casas térreas para construir os edifícios, nós, os
Os comentários
pobres que residíamos nas habitações coletivas,
“Renegada às esferas da arte dos
fomos despejados e ficamos residindo debaixo das
‘bem nascidos’, dos que natural-
pontes. É por isso que eu denomino que a favela
mente têm a concessão para a cria-
é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os po-
ção ficcional, não faz parte de nos-
bres, somos os trastes velhos. [...]”
sos arquivos literários, uma vez que
Carolina Maria de Jesus
“[...] em 1948, quando começaram a demolir as
seus diários foram encarados como “[...] Eu classifico São Paulo assim: o Palácio é a
meros testemunhos sem expressão
sala de visita, a Prefeitura é a sala de jantar e a cida-
artística. A sociedade canônica não
de é o seu jardim. A favela é o quintal onde jogam
permite que a escritora se instale nas
os lixos. [...]”
dependências intelectuais com seu discurso marginal. Carolina estava
“Quando estou na cidade, tenho a impressão que
na favela enquanto escreveu sua pri-
estou na sala de visita, com seus lustres de cris-
meira obra, mas a favela não estava
tais, seus tapetes de veludo, almofadas de cetim. E
nela; sua intenção era o bairro, a casa
quando estou na favela, tenho a impressão que sou
de alvenaria, o que não fazia parte do
um objeto fora de uso, digno de estar num quarto
universo em que vivia. A temática da
de despejo.”
fome lhe deu de comer e lhe retirou da necessidade; instalou-se na cidade
“[...] nós somos pobres, viemos para as margens
jardim e permaneceu fora do lugar.”
do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e
(Christiane Toledo, in Carolina de Jesus: a es-
dos marginais. Gente da favela é considerada marginal. Não mais se vê os corvos voando às margens
critora silenciada, 2011)
dos rios, perto dos lixos. Os homens desemprega-
“[...] isto tudo quer dizer que a história
dos substituíram os corvos.”
dos negros brasileiros é uma história de exploração, racismo, discrimina-
“Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o
ção. Carolina Maria de Jesus, embora
poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo opri-
tenha vindo da origem mais humilde,
mido.”
foi capaz de refletir sobre a situação do país inteiro, sobre a sua situação
“O Brasil devia ser dirigido por quem passou
de mulher, e mulher negra, solteira,
fome.”
com três filhos. Ela refletiu, ela escreveu, ela sofreu as consequências de
“Não digam que fui rebotalho,
seu livro. É realmente uma pena que
que vivi à margem da vida.
ela ainda não seja reconhecida no
Digam que eu procurava trabalho,
Brasil por sua grande inteligência e
mas fui sempre preterida.
pelo valor de seu testemunho. Real-
Digam ao povo brasileiro
mente, ela é uma das pessoas mais
que meu sonho era ser escritora,
incríveis que já nasceram no Brasil.”
mas eu não tinha dinheiro
(Eva Paulino Bueno, in Carolina Maria de Je-
para pagar uma editora.” (trechos extraídos do livro Quarto de despejo –
sus no Kansas: uma história de amor, Revista Espaço Acadêmico, março de 2005)
diário de uma favelada, 1960) ANDES-SN
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junho de 2016
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