VISÕES DO CÁRCERE: A RECUPERAÇÃO ATRAVÉS DA RECICLAGEM

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VISÕES DO CÁRCERE: A RECUPERAÇÃO ATRAVÉS DA RECICLAGEM O Presídio Central de Porto Alegre vive uma situação desconexa. Por trás das grades e do isolamento, a cadeia é um organismo vivo. O local é uma verdadeira cidade, e, como tal, enfrenta problemas de natureza socioambiental como superlotação, violência, moradia precária e exclusão social. Existem lados e percepções que somente os moradores dessa localidade conhecem bem. Os projetos sociais que acontecem lá dentro são exemplos disso. A oportunidade de praticar um ofício, a possibilidade de reintegração e a redução da pena motivam os presos a participarem e mudarem a rotina no cárcere. Ademilson, José Alberto e Roberto Carlos (foi utilizado apenas o primeiro nome dos presidiários por recomendação da Brigada Militar) fazem parte dos 10% que trabalham no presídio, de acordo com relatório do Mutirão Carcerário do Estado do Rio Grande do Sul realizado em 2011 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Eles e outros cinco presos são responsáveis pela reciclagem de parte do lixo produzido pelas galerias do Central. O trabalho rende 80 reais de salário, mas a mudança gerada vale muito mais. “A gente sai uma pessoa melhor pra se reintegrar na sociedade”, acredita Ademilson. Em 2014, segundo o CNJ, a população carcerária chega a mais de 27 mil pessoas no Rio Grande do Sul. Somente no Presídio Central de Porto Alegre são 4.419 homens confinados. O número esconde uma mistura de crenças, personalidades, mentalidades e delitos. Em meio a tanta diversidade concentrada, iniciativas como o Centro de Triagem de Resíduos Sólidos dão uma outra visão de mundo aos que vivem no cárcere. Da galeria à reciclagem Tudo o que se consome gera lixo. E na “cidade” Presídio Central não seria diferente. Parte dos resíduos como garrafas PET e vasilhas de plástico são recolhidos nas galerias em grandes sacos de ráfia para serem levados até o galpão, que fica cerca de 30 metros de distância dos pavilhões, ainda dentro do perímetro do Central, onde é feita a classificação do material. Todo o processo é realizado por meio da mão de obra dos detentos. De acordo com o sargento Agnaldo Garcia, que supervisiona o serviço, existe uma galeria campeã de


reciclagem. “São duas galerias do pavilhão C, da facção Unidos pela Paz, que são bem organizados e juntam o dobro em relação às outras todas”, informa. Papéis oriundos da administração e também vindos da Refinaria Alberto Pasqualini da Petrobras são reciclados através de uma picotadeira. Com a ajuda de uma prensa, o trabalho é finalizado em forma de fardos, com cada tipo de item devidamente separado. Assim, ao juntar cerca de 70 fardos ao total, o que equivale a 13 toneladas, o material é revertido em renda. São 5 mil reais por mês que há mais de dois anos vêm sendo investidos em melhorias e ajustes na cozinha geral e no pavilhão onde ficam os trabalhadores. O trabalho de cooperação ultrapassa o galpão de reciclagem e chega aos demais presos com o Vale PET, um pequeno pedaço de papel que pode ser utilizado como uma recompensa pela separação do plástico. O número de garrafas que o preso devolve para a reciclagem é registrado e possibilita a compra de novas garrafas para o consumo. Dessa maneira, conforme o sargento, a conscientização é incentivada, o que de modo voluntário não aconteceria. O sistema do Centro de Triagem teve origem em 2011 através de uma parceria entre presídio, Ministério Público e financiamento de 31,5 mil reais do Instituto Vonpar. Inicialmente, começou suas atividades enviando para a reciclagem uma tonelada de resíduos e avançou dentro da cadeia conforme a demanda e necessidade. Hoje, são 13 toneladas que saem do Central, um aumento de 1200%, o que comprova o bem-sucedido projeto. A EPR Consultoria, uma empresa júnior do curso de Engenharia de Produção da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), colaborou com a iniciativa. Os estudantes de engenharia, hoje engenheiros, Cassiano Tonheca e Thomáz Schuch, foram responsáveis por definirem o processo de separação e prensa do Centro, além da logística de coleta e estoque. Para Tonheca, o projeto é de grande importância para a qualidade de vida no Central, “mediante estrutura adequada foi possível gerenciar de forma melhor os resíduos gerados pelo presídio e reverter os recursos em benefícios para o Presídio Central”.


