Amazônia Judaica - N.02/2010 - 200 Anos da Imigração

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EDITORIAL Editores David Salgado Elias Salgado Consultoria Editorial Heliete Vaitsman Projeto Gráfico, Arte e Diagramação Thiago Zeitune Colaboradores Malka Shabtai Marcos Wasserman Rinaldo Carneiro Rubem David Azulay Wagner Bentes Yehuda Benguigui Portal Amazônia Judaica: www.amazoniajudaica.com.br Blog do Amazônia Judaica: www.aj200.blogspot.com e-mail: portal200anos@gmail.com

A partir de 1810 judeus, em sua maioria, de origem marroquina iniciaram um processo de imigração para a Amazônia, no norte do Brasil. Aqueles que se estabeleceram definitivamente constituíram famílias e comunidades, participando ativamente da formação histórica e econômica da região e fazendo deste recanto verde do planeta seu novo lar. É sobre isso que falamos nas páginas desta Edição Especial de 200 Anos. Nossa matéria principal traz a retrospectiva dos festejos dos 200 anos, que ocorreram em todo o Brasil e até mesmo em Israel. A revista tem artigos de todos os matizes, que mostram desde o olhar de quem nasceu e “vive” há gerações na região até uma reflexão de uma antropóloga israelense que, depois de visitar as comunidades judaicas de Belém, Manaus, Santarém e Óbidos, diz que o rio impregnou-se de tal forma em sua alma que tudo o que ela deseja é voltar logo à Amazônia. Tem também matéria referente aos 150 anos da Aliança Israelita Universal, fundada em 1860, cujas escolas inúmeros judeus marroquinos freqüentaram antes de vir para a região amazônica. Muitos, mesmo depois de estabelecidos no Brasil, retornavam com seus filhos ainda pequenos para o Marrocos com o intuito de dar-lhes, nas escolas da Aliança, uma boa educação judaica moderna, sinônimo de base profissional capaz de livrá-los do atraso no qual viviam. O interesse por nossas raízes, sejam as familiares, as marroquinas e as sefaraditas, o culto ancestral aos nossos sábios, enfim, todos os elementos constitutivos que sempre povoaram o universo de nossa grande e rica tradição cultural estão presentes em matérias sobre genealogia familiar, memória, nossa história e nossos costumes, um de nossos grandes rabinos do Marrocos e crônicas de vida. É um rico mosaico, tão rico quanto foi este ano de festejos, um reflexo do vigor da luta pela preservação e continuidade de uma cultura milenar. Amazônia Judaica tem orgulho de participar de todo este esforço, demonstrando aos leitores com sua volta – na verdade apenas um lapso de tempo, um intervalo de reciclagem – que segue firme e forte em seu objetivo primordial de ser parte importante de toda essa História, que continua a ser escrita. David e Elias Salgado 3


A IM AGEM D A CAPA

SEFER TORÁ DE

400 ANOS Por Isaac Dahan *

FOT O: ALE X PAZ UEL LO

Poucos judeus da comunidade atual de Manaus sabem a real história deste Sefer Torá. O que vamos relatar nos foi contado pelo saudoso chacham Jacob Azulay Z”L, líder espiritual do ishuv por mais de cinco décadas. Supunha-se que fosse uma Torá de origem portuguesa. No período negro da Inquisição em Portugal, alguns judeus escolheram viver no Marrocos e a levaram com eles. Sabemos que este Sefer Torá foi levado para Itacoatiara-AM, onde floresceu, no início do século XX, uma importante comunidade judaica, tendo inclusive feito um prefeito judeu, Isaac Peres Z”L, tido como o urbanizador da cidade (1926). O centro da vida judaica no Amazonas era Manaus, onde vinham estudar os filhos dos judeus que viviam no interior, iniciando um processo de esvaziamento daquelas pequenas comunidades. Entre 1950/1960, praticamente já não havia mais judeus em Itacoatiara. O Sefer

Torá já fora trazido para Manaus, onde permanece até hoje. Já tivemos contato do Museu da Diáspora em Israel (Beit Hatefutsot), que sondou a possibilidade de transferi-lo para aquela entidade, porém nosso ishuv achou por bem mantê-lo entre nós. Em Israel, certamente que muito bem cuidado, ele seria apenas mais um entre os inúmeros componentes da história judaica na Diáspora. Para Manaus, representa nossa verdadeira e tão sofrida saga dos judeus na Amazônia e é como se fosse o guardião dos outros Sifrê Torá que estão no Aron Hakodesh e da própria comunidade. Representa séculos de judaísmo vivo, de pessoas que possam ter dado a vida para mantê-lo, guardá-lo e levá-lo a lugares mais seguros. Quantos chaverim, de abençoada memória, não leram suas perashiot. Em artigo publicado recentemente pela Shavei Israel – Raízes, número 19, de Shevat de 5769 – o Rabino Eliahu Birnbaum, shelita, que visitou Manaus e coletou material para exames especializados em Israel, concluiu tratar-se de uma Torá de escrita sefaradi do século XVI, em torno de 1575, de origem espanhola (certamente já escrita fora da Espanha). Corrobora-se então a assertiva das gerações mais antigas desta kehilá, que nos ensinaram que este Sefer Torá teria mais de 400 anos. Em respeito a tudo isso, este sagrado rolo, já passul, ou seja, impróprio para leitura pelo peso dos anos, é talvez a maior preciosidade deste nosso pequeno ishuv.

*Isaac Dahan é Chazan da Comunidade de Manaus. Artigo publicado no livro OR GADOL – Comentários sobre a Torá e as Festas Judaicas, de sua autoria (Editora Sefer/SP, em parceria com o Comitê Israelita do Amazonas, 2009).


ANO 2 • Nº2 • 2010

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ENCONTROS

Viagem emocionada no verão de 2010

EDITORIAL 3 A IMAGEM DA CAPA 4 Sefer Torá de 400 anos ENCONTROS 6 Eretz Amazônia, nova terra da promissão E 24 COSTUMES TRADIÇÕES

A Mão e a Luva

HISTÓRIA 11 Rebi Shalom Messas z’l, um sábio contemporâneo HISTÓRIA 12 150 anos da Aliança Israelita MEMÓRIA 14 Em Tetuan, ao encontro da casa do pai CAPA 16 2010 - Bicentenário de um judaísmo singular FUTURO 22 Como será o judaísmo amazônico daqui a 200 anos?

27 GENEALOGIA Fincando raízes no Brasil

CRÔNICA 30 O Fim do Mundo MENSAGENS 33


ENC ONTR OS

ERETZ AMAZÔNIA

por Marcos Wasserman *

NOVA TERRA DA PROMISSÃO “Na casa do meu avô tinha uma daquelas estrelas de vocês”.

H

á poucos dias, recebi um inusitado convite, do Portal Amazônia Judaica, para participar de uma cerimônia comemorativa dos 200 anos da presença dos judeus naquela região. Precedeu o convite um telefonema amável do Sr. David Salgado, ele mesmo originário de Manaus, mas vivendo em Israel, que informou que a cerimônia seria num auditório ao lado da Grande Sinagoga de Jerusalém. Estive uma vez em Manaus, a convite de um general que então comandava a Região Militar da Amazônia. Ele se orgulhava por fazer a patrulha de avião, e pediu-me referir aos amigos que tinha em Israel da vasta área territorial que comandava. A Terra Santa seria, comparativamente, uma pequena ilha. Para mostrar-

6 AMAZÔNIA JUDAICA No2 - NOV/2010

me Manaus e arredores, um oficial, se não me falha a memória um coronel, me acompanhava. E assim

pude, pela primeira vez na vida, ver e entender o que era o Rio Amazonas. Conheci muita coisa,

inclusive o local onde a tropa se exercitava na selva. Um dia, aquele coronel não veio e saí sozinho com o motorista. Um rapaz bem moreno, simpático, puro amazonense. Ele olhou-me através do retrovisor e disse: – Doutor, posso fazer uma pergunta? O senhor é brasileiro, é israelita ou é de Israel? – Sou brasileiro, judeu e vivo em Israel – respondi. Eu estava sentado no banco de trás e não pude ver a sua fisionomia, mas me pareceu ter ele me respondido com um sorriso: – Eu também sou descendente, quero dizer, meu avô era judeu; eu já sou católico. Aliás –

a apontou com o dedo – meu avô está enterrado aí, no Cemitério Israelita de Manaus. E, orgulhosamente, disse seu sobrenome. É extraordinária a história dos judeus na Amazônia. Dela tomei conhecimento através do livro que intitula a presente crônica, escrito pelo professor Samuel

