ainda segundo Gell, a eficácia dos artefatos, sua capacidade de agir cognitivamente sobre as pessoas, seu encantamento, reside no fato deles “trabalharem” em conjunto, ou, como colocado na epígrafe da última seção do capítulo sobre as miçangas, de funcionarem porque cooperam sinergicamente uns com os outros. Este é outro ponto do trabalho de Gell que gostaria de registrar. Isso porquê a composição de tais looks coloca em relação uma série de enfeites com seu suporte que é o corpo em um determinado contexto, visando não a contemplação, mas, sobretudo, a produção de um efeito. Assim, me valendo de outro conceito de Gell, poderia dizer que a produção dos looks mebêngôkre são, tal como as proas das canoas trobriandesas descritas pelo autor, parte de uma tecnologia do encantamento (Gell, 2005) produzida menos em função de uma contemplação estética, como no caso de boa parte da arte tradicionalmente denominada ocidental, e mais como função de sua ação sobre os espectadores. A tecnologia do encantamento se consolida, segundo nos informa Gell, em uma compreensão da arte enquanto um sistema técnico e não simplesmente


314 estético, no sentido geralmente atribuído a essa palavra no ocidente. A partir dessa constatação o autor pode afirmar que “a tecnologia do encantamento está fundada no encantamento da tecnologia” (Gell, 2005: 45). Esta última, por sua vez, dizendo respeito ao “poder que os processos técnicos têm de lançar uma fascinação sobre nós” (Idem). Comentando este texto de Gell, Lagrou resume o argumento do autor: [Gell] propõe uma aproximação entre magia e arte, vendo em ambos os fenômenos uma manifestação do 'encantamento da tecnologia'. Nós estaríamos inclinados a negar este aspecto de ofuscamento tecnológico presente na eficácia de certos objetos decorados, como a proa da canoa usada em expedições de kula pelos Trobriandeses, porque nós estaríamos inclinados a diminuir a importância da tecnologia na nossa cultura, apesar da nossa grande dependência dela. A técnica seria considerada um assunto chato e mecânico, diametralmente oposta à verdadeira criatividade e aos valores autênticos que a arte supostamente representaria. Esta visão seria um subproduto do estatuto quase-religioso que a arte detém, como que substituindo a religião numa sociedade laicizada pós-iluminista. Assim, Gell se afasta do critério da fruição estética para chamar a atenção para a eficácia ritual de uma proa superdecorada: a decoração não se quer bonita, mas poderosa, visa uma eficácia, uma agência, visa produzir resultados práticos em vez de contemplação. A maestria decorativa cativa e terrifica os que olham, que param e pensam sobre os poderes mágicos de quem produziu e possui tal canoa. Ou seja, a arte possui uma função nas relações estabelecidas entre agentes sociais (Lagrou 2003: 96, grifo meu).

Para os rendimentos do presente trabalho seria interessante pensar a própria produção dos looks como uma tecnologia do encantamento fundada no encantamento das tecnologias de produção e decoração do corpo. Sabe-se, já há muito tempo, pelo menos desde os trabalhos de Lévi-Strauss sobre pintura corporal e os grafismos Kaduveo, que o que se pode considerar arte entre os ameríndios está estritamente relacionado à produção do corpo e, por extensão, à construção da pessoa. Como afirma Barcelos Neto, “quanto mais comparamos esses processos no panorama amazônico, mais nos damos conta de como eles se constroem a partir de categorias visuais e sonoras, revelando que as artes, muito mais do que produtos, são meios de administrar as relações entre humanos e não-humanos (2005:17)”. O capítulo três sobre a pintura corporal e sua função, ao mesmo tempo terapêutica e decorativa, demonstra claramente essa concepção de arte como meio de administração dessas relações, complexificadas com a introdução de grandes quantidades de miçangas que passam a também produzir este corpo. Não obstante, se no caso das pinturas corporais os outros não humanos mediados pela aplicação de diferentes pinturas e tinturas são, sobretudo, as almas e os espíritos desencarnados dos mortos, no caso das miçangas, os outros a serem mediados pela arte de produção dos enfeites e de sua disposição nos corpos são, sobretudo, os kuben, sejam eles, indígenas ou não indígenas. O encantamento da tecnologia, neste caso, é mobilizado pelas técnicas de embelezamento do corpo, de produção do look, como tenho denominado esse processo, com a intenção de serem mostrados (ameirin) em contextos de interação com esses outros, sobretudo, em


315 contextos rituais. Gell já afirmava serem justamente os rituais, “especialmente, o ritual político” (2005: 54), os contextos privilegiados de execução da tecnologia do encantamento em sociedades não ocidentais. Desse aspecto, advém, inclusive uma das críticas ao trabalho de Gell. Segundo Lagrou (2003: 96), o problema dessas afirmações de Gell, é que ele fica ainda muito preso a uma ideia que só identifica arte nos fenômenos extraordinários, mágicos, que fogem à compreensão humana e que demonstram um domínio técnico tão excepcional que parecem não serem feitos por seres humanos. Isto já não supõe uma visão nada universalizável do campo abrangido pelos objetos de arte? Lembra a clássica separação entre objetos cotidianos e os extraordinários, necessariamente extra-cotidianos. E os povos que não valorizam tal estética do excesso, apreciando, pelo contrário, uma estética minimalista?

De fato, neste texto Gell valoriza, talvez de modo excessivo, o caráter mágico tanto da tecnologia, quanto dos produtos dela resultantes, algo que dificilmente seria universalizável. Por outro lado, para um grupo indígena como os Mebêngôkre que valorizam justamente uma estética do excesso e não uma estética minimalista, a teoria de Gell da tecnologia do encantamento parece se encaixar como uma luva, desde que entendamos o que ele denomina mágico ou magia, como efeitos de um domínio excepcional das técnicas de produção do look, ou seja, das formas de apresentação em contextos rituais. Aqui, se não estamos falando de canoas, mas de corpos, o efeito de suas decorações parece ser similar: visam não apenas serem bonitas, mas também e, sobretudo, cativar e terrificar aqueles que os veem. Visam, não custa lembrar, produzir efeitos, ao invés de contemplação. Aqui, é preciso apresentar três características dos rituais mebêngôkre que quando relacionadas permitem chegar ao ponto de toda essa discussão. Primeiro, destaco, como o fazem outro autores (Oliveira, 2003; Fisher, 2003), que no ritual estão presentes tanto aqueles que o perfomatizam, quanto aqueles que observam as ações dos primeiros. Os rituais mebêngôkre contam sempre com uma audiência, geralmente composta por pessoas da comunidade onde ele está sendo realizado, por pessoas convidadas de outras aldeias e, cada vez mais, por não indígenas, ou seja, por kuben110. Isso, quando não é o caso, como já vimos, dos rituais acontecerem nas cidades ou em outros lugares onde o grosso da audiência é formada por kuben. Essa audiência, e aí entramos no segundo ponto de destaque, visualiza durante o ritual processos transformacionais, metamórficos, em que os participantes desempenham o jeito e ostentam as partes capturadas de outros seres, sejam eles seres animais, mitológicos, ou mesmo, kuben. Gordon tem destacado o aspecto propriamente transformacional do ritual mebêngôkre, no sentido de que conecta seus participantes ao mundo 110

Como vimos, essa audiência passou a ser ampliada pela circulação das imagens rituais gravadas em DVDs que alimenta uma disputa inter-aldeã (cf. Cap. 2).


316 cósmico dos seres não humanos, dos quais extraíram, no tempo mítico ou histórico, os nomes que são confirmados nos rituais e os nekrêjx que nele são exibidos. Como afirma o autor, nestes contextos, os celebrados (e também os celebrantes, que não estão ali recebendo nomes, mas se adornam, desempenham certas funções, papéis e se transformam de diversos modos) tornam-se aqueles de quem capturaram nomes e nekrêjx. Tornam-se aves e onças, tonam-se peixes, tatus, macacos, mas tornam-se igualmente kuben, de quem se apropriaram de cantos (que entoam em alguns ritos), de artefatos e adornos (que portam e com os quais recobrem o corpo durante as cerimônias) (2006: 323).

Cabe aqui perguntar a respeito do efeito dessas transformações sobre a audiência: não seria ela, a audiência, o elemento que falta para fechar o ciclo das metamorfoses expostas na passagem de Gordon? Já sabemos dos efeitos do ritual sobre aqueles que o performam: ele visa a transformação dos homenageados, e por consequência daqueles que produziram o ritual e que agora o performam, em pessoas belas, merérémejx, cujos nomes e nekrêjx e toda a parafernália ritual estão sendo confirmados e sacrificados, justamente por estarem sendo reconectados a seus donos originais (Gordon, 2006). Mas qual seria o efeito desse encadeamento de transformações sobre aqueles que assistem as cerimônias? Haveria intencionalidades na produção controlada das transformações rituais, no sentido de afetar não somente aqueles que estão se transformando, mas também aqueles que assistem a essas transformações? Enfim, qual seria o encantamento produzido por esse momento de ressubjetivação ritual, onde todo um conjunto de técnicas corporais é mobilizado para produzir metamorfoses? Essas questões se complexificam quando inserimos mais um elemento importante do ritual mebêngôkre. Assim, além da presença de um público no ritual e também dos processos transformacionais que ele produz em seus participantes, destaco o elemento mimético que caracteriza essas transformações. A mimésis parece mesmo ser uma condição para que a transformação ocorra, pois os participantes do ritual não apenas vestem as roupas desses seres, mas ao fazê-lo, como que assumem seus corpos, imitando seu comportamento, sua forma de andar e de se comunicar. A roupa, ou look, é antes um instrumento de transformação do que uma mera fantasia (Viveiros de Castro, 2002). Como afirma Viveiros de Castro, em uma passagem já famosa na etnologia amazônica, para os ameríndios trata-se menos de o corpo ser uma roupa que de uma roupa ser um corpo (…); elas [as roupas] se aparentam aos equipamentos de mergulho ou aos trajes espaciais, não às máscaras de carnaval. O que se pretende ao vestir um escafandro é poder funcionar como um peixe, respirando sob a água, e não se esconder sob uma forma estranha (Viveiros de Castro, 2002: 393-4).

A mimésis, enquanto condição da transformação ritual, pode ser visualizada na seguinte


317 passagem de Turner: [durante os rituais] a praça central da aldeia fica repleta de seres cobertos de penas, dentes e garras de animais [mas também adornos e itens tomados a outros povos] e pinturas representando espécies de bicho, pássaros ou peixes, executando passos de dança e canções que foram aprendidas desses e de outros seres 'naturais' [mas também aprendidos de outros povos, kuben] e muitas vezes, ainda, ditas em primeira pessoa, como se o autor animal [ou kuben] dos versos, estivesse ele mesmo ali cantando (Turner, s/d: 18; inserções em colchetes de Gordon (2006: 323-4)).

As inserções colocadas por Gordon, nesta passagem visam compreender os processos transformacionais ocorridos nos rituais mebêngôkre não apenas com relação aos animais, mas também aos kuben, algo que Turner não explícita em sua argumentação, pois que está preocupado com a socialização dos poderes naturais aprendidos de outros seres animais. Talvez porque o foco de análise de Turner sejam os rituais de nominação, onde de fato, os animais são os seres mimetizados por excelência. Mas e quando a transformação ritual e o processo mimético que a caracteriza tem como objeto não os animais e, sim, os kuben, sobretudo, aqueles não indígenas? E quando essa transformação em kuben é vista justamente por um público kuben? São esses eventos rituais que começamos a descrever no capítulo anterior no âmbito da Festa do dia do Índio e que continuaremos a descrever nesse capítulo através do caso da miss kayapó. Para tal, assumo como premissa inicial que as transformações e a mimésis características dos rituais mebêngôkre são princípios constitutivos de todos eles e não apenas das cerimônias de nominação. Antes de adentrar nos contextos dos concursos da miss kayapó é preciso abordar alguns outros contextos rituais em que os kuben são mimetizados pelos Mebêngôkre.

Forró mebêngôkre Iniciemos a descrição desses contextos rituais em que os Mebêngôkre se transformam em brancos com um relato antigo dessas ocasiões. Graças à pena de Curt Nimuendaju, o famoso etnógrafo alemão, pai fundador da etnologia brasileira, é possível ter acesso a uma distinta cerimônia kayapó realizada em 1939. Tal cerimônia foi descrita por Nimuendaju em um relatório produzido para o SPI (Serviço de Proteção aos Índios), cujo objetivo principal era compreender a situação contemporânea dos Gorotire, um subgrupo mebêngôkre que naquela época havia se apresentado em grande número, na localidade de Nova Olinda, com o objetivo de fazer contato com os brasileiros que ali viviam. Sobre este acontecimento, Nimuendaju oferece as seguintes palavras: [Os Gorotire] mandaram um dos seus prisioneiros de guerra como parlamentário aos moradores de Nova Olinda, no rio Fresco, apresentando-se depois pacificamente, em número de 800, chefiados


318 pelo índio Takoére. Fizeram acampamento em frente a Nova Olinda, na boca do Riozinho, onde logo a quarta parte deles morreu da gripe. O primeiro contato com o álcool e com a prostituição começou. Todos os esforços dos civilizados visaram sistematicamente a dissolver e esfacelar o bando o quanto antes (...). Por certo que os Gorotire, no estado em que estavam, não eram vizinhos agradáveis aos moradores. Boa parte dos índios possuíam rifles mais ou menos prestáveis, tomados em ataques anteriores e procuravam aumentar, por todas as formas, o seu armamento e a munição, furtando-os onde podiam. Aliás, eles não tratavam de armar-se contra os civilizados, como estes acreditavam, e sim contra o bando dos Kubenkrãkégn, pois a guerra entre as duas facções continuava. O pouco de mantimentos que havia em e ao redor de Nova Olinda, desapareceu nas mãos dos índios, com ou sem o consentimento dos donos. Um depois do outro os moradores começaram a abandonar o lugar. Em começo de 1938 a situação ficou insustentável. A aversão recíproca chegou ao auge. Imundície e miséria, doença e fome reinavam no acampamento na boca do Riozinho. Os Gorotire abandonaram o lugar. (1940: 430).

