Revista Universidade e Sociedade 58

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casas térreas para construir os edifícios, nós, os

Os comentários

pobres que residíamos nas habitações coletivas,

“Renegada às esferas da arte dos

fomos despejados e ficamos residindo debaixo das

‘bem nascidos’, dos que natural-

pontes. É por isso que eu denomino que a favela

mente têm a concessão para a cria-

é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os po-

ção ficcional, não faz parte de nos-

bres, somos os trastes velhos. [...]”

sos arquivos literários, uma vez que

Carolina Maria de Jesus

“[...] em 1948, quando começaram a demolir as

seus diários foram encarados como “[...] Eu classifico São Paulo assim: o Palácio é a

meros testemunhos sem expressão

sala de visita, a Prefeitura é a sala de jantar e a cida-

artística. A sociedade canônica não

de é o seu jardim. A favela é o quintal onde jogam

permite que a escritora se instale nas

os lixos. [...]”

dependências intelectuais com seu discurso marginal. Carolina estava

“Quando estou na cidade, tenho a impressão que

na favela enquanto escreveu sua pri-

estou na sala de visita, com seus lustres de cris-

meira obra, mas a favela não estava

tais, seus tapetes de veludo, almofadas de cetim. E

nela; sua intenção era o bairro, a casa

quando estou na favela, tenho a impressão que sou

de alvenaria, o que não fazia parte do

um objeto fora de uso, digno de estar num quarto

universo em que vivia. A temática da

de despejo.”

fome lhe deu de comer e lhe retirou da necessidade; instalou-se na cidade

“[...] nós somos pobres, viemos para as margens

jardim e permaneceu fora do lugar.”

do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e

(Christiane Toledo, in Carolina de Jesus: a es-

dos marginais. Gente da favela é considerada marginal. Não mais se vê os corvos voando às margens

critora silenciada, 2011)

dos rios, perto dos lixos. Os homens desemprega-

“[...] isto tudo quer dizer que a história

dos substituíram os corvos.”

dos negros brasileiros é uma história de exploração, racismo, discrimina-

“Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o

ção. Carolina Maria de Jesus, embora

poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo opri-

tenha vindo da origem mais humilde,

mido.”

foi capaz de refletir sobre a situação do país inteiro, sobre a sua situação

“O Brasil devia ser dirigido por quem passou

de mulher, e mulher negra, solteira,

fome.”

com três filhos. Ela refletiu, ela escreveu, ela sofreu as consequências de

“Não digam que fui rebotalho,

seu livro. É realmente uma pena que

que vivi à margem da vida.

ela ainda não seja reconhecida no

Digam que eu procurava trabalho,

Brasil por sua grande inteligência e

mas fui sempre preterida.

pelo valor de seu testemunho. Real-

Digam ao povo brasileiro

mente, ela é uma das pessoas mais

que meu sonho era ser escritora,

incríveis que já nasceram no Brasil.”

mas eu não tinha dinheiro

(Eva Paulino Bueno, in Carolina Maria de Je-

para pagar uma editora.” (trechos extraídos do livro Quarto de despejo –

sus no Kansas: uma história de amor, Revista Espaço Acadêmico, março de 2005)

diário de uma favelada, 1960) ANDES-SN

n

junho de 2016

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