Benchimol, já falecido, que foi professor emérito da Universidade de Amazonas. É uma verdadeira saga. Poucos podem imaginar que a presença judaica moderna na Amazônia (para não falar da que existia no tempo pré-colonial) teve início ainda em 1810. O professor Benchimol fez um estudo de grande profundidade sobre os judeus na Amazônia. Ele refere-se a dezenas de comunidades da hinterlândia. Cita os nomes, que menciono por mera curiosidade: Gurupá, Cametá, Macapá, Breves, Baião, Itaituba, Boim, Aveiros, Santarém, Óbidos, Alenquer, Monte Alegre, Juruti, Faro, Oriximiná, Parintins, Maués, Itacoatiara, Manaus, Manacapuru, Coari, Tefé, Manicoré, Humaitá, Porto Velho, Guajará-Mirim, Fortaleza do Abunã, Rio Branco, Tarauacá, Sena Madureira, Iquitos, Yurimaguas, Pucallpa, Contamana, Tarapoto, Caballococha, Letícia e outros lugares. De onde vieram os judeus para a Amazônia? A grande maioria do Marrocos, muitos, descendentes de judeus portugueses e espanhóis expulsos pela Inquisição. Alguns de origem asquenazita. Nomes? Alguns facilmente identificáveis


pela sua origem, como: Kadosh, Ansallem, Benzaken, Benchimol, Serruia, Assayag, Abekassis e muitos outros. Também encontramos nomes como Mendes, Siqueira, Pazuelo, Senna, Marques, Pinto, Alves, Bentes; e, claro, não faltaram os Levis e os Cohens. O autor deu-se o trabalho de pesquisar nomes de empresas comerciais criadas naquela época por aqueles imigrantes judeus. Também assinala que, no decorrer dos anos, houve grande assimilação, casamentos mistos, resultando, segundo avalia numa projeção do crescimento populacional ao longo de 100 anos, em cerca de 286.859 habitantes de ascendência judaica na Amazônia no ano de 1997. Mas Benchimol mesmo assinala: “Pode parecer um absurdo matemático, face à existência atual de 750 famílias, correspondente a 3.000 judeus praticantes”. Voltando ao meu motorista amazonense: depois de ter revelado a sua origem, disse que pouca coisa se lembrava de seus avós, embora algo tivesse ficado marcado em sua memória. Contou que o avô morava na beira do rio. – Era amancebado – ouvi um risinho –, ao que parece, com algumas índias. Tinha muitos filhos.

Já na velhice vivia da pesca. Ali, da casa dele, jogava a rede e peixe não faltava. Na casa dele tinha uma daquelas estrelas de vocês. Lembro que uma vez por ano lá se juntava toda a família. A gente passava um dia inteiro comendo do bom e do melhor e, depois, ficava, no dia seguinte, sem comer nada e sem beber!!!…

Tudo isso me leva a considerar as pesquisas que vêm sendo feitas no Brasil para tentar averiguar quantos brasileiros seriam de origem judaica. As opiniões divergem e, evidentemente, há muita especulação e fantasia a respeito. No entanto, mencionaria apenas um seríssimo pesquisador israelense, de uma das importantes universidades de Israel, que tem viajado várias vezes para o Nordeste brasileiro. Disse ele, em uma reunião da qual participei na sua universidade, que ainda não havia terminado seu trabalho, razão pela qual não publicou, até agora, o número de descendentes

de judeus no Brasil, mas que ele estimava girasse em torno de 30 milhões.

Eretz Amazônia foi, para os imigrantes judeus que lá se estabeleceram há 200 anos, considerada a Nova Terra da Promissão.

* Marcos Wasserman é advogado em Israel, Brasil e Portugal, e é presidente do Centro Cultural Israel-Brasil em Tel Aviv. E-mail: mlwadvog@netvision.net.il


ENC ONTR OS Malka com a anfitriã, Ana Chocron, em Óbidos

VIAGEM EMOCIONADA À AMAZÔNIA VERÃO 2010

por Malka Shabtai*

“Sinto que será difícil ficar longe por muito tempo de um lugar onde me senti no Jardim do Éden”

A

té alguns meses atrás, nunca tinha ouvido falar dos judeus que emigraram do Marrocos para a Amazônia brasileira e peruana. Num Seminário que lecionei no Centro Acadêmico Rupin, aqui em Israel, passei a estudar e conhecer os “olim chadashim” (novos emigrantes), entre eles alguns de Iquitos, no Peru. Quando procurei novas fontes de pesquisas, encontrei na internet matéria sobre o filme Eretz Amazônia – os judeus

8 AMAZÔNIA JUDAICA No2 - NOV/2010

na Amazônia. Consegui localizar um de seus realizadores, David Salgado, e no dia seguinte uma cópia do filme já estava em minhas mãos. Quando assisti ao filme, juntamente com minha família, não acreditei que nada sabia sobre o assunto, e não acreditei que existiu e que ainda exista vida judaica na Amazônia. Então, decidi entender algo sobre um mundo do qual estivera tão distante. Marquei a data da partida, preocupei-me em encontrar uma atividade

para minha filha, e principalmente encontrei-me com David Salgado, que de modo espontâneo e bondoso agendou para mim todos os encontros e visitas e me ajudou na preparação da viagem. David também me acompanhou via telefone durante toda a visita; dividi com ele minhas experiências e ele cuidou para que tudo corresse conforme o planejado. E assim viajei, muito emocionada e repleta de expectativas. Primeiro fiz uma parada no Rio de Janeiro, onde fiz uma bela caminhada ao lado de Vidinha, a mãe de David Salgado, até o Pão de Açúcar, e pude conversar com o antropólogo Wagner (Arieh) Bentes sobre as comunidades judaicas marroquinas e os descendentes de anussim no Brasil, enquanto passeávamos a pé pela praia de Copacabana e outras lindíssimas praias cariocas. Do Rio viajei para Belém. Não consigo explicar o que senti quando vi do avião, naquela imensidão verde da floresta e dos rios afluindo, surgir uma cidade com enormes edifícios. Em Belém hospedei-me na residência da família Marcos Serruya, que cuidou de tudo para mim. Encontrei-me com a relativamente pequena comunidade judaica na sinagoga. Diariamente eu tinha uma companhia diferente que me acompanhava para mais uma visão do dia a dia dos judeus em Belém. Os cemitérios antigos e atuais, a Universidade do Pará, as comemorações familiares toda noite e um sem fim de conversas sobre a vida comunitária que tinham e as preocupações atuais, principalmente casamentos mistos e as dificuldades para dar continuidade à vida judaica. Na Família Serruya e de modo geral em Belém conheci a abundância e a variedade enorme de peixes e frutas tropicais, e me apaixonei


profundamente pelo açaí, bacuri e muitos outros. Em Belém, procurei falar hebraico com todos que assim preferiam, busquei conhecer o trabalho dos “shelichim” do Kadima Bnei Akiva e o lugar do Beit Chabad e as inúmeras situações conflitantes que suas atividades refletem na comunidade. De lá, voei para Santarém, viagem noturna. Cheguei e me acomodei num hotel pequeno às margens do rio. Encontrei-me com a última família que vive na cidade, a família Serruya. Conversei em hebraico e inglês com o neto, conhecido como “Fortunatinho”, que tanto sonha em fazer aliá após completar seus estudos. Ainda pude visitar e conhecer a praia de rio tranquila e mágica Alter do Chão, que fica a algumas horas de ônibus de Santarém, entre pequenos vilarejos. Até quando haverá judeus em Óbidos? De Santarém, tomei uma lancha voadora para Óbidos. A viagem foi calma e maravilhosa, duas horas e meia sobre o rio Solimões. Em Óbidos hospedei-me ora na casa da família Hamani, Cloud e Mary, ora na casa de Fortunato e Ana Chocron. Minha estadia em Óbidos foi maravilhosa. Visitei o cemitério judaico e a casa de D. Rica, que

D. Cota Melul, filha do chacham (sábio) Isaac Pinchas Melul Belém / PA

Malka Shabtai com a família Ohana de Belém do Pará

servia de centro da vida judaica até sua morte em 1964. Visitei e trabalhei um pouco na fábrica de castanha do Pará do Sr. Fortunato Chocron. Conversei com cada um deles sobre a história de suas famílias e as comunidades judaicas no interior, e como é a vida das últimas famílias judaicas que ainda moram ali. Um tema que vira e mexe surgia em nossas conversas era o dos descendentes de judeus, uma quantidade enorme deles, e o fato de que inúmeras pessoas que carregam ainda sobrenomes judaicos são completamente católicos. Sonho em conhecer todos esses lugares... esse dia ainda chegará. Uma noite, viajamos para uma festa em homenagem a um santo local em Oriximiná. A festa estava belíssima. Porém, o evento mais importante para mim foi um encontro com uma jovem senhora, Niva Daniela Leite Fihma,

nascida em Alenquer. Niva contoume sobre sua sensação como descendente de judeus e sobre sua ânsia de se conectar com alguma coisa que ela própria não sabe dizer o que é. Mary Hamani me ensinou os nomes dos peixes que são permitidos para o consumo porque possuem escamas e os nomes de todas as frutas tropicais. Ana Chocron me levou para conhecer a fazenda da família, distante cerca de duas horas viajando em uma pick up 4 x 4 que saltitava todo o caminho, também me levou para ver onde e como vivem famílias pobres da região, e cuidou para que eu estivesse diariamente abastecida de açaí!!! A hospedagem, o silêncio e a simplicidade de Óbidos conquistaram meu coração. Decidi que tenho que conhecer todos os outros lugares onde viveram judeus e onde vivem até hoje os seus descendentes. Quando as duas famílias vieram se despedir de mim às cinco e meia da manhã, senti que tive um grande “zechut” (privilégio) de conhecê-las e ter estado em Óbidos... porém também senti tristeza e me perguntei: até quando ainda viverão os judeus em Óbidos? Arco-íris sobre as águas Momentos depois encontrava-me na viagem de barco mais emocionante e encantada de toda a minha vida. Foram doze horas sobre o rio numa 9