Pode-se identificar nesta passagem alguns temas que posteriormente se tornariam conhecidos na literatura mebêngôkre: o uso de prisioneiros de guerra como “parlamentários”, por exemplo, mas também a aquisição de armas e munições e as diferentes formas de fazê-lo (Verswijver, 1992; Turner, 1991; Cohn, 2005), as guerras e ataques intergrupais como princípio sociológico que tende à diferenciação, dispersão e fracionamento dos grupos (Bamberger, 1979; Gordon, 2006; Coelho de Souza, 2002), além do roubo e do butim como forma nativa de acesso às coisas do outro (Vidal, 1977; Lea, 1986; Verswijver, 1992, Cohn, 2005, Gordon, 2006), e, por fim, uma modalidade de predação ontológica não da alma ou do corpo do outro, mas de suas capacidades técnicas e estéticas (Gordon, 2006; Cohn, 2005). Isso demonstra não apenas os desdobramentos da etnologia mebêngôkre nos últimos sessenta anos, mas também a grande habilidade etnográfica de Nimuendaju ao condensar em um único parágrafo todos estes temas que seriam posteriormente desenvolvidos na literatura. Voltando então à narrativa de Nimuendaju, encontramos boa parte do que restara dos Gorotire depois da experiência em Nova Olinda vivendo com o missionário Horace Banner em uma missão que ele havia construído na embocadura do Riozinho. Em 1939, Nimuendaju visita Banner e os Gorotire na Missão e presencia a chegada de um outro grupo mebêngôkre, de aproximadamente 150 pessoas. Nimuendaju narra a “recepção guerreira” que os Gorotire produziram para receber o grupo, e que embora houvesse deixado alguns feridos, não causou nenhuma vítima. Na noite da chegada desse grupo, e tendo os seus membros como público, os Gorotire realizaram uma cerimônia descrita por Nimuendaju (: 450) com um certo tom de ironia e a qual denominara Os Gorotire civilizados: À noite os índios da missão pareciam possessos pelo demônio da civilização. Talvez também quisessem impressionar os recém-chegados com os conhecimentos que tinham dos costumes civilizados. Os homens vestiram as roupas civilizadas que todos possuem mas que só excepcionalmente usam, e começaram a dançar em pares à maneira dos civilizados, no pátio em frente à casa dos homens. Um deles tocava uma flauta de bambu, fabricada por um morador de Nova


319 Olinda e um outro batia numa lata vazia de querosene feita tambor. Outros imitavam com fidelidade espantosa os gritos e os modos de 'cabras' bêbedos, apesar de não haver felizmente uma gota de álcool: 'Ó diabo! Ó danado! traz a cachaça!' Depois continuaram a dança ao som de um hino protestante, aliás o 'kirie' da Missa de Angelis, transformado numa marcha alegre: 'A Deus eterno, criador, A Cristo nosso redentor Aleluia! Aleluia!' E finalmente para variar: 'Cocorocococó! Cocorocococó! O galo tem saudade da galinha carijó'.

Nimuendaju dedica muito menos palavras a esta distinta cerimônia, onde os brancos são mimetizados “com fidelidade espantosa”, do que ao evento da recepção guerreira. Talvez por este último ser mais afeito aos olhos do etnólogo alemão enquanto espécime de um ritual “verdadeiramente” indígena. Nimuendaju já havia manifestado seu descontentamento com a apropriação dos Gorotire de certos objetos dos brancos, por exemplo, quando afirmava que durante a recepção guerreira a maior parte dos homens gorotire “tinha em lugar de suas coroas de penas uns bonés ridículos, de papel de diversas cores berrantes que se usavam na Inglaterra na noite de Natal e que o missionário lhes dera em troca de seus enfeites primitivos de penas” (1939: 447). O que para o etnólogo alemão era somente uns “bonés ridículos”, talvez fosse para os Gorotire a sua mais nova aquisição deste outro com o qual passaram a se relacionar. Talvez Nimuendaju nem mesmo considerasse o evento descrito acima como uma cerimônia, reduzindo-o, como afirma Calávia, a uma “dimensão marginal, profana ou profanadora do ritual legítimo” (2013: 209). Como este último autor, prefiro acreditar que “a paródia dos estrangeiros se integra a uma tradição donde sua exótica aparição já formava o núcleo dos rituais mais centrais” (Idem). Aqui, como no caso das mojigangas Yaminawa descritas por Calávia, se os motivos desses rituais “parecem pouco 'tradicionais', o empenho em coordenar um agregado caótico de seguidores em uma coreografia comum em torno de ações significativas faz dessas ocasiões, rituais tão bons como qualquer outro” (2013: 210). Ainda como Calávia, considero “que o tempo em que um ritual se torna ritual é muito mais curto do que supomos” e “que – a despeito desse arcaísmo que se supõe – há menos tempo do que se tende a supor entre a invenção e a consolidação de um ritual” (Idem). De fato, essa questão abre a possibilidade de ampliar o conceito de ritual ao abrir mão de uma definição opositiva entre rituais 'tradicionais' ou 'não-tradicionais', 'autênticos' ou 'inautênticos', em prol do entendimento de que os rituais são antes “laboratórios, eventos em que se busca estabelecer relações novas ou novos modos


320 de relação” (Calávia y Naveira, 2013: 198). O entendimento do ritual enquanto laboratório tem como premissa a ideia de que os rituais fazem-se para outros e muitas vezes com outros (Idem), o que nos faz retornar ao evento descrito acima, onde os Gorotire estavam, como diz nosso cronista, “possessos pelo demônio da civilização”. Pois que naquele contexto os Gorotire experimentavam suas roupas de civilizado, tocavam instrumentos, cantavam marchas alegres e imitavam bêbedos sem beber. Mas para quem? Sem dúvida para o grupo que havia chegado naquele dia, mas também para o missionário e para o etnógrafo, impressionado tanto quanto os primeiros com o evento que assistia. Além de impressionar o público presente, os Gorotire, por certo, exibiam um laboratório de novas relações e de novos modos de relação tecidas e testadas com aqueles com quem haviam tido contato recente. Assim, se as roupas e os bonés vinham do missionário, a performance advinha claramente dos bailes presenciados em Nova Olinda e de seus personagens: os casais dançarinos, a banda de música e os bêbados. O cancioneiro também era variado, ia dos hinos protestantes às cantigas populares. Os Gorotire não haviam se transformado em quaisquer brancos. Viravam os brancos com os quais haviam (con)vivido, mesmo que em termos hostis, e presentificavam essas experiências no ritual. As cenas descritas por Nimuendaju há cerca de sessenta anos são os primeiros registros desse tipo de cerimônia entre os Mebêngôkre. Mas elas não são tão diferentes daquelas descritas por Verswijver, em meados da década de 1970, entre os Mekrãgnoti. Verswijver narra o processo de incorporação dos “bailes de sábado a noite”, tal como apreendidos por esse subgrupo mebêngôkre. Sua descrição é a que se segue: Os Mekrãgnoti estão em processo de incorporação dos bailes de sábado a noite dos brasileiros como uma nova cerimônia (de nominação?). Alguns homens Mekrãgnoti que tem visitado cidades brasileiras assistiram em diversas ocasiões a esses bailes de sábado a noite. Em 1975, os Mekrãgnoti Centrais começaram a performar tais danças também. Enquanto batem em latas vazias para marcar o ritmo, os homens jovens cantam em uma língua ininteligível, copiando as canções que tinham ouvido repetidamente nos rádios dos agentes da Funai. Todos estavam vestidos, moças e rapazes (bem como alguns homens e mulheres maduros) estavam posicionados em lados opostos e os participantes masculinos iam até as mulheres convidando-as para dançar ao modo brasileiro. Invariavelmente performada a noite e se encerrando frequentemente às três ou quatro horas da manhã, a cerimônia levava ao intercurso sexual ilícito. Esta cerimônia, chamada “dança do parafuso” (metoro kaykep), é frequentemente performada na estação da seca, sendo esta a estação inativa para a maioria das outras expressões rituais. Depois de algumas execuções, ela foi gradualmente incorporando características da vida ritual kaiapó: um jovem casal se propôs a patrocinar a cerimônia, tornando-se responsáveis por fornecer comida e servir café. Chefes começaram a fazer discursos para abrir a cerimônia e conversava-se sobre a possibilidade de incorporá-la como uma cerimônia de nominação (1992: 156).

Infelizmente não se tem notícia se de fato os bailes de sábado à noite tenham se tornado cerimônia de nominação. Mas só o fato dessa possibilidade ser aventada já é bem representativa dos mecanismos de apreensão dos conhecimentos de outras sociedades, tal como atualizados pelos


321 Mebêngôkre. Assim, como nas cenas descritas por Nimuendaju, nessas nota-se claramente que os referidos bailes aconteceram depois de uma convivência entre estrangeiros, quando alguns homens presenciaram as formas rituais mimetizadas, experimentaram-nas e as trouxeram para a aldeia. Temos novamente a banda tocando instrumentos improvisados, mas agora cantando canções ininteligíveis, para que homens dancem com mulheres, provocando fugas amorosas. Além disso, um casal prepara comida e café para os participantes, enquanto chefes proferem discursos em seu início. Aqui como na narrativa de 1939 proferida por Nimuendaju, estamos diante de um forró mebêngôkre. Durante a pesquisa de campo, eu mesmo presenciei cerimônias similares a estas. Apresento a seguir a minha versão contemporânea do forró mebêngôkre tal como o presenciei na aldeia Môjkarakô em setembro de 2010. Na madrugada daquela noite registrei as seguintes notas no diário de campo: É noite em Môjkarakô. Preparo a janta na cozinha da farmácia onde estou hospedado, quando escuto a voz metálica do cacique Akjabôro saindo do “boca de ferro” (alto-falante). Ele faz um discurso habitual de despedida. Pede que tudo permaneça em paz, pois amanhã está partindo para mais uma viagem à Brasília, para continuar a luta pelo seu povo mebêngôkre. Encerrado o discurso, o altofalante toca o “rebolation”, o último sucesso do carnaval baiano, seguido de um vozerio de crianças. Acabo o jantar e sigo o som. Chego até a casa de Jàtire (filho do cacique velho Moté) que está repleta de crianças e jovens. Sou o único kuben ali. Bepdjá, o mestre de cerimônias, improvisa no centro do pequeno salão um corredor, à guisa de passarela, para que duas meninas de aproximadamente quatro anos desfilem, ao som do funk que agora contagia o ambiente. As meninas andam na passarela rebolando e imitando o jeito das modelos kubenire vistas na televisão. A cada parada delas, o público amontoado grita, aplaude, tira fotos com celulares e câmeras digitais. Num canto do salão o pai e a mãe de uma das meninas sorriem e acenam para ela, comentando e elogiando a performance. Depois do desfile, dois meninos mais velhos de aproximadamente sete e oito anos entram em cena dançando complexas combinações de passos de dança ao som de música eletrônica. Continuando a programação da noite, três meninas mekurereres entram pela “passarela” rebolando e dançando os passos coreografados do tecnobrega da banda D'Javu, grande sucesso no norte e nordeste do país. Com os cabelos cortados a moda kayapó e trajando o tradicional vestido das mulheres mebêngôkre111, elas se requebravam, subindo e descendo diante dos gritos dos meninos. Ao fim da apresentação das mekurerere, o local se transformou em salão de forró. Casais se formavam para dançar ao som do tecno-melody e da pisadinha enquanto a luz foi apagada. Do lado de fora da casa jovens flertavam no escuro. Dentro do salão uma índia, mulher casada, me tirou para dançar. Sem graça, fitei seu marido que concordou com um aceno de cabeça. Nhak-ê me disse algo no ouvido que eu não entendi por causa do alto volume do som. Ela repetiu e eu entendi apenas quatro palavras: mebêngôkre, metoro, nhipêjx, forró (Diário de campo, setembro de 2010).

Digamos que essa narrativa atualiza algumas características daquelas descritas por meus antecessores. Aqui não há mais banda: a música ecoa da grande caixa de som ligada a uma televisão e a um aparelho de DVD. Mas como lá, o repertório é variado, composto por canções e ritmos que são sucesso também entre a população das cidades próximas à terra indígena. Novamente, os 111

Trata-se do vestido desenhado e introduzido por uma missionária na época dos primeiros contatos com os Mebêngôkre e que foi totalmente adotado pelas mulheres, a ponto de rechaçarem completamente outros modelos de vestido.


