A Intervenção do Serviço Social na Toxicodependência

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A Intervenção do Serviço Social na Toxicodependência1

Ivete Rocha2

Resumo A intervenção do Serviço Social partiu de uma prática baseada no princípio da satisfação das necessidades humanas e, ao longo dos anos, tem-se sentido uma grande necessidade de aprofundar conceitos e teorias sobre as práticas de intervenção. Ao longo deste texto pretende-se apresentar alguns desses conceitos e teorias, articulando com observação e análise feita durante o tempo em que decorreu o estágio académico, que serve de alicerce para esta reflexão. Palavras-chave: Capacitação; Exclusão; Intervenção Social; Inserção; Mediação; Método de Caso; Reinserção. Toxicodependência. Conceptualização do Serviço Social O Serviço Social é uma profissão multidisciplinar com mais de cem anos, que actua no campo social com vista a produzir mudanças, quer a nível individual, quer ao nível da sociedade em geral. A sua intervenção consiste na promoção dos direitos humanos, agindo como mediador, com o objectivo de capacitar o indivíduo para a acção no que respeita ao seu próprio percurso de vida. A intervenção do Serviço Social é baseada em conhecimentos teórico-cientificos, métodos e técnicas próprias para a acção que desenvolve. A Federação Internacional dos Assistentes Sociais (1982) identifica “as origens do Serviço Social em ideias humanitárias e democráticas. A prática do Serviço Social centra-se desde o seu início na satisfação das necessidades humanas e no desenvolvimento do potencial e recursos humanos”, e como profissão, consiste em provocar mudanças sociais tanto na 1 2

Trabalho realizado no âmbito do estágio académico da licenciatura em Serviço Social Técnica Psicossocial no CAT da Amadora / Licenciada em Serviço Social 1


sociedade em geral como ao nível das suas vertentes individuais de desenvolvimento (FIAS, 1982). O Serviço Social está inserido no campo das ciências sociais e humanas como disciplina profissional destinada a intervir na realidade humano-social e produzir transformações nessa realidade (Falcão, 1979). Enquanto disciplina profissional de natureza prática, o Serviço Social tenta através da intervenção social produzir estas transformações. Esta intervenção caracteriza-se por um conjunto de procedimentos metódicos, baseado num processo de ajuda psicossocial, desenvolvendo o diálogo, a partir do qual ocorrem transformações inerentes à experiência humana (Gouveia,1982) O campo de intervenção dos Assistentes Sociais pode ser entendido como “ um espaço relacional, na medida em que se estrutura e se corporifica através da comunicação e da participação dos elementos que compõem o campo, diremos que um dos aspectos essenciais que nos interessa perceber é a rede de relações que se estabelece entre os diferentes protagonistas que integram esse campo de intervenção” (Andrade, 2001:1964). Ainda na perspectiva desta autora, o profissional de Serviço Social realiza o movimento de passagem da exclusão para a inclusão. A intervenção do Serviço Social implica questionar um fenómeno social que se constitui como problemático para uma pessoa. É pretender objectivar o conhecimento do fenómeno, vendo o fenómeno como o cliente o concebe e não somente como o Assistente Social o imagina (Gouveia, 1982). O processo de intervenção não se modeliza num conjunto de passos preestabelecidos. Este exige uma profunda capacidade teórica para estabelecer os pressupostos da acção e uma capacidade analítica para entender e explicar as particularidades das conjunturas e situações. Igualmente importante é a capacidade de propôr alternativas com a participação dos sujeitos, em que se correlacionam as “forças sociais”, actuando numa correlação particular de forças, de forma institucionalizada, na mediação “fragilização-exclusão/fortalecimento/ inserção”, vinculada ao processo global de reproduzir-se e representar-se pelos sujeitos e suas trajectórias (Faleiros, 1999). 2