ENC ONTR OS Niva Daniela Leite Fihma

lancha voadora. Juntamente com os tripulantes da lancha procuramos os botos da Amazônia. Descansei, emocionei-me, engoli porções volumosas de ar puro e limpo e me acompanhou uma maravilhosa paisagem verde que nunca cansou meu olhos... um arco-íris fantástico se abriu nos céus, escrevi músicas e história infantil e refleti sobre todos os “filmes” de minha vida. Estava muito, muito feliz. Ao entardecer chegamos a Manaus. Não conseguia ficar em pé, balançava de um lado para outro, até que encontrei Mariel Benayon, que me levou para sua casa, para que eu pudesse descansar e me recuperar. No dia seguinte já estava em forma novamente. Na sexta-feira à tarde fui à sinagoga. Conheci a cidade graças ao trabalho profissional da guia de turismo Anne Benchimol. Passeei e conheci afluentes do Rio Negro e encontrei-me com inúmeras e interessantes pessoas. Entre elas, Safira Ohana, a poetisa que leu para mim de suas poesias; Samuel Pereira, que contou-me muitas histórias dos descendentes de judeus da região; Jóia Cohen Israel, que falou-me da história de sua família; e ainda encontrei-me com um grupo de pessoas que estudavam como pronunciar corretamente em hebraico as “tefilot” (orações). Conversei em um jantar festivo 10 AMAZÔNIA JUDAICA No2 - NOV/2010

com a família Benzecry e Benchimol, sobre o passado, presente e futuro das comunidades judaicas na Amazônia. Quase no final de minha visita a Manaus, Anne indicou-me uma voadeira pequena e tendo o Frank como guia, passeamos por rios e igarapés, até que chegamos a um lugar fantástico, denominado “praia do Topé”. Três semanas impressionantes, de estudos enriquecedores, passei na Amazônia. Sinto-me hoje capaz de testemunhar e servir de veículo para trazer esta história especial ao público israelense. Quero voltar para continuar pesquisando e estudando sobre a vida judaica e seus descendentes no

presente. E sinto que será difícil ficar longe por muito tempo de um lugar onde me senti no Jardim do Éden, no próprio paraíso, tão lindo, calmo e gostoso. Apesar de tudo, voltei com enormes perguntas sobre o futuro dessas comunidades judaicas, sobre o destino da geração jovem. Será que continuarão judeus, apesar das dificuldades de encontrar um cônjuge judeu? E quanto aos muitos descendentes de judeus que vivem nessa região, qual o certo a fazer em relação a eles? Seria deixá-los viver suas vidas conforme eles próprios escolheram? Como devemos tratar quem quer retornar ao judaísmo? Como construir a ponte entre o Estado de Israel e essa comunidade judaica tão especial, que vive tão longe, mas que hoje sinto muito próxima? Termino mas não estou completa: algo de mim ficou sobre o rio, e o próprio rio está presente o tempo todo em minha vida. Obrigada do fundo do meu coração a todos que encontrei. E a todos que me ajudaram no caminho, prometo voltar!!!

A poetisa Safira Ohana de Manaus

* Malka Shabtai é Doutora em Antropologia, membro do Instituto de Imigração e Integração Social, Centro Acadêmico Rupin, Israel


H I S T Ó RIA

OS 150 ANOS DA

ALIANÇA ISRAELITA (1860 – 2010)

França e Israel lançaram, em maio, selos celebrando o 150º. aniversário da Aliança Israelita Universal, que levou educação laica a gerações de judeus de todo o mundo árabe. A rede de escolas mudou a face das comunidades judaicas e deu a milhares de jovens (homens e mulheres) as ferramentas para competir em igualdade de condições no mercado de trabalho de vários países, inclusive o Brasil. Criada em Paris em 1860, por Adolphe Crémieux, político judeu francês defensor dos direitos humanos, a Aliança baseava-se no principio talmúdico “Kol Israel Arevim Zê La Zê” [Todos os israelitas são responsáveis uns pelos outros] e alcançava de capitais como Bagdá e Teerã a pequenas aldeias do Marrocos. A primeira escola foi criada na cidade marroquina de Tetuan, em 1862. A Aliança ainda funciona. Atualmente, existem escolas nos seguintes países, com um total de cerca de 15.000

alunos: França, Marrocos, Israel, Canadá, Espanha, Suíça e Bélgica. Para o judaísmo da Amazônia, a Aliança teve uma importância fundamental, como registra o professor Samuel Benchimol em sua obra de referência Eretz Amazônia: Os judeus na Amazônia: “Muito contribuíram, também, a criação de escolas da Aliança Israelita Universal no Marrocos, que gabaritava jovens judeus adolescentes com cursos profissionalizantes e uma visão de modernidade...”

Selos comemorativos Criado pelo governo da França

Criado pelo governo de Israel

Turma de alunos da escola masculina de Tetuan 11


H ISTÓRIA

REBI SHALOM MESSAS z’l GRANDEZA E BONDADE DE UM SÁBIO CONTEMPORÂNEO

Por Yehuda Benguigui *

Rebi Shalom Messas z’l

U

m dos mais respeitados mestres do judaísmo marroquino, o Chacham Shalom Messas z’l nasceu em Meknes, Marrocos, em 5683/1913, filho de Rebi Mimon Messas z’l e de sua esposa Rachel (a família Messas pode traçar sua linhagem até Espanha e Portugal). Em sua infância em Meknes, frequentou a escola da Aliança Israelita Universal. Precocemente, foi um promissor talmid chacham – estudante de Torá – do Grão Rabino do Marrocos, Rebi Yehoshua Berdugo z’l. Sua capacidade de estudo da Torá (Lei), dos meandros do Talmud (Lei Oral) e da Halachá era considerada impar nas Yeshivot (academias talmúdicas) por onde passou.

12 AMAZÔNIA JUDAICA No2 - NOV/2010

Aos 36 anos, em 1949, Rebi Messas assumiu a honrosa função de Grão Rabino do Marrocos, país onde foi muito respeitado pela sociedade em geral, mais notavelmente pela corte. O Rei Hassan o admirava e reconhecia sua sagrada sabedoria, consultando-o com frequência. Em 1978 o Rav Harashi(Grão Rabino) Sefaradi de Israel, Harav Ovadia Yossef shilita, convidou-o a tornar-se Grão Rabino Sefaradi de Jerusalém. Quando Rebi Messas partiu para Israel, foi conduzido ao aeroporto por uma escolta real e o próprio Rei o acompanhou, pedindo-lhe uma “brachá”, benção, e este foi seu ultimo ato oficial no Marrocos. Rebi Messas escreveu diferentes tratados e livros sobre importantes aspectos de Halachá, que são referência na atualidade. Também era reconhecido como um preservacionista dos

dinin veminhaguim – leis e costumes da tradição sefaradi-marroquina. Era capaz de passar dias e noites buscando a interpretação e as fontes para cada situação que necessitasse de um psak din – determinação da interpretação de uma lei. Escreveu sua primeira obra, Mizrach Shemesh, em 1930, com apenas 17 anos. Sua ultima obra, Vecham Hashemesh al Hatorah, foi escrita e publicada em 2002, cerca de um ano antes de seu falecimento, aos 90 anos, em Shabat Hagadol, no dia 11 de Nissan de 5773/2003. Ele foi enterrado no cemitério Har Hamenuchot, em Jerusalém, e seu funeral foi acompanhado por milhares de seguidores. Muitos relatos mostram o hessed/ bondade e a grandeza de Rebi Messas. Em 1943, aos 34 anos, adoeceu durante uma terrível epidemia que assolou o Marrocos. Ficou muito fraco e a gravidade de seu

Copia da “Semicha de Shochet” de Rebi Hamu, assinado por Rebi Messas, Grão rabino do Marrocos em 1965 (Cortesia do Sr Jacob Messod Benzecry, Belém e de D Estrella Gabbay Hamu, São Paulo).


Rebi Messas z’l concedendo bracha (benção) a um bachur-yeshiva (aluno de Yeshiva).

estado de saúde despertou a preocupação de todo o povo judeu do Marrocos. Seus talmidim/alunos consultaram Rabinos em Casablanca e os mesmos declararam uma takanah, uma sentença, indicando a todos que deveriam fazer jejum. Nesse dia, tocaram shofar e disseram tefilot/ orações especiais em todo o país. Logo o Rebi Messas se recuperou de sua doença e, muito fraco, começou a utilizar um cajado que lhe havia sido presenteado pelo sogro. A partir de então, passou a utilizar este bastão como um símbolo de tichiat hametim – recuperação da morte – e expressão de gratidão por Hashem- D-us lhe haver concedido refuah Shelemah, a cura completa. O bastão era uma permanente lembrança de que deveria dedicar-se ao estudo da Torá e à pratica das

mitzvot/ boas ações, todos os dias, durante toda sua existência. Há uma profunda ligação entre Rebi Messas e a comunidade judaica do Pará. Esta ligação ocorreu através do saudoso Rebi Abraham Hamu z’l, nascido no Pará em 14 de dezembro de 1909. Antes de chegar a Belém na década de 1960, já Rabino competente, ele recebeu (em 13 de Tishrei de 5727/ 27 de Setembro de 1966) sua semichá/ordenação de shochet (expert em abater animais para consumo através da shechitah/ matança ritual). E a semichá foi concedida pelo Beith Din Gadol/ Tribunal do Grão Rabinato do Marrocos em Casablanca, por três Rabinos: Rebi Moshe Malka, Rebi Rahamim Amara e o Presidente do Tribunal, Grão Rabino do Marrocos, Shalom Messas z’l.

