Notícias das Gerais nº 51

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COLUNA - ÉTICA E COMUNICAÇÃO

por Clóvis de Barros Filho

Discursos muito diferentes - sobre a ética dos dias de hoje - atravessam o nosso cotidiano. Alguns denunciam o fim dos valores. O colapso de toda referência prática com pretensão universal. Sem normas ou imperativos a respeitar e desprovidos de virtudes, assistimos atônitos ao eclipse do dever, à liquefação da moral. Outros discursos analisam este mesmo mundo de forma quase oposta. Teríamos alcançado o ápice do desenvolvimento moral. Depois de séculos regidos por restrições e coerções tuteladas por éticas irracionais, por morais dogmáticas. Por fim, algumas formulações asseguram que as democracias liberais patrocinam uma vida moral bastante punjante. Regida pelo pragmatismo – objetivado na busca de resultados ou metas – salpicado aqui e acolá de utilitarismo – felicidade do entorno incluindo plantas e animais – e de um certo respeito a princípios morais – também chamados de valores. O fato é que toda ética implica renuncia. Abrir mão de alguns dos próprios interesses, apetites ou desejos em nome de uma convivência mais harmoniosa. Vitória do interesse público sobre os múltiplos e esparsos interesses privados. Considere uma cidade. Seus moradores podem amiúde debater a respeito de quais condutas são contributivas da convivência de todos e quais são lesivas. Debate sem fim. Porque estamos sempre confrontados a situações inéditas de vida urbana que exigem a toda hora uma reflexão coletiva sobre a prática adequada em busca dos melhores argumentos. Seus diagnósticos são, portanto, sempre provisórios. Sujeitos a uma nova discussão e ponderações enriquecedoras. No entanto, é perfeitamente possível que, por questão de comodidade, interesse pessoal, redução de custos, tempo, passe pela nossa cabeça alguma conduta já discutida e entendida como lesiva à convivência de todos. O executivo apressado cogita furar o sinal. Não vem vindo ninguém. A jovem estudante, alterar a idade na carteira para o cinema. Babaquice esta restrição. A senhora acompanhada de amigas não avisa o erro na conta do café e paga menos do que consumiu. Eles já cobram tão caro. Nestes casos, e em tantos outros da vida cotidiana na grande cidade, estamos diante de um dilema. Hesitamos entre agir no sentido da proteção da convivência de todos ou em atenção aos próprios interesses.

FOTO: Divulgação

Corrupção: uma questão ética

Ante o exposto até aqui inferimos que uma sociedade eticamente desenvolvida é, em primeiro lugar, uma sociedade que consegue, a partir dos seus processos de socialização, de educação e de construção de subjetividades, dispor seus agentes a lutar por troféus autorizados e de modo a não comprometer a convivência. Em segundo lugar, nesta sociedade, seus cidadãos, em caso de desalinhamento entre suas inclinações e o zelo pela convivência, abrem mão com naturalidade daquelas em nome deste último. Cidadãos que consideram absolutamente normal, óbvio, evidente abdicar de um desejo particular em nome da convivência num determinado espaço. Contrariamente, podemos entender como uma sociedade eticamente pobre aquela em que se considera normal – ou até merecedor de aplauso - que cada um de seus agentes invista todas suas forças na plena satisfação de seus apetites e desejos ainda que isso possa comprometer gravemente o coletivo e sua convivência. Esta parece ser a vida a que estamos todos condenados. O mundo em que vivemos, regido por uma lógica de competição que nos instrumentaliza, premia e valora o acúmulo parcial de meios. A abundância circunstancial de recursos. As metas da vez. Sem incentivo para grandes reflexões a respeito da civilização que queremos construir juntos.

Clóvis de Barros Filho Professor livre-docente da Escola de Comunicações e Artes da USP 42

NOTÍCIAS DAS GERAIS . AGOSTO DE 2014


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