Revista Universidade e Sociedade 29

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Minorias Sociais e Luta de Classe no Brasil

Freud comentou, em “O futuro de uma ilusão” (1927), que podemos chamar uma crença de ilusão quando ela é motivada por uma realização de desejo. O desejo que continua sustentando a parceria Religião-Ciência é o da “normalidade delirante da relação genital” (Lacan (1958)1998:613), protagonizada pelo par homem-mulher. Sob o lema de que a homossexualidade degenera o corpo social, grupos organizados pautam sua perseguição aos homossexuais, através dessa ideologia, ocasionando em violência e morte. Em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70), Lacan afirmou que a segregação sempre terá força, reafirmando o que já dissera em “Proposição de 9 de outubro de 1967” (1967), a respeito da segregação reservada à humanidade no futuro. Impressiona constatar, na atualidade, o vigor desse comentário quase profético, na medida que diferenças econômicas, étnicas, religiosas, sexuais se acirram face à globalização da economia mundial, resultando em xenofobia, racismo e homofobia. André (1995:115) indaga sobre uma possível participação da psicanálise na rejeição da homossexualidade na nossa cultura, na medida em que o saber psicanalítico “não é independente de todo o discurso dominante, nem de qualquer estado de civilização”. Penso que sim, a exemplo de como os analistas pós-freudianos e, até mesmo Freud, como vimos, se deixaram influenciar pela dominância do discurso médico. Em que pesem os avanços significativos decorrentes do movimento em prol dos direitos dos homossexuais, a homossexualidade ainda representa um mal-estar na cultura moderna. A produção psicanalítica sobre a homossexualidade ainda é muito restrita ao âmbito clínico, salvo exceções, embora a homossexualidade

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possua desdobramentos sociais evidentes, por exemplo, cidadania, homofobia, adoção de crianças, técnicas de reprodução assistida etc. Este é um desafio para que a transmissão da psicanálise não fique reduzida à clínica, colaborando, assim, indiretamente, na fabricação da homossexualidade como um sintoma social. Notas 1. Este artigo foi extraído da minha dissertação de mestrado “A institucionalização da noção de homossexualidade na psicanálise e seus efeitos na clínica”. 2. Psicólogo. Psicanalista participante da Escola Letra Freudiana (RJ). Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise - UERJ. 3. A institucionalização da psicanálise teve início em 1910, com a criação da IPA por Freud e Ferenczi. O objetivo da IPA era formalizar a transmissão da psicanálise e preservar seu saber, que se expandia, de modo que ele não se descaracterizasse. 4. Em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1960), Lacan conceituou a noção de sujeito do inconsciente, não explicitada por Freud, estabelecendo uma diferença no emprego do termo “sujeito” em relação à psicologia e à filosofia. 5. Resolução nº 1/99, de 23/03/1999. 6. Lacan criticou as noções pós-freudianas de “amor genital” e “relação de objeto” porque elas formulam a existência de um objeto ideal que completaria o sujeito. É uma concepção, segundo ele, que se fundamenta na maturação instintual e promove a “genitalização do desejo”. Sobre isso, ver LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-4) (Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor, 1995, p.233-50), O seminário, livro 4: a relação de objeto (1956-7) (Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1995, p.9-92), e O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-60) (Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1997, p. 17-8).

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Ano XII, Nº 29, março de 2003 - 79


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