Há dois anos o Rabino Moyses Elmescany traduziu e publicou uma das obras sobre halachá, de autoria do Rebi Shalom Messas z’l, num trabalho inédito em português. Neste ano de 2010, em que a comunidade judaica amazônica comemora 200 anos da chegada dos pioneiros do Marrocos, coincide que nossa família comemora exatamente 100 anos da chegada do iniciador de nosso clã no Brasil, meu pai, Moyses Benguigui z’l, em 1910. Nasceu em Sale, Marrocos, em 1888 e partiu ao Brasil com 22 anos. Chegou a Belém e logo instalou-se no interior do Estado do Pará. Faleceu aos 98 anos em Belém, em 12 de setembro de 1986. Dedico este e todos os textos da série sobre Chochmei Maroko sábios do Marrocos a meu pai, minha permanente fonte de inspiração.

* Medico Pneumologista e Sanitarista. Assessor Principal da Organização Pan-Americana da Saúde/ Organização Mundial da Saúde - Washington, DC - EUA

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MEM ÓRIA

DE VOLTA A TETUAN, AO ENCONTRO DA CASA DO PAI N

Por Rubem David Azulay *

a época da imigração marroquina, os jovens faziam o Bar-Mitzvá e migravam para o Pará. Meu pai é um exemplo típico: David Rubem Azulay nasceu em Tetuan em 1883 e fez seu Bar-Mitzvá em 1896, antes de migrar, acompanhando uma leva de judeus para o Pará. Meu pai contou-me que foi de Tetuan para Tanger, onde tomou o navio em direção a Belém; o judeu mais forte de Tetuan o levou em sua carroça. Chamava-se Salomão Nahon. Guardei esse nome porque em Belém havia um Salomão Nahon muito alto e forte. Fui a Tetuan com minha esposa e filhos para ver a terra onde nascera meu pai. Ao chegar, fui informado que havia a “judiaria” e a “moreria” e que, de quando em vez, havia briga entre eles. Nosso

guia era pessoa de idade e nada soube informar a respeito de meu pai. Às 5 horas da tarde, ao terminar o seu serviço de guia, despediu-se e disse-me que ia à casa de seu pai. Refleti, no momento, que talvez seu pai soubesse algo a respeito do meu. Solicitei-lhe que me levasse até ele, o que foi feito. Apresentoume e perguntei-lhe se havia conhecido meu pai. Imediatamente 14 AMAZÔNIA JUDAICA No2 - NOV/2010

respondeu-me: “Conheci-o”, e acrescentou: “Levei-o a Tanger para embarcar”. “Seu nome?” pergunteilhe. Salomão Nahon. Fiquei arrepiado. Solicitei-lhe que me informasse a casa em que nascera meu pai. Orientou seu filho (o guia) para ir ao local. A casa estava habitada por um árabe. Solicitei-lhe permissão para visitar a casa, o que foi negado. Disse ao meu guia: “Vou entrar de qualquer maneira”; eu estava errado, mas não havia outro meio. “Não!”, respondeu-me o guia. “Ele pode matá-lo”. Invadi a casa e o árabe

atrás de mim para impedir-me. Era uma casa pequena feita com pedras grandes; na época não havia tijolos. No cemitério de Tetuan, vi as sepulturas dos Azulay que originaram meu pai, cuja trajetória foi similar à de tantos outros imigrantes. Várias famílias judias de Belém, migraram para o Rio de Janeiro e associaram-se à Sinagoga União Israelita Shel Guemilut, e procuraram desenvolver essa entidade. Rubem David Azulay e Miguel Benjó exerceram a presidência da U.I.S.G.H. por cinco mandatos. Nossos filhos e netos, felizmente, estão seguindo essa linha de conduta, para felicidade nossa e dos futuros seres humanos.

Rua do antigo bairro judeu de Tetuan

História dos judeus no Pará Os primeiros judeus que chegaram a Belém eram de origem marroquina. As pesquisas indicam que o Sr. José Benjó foi o primeiro judeu a chegar à ciade, em 1823, ano em que solicitou sua naturalização e licença para estabelecer sua casa comercial. Montou sua loja na Rua do Pelourinho (hoje, Rua 7 de Setembro). Há referência de que outro Benjó, de prenome Simão, teria recebido do Governo Imperial do GrãoPará, Marechal Francisco D’Andrea, em 4 de julho de 1838, a licença para comerciar no Largo do Pelourinho. Em relação ao gênero feminino, sabe-se que a primeira mulher a se estabelecer em Belém foi Myrian Sebah. Por que os judeus marroquinos


Sinagogas, cemitérios, escola Vale ressaltar o espírito religioso do judeu, pois em 1824 o marroquino Abraham Acris fundou a primeira sinagoga, Essel Abraham, cujo significado é arvoredo de Abraham Abinu, primeiro patriarca do povo judeu. Foi instalada inicialmente à Travessa Santo Antonio e se mantém até nossos dias, à Rua Campos Sales. Esta é a sinagoga que meus pais frequentavam e onde, em 1929, fiz meu BarMitzvá. Sessenta e cinco anos depois, ou seja, em 1889, formou-se uma segunda sinagoga, Shaar Hashamaim (Porta do Céu). Quando criança, assisti à mudança desta de um sobrado do Largo da Trindade para uma casa à Rua Frutuoso Guimarães; dessa casa, mudou-se para a Rua Arcipreste Manoel Teodoro, onde permanece até hoje. Gravei em minha memória o transporte dos sefarim carregados por judeus, pelas ruas, até o novo local.

Nordestinos”. Esse monopólio, entretanto, foi atingido pelos judeus que criaram os “regatões”, ou seja, utilizavam batelões para o comércio entre Belém e as cidades do interior. Levavam mercadorias manufaturadas que eram trocadas por borracha, couros de animais silvestres, castanha, capaíba e outros. Essa concorrên-

cia despertou o antissemitismo regional – “Morte aos Judeus” – na

cidade de Cametá e em outras cidades ribeirinhas. Os judeus marroquinos não desistiram e mantiveram-se ciosos de seu comportamento. Nessa ocasião existiam as seguintes firmas: Leão Israel e Irmãos, Levy Marques e Cia, Salomão J. Acris e Cia, Marcos Bensimon e Cia, entre outras. Data histórica de real importância foi a da criação do primeiro cemitério judeu, em 1842, chamado da Soledade, na Av. Serzedelo Correia com Soledade. Lá, há 28 sepulturas: a primeira é a de Rabi Mordecai Hacohen, falecido em 1848. Necessário se torna referir o sepultamento de três pessoas no Cemitério dos Ingleses, defronte ao da Soledade. O segundo cemitério chamou-se Cemitério Judeu Antigo do Guamá.

Nele foi enterrado o Sr. José Benjó (11/11/1899), o primeiro judeu de Belém. Lá estão enterrados, no período de 1883 a 1969, 566 judeus; destacamos a sepultura de Sol A. Garson (1907), minha avó. Lá, também, estão enterrados Esther Serruya (1927) e Abraham Serruya (1929), avós de minha esposa Esther Serruya. O terceiro foi o Cemitério Israelita Novo Guamá, inaugurado em 1940, com o primeiro sepultamento de Jacob Abitbol (1940) e em 1997 com o enterro de Aida Benchimol (28/11/1997). Total de sepulturas: 492. Somando-se as sepulturas de Belém com as outras cidades do Pará, o número de sepulturas vai a 1253 (até 1997). Em 1919 já havia escola primária, o Externato Dr. Weizmann, que albergava cerca de 70 crianças judias e não judias. Foi fundado pelo Major Eliezer Levy (1872-1947) que, também, criou o jornal Kol Israel que funcionou durante oito anos (1918-1926). O Instituto Histórico do Pará, em 1920, considerou-o um dos jornais importantes do Norte do Brasil. Em 1918 foi fundado o Comitê Sionista Ahavat Sion (amor a Sion). FOTO: ACERVO PESSOAL DE JACOB MESSOD BENZECRY

foram para a Amazônia, sobretudo, Belém do Pará? Eram pobres no Marrocos e, além da pobreza, havia a perseguição. Seria a Amazônia outra Terra da Promissão? A explicação para essa migração teve base jurídica na Carta Régia de 1814, do Príncipe Regente D. João, que abria os portos brasileiros “a todas as nações amigas sem exceção”. O boom da borracha (1850-1910) foi também um atrativo. Diga-se, de passagem, que os judeus marroquinos se originaram de espanhóis e portugueses refugiados da Inquisição.

Em poucas décadas, em Belém, já residiam inúmeras famílias judias provenientes do Marrocos.

Nessa época, o comércio entre Belém e as outras cidades paraenses situadas nos Rios Amazonas e Tapajós era realizado, sobretudo, pelos “Coronéis de Barranco Cearenses e

Festa da Sociedade Israelita do Pará

*Rubem David Azulay é Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense. Professor Titular da Fundação Técnico Educacional Souza Marques e da Universidade Gama Filho. Chefe do Instituto de Dermatologia do Hospital da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Ex-Presidente da Academia Nacional de Medicina.

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C APA

1810

201

2010

BICENTENÁRIO DE UM JUDAÍSMO SINGULAR


10

N

um

país

jovem

e

de

de realidade que lhe permite ser

memória tão curta como o

otimista em relação ao futuro,

nosso, num mundo fugaz

embora existam inevitáveis sinais

onde o que foi ontem, hoje já não

de perigo (conforme assinalado por

é mais, poucas coisas sobrevivem

depoimentos sobre os próximos

e permanecem. O judaísmo ama-

200 anos, na página 22).

zônico provou, ao longo do ano

Todo esse vigor pode ser sentido

de 2010, ser um destes raríssimos

a seguir, na retrospectiva que faz

sobreviventes.

parte da edição especial com a

Mais ainda, o ”jovem senhor

qual Amazônia Judaica brinda seus

maduro”, agora com 200 anos,

leitores. Acima de tudo, o que se

provou-se um ser vivo e vibrante,

ressalta aqui é a participação tanto

que logrou preservar sua essência

de indivíduos quanto das comuni-

singular, adaptar-se e até reinven-

dades judaicas amazônicas, que

tar-se em muitos aspectos. Sem

se uniram num enorme e bem

jamais perder de vista seu passado,

sucedido esforço para celebrar e

vive o presente com um raro senso

registrar uma data marcante.