Neste contexto, pode dizer-se que o Assistente Social actua como mediador entre o problema e a pessoa. Entenda-se mediação como “um modo de gestão de um sistema de transações no quadro de acção social (...), e emerge como um modo de resolução de conflitos entre particulares e entre estes e os serviços, como um modo de regulação social” (Almeida, 2001). Deste modo, o Assistente Social deve estar permanentemente actualizado, estudando e investigando a legislação em vigor, as políticas sociais de protecção, as respostas sociais e deve conhecer cientificamente a problemática em que trabalha. É portanto importante a investigação em Serviço Social, na medida em que esta assume a sua especificidade como fundamentação cientifica, quando se investiga para agir sobre o real/social, e contribui para a construção de um saber crítico que integra dimensões do saber/fazer, saber/estar e saber/ser (Martins, 1997). Segundo esta autora, a convergência entre a prática e a formação teórica, na busca de análises para situações concretas, não pode continuar a ocorrer na base de uma avaliação de carácter exclusivamente prático, há que submetê-lo ao exercício da pesquisa e da investigação.

O Processo de Intervenção e as Práticas do Serviço Social na Toxicodependência

A prática do Serviço Social centra-se na satisfação das necessidades humanas, promovendo o bem-estar a nível individual e grupal, capacitando os indivíduos para a acção e participação activa no seu próprio percurso de vida. Os Assistentes Sociais trabalham com populações muito diversificadas, apresentando diversas situações de desajuste social, o que requer diferentes formas de agir e pensar sobre as situações. No entanto tem havido uma preocupação constante na caracterização da prática, atribuindo sempre grande importância à existência de certos elementos, ligados à especificidade da população que ainda carecem explicação. A questão da especificidade do Serviço Social impõe-se como um problema no que respeita à prática, pois o Assistente Social é quem normalmente atende a problemas vários como a 3


saúde, a educação, o trabalho, entre outros. O modo como este se faz representar perante problemas tão diversificados exige diversos parâmetros de actuação. Sousa (1989) salienta a existência de três níveis de actuação que são: “ o Serviço Social pode actuar com uma clientela já carênciada ou com uma clientela potencialmente carênciada, ou ainda, pode criar condições para evitar tais situações”. Mas estes níveis não chegam para pôr em destaque a especificidade da prática dos Assistentes Socais. Diariamente os estes são solicitados a colocar-se diante de inúmeras situações, que exigem uma constante organização e reorganização da sua acção. A prática poderá integrar diversos segmentos de ordenação, e estes envolvem um conjunto de acções necessárias com vista ao objectivo final (Sousa, 1989). A acção dos Assistentes Sociais implica funções próprias que podem ser classificadas como funções compartilhadas, são as funções que são realizadas também por outros profissionais, e as funções específicas, que estão ligadas ao trabalho exclusivo dos Assistentes Sociais, Estas tarefas, entendidas como “ papéis profissionais”, dependem de muitos factores, entre os quais o nível de institucionalização da profissão. Na verdade, o Assistente Social tem à sua frente múltiplas tarefas com as quais lida no dia-adia e no meio desta diversidade desenvolve na sua prática actividades que Sousa (1989) apresenta como bases centrais: -

“actividades de mobilização e implantação de programas: envolvem actividades de mobilização social e também pesquisa,

-

actividades de supervisão e coordenação de serviços: abrangem pareceres ou posicionamentos, em função de processos ou solicitações como supervisão e coordenação de serviços propriamente dito,

-

actividades de orientação (individual, grupal, comunitário e institucional ): de conteúdo comportamental e de conteúdo desenvolvimentalista,

-

actividades de encaminhamento: envolvem o cadrasto de recursos, identificação de cliente e encaminhamento propriamente ditos.”

Estas actividades são apresentadas com o objectivo de simplificar as diversas particularidades em que a prática se manifesta. Porém a actividade com maior regularidade num CAT, e em grande parte das instituições, é a de acompanhamento/ encaminhamento.