322 Mebêngôkre de Môjkarakô não imitam quaisquer brancos. Mimetizam aqueles com os quais têm mais convivência, aqueles que encontram nas viagens à São Félix do Xingu, mas também aqueles que assistem dançando e cantando nos clipes e shows das bandas do interior do país. A sequência de apresentações do evento demonstra claramente isso. De início, temos as duas meninas desfilando, como suas irmãs mais velhas fazem na cidade durante a festa do dia do índio. Depois temos a apresentação dos meninos dançando música eletrônica, tal como faziam meninos de idade semelhante nos infindáveis DVDs de filmes caseiros, retirados da internet, que chegavam aos montes à Môjkarakô naquele ano. Na sequência, temos a apresentação das três meninas mais velhas dançando tal e qual as dançarinas do clipe da banda D'Javu que passava na televisão durante o ritual. Por fim, o forró toma conta do ambiente e uma das mulheres convida o único kuben presente para dançar, dizendo em seu ouvido algo como: “os Mebêngôkre sabem fazer dança (festa) de forró”. De fato, o forró mebêngôkre, a confiar nas três narrativas expostas aqui, possui certa tradição. Pode-se dizer que já faz parte do kukràdjà mebêngôkre e que vem sendo reinventado constantemente, como não poderia deixar de ser. Isso porquê, atualmente, as bandas não tocam mais instrumentos improvisados, nem tampouco são apenas aquelas dos kuben como a banda D'javu que fazem sucesso entre os nativos. Pois agora, os Mebêngôkre tem seus próprios cantores e bandas de forró que não cantam mais em línguas ininteligíveis: fazem versões dos sucessos nacionais e internacionais, e também composições próprias, mas em língua mebêngôkre. Não se tem mais dúvida de que esses eventos venham a se tornar cerimônias de nominação, pois agora eles assumem características dos shows dos circuitos de música pop. As bandas e cantores tocam e cantam em cima de palcos bem amplificados, acompanhados de dançarinas, cujo look combina elementos da indumentária ritual mebêngôkre (como os enfeites de miçangas, a pintura corporal e o corte de cabelo característico) com roupas e vestidos produzidos para a ocasião. O público agora não apenas aplaude ou dança, como tira foto das apresentações com celulares e máquinas digitais. O kukràdjà mebêngôkre se renova, novos personagens rituais entram em cena, novas relações e novos modos de relações são testados e executados nesse laboratório que é o ritual. ɷɷɷ Dentre esses novos personagens que estavam em cena na versão contemporânea do forró mebêngôkre, merecem destaque as duas pequenas meninas que desfilavam naquela passarela improvisada. Lembro-me que, embora já tivesse visto outros desfiles, foi naquela noite que percebi


323 a dimensão da importância destes eventos para os Mebêngôkre de Môjkarakô, afinal, estavam ensinando e incentivando suas crianças a desfilar como as candidatas a miss universo. Naquela noite de setembro, vi a oportunidade de estudar o processo de aquisição e performatização de uma cerimônia que passava a fazer parte do corpus ritual mebêngôkre, ou seja de seu kukràdjà e que por mais estranha que pudesse parecer aos olhos 'ocidentais', encontrava um claro sentido de coerência com as concepções nativas de beleza e mimésis. Talvez, seja por causa dessa estranha e mesmo paradoxal coerência, que a ideia de fazer um concurso de beleza kayapó (vinda como vimos, da secretária de educação de São Félix do Xingu) tenha sido aceita tão rapidamente e se espalhado por várias aldeias com a mesma velocidade. Assim, a compreensão desses fenômenos não poderia ser feita aqui sem lançar mão dos processos próprios dos Mebêngôkre de produção ritual, de produção de beleza e de suas formas de apreciação. Como vimos, os rituais mebêngôkre são contextos de transformação, cuja beleza que ele outorga, ao mesmo tempo em que sacrifica, advém de outros: foram capturadas de seres diversos para serem exibidas, transmitidas, confirmadas justamente naquele contexto de reconexão com o cosmos, onde seus antigos donos são mimeticamente presentificados, onde públicos distintos são afetados por essas transformações, tornando-se recipientes da agência (Gell, 1999) desses seres quiméricos (Severi, 2007) que ali se fazem presentes. Também no palco interétnico, é justo isso que se passa. Os Mebêngôkre, talvez, não pudessem fazer diferente. Como nos lembra Turner: a auto-representação dramática kaiapó, em contextos atuais de confrontação interétnica, dá continuidade às formas culturais tradicionais de representação mimética. É importante reconhecer esta continuidade para entender como a crescente objetivação da consciência que os kaiapó têm de sua cultura e identidade étnica, no contexto interétnico contemporâneo, não é meramente um efeito dos meios de comunicação ocidentais ou de influências culturais, mas se relaciona a fortes tradições culturais nativas de representação e objetivação mimética. (Turner, 1993: 99).

Não foram os funcionários da secretaria de educação que inculcaram nos kayapó a ideia de fazer um concurso de beleza, como muitas vezes ouvi dos funcionários da Funai. Para compreender esse fenômeno há que se ter uma visão menos moralista e menos externalista, como nos adverte Turner. Tampouco, trata-se de hibridismo, ou de colagens pós-modernas, embora todo o contexto dos concursos da miss kayapó possa parecer tema de um certo “surrealismo etnográfico”. Trata-se, antes, de uma apropriação mebêngôkre do desfile, do exercício de criação de imagens poderosas que capturam os espectadores, envolvendo-os na disputa que é o concurso e, no final das contas, como veremos, de um perspicaz controle dos padrões e imagens de beleza apresentados. Se há, por assim, dizer, um movimento mebêngôkre em direção aos kuben, aos seus jeitos e formas, a suas modas, músicas e danças, tudo isso é deglutido pela máquina ritual mebêngôkre, produtora de beleza e diferença. Não é por acaso que se trata de um concurso em que uma das candidatas a miss


324 sairá vencedora, presentificando perante o público toda a beleza de sua aldeia. Mas para vencer o concurso, como de praxe entre os Mebêngôkre, é necessário um longo processo de preparação da candidata, é preciso produzir e aperfeiçoar as técnicas corporais (Mauss, 2004), é preciso desenvolver a tecnologia do encantamento que será posta em prática durante o concurso. É desse processo que falo agora.

A preparação de uma candidata a Miss Antes de tudo é preciso destacar que não são quaisquer mulheres que podem ser candidatas a miss kayapó. Existem restrições muito específicas a respeito daquelas que disputarão o concurso. Em primeiro lugar, elas devem ser mekurerere, isto é, moças púberes e pós-púberes, que ainda não possuem filhos, e cuja idade varia dos doze aos dezoito anos. Mas para os Mebêngôkre, a escolha da candidata parece não estar vinculada apenas a uma questão de idade. Trata-se, sobretudo, de uma questão de beleza. Como alguns autores já registraram (Vidal, 1977; Gordon, 2006), as mekurerere, assim como os menoronure (sua contraparte masculina), “são a epítome do corpo mebêngôkre”, o ápice da beleza kayapó, “a mais perfeita tradução corporal, a forma mais plena de um corpo humano” (Gordon, 2006: 321). Elas são, como destaca Gordon, o auge do processo de corporificação, e por isso são consideradas bonitas, atraentes e sexualmente desejáveis. Esse seu status, não se dá sem intervenções. Como se sabe, entre os ameríndios não existe automatismo biológico ou natural. Corpos são produtos de ações de pessoas e a beleza, nada mais é que o resultado da fabricação corporal da pessoa (Viveiros de Castro, 1979), não sendo considerada inata. Não existe a possibilidade, para os kayapó, de uma pessoa nascer bonita. Antes, ela é feita bela por meio de uma série de ações que se iniciam antes mesmo de seu nascimento e se prolonga por diversas fases da vida, como vimos no capítulo IV. Gordon (2006: 320), qualifica esse processo como um movimento de constituição e desconstituição corporal, segundo o qual “a primeira fase da vida de uma pessoa é aquela em que, a partir de um estágio informe, ela vai ganhando um corpo, e literalmente encorpando”, o que culmina com os ritos de iniciação dos jovens menoronure e das jovens mekurerere. Simultaneamente a este processo de corporificação, ocorre o processo de endurecimento corporal, que não é coetâneo ao anterior. Assim, se as mekurerere e os menoronure são a epítome da beleza corporal, isso não quer dizer que seus corpos estejam plenamente (ma)duros. (…) Se eles, de um lado, são o ápice do ideal de corpo, de outro, ainda não atingiram a maturidade e a dureza necessárias para estabelecer e operar diversos tipos de relação e ação, sobretudo quando essas relações envolvem possíveis contatos com


325 agências não mebêngôkre (animais, espíritos, inimigos). Já os mekrare, adultos com filhos, são mais maduros e capazes dessas operações, porém não mais estão no auge corporal (op. cit. : 321).

Como me explicou certa vez Bepunu, as mekurerere são consideradas belas porque seus corpos ainda não foram modificados pela gravidez, seu corpo expressa proporções e formas valorizadas socialmente, seus seios são firmes e pequenos e não moles e grandes como os das mulheres mais velhas. Isso porquê a gravidez e a produção de filhos podem ser entendidos como um processo de descorporificação, cujo auge é a velhice, quando homens e mulheres velhos já criaram muitos filhos e netos, e “foram como que se excorporando progressivamente ao longo da vida, fazendo filhos e transferindo sua substância aos filhos e aos netos” (Idem). É esse fato (não ter filhos) que faz de uma mekurerere uma possível candidata a miss. Tanto que no concurso ocorrido em 2010, a vencedora foi acusada por pessoas de outras aldeias de já estar grávida durante o desfile, não podendo portanto receber o título de miss naquelas condições, com seu corpo já alterado. A gravidez invalidava sua participação e, consequentemente, o título a ela concedido. Seguindo o mesmo princípio, em 2011, a candidata da aldeia Môjkarakô não pôde desfilar na cidade e teve de ser trocada às pressas depois que se descobriu que ela estava grávida. Inicialmente suspeitei que outro critério para a escolha das candidatas pudesse estar relacionado ao fato delas serem escolhidas entre aquelas mekurerere que já haviam sido homenageadas em determinado ritual de nominação. Assim, suspeitava que somente as mekurerere honradas cerimonialmente, ou seja, consideradas pessoas belas (mereremejx) e cujos nomes tivessem sido confirmados nos rituais, é que poderiam ser escolhidas como candidatas. Essa suspeita foi desfeita por meus interlocutores nativos, que disseram que qualquer mekurerere poderia se candidatar a miss, desde que fosse considerada fisicamente bonita e não tivesse vergonha de se mostrar publicamente. No que tange à beleza física, é preciso dizer que existe uma preocupação e uma apreciação constante dela no cotidiano da aldeia. Como entre os Xikrin, descritos por Gordon, aqui também os critérios da harmonia, simetria e proporção estão presentes. Preza-se a distribuição harmoniosa dos órgãos pelo corpo: membros superiores e inferiores não podem ser excessivamente curtos, tampouco longos demais. Observa-se atentamente as proporções corporais e, até mesmo, um jeito de caminhar ou mover-se pode ser considerado bonito ou feio, correto ou impróprio (mejx ou punure) (2009: 14; grifo meu).

Destaque-se a afirmação do autor a respeito da apreciação estética do jeito de caminhar, também de suma importância para a apreciação das candidatas a miss. Ela pode ser relacionada à desinibição112, o segundo critério definido pelos informantes como fundamental para que uma 112

De fato, a vergonha é um critério importante. Se são o ápice da beleza feminina mebêngôkre, as mekurerere também são seres tímidos por excelência. Durante os rituais, são as únicas a terem vergonha de mostrar os seios, sendo


326 mekurerere se torne uma candidata a miss. Pois que os desfiles são momentos em que é justo o jeito de caminhar, não apenas corretamente, mas com desenvoltura, que está, também, sendo avaliado. A vergonha, ou a 'a falta de jeito', são avaliados negativamente, as candidatas devem se mostrar seguras no seu caminhar e além disso, demonstrar felicidade. Deve-se, enfim, seduzir 113 a plateia, por meio não somente da beleza física, mas também da desenvoltura no caminhar, da desinibição, da demonstração de alegria. Essas eram qualidades caras à Ngrej'ôk, a moça que havia ganho o concurso na aldeia Môjkarakô, durante os Jogos Tradicionais. Ali ela já havia mostrado sua graça ao sorrir para os jurados e para o público, diferentemente de suas concorrentes que pareciam estar com vergonha de desfilar. Ngrej'ôk mostrava desenvoltura também no caminhar molejado e ritmado, concretizando em seu desfile um dos critérios anotados pelo juri, que dizia respeito ao “jeito” das candidatas. Pelo menos, foi com essa palavra que Bepdjá afirmou aos dois jurados kuben (a enfermeira da aldeia e o antropólogo Diego), quando estes lhes perguntaram sobre como deveriam julgar as candidatas. “É para olhar o jeito delas”, respondeu Bepdjá, sucintamente. Já vimos como o “jeito” pode ser traduzido pela noção de kukràdjà no contexto dos discursos cerimoniais da festa de aniversário da aldeia. Naquele contexto, kukràdjà foi traduzido por um dos informantes como o jeito de uma coletividade, a aldeia Môjkarakô, como sendo aquilo que a diferenciava das demais aldeias no sentido da produção da comunidade, com seus princípios éticos e estéticos voltados para o idioma do parentesco. No caso da apreciação das candidatas a miss, o jeito, o kukràdjà de cada candidata, também as distingue uma das outras, mas ele o faz por outros princípios estéticos. Aqui, como em quaisquer rituais, o kukràdjà mostrado é também de um outro, nesse caso, o das kubenire (mulheres brancas), aquelas que desfilam nos concursos de Miss Universo, ou nas passarelas de moda. É essa a ação mimética performada durante os concursos da miss kayapó. Mas os desfiles das candidatas não são pura imitação das formas de desfilar das kubenire: o jeito delas não se constitui somente disso. O desfile é, antes de tudo, uma interpretação pessoal desse caminhar característico de nossas modelos. Assim, o título de miss não é concedido àquela menina kayapó que imita mais perfeitamente essa forma de andar, mas àquela que melhor

113

continuamente exortadas pelas mulheres mais velhas a descobrir essa parte do corpo no momento de dançar. Sua timidez torna-se ainda mais evidente quando estão diante dos kuben. Durante a pesquisa de campo, foram raras as ocasiões em que às mekurerere dirigiram a palavra a mim, como faziam as mulheres que já possuíam filhos. Por isso, ser desinibida, ou seja, não ter vergonha de se mostrar publicamente, conta e muito para ser escolhida como candidata a miss. Falando das qualidades das mekurerere, Vidal (1977: 163) evoca a imagem da coquetterie, afirmando que em conjunto com o charme e a ternura, a coquetterie é uma qualidade feminina apreciada pelos Xikrin. Em outra passagem de seu livro, Vidal se pergunta: “o que é a coquetterie? Pode talvez dizer-se que é um comportamento que deve sugerir que a aproximação sexual é possível, sem que essa eventualidade possa ser tida como certa”.