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C APA Entre novembro de 2009 e março de 2010, Amazônia Judaica lançou seu portal (www.amazoniajudaica.com.br), um calendário alusivo aos 200 anos e um blog (www.aj200.blogspot.com). Março de 2010 01/03 Lançamento do Concurso Professor Samuel Benchimol, de monografias sobre os 200 anos da presença judaica na Amazônia. O prêmio será entregue na convenção anual da CONIB, que, este ano, será sediada por Manaus, entre os dia 19 e 21/11 16/03 Cerimônias nas Câmaras Municipais de Manaus, Porto Velho e Breves 17/03 Evento comemorativo dos 200 anos na Sinagoga Shel Guemilut Hassadim, Rio 18/03 Cerimônia na Assembléia Legislativa de Manaus

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1. Calendário Oficial dos 200 anos, lançado pelo Portal AJ; 2. Cartaz do Concurso de Monografias Profº Samuel Benchimol; 3. Davis Benzecry, presidente do CIAM (1º à esquerda), em cerimônia pela passagem dos 200 anos, na Câmara Municipal de Manaus. A iniciativa da homenagem foi do vereador, Isaac Tayah; 4. O deputado Marcelo Itagiba, em evento na Sinagoga Shel Guemilut Hassadim, no Rio; 5. Membros do CEJURON com a vereadora Mariana Carvalho, em cerimônia de sua iniciativa, na Câmara Municipal de Porto Velho; 6. O deputado Marco Antônio Chico Preto (à direita), autor da proposta de homenagem e Davis Benzecry; 7. O Diretor do Portal AJ, Elias Salgado, (ao centro) com o casal Myriam e Reuven Tobelem, que de visita a familiares no Brasil, prestigiaram o evento na Shel 18 AMAZÔNIA JUDAICA No2 - NOV/2010

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Maio de 2010 10/05 O diretor do Portal Amazônia Judaica, David Salgado, visita a nova comunidade israelita de Macapá, no extremo norte do país. 12/05 Com apoio do Portal Amazônia Judaica e do CIAM, a assistente social Dina Paula Santos defendeu com louvor sua monografia de graduação em Serviço Social, no Centro Universitário Nilton Lins de Manaus, sobre o tema “A participação da comunidade judaica no desenvolvimento da Economia de Manaus: do ciclo da borracha à Zona Franca de Manaus”. Julho de 2010 28/07 Evento alusivo aos 200 anos é realizado em Israel, na cidade de Jerusalém, por iniciativa do Portal Amazônia Judaica, com público de cerca de 100 pessoas, membros da comunidade de olim (imigrantes) da Amazônia (que já conta com mais de 300 integrantes)

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8. David Salgado proferindo palestra à comunidade judaica de Macapá; 9. Davis Benzecry, presidente do CIAM, recebe placa que homenageia a comunidade judaica de Manaus; 10. Anne Benchimol (1ª à direita) e David Salgado, prestigiam Dina Paula Santos, na apresentação de sua monografia sobre os judeus de Manaus; 11. O escritor Marcio de Souza (1º à esquerda) e o casal Anne e Jaime Benchimol, em cerimônia na Assembléia Legislativa de Manaus; 12. Ex-ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, proferindo discurso em memória ao Profº Samuel Benchimol; 13. Myriam e Reuven Tobelem, casal símbolo dos olim da Amazônia, recebem peça em porcelana que os homenageia das mãos de sua neta Maya Azulay; 14. Projeção de palco: abertura cerimônia de homenagem ao Profº Samuel Benchimol, no Midrash 19


C APA 15. Reginaldo Heller, o autor, (sentado), com Thiago Zeitune, (1º à esquerda) e Elias Salgado, designer e editor, respectivamente, no lançamento do livro Judeus do Eldorado; 16. Rabino Moysés Elmescany, co-autor do Machzor Ner Yom Kipur, em cerimônia organizada pela WIZO de Belém, com duplo objetivo: lançar o machzor e entregar ao rabino o prêmio “Pai do Ano WIZO”, 2010; 17. Rabino Moysés Elmescany, cercado pelas chaverot WIZO, no lançamento do machzor; 18. Grupo de dança do Centro de Estudo Judaico Kol Ivry, em apresentação, no Festival da Cultura Judaica;

Agosto de 2010 10/08 Homenagem ao professor Samuel Benchimol – empresário, líder comunitário, professor e pesquisador, grande estudioso da Amazônia – no Midrash Centro Cultural, Rio 17/08 Lançamento do livro Judeus do Eldorado, de Reginaldo Heller, editado com apoio e coordenação editorial do Portal Amazônia Judaica, no Midrash Centro Cultural, Rio 19/08 Festival da Cultura Judaica de Rondônia, em Porto Velho 22/08 Lançamento, em Belém, do Marchzor de Yom Kipur, compilado pelo rabino Moyses Elmescany e o chazan David Salgado, em cerimônia da WIZO, que homenageou o rabino como “Pai do Ano 2010” 20 AMAZÔNIA JUDAICA No2 - NOV/2010

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19. Vereadora Mariana Carvalho e membros do CEJURON no Festival da cultura Judaica, em Porto Velho; 20. O escritor Márcio de Souza, com membros da comunidade judaica de Manaus, na noite de estréia da peça Eretz Amazônia; 21. Os participantes da excursão de 200 anos ao Marrocos em seu 1º dia de passeios; 22. Elenco da peça Eretz Amazônia; 23. Capa do romance Cabelos de Fogo, de Marcos Serruya, lançado dia 26/10, em Belém;

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Setembro de 2010 04/09 Lançamento da peça Eretz Amazônia, baseada na obra homônima do professor Samuel Benchimol, adaptação de Marcio de Souza, no Teatro Oficina do SESC, Manaus, com encerramento da temporada, no Teatro Amazonas, em 12 de outubro Outubro de 2010 17/10 Embarca para o Marrocos, a Excursão dos 200 anos, lançada pelo Portal Amazônia Judaica, em parceria com a SKY Turismo 26/10 O romance Cabelos de Fogo, de Marcos Serruya, é lançado, em Belém, na Sinagoga Shaar Hashamaim, como parte do calendário de festejos dos 200 anos da presença judaica na Amazônia 21


V ISÕES DO F UTURO

COMO SERÁ O JUDAÍSMO AMAZÔNICO DAQUI A

200 ANOS?

“Como em qualquer período tão longo, a região amazônica deve enfrentar tremendos desafios que são de difícil vislumbre hoje. Creio que a presença judaica será perene, sempre mantendo o conhecimento de nossa história e a lembrança dos primeiros 200 anos. A Amazônia deve continuar acolhedora a todos os povos e uma região de liberdades individuais e coletivas, pré-requisitos básicos para nossa prosperidade”.

“O judaísmo vem sofrendo grandes mudanças na região amazônica nos últimos anos. Percebe-se uma sensível queda do poder econômico. A fonte de renda das famílias, que era fortemente concentrada no comércio, está migrando para profissões liberais ou prestadores de serviços. Outro fato marcante é o crescente número de casamentos com não-judeus, o que será um grande desafio para os líderes das próximas gerações. No presente, a comunidade está dividida, com linhas de pensamento que dificilmente convergem, o que produzirá grandes danos para as gerações futuras. Certamente teremos, no futuro, uma comunidade com práticas e valores bem diferentes das de nossos antepassados e da geração atual”. Max Simon Gabbay (Natal / RN - gabbay@petrobras.com.br)

Denis Minev (Manaus / AM denis.minev@gmail.com)

“Vejo com alguma preocupação a continuidade do judaísmo na Amazônia. Vejo muita assimilação por um lado e muita proteção rabínica por outro. Se na época da minha avó, família Cohen, os seus irmãos já se perderam, imagina agora! Os judeus procuram grandes centros para perpetuarem a vida judaica. Já aqueles que querem ser judeus e não são filhos de mães judias têm muita dificuldade de serem aceitos sem que precisem ultrapassar barreiras imensas e obsoletas”. Marcelo Rubim Benchimol (Rio de Janeiro / RJ - lojabeno@superig.com.br) 22 AMAZÔNIA JUDAICA No2 - NOV/2010


“É uma pergunta difícil de responder. Confio que a fé e as tradições vão permitir que o judaísmo sobreviva enquanto seu povo tiver FÉ em DEUS e preservar o cumprimento de suas determinações.” Moisés Sabbá (Manaus / AM ibsabba@ibsabba.com.br)

