Corre Pó da Terra - Fernando Nunes

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CORRE PÓ DA TERRA

FERNANDO NUNES



CORRE PÓ DA TERRA



FERNANDO NUNES

CORRE PÓ DA TERRA

Projeto Gráfico ANA GUIMARÃES



Ă€s minhas, na taba, na cozinha e na sala.



“Bem aventurados os simples de coração, de mente aberta e criativos, porque conseguirão compreender o segredo da vida e a essência das coisas.”



“A vós bradamos os degradados filhos de Eva”.



“Por ser de lá do Sertão, lá do Cerrado Lá do interior do mato Da Caatinga do roçado. Eu quase não saio Eu quase não tenho amigos Eu quase que não consigo Ficar na cidade sem viver contrariado”

(Dominguinhos e Gilberto Gil)



“Mas em qualquer cidade, em que entrardes e vos não receberem, saindo por suas ruas, dizei: Até o pó, que da vossa cidade se nos pegou, sacudimos sobre vós. Sabei, contudo, isto, que já o reino de Deus é chegado a vós.” - Lucas 10: 10,11 -

Mantinha essa escritura em minha cabeça quando parti para meu terreno encontro com...



d e u s


No princípio criou Deus o céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: Haja luz; e houve luz. - Gênesis 1:1-4 -

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DEUS


CRENÇAS Eu acredito em duas coisas: em Deus e na poesia. A primeira porque está em tudo, se move com tudo e, a toda hora, desliza tudo. A segunda porque faz tudo o mesmo da primeira, todavia, segue na dianteira porque só nela se registra o movimento do mundo. A rotação que você não vê, nisso consiste vitória da poesia sobre Deus. A poesia o homem vê, desperto e no caminho da beleza do dia pro alto, ele não olha não.

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DIARIAMENTE Acorda cedo, toma banho, café preto, escova os dentes, sai rapidinho a batalhar atrasado e devagar A regra é não parar (linha de desprodução): “do suor do teu rosto, comerás o teu pão” Porém não esquece, sonha! Come teu pão, sonha! O ronco de seu sonho adormece o menino viver em vão.

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DEUS


RITO Não vem com essa conversa feia que a gente não segura o que sente. Segura! Apertado mesmo em boca sem dente. A gente guarda é dentro do peito numa brecha, um canto estreito donde se solta sem procurar Tem coisa que não sabe ser direito! Não se tira de dentro do beco, se não sabe arrodiar Língua ferina come arrochado, come parede de reboco todo o tempo, tempo o todo o que não pelejou pra segurar Há que se aceitar a tríade do rito Aquela parte que pede sacrifício para às inteligências despertar.

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CHÃO ENTRE AS ÁRVORES A beleza de pássaros entre as árvores não se nota em qualquer outra coisa. Não é o voo mais que interessa desafiar, e sim a beleza do existir das árvores que preocupa por hora. Pássaros voando entre as árvores nos lembram que há liberdade e que ela é mais bonita assim, entre as árvores, nas asas, em voos rasantes ou pelas copas: Pássaros voando entre árvores nos lembram que as copas bonitas frondosas partem do chão; Pássaros voando entre as árvores nos lembram que um hora eles pousam, pousam no chão; Pássaros voando entre as árvores nos lembram que o voo mais belo é na copa e para no chão.

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DEUS


SACERDOTISA DE CARREIRA dona miúda veia benzendeira dela ninguém sabe a idade pelo braço senta o menino na cadeira e sai pra colher seu ramo no mato é veia sábia, feiticeira que diz seu encanto baixinho coado no assobio dos lábios no dizer da Palavra que sabe curar as estrela do Cruzeiro à guia levam tua mão e ramos pelo ar, vassoura de espírito de mato, abre a madre, a natureza, bate a caxumba, a fraqueza, a maleita, o mal olhado sabe o ponto mudo das doenças que partem em toda ladeira no chiado da reza benzendeira da Maravilha, miúda sacerdotisa de carreira