327 personifica o desempenho dessa técnica corporal 114. Foi para apurar o seu “jeito”, para desenvolver o seu kukràdjà recém-adquirido, que Ngrej'ôk passou a ter aulas de desfile com uma professora, justamente, no período em que toda a aldeia se preparava ritualmente para a festa do dia do índio. Durante todo o mês de março e o início do mês de abril, a professora Ilda se encontrava com Ngrej'ôk de noite, na escola da aldeia, para treinar o seu desfile a ser realizado na cidade. Em muitos desses ensaios, fui solicitado a colocar o som para que elas treinassem e pude assistir à algumas aulas, e inclusive opinar quando me era solicitado. Os ensaios eram vedados a todas as pessoas da aldeia, estando somente professora e aluna (e às vezes eu) na sala de aula. Primeiro, Ilda solicitava, à guisa de aquecimento, que sua aluna desfilasse sem som e de olhos fechados, para que mentalizasse seu desempenho. Outra parte da aula era dedicada somente às poses, ou ao que a professora denominava “paradinha”. Trata-se dos movimentos que Ngrej'ôk iria fazer diante dos jurados e do público, depois de caminhar pela longa passarela montada na quadra da cidade. Esses movimentos eram treinados exaustivamente durante os ensaios. Segundo ouvi da professora, sua aluna deveria fazer “paradinhas” em três momentos de seu percurso: ao meio da passarela, ao fim dela, e mais uma vez ao início, diante dos jurados. Em todas as paradas, afirmava Ilda para sua aluna, ela deveria sorrir para o público e na última, reverenciar os jurados com um leve movimento do corpo. Na passarela, a aluna não deveria simplesmente andar, mas caminhar com rebolado. A professora então executava o que julgava ser o caminhar correto para a aluna assistir e depois imitar. Quando o som era ligado, a professora anunciava que o teste era para valer e incentivava sua pupila com afirmações do tipo: “muito bom”; “rebola mais”, “olha o sorriso”, “agora, paradinha para o público”, “os jurados estão te olhando”, “lembra do molejo”, “isso, agora é a paradinha final, sorriso para os jurados”, “muito bom, muito bom, agora vamos fazer de novo”. E assim o ensaio se repetia por umas duas horas. O aprendizado desse kukràdjà e o desempenho pessoal de Ngrej'ôk, seu jeito, e a eficácia dessa tecnologia do encantamento produzida durante o ensaio foi posta a prova alguns dias antes da partida para a cidade. A professora, combinou com os caciques da comunidade uma apresentação a ser realizada na casa dos homens, para toda a aldeia. O som fora instalado e luzes iluminavam o local. Uma passarela foi improvisada com palha de babaçu. Por volta das sete da noite, para um grande público de crianças, jovens e adultos, Ngrej'ôk, amparada pela professora, fez seu desfile 114

Falando sobre o processo mimético levado a cabo pelos Mebêngôkre, durante o ritual de nominação Kôkô, quando as máscaras do Tamanduá bandeira se fazem presentes no pátio de dança, Turner faz uma afirmação bastante interessante para o caso em questão. Segundo o autor “a dança das duas máscaras de tamanduá imita, supostamente, os movimentos reais do tamanduá. A imitação aqui precisa ser entendida no sentido aristotélico de mimésis, como a imitação da essência, ao invés de cópia naturalista. Os movimentos das máscaras representam a ideia kaiapó da essência do movimento do tamanduá” (Turner, 1993: 96).


328 arrancando salvas de palmas e gritos da plateia a cada “paradinha”. Ela estava pronta para desfilar na cidade.

Sobre a evolução do look: da rainha à miss Propositalmente, deixei para analisar em separado a composição do look das candidatas a miss, com suas combinações e relações entre conjuntos de enfeites e de elementos de vestuário como as calcinhas, e também com o corte de cabelo e os padrões de pintura corporal. Isso porquê, e como não poderia deixar de ser, os looks das candidatas são uma transformação de outros looks, mais propriamente, daqueles vestidos pelas “rainhas”. A rainha, essa personagem contemporânea dos encontros interculturais e políticos vivenciados pelos Mebêngôkre, já foi mencionada algumas vezes neste trabalho. Encontramos as rainhas em atuação no aniversário da aldeia. Lá estavam elas ao lado do grande bolo, onde se posicionaram depois de conduzir o cacique Akjabôro, da pista de pouso até a casa dos homens. Encontramos também as rainhas nas cerimônias de posse dos novos chefes, novamente conduzindo autoridades até o pátio de dança e, mesmo, carregando a bandeira da aldeia no momento solene da posse. Uma vez mais fizemos menção a esse personagem quando da visita do diretor do Museu do Índio, à aldeia Môjkarakô, no contexto da doação de uma portentosa carga de miçanga. Em todos esses contextos de aparição, e em outros que não foram mencionados por falta de tempo e espaço 115, as rainhas recepcionam os convidados ilustres, transformando a pista de pouso em espaço ritual. Suas aparições têm a ver com a produção de uma grande e bela recepção para estes convidados, uma forma de envolvê-los no ritual, fazê-los participantes do estado emocional que o ritual mebêngôkre proporciona. Lembremos aqui do discurso do Diretor do Museu do Índio, momentos depois de ser recepcionado e conduzido pelas rainhas até o pátio de dança, seguido de uma massa de índios pintados e paramentados, cantando e dançando forte. O diretor do Museu do Índio, disse, em suas primeiras palavras, que havia ficado emocionado com a recepção e que estava muito feliz de estar ali com eles. Não só as miçangas estavam garantidas, como também o branco que as trouxera havia gostado deles e da aldeia e prometia retornar com mais projetos para a comunidade, e, preferencialmente, com mais miçangas. As rainhas são, assim, personagens que trazem à cena ritual certos estrangeiros de prestígio, por isso, para assim fazê-lo, elas devem portar a máxima beleza mebêngôkre, em termos de enfeites e da produção de seu look. Como vimos acima, atualmente, esse look se concretiza em uma 115

Em setembro de 2010, um político do sul do Pará, candidato a deputado federal, fez uma visita de campanha à aldeia Môjkarakô. Naquela ocasião, como de praxe, foi organizada uma grande recepção para o político, e lá estavam três rainhas posicionadas na pista de pouso a espera do candidato para conduzi-lo até a casa dos homens.


329 abundância de enfeites de miçanga simetricamente sobrepostos ao corpo, sob a pele pintada de jenipapo, tudo isso envolvido no grande arco de penas que conforma o diadema krokroti.

Figura 83: As rainhas à espera do diretor do Museu do Índio.

O look das rainhas são similares àqueles vestidos pelas meninas que estão sendo honradas em uma cerimônia de nominação. Digamos que não há somente uma relação de semelhança entre as roupas, mas também de contiguidade entre os personagens, pois as meninas honradas naquele contexto de nominação personificam o ápice da beleza mebêngôkre, concretizada pela transformação ritual. E não seria o caso de transfigurá-las para os contextos interétnicos, de fazer das meninas ritualmente belas aquelas que trazem os kuben para o ritual? As rainhas são, assim, a personificação da beleza mebêngôkre, postas a produzir sua eficácia a serviço da captura dos kuben para a cena ritual, de seu engajamento emotivo naquele contexto. Seguindo essa lógica, não é por acaso que as rainhas, diferentemente das candidatas a miss, são escolhidas dentre aquelas meninas que já foram honradas em um ritual de nominação, podendo ser mekurereres ou meninas mais novas, ainda crianças. No primeiro concurso da miss kayapó, realizado no ano de 2009, as candidatas se vestiam


330 como rainhas, ou se preferirem, como garotas cujos nomes estão sendo confirmado nas cerimônias de nominação. Não presenciei esse primeiro desfile. O único registro que possuo do concurso são duas fotografias presentes no folder da festa de 2010.

Figura 84: O concurso da Miss Kayapó em 2009. (folder da festa de 2010)


331 Na primeira foto observa-se em primeiro plano a candidata da aldeia Môjkarakô, reconhecível graças ao fato da bandeira da aldeia estar tecida no pingente do colar angà-o õ kre djê. Não há dúvidas que seu look é similar ao das rainhas. Na segunda foto, nota-se um plano mais aberto, onde quatro candidatas desfilam no ginásio da cidade para um grande público. Como se observa, somente a candidata de Môjkarakô porta o diadema krôkrôti. Fora esse elemento de destaque, intencionalmente inserido no look, os demais adornos das diferentes candidatas são similares uns em relação aos outros, tendo a combinação de cores como elemento diferenciante. Em fins de 2009, um novo look fora produzido para uma candidata e sua disseminação entre as aldeias deve-se, uma vez mais, ao circuito imagético existente atualmente entre as aldeias do sul do Pará e à posição privilegiada que a aldeia Môjkarakô ocupa neste circuito. O novo look fora criado pelas mulheres da aldeia Kikretum durante as prévias do concurso de 2010, realizadas naquela aldeia. Os moradores de Kikretum realizaram o concurso durante a programação de uma reunião política sobre os territórios etno-educacionais implementados pelo Ministério da Educação como política de acesso à educação para as populações indígenas. Além de representantes do MEC, estava presente na reunião a secretária de educação de São Félix do Xingu, a inventora do concurso da miss kayapó. Os moradores de Kikretum acharam por bem realizar o concurso naquele contexto para homenagear a secretária, apresentando as quatro candidatas da aldeia, para que ela e os demais convidados kuben julgassem qual seria a representante da aldeia na cidade. Quando as candidatas entraram na passarela, uma delas se destacava das outras pelo look diferenciado. As pesadas tipoias trançadas de miçanga, item primordial das rainhas e das meninas honradas em cerimônias de nominação, haviam sido removidos, deixando os seios dela totalmente a mostra, realçados pelo grafismo que cobria a pele da menina. Um único colar, do tipo angà-ô õ kredjê, se destacava sobre o busto da candidata, tendo seus pingentes característicos alongados até a cintura. Por cima da calcinha colorida um cinto de miçangas fora meticulosamente amarrado. Outro elemento de destaque eram os longos brincos de miçanga que pendiam de suas orelhas. Braçadeiras, pulseiras, jarreteiras e tornozeleiras também de miçangas e de cores homogêneas completavam o look da candidata. Perto das outras que se vestiam como rainhas, ela estava visivelmente mais nua. E, além disso, desfilava com desenvoltura, sorria para a plateia e para os jurados, fazendo 'paradinhas' na frente deles. A secretária ficou visivelmente empolgada com o desfile da moça e ao fim do concurso ela foi decretada vencedora. Depois deste evento, os looks das candidatas a miss não seriam mais os mesmos. Todo este evento descrito acima foi filmado por Axuapé, um dos cinegrafistas de Môjkarakô, solicitado pelos chefes de Kikretum a trabalhar no registro audiovisual do encontro com


332 as autoridades. Tão logo Axuapé retornou à aldeia Môjkarakô, as imagens foram exibidas para um grande público, como de praxe, na casa de Jàtire, o filho do cacique velho Moté, que na época possuía uma das únicas televisões da aldeia. O resultado do visionamento das imagens do concurso realizado em Kikretum se fez notar, muito rapidamente, nas prévias realizadas em Môjkarakô, em janeiro de 2010, como parte da programação dos Jogos Tradicionais. Nesta ocasião, como que para testar o público e os jurados diante da novidade, o concurso fora organizado em duas partes. Na primeira etapa as candidatas desfilaram com o look das rainhas, similares àqueles exibidos na primeira versão do concurso na cidade. Na segunda parte elas exibiam versões distintas do look da vencedora do concurso de Kikretum que elas tinham visto na televisão.

Figuras 85, 86: A mesma candidata com os looks de rainha e de miss, em concurso na aldeia Môjkarakô.