“Acredito que o futuro poderá realizar-se segundo três grandes tendências. A primeira, mais provável, é a seguinte: haverá uma comunidade grande, religiosa, porém com costumes completamente diferentes dos trazidos pelos pioneiros judeus do Marrocos. Isso pode acontecer porque determinadas organizações religiosas oriundas do Leste europeu, financiadas por grandes fortunas, irão montar uma estrutura forte, organizada segundo padrões internacionais, para atrair inicialmente os jovens. Atrás dos jovens, viriam os pais. A terceira geração já conheceria apenas os novos costumes; para ela, os anteriores seriam errados ou arcaicos. Com o passar dos anos, a comunidade resultante adquiriria os costumes, o modo de falar, as canções religiosas e até as expressões lingüísticas do Leste europeu. A segunda tendência possível é que daqui a 200 anos não haja mais judeus na Amazônia. Hoje isso já acontece em muitas cidades onde, no passado, existiram comunidades judaicas. O processo de assimilação continuaria, tragando a grande maioria dos judeus amazônicos. Os restantes, num gesto desesperado de auto-preservação, fariam alíá, criando em Israel assentamentos de judeus oriundos da floresta amazônica. Essa probabilidade contempla o cumprimento da promessa bíblica de retorno à Terra Santa. A terceira possibilidade me parece a mais improvável: uma diversidade religiosa judaica, com comunidades ortodoxas de costumes asquenazis, sinagogas reformistas de origem alemã e... SURPRESA! Lá estariam também as conservadoras comunidades judaicas marroquinas, já com 400 anos de existência. Como teriam sobrevivido à globalização do judaísmo mundial? Judeus de todo o mundo, oriundos das comunidades amazônicas de origem marroquina, percebendo os riscos de desaparecimento de suas origens, se uniriam num esforço de preservação. Criariam escolas e Ieshivot sefaradimarroquinas, promoveriam a reimpressão de livros importantes, injetariam recursos para promover uma revolução em suas comunidades de origem, que recuperariam seu amor próprio, atrairiam os jovens e voltariam ao antigo vigor”. Marcos Serruya (Belém / PA - serruyamarcos@hotmail.com)

“Se depender dos esforços dos jovens e adolescentes “esnogueiros” (frequentadores de sinagoga) da Esnoga Beth Yaacov-Rabi Meyer, de Manaus, e das esnogas Eshel Avraham e Shaar Hashamaim, de Belém do Pará, o judaísmo amazônida seguirá “leDor vaDor” (de geração a geração). Em Manaus, há jovens como Shalom Dahan, Murilo Laredo, entre outros, em Belém há Moysés Israel, “o Moshito”, e imagino haver muitos outros como ele. Daqui a 200 anos, o judaísmo amazônico-marroquino continuará com sua tradição e “dichos haketia”, com os recuerdos dos “aguelos e bizaguelos”. E as parturientes lembrarão que as avós falavam que no tempo de suas bisavós se pedia a intervenção do tzadik Rabi Ytzaak Ben Ualid para que o parto fosse feliz e o bebê nascesse “sano e rezio”. Espero que daqui a 200 anos tenhamos cumprido mitsvot suficiente para estarmos em Gan Eden (paraíso) com los nuestros.” Cícero Bensaude Benssoussan (Porto Velho – RO - yehud712@hotmail.com) 23


C OSTUM ES E TRADI ÇÕE S

A MÃO E A LUVA

Por Wagner Bentes*

Judeus marroquinos em Israel e na Amazônia: similaridades e diferenças na construção das identidades étnicas

A

s pesquisas sobre os judeus na região amazônica costumam enfatizar como eles chegaram aos trópicos e se adaptaram, bem como as razões que impulsionaram o processo de imigração. O projeto de pesquisa “A mão e a luva: judeus marroquinos em Israel e na Amazônia, similaridades e diferenças na construção das identidades étnicas” (realizado entre 2006 e 2010 pelo Programa de Língua Hebraica, Cultura e Literatura Judaicas da Universidade de São Paulo, USP) foi além, propondo-se a fazer um paralelo entre os traços do judaísmo marroquino conservados nas comunidades da Amazônia e na sociedade israelense.** Daí o nome do projeto, que parafraseia o título do romance do escritor brasileiro Machado de Assis. O projeto também buscou alcançar uma visão contemporânea sobre o judaísmo marroquino após dois séculos de inserção em Belém e Manaus, as principais capitais do Norte do Brasil, e como ele se configura atualmente diante de diversas influências, inclusive de outras correntes internas do judaísmo.

24 AMAZÔNIA JUDAICA No2 - NOV/2010

Senhora fantasiada na festa de Mimona, em Israel

Rápida inserção na elite local no Brasil, processo árduo em Israel A ideia de comparar as comunidades amazônica e israelense surgiu a partir da percepção da oposição existente entre essas duas identidades judaicas. Os judeus marroquinos, ao imigrarem para a Amazônia, não eram vistos como o modelo ideal de imigrante, pois não eram considerados brancos, não eram cristãos, e não eram rurais; logo, não estavam aptos para empreender os planos de embranquecimento do Brasil. Mas na região amazônica eram vistos como brancos pelas populações indígenas e mestiças predominantes. Em menos de meio século de inserção, muitos já se colocavam na elite local como comerciantes, educadores, políticos e militares.

Já a inserção dos judeus marroquinos na sociedade israelense foi um processo árduo e espinhoso, desencadeado com a expulsão, no ano de 1950, de quase 300.000 judeus tanto da costa do Marrocos, como de comunidades judaicas instauradas há muitos séculos nas montanhas Atlas, por conta de retaliações dos países árabes contra a criação do Estado de Israel, em 1948. Durante muito tempo estes judeus foram vistos por muitos setores da sociedade israelense, branca e sionista, como negros, iletrados e primitivos. Com o passar do tempo, foram galgando lugares mais altos na sociedade israelense e vencendo os estigmas a eles atribuídos. Para realizar esta pesquisa comparativa fiquei um ano em Israel (20042005) como pesquisador visitante da


Universidade Hebraica de Jerusalém. Além da orientação de outros antropólogos que há muito se dedicam ao assunto, e de coletar vasta bibliografia sobre o judaísmo marroquino, pesquisei em eventos relacionados ao judaísmo marroquino em várias localidades do Estado de Israel. Um número muito grande de aspectos do judaísmo marroquino foi coletado não só nas pesquisas em Israel, como também nas pesquisas em Belém (2007) e Manaus (2008). Foram analisadas a culinária, a arquitetura, a liturgia, o misticismo, rituais de nascimento, matrimoniais e funerários, além de alguns festivais folclóricos marroquinos em Israel. Diante da riqueza e da diversidade dos elementos do judaísmo marroquino, por motivos metodológicos somente cinco foram analisados mais aprofundadamente: o ritual de Mimuna, a devoção aos Tzadikim, o sacrifício das kaparot, a Haquitia e as celebrações matrimonias da henna. A persistência dos elementos demarcadores das identidades A seguir explicaremos como cada um destes elementos serve como demarcador das identidades judaicomarroquinas tanto em Israel como na Amazônia. O primeiro elemento analisado foram os festejos de Mimuna, ou Mimona, como pronunciado nas

comunidades judaicas da Amazônia. A festa da fartura e da sorte, que celebra a volta do trigo para os lares judaicos após o período pascal, é emblemática e significativa para ambos os grupos judaicos pesquisados. Foram analisadas as possíveis origens deste ritual, sua inserção e conservação, e como este ritual é realizado contemporaneamente nas comunidades judaicas da Amazônia. Quanto aos festejos de Mimuna em Israel, esta pesquisa ressalta a sua inserção e o estranhamento que o ritual causou inicialmente na sociedade israelense. A Mimuna transformou-se de uma prática restrita aos judeus marroquinos ou judeus orientais a uma festividade que agrega cada vez mais novos setores da sociedade israelense. A mística judaica está muito presente tanto no judaísmo marroquino em Israel como nas comunidades de Belém e Manaus. Além de uma análise sobre o universo simbólico de superstições e crenças em ambas as comunidades, muitas delas oriundas do contato com as populações berberes do Marrocos, por uma questão metodológica as análises foram concentradas nos rituais de sacrifício das Kaparot às vésperas de Yom Kipur. Buscando resgatar as origens deste ritual, a sua significância dentro do judaísmo marroquino e sefaradita, como estes rituais eram realizados no inicio da imigração judaico-

marroquina para a Amazônia, e de que maneira este ritual continua se mantendo, através de grandes esforços empreendidos pela comunidade judaica de Belém para continuar realizando os sacrifícios, ou na forma moderna da comunidade de Manaus de substituir definitivamente os sacrifícios pela entrega de donativos, mas continuar mantendo o ritual, já que é tão significativo para este segmento do judaísmo. Ou ainda, como a palavra Kaparah é empregada no hebraico contemporâneo falado em Israel, e como a utilização deste termo também é característica da etnicidade dos judeus marroquinos e orientais na sociedade Israelense. Mística judaica: culto aos tzadikim Prosseguindo pelo caminho indicado pela mística judaica, o projeto também comparou o habito de culto aos tzadikim tanto entre os judeus marroquinos em Israel como na Amazônia. Em Israel foram visitadas as hilulot do Rabino Baba Sali na cidade de Netivot, que é quase desconhecido das comunidades judaico-marroquinas da Amazônia, mas representa fortemente em Israel a devoção deste setor do judaísmo a estas personalidades místicas. A hilulah em homenagem a Ribi Shimon Bar-yochai, muito Culto ao rabino Baba Sali, em sua hilulá anual,em Netivot, Israel