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NOSSA SENHORA DAS LADAINHAS A primeira mulher se chamou Maria da Conceição, da Anunciação, de Belém, do Bom Parto, da Apresentação, da Guia, do Ó. Depois veio outra Aparecida, de Nazaré de Fátima, de Lourdes, de Guadalupe do Sião, de Salete, do Presépio, do Pilar, de Copacabana, da Lapa, da Penha, do Bom Sucesso, do Brasil. A Maria da Boa Nova, do Bom Despacho, do Bom Socorro, Bom Conselho, da Consolação, que trouxe Maria do Alívio, do Amparo, da Ajuda, do Livramento, das Dores, da Piedade, da Socorro, das Angústias, do Calvário, do Pranto. Dos Homens, das Maravilhas, dos Mares, da Boa Viagem, da Vitória, da Boa Hora, do Desterro, Desatadora dos Nós, dos Prazeres, do Perpétuo Socorro e da Boa Morte. Eia, pois Advogada nossa, Medianeira da Luz, das Candeias, da Candelária, Maria das Mercês, da Esperança, da Encarnação, da Purificação, Peregrina, do Patrocínio, Dos Navegantes, do Rosário, dos Remédios, dos Mártires que a amaram, Maria Mãe de Deus, Mãe do Povo, Mãe da Igreja e Rainha do Céu, dos Apóstolos, do Homens e dos Anjos Veio e se foi Maria da Assunção, da Graça, das Estrelas, dos Milagres, do Sagrado Coração, da Divina Misericórdia, Menina, Pastora, do Silêncio, da Paz. Essas tantas Marias para um pouco José, só um, a rogar por nós.

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DEUS


NOVENA DO JOSÉ - Meu divino São José Aqui estou a vossos pés Dai-nos chuva com abundância Meu divino São José Seguiu a prece no dezenove de março do povo pedindo terra verde molhada, juazeiro florido, poça de lama no chão. Não temais em receber Maria, que o que nela foi gerado, disse o mensageiro alado vem da Divina Inspiração! Seguiu a prece no dezenove de março do povo pedindo terra verde molhada, juazeiro florido, poça de lama no chão. Esposo do vaso escolhido, fecundado poder do Espírito, e moldado como os solos que vigia a água em oposição.

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BORA, FRANCISCO Me ensina a falar com os passarinhos, com os bichos pequeninos, com a erva do campo Me ensina, Francisco! Me ensina que eu sou menino, também pequenino, bichinho, e quero tua língua falar. Quero te entender, Francisco. Ser o fazer, também, levar a fé do teu modo, do teu jeito, teu juízo e no teu caminhar, Francisco. Arrumo um tempo, bora Francisco?! minha mão num quer outro compromisso, que aprender teu ensinar. Onde houver... 26

DEUS


SALMOURA O sal da terra é da lágrima dos homens que persistem num mesmo lugar, desafiando ordens de Deus e do diabo que mostram a vida grande se pondo os pobres a tentar As vozes de Deus e do diabo, em choros alternados, malogrados são salmoura nas feridas das costas de um povo que é já tão agoniado. O pranto do intento é salgado.

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EXU Amplo é meu terreiro, guardo a roça, os cercados, onde se cruza, sou o primeiro que na roda solta, o embolado da faca amaloda, flecheira de toda anedota-opinião. Anota aí mais um nome. Quem vem de Exu, é da corte do Baião. 28

DEUS


homem


E formou o Senhor Deus o homem do pĂł da terra, e soprou em suas narinas o fĂ´lego da vida; e o homem foi feito alma vivente. - GĂŞnesis 2:7 -

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homem


GESTO DA MINHA GENTE Eu sou apaixonado pelo gesto da minha gente de dizer, de comer, de rezar, que nenhum estrangeirismo muda Veja o “paro todos”, virou forró Povo de cor vermelha de sangue encarnado de preto, de índio, galego, alvo, tupi e chita de pano da costa, de verde do juá, do pó da terra. Verdadeira tenda colorida! Pode até chamar de picadeiro da vida, que o sol naquele chão soube, arteiro, armar Gentes, muitas lá e por outros lados Um pouco de colorido do confete do frevo, Das bandeirolas de São João O azul na Chegança e o dourado do Guerreiro! “Cheguei agora Nossa Senhora é nossa defesa” E guia essas gentes não mais que gente Que se distingue pela cabeça, não a chata ou o cocuruto, mas pelo riso alegre de ver na vida um peleitar.