Momentos antes do desfile começar, Bepdjá, o organizador do concurso, convocara os jurados, em sua composição interétnica, ao palco, cujo chão estava coberto com uma lona azul, à


333 guisa de passarela. Eram eles, os dois caciques da aldeia, Pinkà e Kaikware; a liderança Kokuí, presidente de uma associação; a enfermeira Geliane, e o antropólogo Diego. Os jurados tomaram assento na extremidade direita do palco, onde estava também o cinegrafista Bepunu, com sua inseparável câmera no tripé. Logo abaixo do palco várias pessoas da aldeia com suas máquinas digitais e celulares em punho esperavam o início do desfile. O clima era de grande expectativa. Enquanto isso, a casa do cacique Akjabôro, atrás do palco, havia se transformado num verdadeiro salão de beleza mebêngôkre. Ali estavam as quatro meninas candidatas a miss, sendo produzidas e enfeitadas por suas mães, avós, tias e irmãs. Enquanto uma passava óleo de babaçu no cabelo de uma das meninas, as outras debatiam qual motivo iriam desenhar com urucu no rosto dela. Faziam isso e ao mesmo tempo enrolavam linha de algodão amarela nos antebraços, para depois dispor em camadas diversas tipoias de miçanga, com suas intermináveis voltas coloridas, colocadas em diagonal, transpassando e encobrindo os seios, para alcançar as coxas, sem cobrir por inteiro a calcinha. Nos braços e pernas foram dispostos pulseiras, braçadeiras e pesados braceletes de miçanga, enfeitados com penas de arara. O look se encerrava com a grande diadema krokroti de penas de arara presa na cabeça por um fio de corda, delicadamente escondido por uma tiara de miçanga amarela. Lá fora, Bepdjá aumentara o som, se colocando no centro do palco e, com o microfone em punho, anunciou a primeira candidata. Nhak'on subiu ao palco por uma escadinha com a ajuda de um dos jovens organizadores e iniciou sua performance totalmente paramentada da cabeça aos pés, portando o grande diadema nas costas, “vestida” com toda a riqueza mebêngôkre, como se estivesse saindo de um ritual de nominação. A garota andou rebolando até a frente do palco e parou fazendo pose com as mãos na cintura. Andou novamente na direção dos jurados para mais uma pose, fez a volta e dirigiu-se ao centro, virando para o público e para os jurados antes de sair do palco. Ngrej'ôk foi a próxima a ser chamada e tanto quanto Irero e Irepryngranhiti, repetiu um percurso similar ao da primeira candidata. Se o percurso foi o mesmo, cada uma, contudo, impôs um “jeito” de desfilar diferente. Um desempenho específico e pessoal, imitando o caminhar das modelos brancas na passarela. Depois que todas haviam saído, Bepdjá anunciou que elas voltariam uma vez mais. Atrás do palco, mulheres retiravam das meninas cada um dos bens cerimoniais que compunham seu look. Permaneceram como enfeites apenas um colar de miçanga, além dos brincos e braçadeiras. Era assim, com o corpo praticamente nu, realçado pela pintura corporal e pelo colorido da calcinha, que as meninas, uma a uma, faziam o mesmo trajeto, novamente desempenhando, cada uma a seu modo, o caminhar das modelos brancas, o kukràdjà apreendido das kubenire. Dessa vez, o público vibrava


334 ainda mais a cada pose, e os jurados e jovens organizadores que estavam em cima do palco não disfarçavam os olhares sobre o corpo das meninas. Excetuando Ngrej'ôk que rebolava e sorria para os jurados, as outras candidatas, embora se esforçassem, pareciam estar constrangidas de serem olhadas com tanta ênfase ao expor seu corpo descoberto de enfeites. A ponto de uma delas levar as mãos ao rosto justamente quando passava na frente dos jurados, e de uma outra completar o desfile em tempo recorde, dando a volta no palco em passo acelerado e nem parando ao centro para fazer a última pose. A empolgação do público parecia ser inversamente proporcional ao constrangimento das meninas. Depois dos desfiles, as meninas foram chamadas ao palco uma vez mais para que desfilassem em conjunto. Ao que tudo indica haviam ensaiado essa apresentação, pois executavam movimentos coordenados no momento da pose virando o corpo, sincronizadamente, ora para um lado, ora para o outro. Após essa última apresentação, as meninas desceram do palco. Era a hora de saber o resultado final. Mas não era apenas a candidata que iria representar Môjkarakô no concurso da cidade, que estava sendo escolhida naquele contexto. Também o look que ela usaria na cidade estava sendo decidido. Pela animação do público e pelas notas dos jurados, ficou claro que na próxima festa do dia do índio, Ngrej'ôk seria a candidata de Môjkarakô, e que ela desfilaria como miss e não como rainha.

Sobre algumas formas cruzadas de apreciação Antes de chegar ao concurso realizado na cidade, como grande atração da festa do dia do índio, permitam-me fazer um pequeno exercício argumentativo sobre as possíveis formas de apreciação estética mobilizadas pelos integrantes do juri do concurso na aldeia, quando as candidatas desfilaram, primeiro com o look de rainhas e depois com aquele que se fixou como a forma de apresentação das misses. Utilizo nesse exercício as categorias de cultura e “cultura”, tal como definidas por Carneiro da Cunha (2009), a primeira enquanto um esquema interiorizado particular a cada povo; e a segunda, enquanto efeito da apropriação pelos povos nativos do conceito antropológico de cultura nos embates políticos e interétnicos contemporâneos. Citando o crítico literário Lionel Trilling, Carneiro da Cunha, formula “uma definição simples e prática de cultura sem aspas”, como sendo ... um complexo unitário de pressupostos, modos de pensamento, hábitos e estilos que interagem entre si, conectados por caminhos secretos e explícitos com os arranjos práticos de uma sociedade, e que, por não aflorarem à consciência, não encontram resistência à sua influência sobre as mentes dos homens (Trilling, s/d, apud Carneiro da Cunha, 2009: 357).


335 Sobre a relação entre cultura e 'cultura', a autora afirmara algumas páginas antes: Acredito firmemente na existência de esquemas interiorizados que organizam a percepção e a ação das pessoas e que garantem um certo grau de comunicação em grupos sociais, ou seja, algo no gênero do que se costuma chamar de cultura. Mas acredito igualmente que esta última não coincide com 'cultura', e que existem disparidades significativas entre as duas. Isso não quer dizer que seus conteúdos necessariamente difiram, mas sim que não pertencem ao mesmo universo de significação, o que tem consequências consideráveis (2009: 313).

São essas consequências que serão consideradas no exercício que se segue.

ɷɷɷ

O fato das meninas desfilarem na aldeia primeiro com os bens cerimoniais mebêngôkre e depois sem eles, com os seios à mostra, e de calcinha, decorre certamente da intenção de apresentar ao público e aos jurados duas possibilidades distintas de apreciação das candidatas. Nota-se, assim, a conformação de dois contextos diferentes de julgamento: um onde as meninas desfilam com o corpo enfeitado pelos bens cerimoniais, outro, onde seus desempenhos são realizados com o corpo à mostra. O que há em comum aos dois contextos é o andar mimetizado das modelos brancas, suas poses e seus rebolados. Considerando a formação interétnica do júri – formado por dois kuben e três índios –, são acionados no momento da apreciação valores culturais diversos que conformam um interessante cruzamento de pontos de vista. Assim, no caso do primeiro desfile, do ponto de vista dos jurados mebêngôkre trata-se de avaliar a miss a partir de valores dados pela sua cultura, sem aspas, pois embora estejam diante de sua “cultura” (com aspas), não podem escapar da sua própria cultura na hora de julgar. Algo semelhante ocorre com os jurados kuben: a avaliação da “cultura” mebêngôkre é realizada segundo valores da sua (nossa) cultura referentes às concepções de indianidade. No segundo desfile, outros elementos embasam o julgamento, pois a apreciação das garotas desliza dos bens cerimoniais, para seu corpo e seu desempenho no desfile. Para os jurados kuben, não se trata mais de julgar a “cultura” mebêngôkre segundo nossos critérios de indianidade e autenticidade, mas de escolher a miss, mobilizando suas (nossas) concepções de beleza. Também neste contexto, a apreciação dos jurados mebêngôkre passa da apreciação dos bens cerimoniais para o julgamento do corpo, da pintura corporal sobreposta a pele e do caminhar das meninas segundo os padrões de beleza mebêngôkre. No primeiro desfile, os jurados mebêngôkre olham para as meninas com olhos de


336 mebêngôkre, julgam seu desempenho, e julgam também os bens cerimoniais e sua distribuição ordenada pelo corpo, não apenas no sentido de suas quantidades, mas também e, sobretudo, de suas qualidades: do material que foram feitos, da habilidade das artistas que os fizeram, da disposição ordenada nas partes corretas do corpo. O julgamento desses aspectos só pode ser feito pelos Mebêngôkre, segundo sua cultura. Esta entendida como esquema interiorizado que organiza a percepção e a ação das pessoas e que garante “um certo grau de comunicação, em grupos sociais” (Carneiro da Cunha, 2009: 313). A apreciação dos jurados kuben, por sua vez, parece mostrar a outra lâmina da “faca de dois gumes” que é a “cultura”, em sua versão com aspas, objetificada. Nos termos ‘marxistas’ propostos por Carneiro da Cunha (2009: 3131) trata-se, no primeiro desfile e do ponto de vista dos jurados mebêngôkre, de um julgamento segundo a “cultura em si”. Do ponto de vista dos jurados kuben, trata-se diferencialmente de um julgamento da “cultura para si”. Esta última, é justamente a forma objetificada (patrimonializada) da cultura, o modo como os Kayapó escolheram exibi-la performaticamente diante do mundo. Como os kuben não têm elementos para julgar a miss a partir da cultura mebêngôkre, eles o fazem acionando as categorias de autenticidade, de “indianidade” que embasa nossa cultura quando se trata de apreciar índios e julgá-los, muitas vezes como “verdadeiros” ou “falsos”. Quando as meninas voltam ao palco sem os bens cerimoniais, surge um interessante encontro de perspectivas, onde outras ênfases são dadas. Pois agora, livre dos bens cerimoniais, a beleza física e o desempenho das candidatas tornam-se mais evidentes. Prestar-se-á muito mais atenção ao seu corpo realçado pelos grafismos, e à sua performance. Sugiro que os jurados kuben não têm outra opção senão a de julgarem a miss segundo sua (nossa) concepção específica de beleza que se possui, sem dúvida, um lado pessoal, possui certamente também um outro lado, formado por um esquema interiorizado, evidentemente distinto daquele mobilizado pelos Mebêngôkre. Os jurados mebêngôkre mobilizam, por sua vez, os valores e princípios estéticos de sua própria cultura, que se são diferentes daqueles dos kubens, levam a um resultado similar. Jurados, brancos e índios, deram, no concurso em questão, praticamente as mesmas notas para Ngrej'ôk, a candidata que naquele contexto ficara em primeiro lugar. Aqui, como já salientava Bateson (1972: 101), a graça, enquanto forma de expressão, “puede ser percibida por encima de las barreras culturales”. Pois que toda tecnologia do encantamento mobilizada na preparação da miss visa produzir, justamente, esse encontro de perspectivas, uma vez que é composto para ser executado em um contexto interétnico, para que públicos diversos possam apreciar as candidatas. A eficácia do desfile, tal como apropriado pelos


337 Mebêngôkre, parece estar em fazer coincidir em um mesmo corpo e em uma mesma performance, elementos que possibilitam julgamentos estéticos baseados em lógicas culturais distintas. Os concursos da miss kayapó evocam, neste sentido, a noção de condensação ritual, tal como formulada por Severi (2007) e segundo a qual sujeitos (mas também objetos) são eficazes ritualmente por serem constituídos no contexto ritual pela acumulação de conotações contraditórias ou paradoxais, formando figuras complexas, denominadas pelo autor como seres quiméricos. Seguindo Severi, Fausto (2008: 343) afirma que “esse caráter paradoxal, em que elementos antagônicos condensam-se na forma de uma imagem ao mesmo tempo singular e múltipla, é a fonte mesma (…) da eficácia ritual desses personagens”. A meu ver, não existe forma melhor para caracterizar essa figura singular e múltipla que é a miss kayapó. Ela é de tal modo quimérica e paradoxal que consegue reunir em torno de si formas de apreciação culturalmente distintas que se cruzam e se tocam justo no contexto ritual do desfile. A eficácia da miss, na cidade ou na aldeia, se concretiza na conjunção intencional e construtiva de elementos paradoxais, colocados, de início, pela própria contra-intuitividade da expressão “miss kayapó”. A beleza da miss, da forma como é produzida, seu jeito, do modo como é apreendido e treinado, sua graça, do jeito que é mostrada pelos sorrisos e paradinhas, visa a interculturalidade, visa a justaposição de pontos de vista e formas de julgamento distintas. Talvez, nesse sentido bem especifico, e para evocar um famoso debate no campo da antropologia da arte (Ingold, 1996), a estética possa ser pensada não como uma categoria, mas como uma forma de apresentação transcultural, como um look quimérico que captura olhares diversos por reunir elementos paradoxais. Completando esse ciclo de pontos de vistas cruzados, poderíamos nos perguntar sobre como veriam os jurados kayapó certos elementos da cultura dos brancos sendo imitados por suas meninas? Não seria errado dizer que estariam julgando a “cultura” dos kuben, em sua forma objetificada pela performance da miss. Não seria, não fosse pelo fato de que a “cultura” kuben, em seu estado performado pelas candidatas, passa a fazer parte da própria cultura mebêngôkre. Em outros termos, a cultura mebêngôkre, aquilo que denominam seu kukràdjà, seu “patrimônio cultural”, parece ser a soma do que é a “cultura” (com aspas, objetificada) dos outros. Isto porque além de absorver elementos da cultura dos outros, os Mebêngôkre parecem ter uma predileção por aquilo que esses outros mostram ritualmente, suas formas objetivadas de beleza. Assim o fazem não apenas com os concursos de miss universo, onde as mais belas candidatas de todo o mundo mostram sua beleza em uma grande cerimônia pública e internacional, onde os padrões de beleza ocidentais são objetificados; mas o fazem também com outras formas expressivas dos brancos como


338 os forrós e bailes de sábado a noite, vistos e apreendidos, como vimos, por diversas gerações nos mais variados contextos e épocas; ou como o funk, dançado pelo rapaz indígena na festa do dia do índio; ou ainda como o kwôre kangô, o já famoso ritual apreendido dos Juruna; ou mesmo, como o são praticamente todos os seus rituais de nominação, apreendidos, segundo contam os mitos, de diversos seres animais e mitológicos. Não apenas apropriadas e apreendidas, estas formas expressivas precisam necessariamente serem performatizadas, tornadas visíveis durante os rituais, muitas vezes, justo para aqueles de quem as copiaram. No caso do concurso da miss, e também de outros contextos rituais e interétnicos, como a própria festa do dia do índio, ou como as recepções às autoridades na aldeia, não se trata somente de uma demonstração ou simplesmente de “fazer festas bonitas para os brancos verem”. Trata-se, uma vez mais, de subordiná-los à própria lógica cerimonial (Guerreiro Júnior, 2012), de colocá-los a serviço da máquina ritual mebêngôkre, produtora de beleza e diferença. Afinal, somente uma candidata será escolhida como a miss kayapó.