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C OSTUM ES E TRADI ÇÕE S

Cerimônia da Henna (Noche de Berberisca), numa família de origem marroquina da Amazônia

significativa para os judeus da Amazônia, em Israel não ressalta elementos do judaísmo marroquino. A hilulah em homenagem ao pai da mística judaica tornou-se um evento de proporções gigantescas e evidencia muito mais elementos do judaísmo ortodoxo ashkenzita do que do judaísmo sefaradita-marroquino, como observado na hilulah de Baba Sali em Israel, ou como ocorre nas hilulot em homengem a Ribi Shimon nas comunidades da Amazônia. Na cidade de Manaus, além da análise da devoção aos tzadikim também foi analisado o curioso caso do rabino Shalom Muyal, que foi enterrado fora dos limites do cemitério judaico. Sua sepultura tornou-se local de veneração tanto para judeus como para pessoas da população local, que também peregrinam ao túmulo do rabino e deixam pedras e velas em forma de pedido ou de agradecimento por graças alcançadas. O quarto elemento analisado foi a Haquitia como componente linguístico, e demarcador da identidade

dos judeus da Amazônia. Além das origens desta língua judaica tão antiga e peculiar, esta pesquisa também procurou esclarecer como a Haquitia se estabeleceu e se conservou na Amazônia após dois séculos de imigração. Ressaltando ainda o paulatino desaparecimento da Haquitia, mas o seu considerável peso na estruturação da identidade étnica das comunidades judaicas da Amazônia. Tradição da cerimônia da henna é retomada devido ao contacto dos judeus da Amazônia e de Israel O último elemento analisado foram as cerimônias de Henna. A utilização da tintura de henna como medicamento e cosmético é um costume muito difundido em várias civilizações. Esta pesquisa analisou seu uso nas cerimônias pré-nupciais e as representações místicas e simbólicas deste ritual, abordando também como o ritual da henna foi levado para Israel com a grande imigração dos judeus marroquinos em 1950, e como é

realizado na sociedade israelense. A cerimônia da henna nas comunidades de Belém e Manaus era uma tradição que havia sido esquecida, e aos poucos está sendo retomada devido ao contato com outros grupos de judeus marroquinos de Israel. A intenção principal deste estudo não foi somente a descrição de determinados aspectos do judaísmo marroquino em Israel e na Amazônia, mas compreender, a partir da análise de seus elementos emblemáticos, como as identidades destes grupos peculiares são articuladas, e dão cores e formas à etnicidade destes judeus dentro da pluralidade do judaísmo. Espero que o estudo possa servir para as gerações futuras como um registro minucioso de como se conservou o judaísmo marroquino no início do século XXI. Parabéns a toda a coletividade israelita da Amazônia por esta data tão importante. Sem a colaboração fraternal de todos este trabalho de pesquisa jamais teria sido realizado.

* Wagner Bentes é antropólogo, doutorado pela USP ** O projeto se iniciou muito antes, em 1999, com o trabalho de conclusão do curso de antropologia pela Universidade Federal do Pará, “Um olhar sobre a sinagoga Eshel Abraham em Belém do Pará”, que posteriormente serviu de embasamento para o projeto de mestrado “EstRela minguante: memória e ressignificação do judaísmo no interior do Estado do Pará”, que abordou os resquícios da presença judaica na cidade de Cametá, região do Rio Tocantins, que no passado abrigou uma considerável comunidade judaica, e também nas cidades de Santarém, Óbidos e Alenquer.

26 AMAZÔNIA JUDAICA No2 - NOV/2010


G E N E A L OGIA

FAMÍLIA ROFFÉ, UMA SAGA QUE ATRAVESSA GERAÇÕES As pesquisas sobre nossos antepassados estão em expansão. Cada vez mais, os descendentes dos imigrantes judeus marroquinos, a exemplo da família Roffé, organizam árvores genealógicas e preservam seu legado familiar para as próximas gerações. Por Rinaldo Carlos Carneiro*

A

f amília Roffé é originária de Arzila (Asilah), pequena cidade à beira-mar, localizada na atual província de Tanger, que abrigava uma numerosa colônia judaica. Arzila, hoje com cerca de 20.000 habitantes, é muito antiga: no primeiro milênio antes da era atual os fenícios estabeleceram um porto no local com o nome de Zili; ela foi dominada por cartagineses, romanos e árabes. De 1471 a 1578 foi ocupada pelos portugueses, que ergueram as muralhas ainda existentes e a transformaram em importante centro comercial; a seguir foi perdida para os espanhóis, que a chamavam de Arcila. Posteriormente foi cedida a governantes muçulmanos e recebeu o nome árabe atual: Asilah. A palavra Roffé é de origem hebraica e significa médico; a família se comunicava em língua espanhola. Levi Roffé ou Roiff nasceu e morreu em Arzila, onde viveu 106 anos, de 1817 a 1923. Era negociante nas feiras e figura de alguma projeção na comunidade israelita; consta que havia uma rua com o seu nome na cidade. Casou-se duas vezes: primeiro com Honória e posteriormente com Cota. Foram seus filhos: Abraham, Alfredo, Jaime, Aziza, Bonina e Camila (Jaime e Camila eram filhos de Cota). Os três filhos homens e vários netos, filhos de suas filhas, emigraram para o Brasil. Abraham casou-se com Anna Barcessat

Levy Roiff, no início dos anos 20

e é dele que descende a família Roffé radicada no Brasil. Alfredo foi casado com Júlia Roffé, sua sobrinha, filha de Abraham. Jaime não teve filhos. Aziza foi casada com Abraham Anijar e seu filho Samuel emigrou para o Brasil, onde casou com Estrela Bonina foi casada com Mair Bemergui e seus filhos Abraham, já casado com Messody Gabbay, e Naftali, posteriormente casado com Ester Zagury, também emigraram para a Amazônia. Abraham Roffé nasceu em Arzila em 1857 e viajou para o Brasil em 1872. Retornou ao Marrocos, casou-se com Anna Barcessat aproximadamente em 1875 e voltou para a Amazônia sem a

família. Estabeleceu-se no município de Afuá (Roflandia) e quando sua situação melhorou mandou buscar mulher e filhos. Posteriormente vários parentes seus e da mulher também vieram e foram as raízes de outras famílias de sefaraditas do Pará: Samuel Anijar (filho de Aziza Roffé Anijar); os irmãos Abraham e Naftali Bemergui (filhos de Bonina Roffé Bemergui); os irmãos Abraham e Salvador Bemergui (filhos de Salomão Bemergui, irmão de Mair marido de Bonina); Moisés Barcessat (filho de Messod Barcessat, irmão de Ana Barcessat Roffé), Naftali Mair Bemergui, Abraham Salomão Bemergui e Moisés Barcessat casaram com netas de Abraham e Anna, respectivamente Ester Zagury, Camila Roffé e Anna Athias (Nina). Mais tarde, Abraham transferiu-se para Belém, onde participou de importante firma comercial de seu filho Isaac. Para os padrões da época e da região, era considerado um homem rico. Era de baixa estatura, robusto, moreno, austero, pouco simpático, mascava fumo. Relacionava-se muito bem com o filho Isaac, com quem tinha interesses comerciais estreitos, e com eles também trabalhavam seus filhos Simão e Mário, bem como o neto Marcos Athias. Conhecido como “o velho Roffé”, faleceu em 1º de fevereiro de 1932, aos 75 anos, e está sepultado no antigo Cemitério Israelita de Belém da Rua José Bonifácio. 27


GENEA LO GIA Privações e persistência Anna Barcessat Roffé nasceu em Arzila em 1862, filha de Moisés Barcessat e Júlia Bencheton. Casou-se em 1875, com 13 ou 14 anos, e aos 15 anos deu à luz sua primeira filha: Meriam. Seus filhos mais velhos nasceram em Arzila e posteriormente veio ao encontro do marido no Brasil, onde nasceram os cinco filhos mais novos. Nos anos em que permaneceu com os filhos no Marrocos, sofreu grandes privações. Os recursos deixados por Abraham acabaram, mas ela nunca escreveu a respeito ao marido. Os filhos de Abraham e Anna foram: Meriam, Julia, Isaac, Sarah, Clara, Elias, Simão, Sol e Mário. Meriam casou-se com Fortunato Athias, Júlia com seu tio Alfredo Roffé, Isaac com Fortunata Cohen, Sarah com Leão Zagury, Clara com Simão Sarraf, Simão com Cita Marques e posteriormente com Marina Chermont, Elias com Lucy Bentes, Sol com Diógenes Ferreira de Lemos e Mario com Nelly Cohen. Gorda e precocemente envelhecida, sofria de hérnia abdominal, tendo sido operada várias vezes, e passava a maior parte do tempo deitada em uma rede, ou ficava sentada junto à Família Athias em 1917

janela conversando com os conhecidos. Gostava muito do jogo do bicho e sempre pedia a alguém que passava sob sua janela para ir fazer o seu joguinho. Era simpática, afável, solidária, caridosa. Faleceu em Belém, em agosto de 1922, aos 60 anos. Fortunato Athias, nascido em Rabat em 1867, emigrou jovem e sozinho. As outras duas famílias do mesmo nome radicadas no Pará aparentemente não tinham parentesco com ele. Passou por Belém e, como era comum entre os jovens recém-chegados, foi encaminhado para a localidade de Macapá por uma das firmas aviadoras da região. Estabeleceu um pequeno comércio e, não resistindo à solidão, ligou-se a uma mulher da região que lhe deu um filho, José Lopes de Menezes, conhecido como José Athias. Após a morte da mãe de José, Fortunato casou e formou família dentro da religião judaica. Em 1896, aos 29 anos e já em situação financeira razoável, casou com Meriam Roffé, filha mais velha de Abraham. O casal foi viver em Macapá, onde nasceram os primeiros filhos, e José foi incorporado à família como irmão mais velho. Anos depois, a familia transferiu-se para uma localidade no município de Breves, Livramento do Ituquara, de propriedade de seu cunhado Isaac Roffé, que posteriormente adquiriu. Um grande barracão construído sobre estacas de madeira para proteção contra a subida das marés, na margem do rio Ituquara, afluente do Amazonas, servia ao mesmo tempo de moradia, depósito de mercadorias e loja. Ali criou seus 10 filhos: José e os nove que Meriam lhe foi acrescentando a intervalos de dois anos. Crise econômica e tragédia pessoal Os ingleses, após anos de pesquisa, tinham conseguido aclimatar sementes contrabandeadas aos solos de suas colônias na Ásia e a partir de 1910 as plantações da Malásia começaram a produzir volumes progressivos a baixo