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SONETO DA PESCA DO SINO CARCAREJANTE Nasci num sábado bonito, dia de sol, era setembro, dia do pescador ir trabalhar. Na hora em que meu choro rompia, eles já recolhiam as redes, tempo de à praia regressar Hora, ora aberta, fechou. Nenhum feitiço mais voava O sino da igreja cantou sete vezes O galo, com três, o destino selava. Só não sei bem dizer qual destino: o de um pescador franzino, o de soar como um sino, ou o de no terreiro cacarejar.

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homem


PROFECIA O poeta sofre do mesmo mal de um profeta, não encontrar crença em sua terra, até que sua palavra venha de viagem. Ê, pobre promessa! Não se conta o ser da vida sem ninguém para escutar Se conta, canta! e isso por si só é melodia nem é preciso o acredite para essa fala se afirmar Deus o sabe. E sabe que um instrumento não é importante por dizer-se assim, mas é coroado por sendo, estar.

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OFICIO DO AGORA CONTAR Salve o doutor jornalista! Grande compositor modernista do agora-tempo que é a realidade. Salve-se e tome-se nota! Desse onde ninguém vê artista, nem remunera como tal É um simples reportista, que escreve pra jornal. Salve porque sua matéria-prima é a hora, mãos, olhos, ouvidos e boca seu lagar, que verte a bebida do onde? Como? por que? estamos o que? quando? Esse momento do agora. Salve e salve ofício! Sua espada é a palavra de todas as formas: contar com ponto e sem aumentar Seus olhos a luz e sua boca o distante – contar Nas mãos ele segura a palavra Essa espada afiada que três poderes Pode derrubar – contar. Cavaleiro da Ordem da Palavra, das fileiras do Batalhão Destino Salve, salve o cavaleiro nobre, valente, renitente, que a despeito do dinheiro, Empunha a espada e rotineiro vai a erva-agora a vida ceifar e contar.

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BENEFICIAMENTO Sou um homem de poucos dons. Mas bons dons. “Ela não dá fruto, num é?” Isso da minha árvore não se pode dizer! Se avaliar pela casca do fruto, você não vai entender meu negócio é de sementes, a casca é descartada Meu maneja é catar dentro Dou fruto pequeno Olha a minha árvore! É só uma que tu tá vendo, mas no meu fruto pequeno há um sem contar de pomar crescendo.

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DUAS POMBAS Eram duas pombas unidas contra a vontade, contra tudo o que diziam seus avós. Duas aves coloridas, que viraram a esquina pousando no beiral do telhado que abrigava seus avós. Lá permaneceram unidas, como que de modelo às outras, às crianças escandalosas, a quem respondiam, impassíveis, às barbaridades sobre o amor. 36

homem


O AMOR É DES VER DURA Procuro evitar o amor, bicho instruído, já dizia Drummond. Eita, bichinho tinhoso! É como bicho de pé, que a gente pega que nem sente, é a semente que cai e se esconde na terra germina e cresce quando na luza que a lua aparece. Risada perdida no meio do nada, que a gente boceja depois de calado e muda quando a gente deita de lado vai pro peito esquerdo e ali incomoda e chega a doer. Sufoca, visse? Sufoca! Germina rápido e dá lavoura E fica logo de vez, pronta pra colher. A gente apanha, bota num cesto e pega bicho de pé doído porque essa verdura só amadurece, seu Menino, depois de muita fervura.

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CARÊNCIA - Que horas tem? Que horas tem? – perguntava o mendigo às pressas. - São uma e vinte, uma e pouca – respondia o jovem sossegado ao lado de sua bicicleta. - Você olhou no relógio ou só Adivinhou – o mendigo assim contestou. – Olhou no relógio, não. Adivinhou é o profeta! São uma e meia, afirmo. Viro Moisés, outro poeta. Em que carência de profecia estamos?! Tal que o dizer das horas faz de nós profetas.