O concurso da miss e sua espetacularização

O espetáculo não é uma coleção de imagens; ao contrário, ele é uma relação social entre pessoas mediadas por imagens. (Guy Debord)

Este tópico se destina a mapear algumas transformações percebidas na análise comparativa de uma sequência de concursos da miss kayapó: do primeiro, realizado em 2009, ao mais recente, realizado em 2013. Uma análise diacrônica, ao inserir um movimento temporal em seu escopo, permite acompanhar o processo de espetacularização do concurso da miss, e da própria festa do dia do índio, bem como a eficaz e consciente ação dos Mebêngôkre nesse processo, notadamente por meio de seus chefes. Estamos aqui diante de contextos rituais, cujo valor e beleza giram em torno da produção, apreciação e circulação de “indigenous body images” (Conklin, 1997: 711) em redes interétnicas mediatizadas. A indigenização da modernidade, como quer Sahlins, acontece atualmente e nas diversas partes do globo onde ela se processa em meio “a um mundo superpovoado por imagens” (Gonçalves, 2010: 17), um mundo espetacularizado, se lembramos da definição original proposta por Guy Debord. Como se lê na epígrafe, o espetáculo não se configura pelo simples acumulo de


339 imagens, mas por mediar relações sociais através delas conectando pessoas que exercitam a mediação imagética como uma nova forma de se apropriar do mundo ao redor, talvez se sobrepondo à oralidade como forma de conhecimento desse mundo (Gonçalves, 2010). Vimos como os próprios Mebêngôkre têm cada vez mais tecido relações por meio de imagens rituais, criando um amplo circuito imagético que percorre aldeias longínquas. Vimos também como desde os anos de 1980, os Mebêngôkre têm se apropriado das máquinas e tecnologias de produção de imagens, e colocando-as para funcionar em prol de uma concepção própria de visualidade e visibilidade tão cara ao seu kukràdjà, às suas concepções de beleza e às suas formas rituais. Mas em um mundo superpovoado por imagens, quando elas podem ser infinitamente multiplicadas, copiadas, compartilhadas, poder-se-ia perguntar sobre como ocorre o controle indígena de suas próprias imagens em circulação? Por meio de que processos e estratégias políticas esse controle é exercido? Que mecanismos éticos e estéticos são acionados nestes contextos? Como se constitui, enfim, a espetacularização da indianidade, justamente em um contexto de indigenização da modernidade? Essas questões podem aqui ser entendidas à luz das transformações operadas nas diferentes edições dos concursos da miss, com sua crescente espetacularização. Para começar, retornemos ao ano de 2009, quando o desfile foi executado pela primeira vez. ɷɷɷ As poucas informações que possuo desse primeiro concurso me inclinam a considerá-lo um experimento improvisado, um primeiro contato dos Mebêngôkre com a ideia de colocar a beleza de suas adolescentes (e de suas aldeias) em disputa no centro da cidade. Tão logo essa ideia foi sendo compreendida, disseminada e, mesmo, apropriada pelos Mebêngôkre, seu grau de espetacularização aumentou consideravelmente. Não que de início o concurso da miss não tenha surgido já sendo filmado, gravado e visto por um grande público. No primeiro concurso, realizado em 2009, e a confiar nas únicas fotos que temos desse evento, já está presente um certo coeficiente de espetacularização. Nota-se um grande público presente no desfile, e por traz das candidatas, é possível ver um cinegrafista com sua câmera em punho (ver figura 81). Mas o grau de reprodução e circulação dessas imagens não alcançou, por exemplo, a rede mundial de computadores, como passou a ocorrer nos concursos posteriores. Faça o leitor o experimento de digitar as palavras “miss kayapó” no buscador de imagens do google e ele verá imagens de diferentes edições do concurso, mas não de sua primeira edição. Esse baixo grau de


340 dispersão dessas primeiras cenas da miss é coerente com sua ainda incipiente espetacularização. E também com o aspecto ainda improvisado do evento: não haviam, em 2009, as passarelas vermelhas presentes nas próximas edições do concurso, adornadas com tochas de fogo, palmeiras e esculturas de frutas; e além disso, só quatro candidatas participavam dessa primeira versão, representando as quatro aldeias, cujas delegações estavam presentes na festa do dia do índio daquele ano: Môjkarakô, Kikretum, Pykararãkre e Kôkraimôro. Note-se ainda que no primeiro concurso todas as candidatas se vestiam como rainhas, sendo a representante de Môjkarakô a única a usar o look completo, com a grande diadema krokroti. Soube depois que fora essa candidata, a vencedora da edição de 2009. A derrota no primeiro concurso parece ter motivado as mulheres de Kikretum a inventar um novo look a ser apresentado em 2010, posteriormente adotado pela totalidade das candidatas. Assim, de 2009 para 2010, não somente o look havia se transformado, mas também essa transformação impôs uma outra forma de julgamento, deslizando de uma apreciação dos diversos enfeites sobrepostos ao corpo, para as formas e volumes, dele próprio, o corpo, bem como para o desempenho das candidatas, seu jeito e sua graça. O que certamente contribuiu para a crescente espetacularização do evento. O concurso da miss kayapó realizado em 2010 representou um passo a mais nesse sentido. Agora ele vinha impresso nos folders e cartazes distribuídos pela cidade, como a atração principal do sábado a noite. A festa e o concurso foram divulgados nos meios de comunicação das cidades do sul do Pará. Repórteres, cinegrafistas e fotógrafos dessas agências ocupavam a quadra do ginásio, onde o desfile seria realizado. Ao centro da quadra uma grande passarela fora montada com um longo tapete vermelho, adornado em suas bordas com lumiárias de palha trançada. Em uma das extremidades da passarela, estava a tribuna de honras e, à frente dela, a bancada dos jurados . Na outra extremidade estavam posicionados os fotógrafos e cinegrafistas. Ao redor da passarela, aproximadamente mil índios estavam sentados no chão observando a cena que se formara. Atrás do público mebêngôkre, as arquibancadas estavam lotadas pela população da cidade, com algumas pessoas, inclusive, por cima dos alambrados. Uma música eletrônica percorreu o ambiente e os apresentadores do concurso anunciaram seu início. Cada uma das seis candidatas foi convocada a desfilar, tendo seu nome e sua aldeia de origem anunciados repetidas vezes pelos locutores. Durante os desfiles, o apresentador kuben, repetia as seguintes frases: “Miss Kayapó 2010. É a beleza kayapó na passarela”. A cada pose das candidatas, o público aplaudia, gritava, assoviava e tirava fotos.


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Figuras 87, 89, 90: respectivamente, candidata da aldeia Aùkre (repare o seu look diferente); candidata da aldeia Pykararãkre; candidata da aldeia Apêjxti.


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Figuras 91, 92, 93: Respectivamente, candidata da aldeia Kôkraimôro; Ngrej'ôk, candidata da aldeia Môjkarakô; Nhaktum, candidata da aldeia Kikretum


343 Em 2010, as proporções da festa do dia do índio, haviam aumentado. Duas novas aldeias (Aùkre e Apêjti), haviam sido convidadas a participar da festa, e com elas vinham duas novas candidatas a miss. Assim, foram seis e não apenas quatro, como no ano anterior, as garotas que se apresentaram para o público e para os jurados. Dentre elas estavam Ngrej'ôk, a candidata de Môjkarakô, treinada pela professora Ilda, e Nhaktum, a moça de Kikretum, cujas parentes femininas haviam criado o novo look, vestido agora por praticamente todas as candidatas, com exceção da representante da aldeia Aùkre. Esta menina, que era visivelmente mais “cheinha” que as demais, portava o look antigo, de rainha, destoando claramente das outras candidatas nos termos da nudez de seu corpo. Enquanto todas as outras mostravam os seios, e o dorso, realçados pelos padrões de pintura corporal, a candidata de Aùkre tinha o seu corpo coberto de enfeites de miçanga. A estratégia das mulheres da aldeia Aùkre, de enfeitar o corpo de sua candidata com pesados enfeites de miçanga, não deu certo. Naquele ano, em conjunto com o look, os padrões de apreciação haviam se transformado. Assim, durante os desfiles as candidatas mais aplaudidas pelo público foram Ngrej'ôk e Nhaktum. As duas mostravam desenvoltura no caminhar e nas paradinhas, sorrindo e reverenciando públicos e jurados. Encerrados os desfiles, e depois de apreensivos trinta minutos, os jurados, todos kuben, consagraram Nhaktum como a miss kayapó do ano de 2010. Ngrej'ôk, embora tenha treinado exaustivamente suas “paradinhas” e poses, ficara em segundo lugar. Em terceiro ficou a candidata da aldeia Apêjxti.

Figura 94: As três vencedoras do concurso de 2010. Nhaktum ao centro com a faixa de Miss; Ngrej'ôk à


344 esquerda, em segundo lugar; em terceiro, a candidata da aldeia Apêjxti.

A faixa de miss foi solenemente colocada em Nhaktum pelo prefeito da cidade. Muitos fotográfos se amontovam para conseguir o melhor quadro. Em uma demonstração clara da disputa estética e política que envolve o concurso, o principal chefe de Kikretum adentrou ao quadro da cena. Ali estavam os três: o prefeito de um lado, a miss ao centro e o sorridente cacique de Kikretum do outro lado. Permaneceram imóveis por mais de um minuto para saciar a vontade imagética dos cinegrafistas e fotógrafos. O mesmo ritual imagético foi repetido para as vencedoras do segundo e terceiro lugares. Entregaram os prêmios para elas, respectivamente, a secretária de educação e primeira dama do Munícipio. E lá estavam os caciques de Môjkarakô e Apêjxti posando com suas candidatas e sua respectiva autoridade. As relações entre estética e política nunca estiveram tão objetificadas e espetacularizadas como nessas fotos.


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Figuras 95, 96, 97: Estética e política. Fotos da premiação do concurso Miss Kayapó 2010.

As proporções da festa do dia do índio de 2011 foram ainda maiores. Agora, mais três aldeias (Krinu, Gorotire e Krenmajti) foram convidadas a participar do evento, totalizando nove delegações e, consequentemente, nove candidatas a miss. O sucesso da festa de 2010, e a disseminação de suas imagens nos mais diversos meios de comunicação transformaram a festa daquele ano em um evento de massas, espetacularizado do início ao fim. Afinal, dois mil kayapós iriam ocupar a cidade naquela semana do mês de abril. A cobertura jornalística aumentara, o mesmo ocorrendo com a participação de políticos e autoridades locais. Esperava-se a presença no dia do concurso, da governadora do estado do Pará. O movimento de turistas vindos para participar da festa se fazia presente nos poucos hotéis e lan houses da cidade. Além do concurso da miss kayapó, outra grande atração estava prevista: tratava-se de um show do cantor Pykatire, e programava-se o lançamento de seu CD com versões e composições próprias de canções sertanejas e bregas em língua mebêngôkre. Esse show merece um comentário à parte. Embora não o tenha presenciado, pude ver a gravação em vídeo feita pelos cinegrafistas de Môjkarakô. Pykatire não cantava com uma banda. As batidas de seu som entoavam pelos alto-falantes, enquanto ele punha por cima delas sua voz ao cantar em mebêngôkre, lembrando as apresentações dos cantores de músicas bregas e seus inseparáveis teclados eletrônicos. Pykatire não apenas havia criado as músicas, mas também inventara uma dança particular que executava durante sua apresentação. Ele apresentou cinco canções, sendo que seu sucesso Bà ikaprire (“Estou triste”), cuja letra narra as algúrias de amor


346 vividas pelo eu-lírico depois de ser abandonado por sua amada, teve que ser repetida como biss, ao fim do show e à pedido do público. O sucesso dessa canção foi tamanho que os organizadores resolveram por adotá-la como a música tema do desfile daquele ano, sem antes solicitar a um Dj que fizesse uma versão remix, inserindo em seu arranjo batidas de música eletrônica, como pedia a ocasião. E foi assim, ao som de Pykatire que as nove candidatas a miss kayapó 2011, foram convocadas uma a uma à passarela, desta feita, adornada com diversas esculturas de abacaxi e uma grande tocha acesa em seu início. Dessa vez, acompanhando o aumento no número das candidatas, o júri também havia aumentado, sendo composto por seis jurados. Dentre eles, estava a primeira dama do município, a vice-prefeita, a diretora da maior escola da cidade, uma representante da Funasa, um professor de Educação Física e um estilista de Marabá convidado especificamente para ocasião. A presença do estilista famoso na região do sul do Pará fazia jus ao aperfeiçoamento dos looks das candidatas daquele ano. As diferentes mulheres que os desenvolveram criaram peças que combinavam entre si nos detalhes coloridos, formando combinações de cores próprias a cada uma das candidatas. Assim, looks predominantemente azuis se contrastavam, com aqueles cujas cores sobressalentes e relacionadas eram o verde e o amarelo, ou o preto e branco, ou o vermelho e branco, ou simplesmente branco. Certos enfeites haviam chegado a formas tais que acompanhavam o molejar das candidatas no desfile. Os longos brincos de miçanga, os também longos pingentes dos colares, as franjas das jarreteiras e dos cintos, acompanhavam os movimentos corporais das candidatas, sacolejando no ar a cada pose para os jurados. A calcinha colorida, dava o tom assimétrico do look. Desta vez, não havia sequer uma menina usando o look de rainha, todas as nove participantes mostravam versões estilizadas do look inventado em 2010 pelas mulheres de Kikretum. O que ressaltava a beleza física e a performance das candidatas, mas também os diferentes padrões de pintura corporal que cada uma delas trazia na pele do corpo e do rosto.