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“As práticas do Serviço Social hoje, com incidência também no campo da toxicodependência, pressupondo

o

desenvolvem-se

acompanhamento,

segundo a

o

princípio

intervenção

e

a

da

interdisciplinaridade,

supervisão,

baseadas

na

articulação/cooperação e da rede/parceria” (Ferreira ,1997). No seu artigo, Ferreira (1997) refere algumas das práticas nas actuações diárias dos Assistentes Sociais, que são: - “Apoio Psicossocial: Caracteriza-se por uma intervenção em que o profissional põe em jogo todos os recursos disponíveis no processo de ajuda ao utente. Caracteriza-se na capacidade do Assistente Social para utilizar a ferramenta da relação e da comunicação. Consiste essencialmente num trabalho de esclarecimento, apoio e numa abordagem centrada no sujeito.

- Acompanhamento Social: O acompanhamento é desenvolvido no sentido de facilitar a constituição de "micro-espaços sociais” no seio dos quais as pessoas poderão desenvolver um projecto de vida. Uma das questões que surge é a possibilidade concreta de articular o acompanhamento individual e mobilização de recursos colectivos. Entenda-se "micro-espaços sociais" na perspectiva: • Apropriação do espaço social e não somente da necessidade sentida pelo indivíduo/sujeito; • Levar o sujeito a participar na melhoria do seu quadro de vida, relações de vizinhança, criar um espírito de cidadania, ou seja, que o sujeito passe de consumidor a cidadão; • Criação de suportes de inserção colectivos que facilitem a reinserção social dos sujeitos de intervenção. - Mediação: É uma intervenção comum dos Assistentes Sociais nas práticas que desenvolve, a mediação profissional é um trabalho de ligação entre os grupos de exclusão, as instituições e a sociedade local. As mediações dão resultado quando a relação sai da dualidade para se tornar múltipla, ou seja, na construção do vínculo social que se faz no quotidiano e no âmbito local. - Elaboração de relatórios sociais: Este constitui um instrumento de intervenção social elaborado por técnicos com competências profissionais de apoio técnico e elaboração diagnostica da situação/problema, com vista à definição de um projecto de vida do sujeito e à aplicação e execução de sanções criminais. Este instrumento de intervenção privilegia também os planos de inserção social, família e socioprofissional do sujeito.”

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- Visita Domiciliária: Podemos definir a visita domiciliária como uma entrevista efectuada no domicílio do utente que visa aprofundar a compreensão diagnostica, o estudo e observação do ambiente familiar. Podemos considerá-la como uma ferramenta: • Para recolher informações que permitam uma análise correcta e completa da situação; • Que permite captar qual a relação existente entre o utente e o ambiente envolvente (familiar e comunitário); • Que consiste na observação das condições e da organização habitacional”.

Ao nível da toxicodependência, o Assistente Social tem que ser “co-terapeuta, quer ao nível individual, familiar, grupal ou comunitário, (…) a sua intervenção que reveste aspectos multiformes, pode situar-se mais ao nível secundário ou terciário, não aparecendo ao nível primário de uma forma estruturada porque está subjacente aos objectivos do Serviço Social: sensibilizar para o fenómeno da toxicodependência e suas implicações sociais e despistar precocemente casos de risco. A nível secundário, a sua intervenção situa-se na perspectiva de fomentar acções que visem a reestruturação pessoal do indivíduo e o realinhamento da sua postura social e ao nível terciário, promover projectos de reinserção e ajustamento social/sociabilização” (João, 1997). Embora a população toxicodependente se apresente muito específica, referenciando carências a vários níveis, os procedimentos de acção dos Assistentes Sociais têm um método de intervenção como base, denominado como Método de Caso Social Individual.

O Método de Caso Social Individual

O método em intervenção social está relacionado com a prática profissional entendida como “formas de acção que têm como finalidade a obtenção de determinadas práticas, a modificação de coisas ou situações reais” (Ander-Egg, 1995:81). O método em Serviço Social surgiu como o resultado da análise de um processo de ajuda, que foi ganhando técnicas próprias até à sua profissionalização. E deste modo formalizaram-se os procedimentos, dando origem a uma metodologia de acção sendo as práticas organizadas de acordo com os critérios metodológicos. 6


