Revista Universidade e Sociedade 29

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Debates Contemporâneos

rios, não instituísse uma nova lei para a pesca, não mexesse no petróleo nem na minoria daqueles que, até aqui, só têm se beneficiado dessa riqueza que deveria estar servindo a todos os venezuelanos e de fonte de financiamento para um outro modelo de desenvolvimento sustentado para o país. E mais, por insistir que na Venezuela não só há uma Constituição que deve ser respeitada mas, principalmente, que essa Constituição contém uma série de prerrogativas que estimulam o protagonismo popular, como o Capítulo IV - De los derechos políticos y del referendum popular, Artigo 62 ao Artigo 74, em destaque. Essas, sim, parecem ser as verdadeiras razões que mobilizam os que querem Chávez fora do poder. Os defeitos de Chávez, tudo indica, são pretextos para que não se leve a cabo o que a grande maioria de pobres do país quer que seja feito e vê, em Chávez, o líder possível para fazê-lo, nas atuais circunstâncias históricas. A Venezuela deve servir de lição para todos os países da América Latina cujas sociedades, sobretudo seus setores mais pobres, vêm apontando para a necessidade de superação da crise a que foram lançadas pelas políticas des-democratizantes e des-nacionalizantes (Quijano, 2000) que se puseram em curso, nos últimos anos na América Latina, sob o comando de suas próprias elites e com total apoio de instituições multilaterais como o BIRD, BID, FMI e OMC. Mas não olvidemos que a Venezuela é somente uma das caras possíveis dessas muitas tentativas de superação da crise que já estão em curso, de que o caso colombiano é, talvez, o mais antigo. O povo brasileiro com Lula, o povo equatoriano com Gutierres, o povo venezuelano com Chávez já conseguiram avançar uma peça importante na correlação de forças desse complexo tabuleiro de xa210 Ano XII, Nº 29, março de 2003

drez político, assim como apontam os indígenas e camponeses mexicanos, com os zapatistas, os camponeses e indígenas bolivianos com Evo Morales, e os indígenas e camponeses colombianos de Cauca com Floro Tunubalá, assim como os múltiplos movimentos sociais que reinventam a sociedade argentina hoje. Por tudo isso é que, diante da crise dessa democracia débil, como chama Boaventura de Souza Santos, devemos exorcizar, definitivamente, o fantasma da busca de soluções autoritárias. Entretanto, mais do que uma democracia liberal, devemos radicalizar a democracia ou, se se preferir, democratizar a democracia, até porque, até aqui, ela tem servido muito mais a uma minoria e, com isso, para desmoralizar a própria idéia de democracia. Afinal, se o conflito é parte das relações sociais em qualquer sociedade que seja, que busquemos, nas múltiplas formas de organização societária que a humanidade já desenvolveu, e não só na Europa, outras formas de resolução de conflito que não sejam aquelas já desgastadas formas de democracia liberal que os europeus inventaram e que as mentes coloniais, incapazes de pensar a partir de sua própria realidade, teimam em querer nos impingir. A Venezuela experimenta todo o significado de uma revolução democrática com forte protagonismo popular, o que pode ser atestado pelo aumento do número de Círculos Bolivarianos, que são comitês populares que

se reúnem por bairros e quarteirões para discutir o presente e o futuro político do país. São esses Círculos Bolivarianos que estão se contrapondo à contra-revolução comandada pelos meios de comunicação de massas na Venezuela. A velha questão entre representação e apresentação popular vem se colocando nas ruas das diferentes cidades venezuelanas. Há mais do que chavismo e antichavismo, a que a lógica midiática vem tentando reduzir a rica e tensa experiência da Venezuela. Ali se joga uma riquíssima experiência onde se tenta superar os impasses da democracia representativa, combinando democracia representativa com democracia direta, como referendum, plebiscitos e outras formas que estimulam o protagonismo popular. Tudo indica que o perigo maior para aqueles que se apegam a uma lógica democrática formal, como a liberal, é que essa experiência venezuelana, que tanto aprendeu com as derrotas e as tentativas autoritárias vindas da esquerda, possam dar certo e servir para a tão necessária reinvenção democrática de que o mundo urge.

* Carlos Walter Porto Gonçalves é doutor em Geografia; Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF; Professor Adjunto do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense (Rio de Janeiro, Brasil); é autor de diversos artigos e livros publicados em revistas científicas nacionais e internacionais, sendo os mais recentes: - “Geo-grafías: movimientos sociales, nuevas territorialidades y sustentablidad”, ed. Siglo XXI, México, 2001; “Amazônia, Amazônias”, ed. Contexto, São Paulo, 2001; “Da Geografia às Geo-grafias: um mundo em busca de novas territorialidades” - capítulo do livro “La guerra Infinita: hegemonía y terror mundial” Sader, E. e Ceceña, Ana Esther (orgs.), Clacso, Buenos Aires 2002; Ex-presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB (1998-2000).

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