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Figuras 97 à 107: As dez candidatas à Miss Kayapó 2011. (Fotos: Bepron Kayapó)

O resultado daquele concurso foi, contudo, motivo de polêmica. Pela primeira vez houve discordâncias claras entre o resultado apresentado pelos jurados e aquele percebido por boa parte do público mebêngôkre. A candidata vencedora, representante da aldeia Gorotire, não agradara os participantes de outras aldeias, embora tenha agradado tanto os jurados como o grande público kuben que lotava as arquibancadas do ginásio. A discordância dos Mebêngôkre não parecia estar nos enfeites de miçanga que eram similares aos das outras candidatas, tampouco no uso da calcinha e da pintura corporal. Ela se concentrava em um único aspecto significativo do seu look: a candidata de Gorotire não tinha seus cabelos cortados ao modo feminino mebêngôkre, tal como o exibiam todas as demais candidatas. A tradicional faixa raspada ao centro da cabeça, dava lugar no look da candidata de Gorotire a uma franja que lhe cobria parte da testa. Além desse detalhe muito comentado negativamente, a candidata apresentava um caminhar diferenciado, um molejo de tal forma natural que levantou-se suspeita sobre sua identidade étnica. Falava-se após o desfile que a vencedora não era Mebêngôkre, que era filha de kuben, que por isso tinha vergonha de cortar o cabelo como as mulheres kayapó.


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Figuras 108 e 109: A Miss kayap贸 2011 e sua franja pol锚mica.


351 (Fotos: Bepron Kayapó)

Não soube se estas informações procedem, mas o fato delas serem enunciadas talvez aponte para um momento chave do concurso, quando os Mebêngôkre se viram diante do fato de estarem perdendo o controle sobre a imagem de beleza apresentada naquele contexto. Talvez houvessem percebido que naquele ano a vencedora do concurso rompia os limites de certos padrões éticos e estéticos nativos, desequilibrando o tênue encontro de perspectivas entre índios e kubens que as candidatas a miss, esses seres quiméricos, produzem no contexto daquela cerimônia. Talvez porque, em 2011, a festa do dia do índio e, consequentemente, o concurso da miss, haviam atingido um alto grau de espetacularização, justo no momento em que ocorrera vitória de uma candidata considerada por grande parte do público mebêngôkre como sendo por demais kuben. Esse desencontro de perspectivas estéticas até então inédito no evento, acarretou consequências consideráveis nas edições seguintes do concurso. De fato, ele parece ter exigido um momento de reflexão por parte dos Mebêngôkre. Não foi por acaso, portanto, que às vésperas do início da festa de 2012, os caciques das dez aldeias participantes, decidiram por bem cancelar o concurso da miss kayapó durante uma reunião com a equipe executora. Ainda não me perdoei por não ter participado dessa reunião, pois as discussões ali envolvidas seriam de grande importância para a compreensão dessa decisão. Como modo de compensá-lo, apresento um relato concedido por Akjabôro no primeiro dia da festa, a partir de meu questionamento sobre a notícia do cancelamento do concurso da miss, que rapidamente se espalhara pela cidade. Akjabôro disse as seguintes palavras: Foi eu que proibi o concurso da miss. Porque os kuben estavam fazendo sacanagem com as imagens das meninas do meu povo. Isso não pode acontecer não. Eu não gosto disso. Tem que respeitar meu povo. Estavam tirando foto e colocando em site de sacanagem. Fazendo brincadeira feia com a nossa imagem. Isso eu não gosto. Por isso foi proibido. Três cacique queriam fazer. Na votação eles perderam.

Quando perguntei sobre as reações da equipe executora a essa proibição, Akjabôro disse: Eles tiveram que aceitar. Porque essa festa aqui na cidade é dos Mebêngôkre, não é dos kuben não. Se a secretária faz o concurso, a gente cancelava a festa, não tem mais festa. Por isso ela tem que aceitar. Eu falei pesado na reunião e aí ela aceitou.

Essas palavras de Akjabôro, se sem dúvida justificam o cancelamento do concurso, não deixam de evocar o resultado do concurso anterior, quando a candidata vencedora não agradara aos índios, sendo considerada kuben por muitos deles. A reação à circulação indevida das imagens na internet foi uma boa justificativa para que os Mebêngôkre, sobretudo por meio de seus chefes,


352 retomassem o controle das imagens e dos padrões de beleza nativos apresentados na festa. Tanto que, além do concurso da miss, fora cancelado também o novo show do cantor Pykatire, sucesso na edição de 2011, bem como qualquer apresentação em que índios performatizassem a 'cultura' dos kuben. O espaço deixado por essas atrações na programação noturna do evento fora ocupado pelas apresentações coletivas das delegações participantes da festa, intermeadas por discursos de seus chefes na língua mebêngôkre. Em 2012, a festa do dia do índio voltara a ser uma festa mebêngôkre, como afirmou acima Akjabôro. Voltara, porque novamente eles controlavam suas imagens e, sobretudo, retomavam a condução da própria festa. Neste sentido, é digno de destaque a contínua participação de Akjabôro durante a execução de todo o evento. Além de proferir o discurso da chegada, quando as delegações aportavam em São Félix, exigindo respeito dos kuben, lembrando a eles da violência dos seus antepassados, justamente, para com as mulheres –, Akjabôro geriu toda a programação das apresentações noturnas, fazendo discursos de exaltação da cultura mebêngôkre e concedendo, ele mesmo, entrevistas para diferentes canais de televisão. Uma das cenas protagonizadas por Akjabôro naquele ano exemplifica com clareza a retomada do controle imagético da festa e revela alguns de seus princípios éticos e estéticos, bem como suas intenções. Em uma das apresentações noturnas da aldeia Môjkarakô, com o ginásio da cidade lotado, Akjabôro, em um gesto performático, retirou do centro da quadra dois jovens dançarinos calçados com seus reluzentes e coloridos pares de tênis all-star. Levou-os para um canto do ginásio e gesticulou com os braços, no movimento característico de quem está mandando alguém embora. Foi seguidamente aplaudido por todos, inclusive pelas centenas de não indígenas que lotavam as arquibancadas. Mokuká, que acompanhava a cena ao meu lado, com sua inseparável filmadora, me explicou a performance de Akjabôro com as seguintes palavras, afirmadas imediatamente após o ocorrido: Ele não está aceitando que os jovens dancem assim com o pessoal. Quando tem tradição boa como essa, não pode usar tênis, não pode usar aqui na festa. Aqui só pode tradição de verdade. Por isso que ele fez isso. Ele não gostou. Ele está mostrando para os outros como é que tem que ser. Para a nossa imagem ficar mejx kumrenx.

A explicação de Mokuká não poderia ser mais clara: a atitude performática de Akjabôro, perante os dois menoronure de Môjkarakô consistia no uso da espetacularidade daquele evento como uma forma de transmitir um conjunto de princípios éticos e estéticos necessários à forma correta de reprodução das imagens capturadas na festa. Os pares de all-star calçados pelos rapazes, assim como a franja do penteado da miss kayapó de 2011, demarcam o que não deve ser reconhecido como cultura mebêngôkre em contextos específicos. A reação de Akjabôro a essa


353 forma indevida de enfeitar o pé agradou àqueles que defendem a “boa tradição”, misturando índios e brancos em um mesmo gesto de aplauso. Sua ação foi a de quem está em uma disputa espetacular, cujas formas de embate se dão por imagens. Sua performance – quando pensada segundo um contexto no qual “as imagens vêm se apresentando como 'armas culturais' por meio de uma luta ambígua que tanto produz como destrói imagens, ícones e emblemas” (Latour, 2008: 112) – pode ser vista como um duro golpe estratégico no inimigo, tomando como arma o infortúnio dos dois menoronure de Môjkarakô que dançavam com seus parikà (tênis); e como glória, os aplausos que encheram o ambiente. Mas quais seriam os objetivos dessa performance dentro da performance? Destacar, arrisco dizer, Môjkarakô enquanto aldeia que segue “a tradição boa”, que forma uma imagem correta e bela de um corpo coletivo, enfeitado, produzido, nos mínimos detalhes de “um retrato compósito”. Eis o sentido da atitude iconoclasta de Akjabôro. Afinal seu gesto parecia dizer que: se os outros parentes aceitam esse item de indumentária, nós de Môjkarakô, não aceitamos! E seria melhor que eles, ao menos naquele contexto, também não aceitassem. Aqui, como em outros contextos imagéticos, tudo se passa “como se a desfiguração de um objeto pudesse inevitavelmente gerar novas faces; como se o desfiguramento e o 'refiguramento' fossem necessariamente coetâneos” (Latour, 2008: 114). E de fato o são: a atitude iconoclasta e desfigurativa de Akjabôro ao expulsar os dois menoronure da quadra refigura a imagem de Môjkarakô enquanto aldeia que segue “a tradição boa” e, consequentemente, faz dessa refiguração um gesto que angaria status, valor e beleza à performance da aldeia naquele contexto de competição inter-aldeão. Ao mesmo tempo, no plano interétnico, e não mais intra-étnico, a performance de Akjabôro não deixa de ser um aviso aos kuben sobre quem controla o espetáculo. Mesmo que não se controle as formas de reprodução, dispersão e circulação das imagens, é claramente possível, nos ensina mais uma vez Akjabôro, exercitar sua administração segundo princípios estéticos próprios. Para encerrar a sequência de concursos que me propus a analisar, bem como suas transformações mais recentes, é preciso esclarecer ao leitor que, em 2013, as candidatas à miss retornaram à cena e o concurso voltou a ser a atração principal da festa do dia do índio. Mas agora, novas transformações ocorreram. Se, por um lado, os looks permanecem semelhantes àqueles apresentados no concurso de 2011, por outro, não se pode mais desfilar sem o corte tradicional das mulheres mebêngôkre. Contudo, e para além dessa exigência, a alteração mais profunda concretizada no concurso de 2013 – e que possui relações diretas com o controle dos padrões de beleza expostos pelas candidatas em um evento que continua sendo espetacularizado – diz respeito à nova formatação do corpo de jurados. O júri passou a ser composto não mais por autoridades locais, estilistas famosos ou funcionários públicos. Agora, são cinco caciques de diferentes aldeias


354 mebêngôkre que julgam a beleza das candidatas a miss. Essa transformação nada mais é que uma estratégia política nativa de retomada do controle imagético e estético da cerimônia. Uma estratégia que visa demonstrar, como já explicitado, que nestes contextos rituais contemporâneos e interétnicos a espetacularização da indianidade é governada por processos de indigenização da modernidade. Uma estratégia que visa, enfim, explicitar aos kuben que patrocinam e participam desse grande ritual, quem comanda o espetáculo.