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BURACO DE DENTRO O maior desejo do homem é ter, o segundo mais é ser e o menor deles é dar Compartilhar não é dar Embora primeira conjugação. Os requisitos do dar são: talento, aptidão, tempo. Se o ato envolve esses três, o gesto é dar, não clicar no botão. Damos ao trabalho tempo para ser E isso muda o que temos, o que presumimos de nós: o advogado da vara da Família pedófilo o viado musculoso homofóbico o marido evangélico infiel Compartilhar já se faz nas pequenas contradições. Dar é o enterro delas, a missa, De corpo presente, a reencarnação do que se chega na infância: eterna unção de balsamo perfumado de um outro entendimento do mundo Compartilhar é reter imposto na fonte Dar é não cobrar tempo, aptidões, talentos É o não achar ao redor, topar e cair pro fundo desse buraco de dentro.

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MANTER A CABEÇA A gente precisa manter na cabeça algo maior, bonito, superior à vida dos homens, porque quando se perde essa crença é que começam os atentados contra a vida, a fome, a guerra , por isso a gente precisa manter a cabeça, dar mantimento à cabeça.

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homem


d i a b o


Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o SENHOR Deus tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim? - Gênesis 3:1 – 42

diabo


CORRE PÓ DA TERRA A mais grave das secas não está em um lugar só, está no meio da gente, se move para todo lado: todos os dias e em instantes Dirige o carro, leva as crianças na escola, brinca com os cachorros na rua Ninguém vê, ninguém pode ver. O chão está seco, rachado, perecendo e ninguém vê o pisar é a razão de coisas cobertas de importante Seca dentro do peito e ninguém vê o encoberto, ainda que reste pintado de verde, o solo permanece seco pontilhado de grãos não visitados não assistidos, não amados, grão-solitário seco e sem mágoa. A palma que dá é braba! É vaidade secreta que alimenta a fonte Onde corre pó da terra e se rega de pó e cresce seca. É miséria que chupa devagarinho o sentimento que o mundo transborda Drena a Terra, a terra fecha, Semente de compaixão nesse solo não brota.

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SAMBA DO DIABO O diabo dança na tua porta. Dá duvida? Profere da tua boca que não vai pegar lenha no mato, que queima antes de tu nascer. Não arrume a fogueira dos galhos mais secos embaixo. Queime todos amarados Faça o fogo subir Galho seco a gente queima É casca de dor pequena feita para a chama da Justiça abrasar Faz o contrário do que é certo E não acende tua fogueira A praga do Batista é certeira Dá duvida? Sai pra ver o homem todo de vermelho na tua porta sambar.

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diabo


DERRADEIRO MENSAGEIRO Já pensou sobre o coveiro? Este distinto cavalheiro, que passa o dia na calunga a peregrinar. Não é à toa que é o derradeiro mensageiro, que tapa com areia o buraco no terreiro onde o Caveira vai pisar. Pense sobre o coveiro. Não sobre a morte, mas o coveiro, cada pá de terra que tira e bota de novo no lugar. Fazemos o mesmo? Ouvimos o pranto e vemos o preto. Ele olha com respeito. Nós sabemos repeitar. Sua lida é ver a morte perto da vida, testemunhar que ela não brinca de ser comprida na hora do acabar. Vê a vida do coveiro olha tua por inteiro, se pega logo com a pá, antes que ele faça primeiro. Se hoje ele teve sete enterros, em ti há sete buracos a tapar! (faz deles horta)

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DÉCIMO PRIMEIRO MANDAMENTO Não boto fé em verso pensado, poesia é o que se sente, é rápido a vida pensada fica aguada Sem poesia fica atada, que nem farinha airada em prato quente de pirão Não pensar é não querer tanto, mais que um punhado ou dois. Tá bom, doa o que sobrar! Por isso quem perde tempo no verso não escuta o arrastar de pé do preto velho Tempo a ensinar Sábio quem não calcula o verso, quem não sabe nem o que é essa brincadeira de versar e brinca Escrevem a todo momento sem jamais perder contentamento que se vai no revisar 46

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PERCEVEJO O fundo do quintal da casa da minha avó dava para um sítio, eu cresci no mato. Sei sentir de longe o cheiro do percevejo, o que não entra na minha natureza. De longe vejo o andar aperriado, os tapinhas camaradas e as risadas, seu som é o barulho deste cheiro. Saem do mato, entram em casa, voam O pior de tudo é quando param na mesa. Sei sentir de longe na minha natureza o que não entra o cheiro do percevejo.

