Santo Agostinho - Confissões

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– Como? O fato de ensinar e avisar, ou de receber tal ensinamento, facilmente expresso com este nome, não deveria talvez ser-te mais caro que a própria palavra? ADEODATO – Admito que o conhecimento obtido por este sinal seja preferível ao próprio sinal, mas não preferível à coisa em si. AGOSTINHO – Então, no que acima afirmamos, embora seja falso que devemos sempre preferir as coisas aos seus sinais, é verdade que tudo o que existe em função de outra coisa tenha valor menor que a coisa pela qual existe. O conhecimento, pois, do lamaçal, para o qual foi instituído esse nome, há de ser considerado mais que a palavra que, por sua vez, vimos ser preferível ao próprio lamaçal. E é bem esse o motivo do conhecimento ser preferível ao sinal de que estamos tratando, pois este existe devido àquele e não aquele por causa deste. Assim, aquele glutão, devoto ao ventre, conforme relata o Apóstolo, quando disse que vivia para comer, foi contestado por um homem sóbrio, que lhe ouviu as palavras e, não tolerando-as, assim o redargüiu: “Bem melhor seria que comesses para viver”; e vemos que o sóbrio falou assim seguindo essa mesma regra (regra que estabelece que tudo o que é devido a outra coisa, como no caso de comer que é subordinado ao viver – é inferior à coisa pela qual existe). O comilão desagradou porque avaliava tão miseravelmente sua vida, que a tinha em menor conta que os prazeres do paladar, afirmando viver para comer. O homem sóbrio é digno de louvor porque, compreendendo qual das duas coisas (comer e viver) é feita para a outra, ou seja, qual está subordinada à outra, alertou que devíamos comer para viver e não viver para comer. Do mesmo modo, tu e todo homem sensato que aprecie as coisas pelo seu valor e justo lado, se um charlatão afirmasse: “Ensino para falar”, lhe responderias: “Homem, não seria melhor falar para ensinar?” Ora, se tais coisas são verdadeiras, como alias reconheces, observa quanto as palavras têm menor importância, em comparação com aquilo por que as usamos; sendo que o próprio uso das palavras já é mais importante do que elas próprias. As palavras, pois, existem para que as usemos, e as usamos para ensinar. Por isso, ensinar é melhor que falar, e assim o discurso é melhor que a palavra. Muito melhor que as palavras é, portanto, a doutrina. Mas quero ouvir de ti se por acaso tenhas algo a opor. ADEODATO – Concordo em que a doutrina seja preferível às palavras; mas talvez se possa levantar objeção contra a regra que diz: “tudo o que existe em função de outra coisa é inferior aquilo pelo qual existe”. AGOSTINHO – Trataremos disto a seu tempo e com mais detalhes: por enquanto, o que concedes já basta para que eu chegue aonde me proponho. Concordas, pois, que o conhecimento das coisas é mais importante que os sinais que as exprimem. Por isso, o conhecimento das coisas significadas deve ser preferido ao conhecimento dos sinais, não te parece? ADEODATO – Mas eu disse, por acaso, que o conhecimento das coisas não é superior ao dos sinais, ou melhor, que é superior aos próprios sinais? Por isto hesito em concordar contigo neste ponto. Se o nome “lamaçal” é melhor que seu significado, por que o conhecimento deste nome não haveria de ser também melhor que o da coisa, embora o nome em si seja inferior aquele conhecimento? Lidamos aqui com quatro termos: nome, coisa, conhecimento do nome e conhecimento da coisa. Como o primeiro é superior ao segundo, por que também o terceiro não seria superior ao quarto? E, em não lhe sendo superior, acaso lhe estaria subordinado? AGOSTINHO – Noto que guardas muito bem na memória o que concedeste, e que explicaste claramente teu pensamento. Creio porém, que compreendes como este nome trissílabo “vitium”(vicio), quando o pronunciamos, é melhor, como som, do que seu significado; entretanto, o simples conhecimento do nome é bem menos valioso que o conhecimento dos vícios. Assim, ainda que consideremos aqui os quatro termos que mencionaste: nome, coisa, conhecimento do nome, conhecimento da coisa, com razão nós preferimos o primeiro ao segundo. Quando Pérsio escreve na sua sátira este nome, dizendo: “Sed stuped hic vitio” (mas este se admira do vicio), não só não torna viciado o verso, mas, pelo contrário, de algum modo dá-lhe beleza, apesar do significado desse nome ser sempre execrável, onde quer que se encontre. Mas observamos também que não


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