355

Epílogo

De volta à aldeia

Para encerrar esta tese é oportuno retornar à aldeia Môjkarakô, como retornam ano após ano seus moradores depois de participarem da festa na cidade. É preciso retornar ao espaço de produção comunitária a partir do qual esta tese foi iniciada sem, contudo, deixar de mencionar as diversas redes de relações canalizadas para este espaço. No capítulo um, vimos como essas redes de relações diversas são constituídas pelos coletivos mebêngôkre em sua intensa interface com as cidades do entorno da TI Kayapó. Vimos como circuitos imagéticos são criados para circulação de imagens rituais que carregam consigo a beleza objetificada da aldeia que os produziu. Agora, para encerrar essa tese e retomar algumas de suas principais questões, veremos como a máquina de produção ritual não para de cessar. Novas notícias chegam de Môjkarakô. Em setembro de 2012, Môjkarakô foi palco de um grande encontro interétnico que reuniu pessoas de dezesseis etnias distintas. A primeira feira de sementes Mebêngôkre, foi um evento de grandes proporções. Cerca de duas mil pessoas se encontraram em Môjkarakô por uma semana: muitos parentes de outras aldeias, muitos parentes de outras etnias, muitos kuben das mais longínquas cidades e países. Tudo isso sendo organizado, uma vez mais, por meio da forma mebêngôkre de se fazer rituais. Uma vez mais, o jeito de Môjkarakô, seu kukràdjà, estava sendo colocado em ação; uma vez mais, enfim, eles estavam, produzindo comunidade, “fazendo cultura” e praticando uma política da visualidade. As imagens e narrativas que vi e ouvi sobre a feira, estas últimas tanto de índios quanto de kuben, ressaltam algumas questões colocadas e alguns eventos etnografados nessa tese. Primeiro, o fato dos habitantes e chefes de Môjkarakô terem escolhido o calendário da feira para coincidir com o aniversário da aldeia, tematizado aqui no capítulo dois. A feira foi realizada de três à sete de setembro, de modo que o dia seis, o dia do aniversário de Môjkarakô, ficou programado como o dia do grande encerramento, onde os quase dois mil presentes na aldeia participaram de uma grande festa de comemoração da existência de Môjkarakô, e da história de luta e trabalho de seus moradores. Dessa vez não houve bolo, mas estavam presentes os discursos públicos dos chefes, exaltando o jeito da aldeia. Graças ao trabalho incansável dos cinegrafistas, os breves discursos de


356 Kaikware e Akjabôro puderam ser gravados. Naquela ocasião, os chefes disseram o seguinte: Akjabôro: Hoje é o aniversário da nossa aldeia. Porque esta é a data que nós nos encontramos. Eu e Kaikware e todos que nos seguiram e que fizeram essa aldeia bonita. Vocês são amigos e parentes, vejam como é bom viver aqui. Aqui nasceu e morreu meu neto. Mas nós estamos aqui ainda. Passando por cima da tristeza. Eu vou continuar defendendo vocês. Eu estou muito feliz por todos vocês de todas etnias e aldeias estarem aqui. Muito obrigado. Parabéns Môjkarakô. Kaikware: Quando vocês estão aqui olhando para a gente nós ficamos muito felizes. Nós dividimos todo o serviço para fazer essa aldeia. Desde muito tempo nós trabalhamos juntos, muito antes de ter feira de semente. Quando vocês chegaram na minha aldeia eu fiquei feliz. Meu pai era muito bom. Eu nasci por ele e fiz a mesma coisa que ele fez [mulheres começam a chorar]. Eu estou pensando em vocês, estou pensando na saudade que eu vou sentir de vocês. Mas tudo bem, vocês chegaram bem aqui, nós recebemos vocês muito bem, não teve problema, não teve confusão. É assim que a gente trabalha aqui. Amanhã vocês vão embora e nós vamos ficar tristes. Nós, eu e Akjabôro, trabalhamos juntos para fundar essa aldeia. Não ficamos falando mal dos outros. Vocês tem que saber isso. Nós temos que pensar um no outro. Nós temos que resolver junto. Boa tarde. Parabéns Môjkarakô. Esses discursos, como deve perceber o leitor, não deixam de ecoar os temas daquelas falas similares apresentadas no segundo capítulo desse trabalho: a produção do ânimo inspirado, do senso de comunidade, do jeito, enfim, de Môjkarakô, de sua interpretação particular e coletiva da forma mebêngôkre. Só que agora tudo isto é potencializado, pois está sendo dito para um grande e diversificado público. “Vejam como é bom morar aqui”, diz Akjabôro para esse público. “É assim que a gente trabalha aqui”, diz, por sua vez, Kaikware. Exaltações da beleza da aldeia, de sua capacidade de receber todos ali muito bem, de oferecer comida farta e moradia tranquila durante aquele período. Como disse o cacique Pedro, da aldeia Aùkre, que também discursou: “Senhores e Senhoras, nós todos chegamos aqui muito bem, cada cozinheira eu agradeço a elas, todos dormiram bem, almoçaram bem, jantaram bem”. Todo o sucesso do evento, organizado pela Associação Floresta Protegida e por uma longa lista de parceiros nacionais e internacionais 116, estava sendo canalizado para a festa de aniversário, como que atualizando as diversas redes de relações constituídas pelos chefes e moradores de Môjkarakô para criar a aldeia, e mais do que isso, para criar uma comunidade e fazê-la bela. Essa estratégia de apropriação do evento e de suas formas de produção tem a ver com a própria política contemporânea mebêngôkre, onde chefes e coletivos ganham prestígio ao atrair poderosos kuben e seus objetos para produção de rituais, e, preferencialmente, exibir estas conquistas para chefes e 116

Dentre as quais se destacam: USAID (agência de ajuda humanitária do governo Norte-americano), VALE, FUNAI (Fundação Nacional do Índio), MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), MDS (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome), MMA (Ministério do Meio Ambiente), TNC (The Nature Conservancy), Prefeitura Municipal de São Félix do Xingu, Secretaria de Meio Ambiente do Pará (SEMA-PA), ICFC (Fundo Internacional de Conservação do Canadá).


357 coletivos de outras aldeias, tal como vimos ocorrer no capítulo três sobre a cerimônia de posse de dois novos caciques. É essa trama que está em ação nesse e nos outros contextos rituais etnografados neste trabalho. É esse jogo de conquista política, mas também estética e imagética, que está sendo disputado. Nestes contextos rituais, como vimos, a beleza coletiva, resultante de toda a preparação do ritual e de todo kukràdjà que seus produtores são capazes de se apropriar e exibir, é objetificada e transformada em imagens e signos potentes, prenhes de beleza, que irão percorrer complexos circuitos de comunicação e de troca. Os rituais contemporâneos, suas novidades e inventividades, estão a serviço de uma estética da produção e da predação que não cessa de acontecer simultaneamente. A festa continua sendo como a guerra. Sobre a feira de semente, ouvi que havia uma disputa interna ao evento que dizia respeito às “apresentações culturais” e que envolvia não apenas as delegações kayapó de outras aldeias – como vimos ocorrer no capítulo seis sobre a festa do dia do índio realizada na cidade –, mas também as delegações de outros grupos indígenas que participavam do evento. Enquanto os Krahô e Apinajé desejavam realizar suas cantorias no pátio da aldeia, por exemplo, os Mebêngôkre, em maior número, impunham a todos os presentes a sua mais recente novidade musical, repetida incansavelmente todas as noites. O Forró Mebêngôkre, tratado no capítulo sete, estava de volta e naquele contexto se transformou em uma forma eficaz de aproximar pessoas de etnias, aldeias e cidades distintas. O fato é que Mokuká, um dos personagens dessa tese, criou, com seu imenso kukràdjà acumulado, canções em língua mebêngôkre dos gêneros forró e brega, algumas das quais feitas também em português, como seu indefectível sucesso "Tem, tem, tem mulher bonita", segundo me contaram, executado a exaustão nas noites da feira de sementes. As canções de Mokuká, cantadas por ele no pátio da aldeia e amplificadas pelas caixas de som, dividiam a programação preferida com uma dupla de índios peruanos vestidos de apache, com suas flautas e rondadores. Estes, como Mokuká eram requisitados a tocar todas as noites. Também fez parte da programação a encenação de um casamento interétnico. Akjabôro fazendo o papel do padre, declarou como marido e mulher, um rapaz Kaxinawa e uma moça Terena. Toda essa programação diversificada não deixa de nos lembrar o quanto os Mebêngôkre continuam “fazendo cultura” (kukràdjà nhipêjx), preferencialmente, por meio da apropriação das objetivações estéticas e miméticas dos outros. As pinturas corporais e miçangas, tratadas aqui respectivamente nos capítulos quatro e cinco, também estiveram presentes nos relatos que ouvi sobre a feira. A primeira, apareceu nos corpos dos Mebêngôkre presentes no evento, mas também nos corpos das pessoas de outras etnias. Filas se formaram para que as mulheres kayapó pintassem os corpos de seus convidados, como era


358 de desejo desses últimos. O que não deixa de ser uma forma de, como vimos, aparentá-los, fazerem eles ombikwá (parentes) e também, como não poderia deixar de ser, de deixá-los todos belos para a festa. As miçangas, por seu turno, apareceram por meio de uma anedota muito explicativa da verdadeira obsessão mebêngôkre pelas contas de vidro. Um homem da delegação dos Canela, que havia levado uma substancial carga de sementes para serem trocadas na feira, voltou desolado do evento com praticamente a mesma carga que havia levado de sua aldeia. No ônibus que o levaria de volta ao país dos Canelas foi questionado sobre o porquê de não ter conseguido trocar suas sementes e sobre o porquê de sua desolação. A que respondeu prontamente: “Kayapó não gosta de semente. Kayapó só quer saber de miçanga”. É claro que se deve relativizar essa anedota, mas ela não deixa de ser um índice do gosto mebêngôkre pelas famosas contas de vidro, utilizadas pelas mulheres na confecção de uma farta diversidade de enfeites. Apropriadas, compradas ou saqueadas, as miçangas são um indiscutível elemento da vida ritual contemporânea dos Mebêngôkre. Seu alto consumo, se, por um lado, democratiza o acesso à beleza, por outro, continua criando diferenciação através da multiplicação de versões de enfeites antes exclusivos. Mesmo quando comunizados, a função nekrêjx desses enfeites continua sendo ativada pelas diferentes formas, cores e imagens que eles evocam e assumem. É o processo de comunização diferenciante que está em ação também ali na feira de sementes. Por isso, o desejo avassalador por miçangas que deixou desolado o participante Canela. A feira da semente, se nos traz de volta à aldeia, pode nos levar ainda mais adiante até acontecimentos ainda mais recentes, como se a etnografia da produção cultural contemporânea dos Mebêngôkre nunca pudesse chegar ao fim. Alguns dias antes de escrever essa conclusão recebi uma ligação de Pawire, um dos cinegrafistas do Projeto de Documentação das Culturas, que ligara para me atualizar sobre alguns acontecimentos recentes da vida dos habitantes de Môjkarakô. Contou na verdade uma história trágica. Um grupo de assaltantes haviam roubado o dinheiro (cerca de vinte mil reais) de alguns fazendeiros que iriam comprar um carregamento de castanha do Pará dos habitantes de Kikretum, uma grande aldeia próxima a Môjkarakô. Tudo aconteceu na localidade denominada P9, um entreposto de embarcações que serve de ponto de apoio para os indígenas que se deslocam até as cidades de Tucumã e São Félix. Durante a ação dos assaltantes, me contava Pawire, um homem de Kikretum foi assassinado a tiros por eles. Momentos depois, três homens de Môjkarakô, exímios caçadores, chegavam até o P9 de canoa e, vendo o que estava acontecendo, abriram fogo com suas espingardas contra os ladrões, ferindo um e fazendo com que os outros fugissem. Uma verdadeira operação de caça aos ladrões foi montada pelos índios, com intensa


359 participação dos chefes e homens de Môjkarakô. Posteriormente os assaltantes foram presos pela polícia federal. Acontece que um dos assaltantes (o que foi ferido) pertencia a uma conhecida família de São Félix do Xingu. Depois do ocorrido, alguns indígenas foram hostilizados quando estavam na cidade. Em reunião os chefes de várias aldeias decidiram que todos os Mebêngôkre que estavam na cidade deveriam voltar para suas aldeias e lá permanecerem por pelo menos três meses, até que o clima de hostilidade amainasse. Estou contando essa história porque ela tem importante repercussão na organização da festa do dia do índio de 2014. Como o evento do assalto aconteceu em fevereiro, nos três meses de permanência na aldeia estabelecidos pelos chefes estavam computados o período em que anualmente os indígenas descem os rios rumo à cidade para a festa do dia do índio, ocorrida regularmente no mês de abril. A decisão dos caciques implicava na não execução da festa, o que desagradou muitas pessoas. Pressionados pelos moradores, me contava Pawire, os chefes decidiram que a festa ocorreria sim, só que, excepcionalmente naquele ano, ela aconteceria nas aldeias. Depois de um período de negociações com a prefeitura de São Félix sobre a melhor logística a ser empregada na preparação da festa, ficou decidido que ela ocorreria simultaneamente em duas aldeias: uma do lado do rio Xingu, e outra do lado do rio Fresco ou do Riozinho. Cada uma delas receberia delegações vindas de diferentes partes da TI Kayapó. Restava decidir quais seriam essas aldeias. Do lado do Xingu, a questão estava facilmente resolvida. Kôkraimôro foi escolhida por ser uma grande aldeia, populosa e antiga, e mais do que isso, pelas fecundas redes de relações políticas que seus chefes tecem historicamente com os governantes de São Félix do Xingu. Do lado do Fresco e do Riozinho existia um conflito. Tanto os chefes e moradores de Môjkarakô, quanto os chefes e moradores de Kikretum se requisitaram como anfitriões. Depois de alguma diplomacia de ambos os lados, Môjkarakô foi a escolhida para receber as delegações das aldeias do Riozinho e do Fresco. Pesou na escolha, como me disse Pawire, o fato de que em Kikretum houvera uma grande cisão recente, repartindo a aldeia em três grupos distintos. Os parentes das aldeias que se formaram, não se sentiriam a vontade para festejar em Kikretum. A despeito dessa razão muito plausível, meu interlocutor festejava a consagração de Môjkarakô como aldeia grande e bonita no cenário político inter-aldeão e inter-étnico. Disse algo mais ou menos assim: “hoje Môjkarakô é uma aldeia grande e bonita. Kikretum também já foi assim, hoje não é mais. Tá quase acabando, muita gente foi embora. As pessoas estão tristes lá. Aqui não! Está todo mundo alegre, com vontade de trabalhar. A festa de 2014 vai ser em Môjkarakô e vai ser grande. Você tem que vir ikamu (irmão)”. Ainda não podemos saber como será a festa este ano e quais novas transformações acontecerão. Mas uma coisa é certa: Môjkarakô sairá dela ainda mais bela.


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