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RASGA MORTALHA Líquido derramado. O desejo é isso! o copo virado sobre a terra, escorrendo uma úlcera inflamada na vontade interior, saliva que cruza a garganta e vira cuspe toca o chão e rega a dor, a euforia, viçando. galho despencado, que caindo, partido No chão se quebrou. É o som da queda. o agouro de um pássaro malvado piando na noite o terror ao redor e ainda o ar que se prende no peito pulmão da mata e na ponta do anzol o terror que é o desejo Líquido derramado. É o som de queda. só passa quando deixa vítima satisfação de um lampejo de copo virado, o líquido derramado no esconderijo da coruja, pássaro de rapina, que rasgou a mortalha de cambraia de linho que vestiu o velório na sala do meu avô. 48

diabo


A POESIA NÃO TEM HORA Eu nunca sei quando ela vai me encontrar, por isso carrego sempre comigo esse caderninho de defesa sem pauta, capa preta, acompanhado de uma caneta também de cor preta, prevenido pra hora em que ela chegar. Ela vem sem aviso, na surdina, de mansinho quando a gente pisca o olho, chega, procura nossa defesa, é a morte não a-notar. Ela tem uma foice preta que golpeia a canela pelo cepo a gente para de andar, aparece no beco, cadê a defesa pra mostrar? Onde está o Capa Preta pra da matança me livrar.

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GRAVES DO ACORDEOM As rugas são coroas do sublime à inevitável mudança de timbre das notas da pele envelhecida, os últimos graves do acordeom alcançado. Como um animal que agoniza, antes da morte as notas são mais graves, peneiradas na garganta, impressionada, pelo dono do saber que vai dizendo: rugas são medalhas de mérito lustrosas pouco apreciadas e dadas peloTempo.

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diabo


BOAS VERDES VINDAS Tô voltando pra minha terra, quem me dá as boa vindas é a placa na entrada da cidade que se anima no batente estou à porta, bato quero verdes, boas vindas juntem todos no terreiro dando boas verdes vindas

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MESA DE BAR Fazia tempo que não nos víamos Sentamos à mesa e pedimos um bebida pra começar. O diabo sempre presepeiro, contou logo uma anedota quando viu a cachaça chegar. Rimos. Deus de modo comedido, o diabo sem estribeira e o homem meio cabreiro de ali estar. Eu virei o copo, o homem também, o diabo fez o mesmo, mas Deus não. Ele bebeu gole por gole, devagar o diabo desafiava: “Não vais a garganta queimar. Tu a criastes e desses aos homens” Sérios. Eu ri, não sei bem se coube. Mas Deus explicou que mesmo o fogo se bebe aos goles, isso de virar é pros tolos. “Criei muitos venenos pros homens, alguns o libertam de si mesmo, outros apenas descem queimando” dizia Deus. O homem só observava e eu sei que dentro de si se coçava pra entender assim como eu. O que reunia grandes e pequenos em volta de uma mesa de bar barulhento deuses, aspirantes, criações e momentos. Bebemos.

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diabo


Despedimo-nos e cada um seguiu o seu caminho.

O homem parecia nĂŁo ter aprendido nada nas horas de proza com os amigos. O diabo mostrou ainda nĂŁo estar arrependido

e Deus, sempre que pode, ficou calado, ouvindo com respeito o meu desespero de falar em poesia.


o autor

Fernando Nunes é de Maceió-AL, de onde traz muitas memórias das águas, abundantes por lá. Jornalista, costuma dizer que escreve desde sempre, mas começou a gostar disso aos 17 anos. É autor dos livros de poesias ‘Águas para as Cerejeiras’ (2016) e 'Cais de Pedro' (2016) e do romance 'Balada do longe' (2018).



Ambientado em uma mesa de bar, "Corre Pó da Terra" retrata o comportamento humano em uma trajetória representada pelo diálogo entre três sujeitos: Deus, o homem e o diabo. De maneira metafórica, e por vezes explícita, Fernando Nunes traz de sua própria bagagem cultural, o sincretismo religioso e os costumes sertanejos para criar um diálogo entre ele e os outros interlocutores.


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