Enquanto o relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) apontou em 2009 a casa prisional como a pior do país, o Centro de Triagem é um projeto que parece mostrar o inverso. A reportagem pode perceber que esse pequeno quadro do organismo do presídio parece ser também a reciclagem dos presos, como uma verdadeira casa de correção provisória, que devolve os infratores para além dos portões como cidadãos renovados. As vivências da rua podem gerar possibilidades de recomeço O número de vagas disponíveis nos projetos sociais do Presídio Central de Porto Alegre (RS) é limitado devido à estrutura. O “currículo” do preso é levado em conta. Os detentos que estão com a pena no final têm prioridade, mas a ficha policial e o histórico desde que chegou à cadeia são avaliados. As habilidades de cada um também são um fator positivo a ser considerado. Quem tem vivência da rua, como catadores de material reciclável, sai na frente. Em alguns setores, como o da marcenaria, os trabalhadores trazem o conhecimento de fora, mas para quem tem vontade de aprender, há projetos de capacitação. Para o tenente Renato Dias, que gerencia alguns projetos como obras e marcenaria, há um aprendizado mútuo entre brigadianos e detentos. “A gente acaba aprendendo coisas que podem ser usadas na vida particular. Aprendi aqui como colocar piso e fazer massa corrida”, revela. O preso José Alberto trabalha no galpão do Centro de Triagem não apenas para conseguir dinheiro, mas também para sair do pavilhão e ter contato com um ambiente diferente. “Aqui é bom de trabalhar, é quieto e não tem aquele monte de gente. É bem melhor do que outros setores e mais organizado”, constata. Ainda que existam registros de mais presos que gostariam de ingressar nos projetos, a Brigada Militar afirma que nem sempre é possível devido à quantidade limitada de pessoas permitidas por questão de segurança. Até o momento, os números são animadores: nos últimos dois anos de projeto, nenhum dos detentos que passaram por ali reincidiu.


Se esse tipo de atividade é atraente por reduzir um dia da pena a cada três dias trabalhados, por outro lado, é motivo para comprar briga com alguns detentos. Conforme o capitão e analista de logística Hermes Volker, integrar os projetos sociais é estar contra algumas regras informais do Central. “Todo trabalhador é visto com outros olhos aqui. Os outros presos veem como se estivessem contra o sistema deles, então a gente separa”, informa. Volker explica ainda que há um pavilhão especifico para os que trabalham, que é o pavilhão G. Para evitar conflitos, o ex-trabalhador também tem um pavilhão separado. Atividades que ocupam mãos e mentes Além de sugerir que os próprios presos cuidem do lugar que habitam através da reciclagem, o Presídio Central também possui iniciativas que contribuem para o desenvolvimento social. Em plena era digital, os detentos compartilham aspectos do seu dia-a-dia através de vídeos no VlogLiberdade e de postagens no blog Direito no Cárcere desde 2011. A iniciativa foi idealizada pela advogada Carmela Grüne e é parte integrante do projeto Direito no Cárcere. Através dos vídeos é possível acompanhar as atividades culturais e de integração que contrastam com a realidade atrás das grades superlotadas. Por Anderson Mello, Bárbara Barros, Daniela Fragomeni e Letícia Bonato – Jornalismo Ambiental / Manhã


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