O Método de Caso Social Individual, foi o primeiro a ser sistematizado na profissão e designa “ ajuda social prestada ao nível individual utilizando certos procedimentos que compõem o método de caso social individual” (Ander-Egg, 1995:83). Este método tem por base o modelo clínico terapêutico da medicina, que influenciou decisivamente na configuração e desenvolvimento da metodologia de intervenção social: estudo, diagnóstico e tratamento. Richmond, citada por Ander-Egg (1995), define-o como “ conjunto de métodos que desenvolvem a personalidade, reajustando consciente e individualmente o homem ao seu meio”. Este método requer um esquema operacional: -

parte do pressuposto que a pessoa pode ser potencialmente sujeito e objecto do próprio desenvolvimento, esperando-se que tome iniciativa e que essa iniciativa seja facilitada pelo Assistente Social,

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o processo inicia-se com o pedido de ajuda;

-

ao efectuar-se a entrevista de solicitação, a pessoa expõe o problema ao Assistente Social, que recebe a informação e a regista numa ficha que normalmente existe na instituição para esse mesmo fim; esta entrevista tem a duração máxima de uma hora e tem o objectivo da exposição do problema, para se iniciar o tratamento do mesmo, começando por programar os passos do tratamento;

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o tratamento ou acompanhamento pode ser muito diferente de acordo com os problemas e com as características da pessoa,

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já na fase de tratamento surgem dois problemas de organização que são: o número de casos por cada Assistente Social e a organização do arquivo de trabalho;

-

é habitual que seja sempre o mesmo Assistente Social a ser o responsável por todas as acções do caso;

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estimula-se a pessoa a analisar a sua situação e reconhecer o seu problema;

-

é importante estabelecer uma relação com base na confiança , empatia e garantia de sigilo;

-

o fim do processo acontece com a resolução do problema, quer seja porque foi atingido o limite disposto pela instituição, quer seja porque ocorre o afastamento gradual conforme o

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problema vai sendo resolvido ou, por fim, quando a necessidade é satisfeita (Ander-Egg, 1995). É evidente que as relações interpessoais têm uma grande importância no Método de Caso Social Individual, desempenhando o Assistente Social um papel fundamental no relacionamento com pessoas, é importante que este saiba construir um clima de liberdade, criando um ambiente de ajuda com base na descrição, orientação do problema, espontaneidade, empatia, confiança, igualdade e provisionalidade. O Método de Caso Social Individual é o utilizado no CAT da Amadora pelas Assistentes Sociais, daí a pertinência da sua referência teórico-cientifica. Embora o método se centre no indivíduo, a intervenção vai para além do individual, pois pressupõe tornar a acção individual em acção colectiva, dar-lhe visibilidade mobilizando para as redes sociais, etc.

BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Helena (2001), Conception et Pratiques de la Mediation Sociale, Coimbra : Fundação Bissaia Barreto. ANDER-EGG, Ezequiel (1995), Introdução ao Trabalho Social, Brasil:Petropolis. ANDRADE, Marília (2001), Serviço Social e Mutações no Agir na Modernidade, Tese de Doutoramento, PUC/ S. Paulo. FALCÃO, Mª

do Carmo (1979), Serviço Social – Uma Nova Visão Teórica, 3ª ed., S.

Paulo: Cortez FALEIROS, Vicente(1999), Estratégias em Serviço Social, S.Paulo: Cortez. FERREIRA, E. (1997), “Serviço Social e Toxicodependência”, Toxicodependências, 3, (3), 51-58. GOUVEIA, (1982), Procedimentos metódicos de uma intervenção num fenómeno social, Lisboa: JOÃO, L. (1997), “o Assistente Social na Toxicodependência”, Face à droga como (re)agir, Lisboa:SPTT ed. MARTINS, Alcina (1997) A importância da Investigação em Serviço Social, Comunicação Apresentada no Seminário de Serviço Social – Investigação em saúde, Coimbra: escola superior de enfermagem Dr. Angelo da Fonseca. 8


SOUSA, Mª Luiza, (1989), Serviço Social e Instituição – A questão da Participação, 4ªed., Lisboa: Cotez.

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