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preço, com os quais os produtos brasileiros não podiam competir. A crise da borracha levou Fortunato Athias à ruína, ao lado da maioria dos pequenos comerciantes judeus espalhados pelas margens dos rios da Amazônia. Em 1913, Fortunato, levando consigo seu filho Maluf, foi tentar um novo negócio em Macapá e lá ocorreu uma tragédia: aos 14 anos, Maluf, conhecido por Ioiô, pensando tratar-se de um pó analgésico, ingeriu uma substância chamada Sublimado Corrosivo, que estava sob um balcão da pequena loja. Morreu envenenado dias depois, em Belém, para onde o pai o levara tentando salvá-lo. Voltou Fortunato para o Ituquara, enfrentou o desespero de Meriam, que só soube do ocorrido depois do filho enterrado, e o resto de sua vida foi de muito trabalho e dificuldades financeiras. Nos últimos anos mudou-se para Belém e os filhos José e Abraham ficaram cuidando dos negócios no Ituquara. Fortunato era de baixa estatura, franzino, tinha os cabelos alourados e os olhos azuis, a pele queimada do sol da Amazônia. Expressava-se bem em português. Os filhos o descrevem como um homem calmo, conformado com os revezes do destino, simples e muito religioso. Tinha sempre a cabeça coberta e freqüentemente o livro de orações nas mãos, guardava e fazia toda sua grande família guardar rigorosamente os sábados e as festas religiosas. Faleceu em Belém, em 1931, aos 64 anos. Uma mulher empreendedora Meriam Roffé Athias nasceu em 1877 em Arzila. Dizia não saber a data de seu nascimento e os cálculos sobre a idade baseiam-se na sua afirmação de que tinha 20 anos ao dar à luz sua primeira filha: Alegria. Após a partida para o Brasil de seu pai e posteriormente de sua mãe continuou vivendo em Arzila na companhia de parentes, e, já moça, com 16 ou 17 anos, finalmente transferiu-se para o Brasil para viver com os pais.


Casou-se com Fortunato Athias em 1896. O colapso da borracha e a Grande Guerra arruinaram a família, coincidindo com esse período a morte trágica do filho Maluf. Meriam foi a Belém conversar com a mãe, que a ajudou com cinqüenta mil réis. Pôs o dinheiro na bolsa e saiu sem saber bem como usá-lo, pois as necessidades eram muitas, e viu um anúncio: “Ensina-se Indústria”. Procurou o professor, explicou a situação, descreveu o local onde vivia e os recursos naturais disponíveis: sementes oleaginosas, cinzas produzidas pelas queimadas, etc. Foi orientada sobre a técnica de produção de sabão, comprou 50 kg de soda cáustica, o menor volume que se vendia, e voltou para o Ituquara. Lá, com ajuda do enteado José, montou a pequena indústria. Os filhos meninos colhiam nas matas próximas as sementes e assim iniciou-se a produção do Sabão Cacau. No início o volume da produção era irregular e a qualidade do produto deixava a desejar. Mandou o filho Abraham a Belém, para trabalhar durante alguns meses como aprendiz em uma fábrica de sabão. Com o retorno do filho, a pequena indústria deslanchou e transformou-se na principal fonte de renda da família. A disposição, a garra e o espírito empreendedor de Meriam Roffé Athias eram extraordinários. Em tempos difíceis, naquele fim de mundo, cuidava dos nove filhos pequenos, dirigia a casa com eficiência, Família Barcessat em 1937

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administrava a produção do sabão, plantava mamoeiros e bananeiras, supervisionava os pequenos roçados de cana, milho e mandioca; Fortunato cuidava da loja e de suas orações. Aos poucos a situação foi melhorando. As filhas mais velhas, Alegria e Ana (Nina) casaram-se ainda no Ituquara com Jacob Gabbay e Moisés Barcessat, respectivamente, pequenos comerciantes das proximidades. A grande festa de casamento de Alegria, com as presenças dos parentes e das muitas famílias judias da região, ficou marcada e lembrada por toda a família. Os filhos pouco a pouco eram enviados a Belém para estudar. Marcos foi morar e trabalhar com seu tio e padrinho Isaac Roffé, figura de projeção nos meios sociais e comerciais da cidade. Os outros, Isaac, Moisés e Jacob, foram morar numa pensão, dirigida pelo casal Elias e Sol Israel, que abrigava meninos judeus do interior e lhes fornecia por cinco mil réis ao mês por cabeça, além da moradia e alimentação, o ensino do hebraico e orientação religiosa. Todos trabalhavam de dia e estudavam à noite. José e Abraham foram os únicos que não foram estudar em Belém, por seu trabalho e presença serem indispensáveis no Ituquara. Em meados dos anos 1920 Meriam transferiu-se para Belém para acompanhar de perto os filhos. Fortunato, devido a problemas de saúde, acabou também se fixando na capital, onde faleceu em 1931. Com a prosperidade

dos filhos, especialmente Marcos Athias, que se tornou importante comerciante e exportador, a situação se estabilizou. Meriam fez duas viagens para o Rio de Janeiro e São Paulo, onde visitava sua irmã Clara e família, acompanhada de sua filha mais nova Honória. Em 1945 viajou mais uma vez para São Paulo para visitar o filho Isaac, que aí residia com a esposa. Meriam criou desde pequeno seu neto Isaac Jaime Gabbay, formado em Medicina em 1950, que a acompanhou até o fim dos seus dias. Era baixa, corpulenta, imponente, morena de olhos escuros e rosto bonito; os cabelos nunca embranqueceram completamente. Falava muito bem o português, sem nunca ter perdido o sotaque espanhol. Sem educação formal, tinha lido muito e era bem informada, com conversação agradável. De temperamento muito forte, quando a contrariavam usava o dialeto “haketia”. Apesar de não ser religiosa como o marido, fazia questão de manter todas as tradições judaicas. Dois de seus filhos e um neto (Marcos Athias, Abraham Athias e Isaac Barcessat) foram presidentes da Comunidade Israelita do Pará e outro, Isaac Athias, foi presidente da Comunidade Israelita Sefaradita de São Paulo. Faleceu em Belém, em 1956, aos 79 anos. Os filhos de Fortunato e Meriam foram: Alegria (1897-1986), casada com Jacob Gabbay; Maluf (1899-1913); Ana/Nina (1902-1975), casada com Moisés Barcessat; Marcos (1904-1974), casado com Preciada Levy; Abraham (1906-1988), casado com Sime Bensimon (Lalita); Isaac (1908-1998), casado com Amélia Dimenstein; Moisés (1910-1993), casado com Omarina Muniz; Jacob (1913-1988), casado com Marina Veiga; Honória (19152004), casada com José Rodolpho França Carneiro e posteriormente com Salomão Bemergui. * Rinaldo C. Carneiro é médico e reside na cidade de São Paulo

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C RÔNIC A

N

ão é raro se ouvir que o povo judeu é um dos mais intrigantes e singulares povos da História. As razões são diversas: a sua longevidade, as características ímpares de sua configuração cultural, religiosa, nacional e geográfica; as adversidades que lhes foram impostas. Concordo. Com alguns dados históricos e narrando um dos inúmeros causos vividos por minha família, os Elmaleh/Salgado, farei um breve e parcial relato da saga dos judeus marroquinos da Amazônia. Minha família chegou à Amazônia no que a historiografia registra como a primeira onda imigratória de judeus para aquela região,

iniciada em torno do ano de 1810 ‒ cerca de mil famílias, em sua quase totalidade oriundas do Marrocos, de lá escapando da fome, da miséria, das epidemias e das perseguições sofridas nos melahs , bairros judeus nos quais estavam confinadas. Além disso, alguns fatores de atração foram decisivos para a escolha do momento e do destino de tal imigração: a abertura dos portos às nações amigas (1808), os tratados de comércio e navegação e de aliança e amizade entre Portugal e Inglaterra (1810) e a consequente liberalização

Elias Salgado *

FIM DO MUNDO O

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dos cultos não católicos. Muito contribuíram, também, a criação de escolas da Aliança Israelita Universal no Marrocos, que gabaritava jovens judeus adolescentes com cursos profissionalizantes e uma visão de modernidade, e o início do Ciclo da Borracha, o que os motivou a partir em busca de fortuna e um destino mais promissor.

Passados 200 anos, o legado deixado por aqueles pioneiros é vasto: uma comunidade em Belém

com cerca de 400 famílias, em Manaus com cerca de 250, Rondônia e Macapá e outras localidades do interior somando mais algumas dezenas. Para o sudeste (Rio e São Paulo) migraram outras dezenas, e em Israel já são mais de 300 descendentes. Há também o caso peculiar dos chamados “hebraicos da Amazônia”, na verdade descendentes de relacionamentos interétnicos daqueles imigrantes, que alguns pesquisadores dizem totalizar mais de 50 mil pessoas, havendo quem afirme que podem chegar a mais de 250 mil! Se são mil famílias, certamente serão dezenas de milhares de histórias, causos e experiências no seu encontro com o Outro. Minha mãe consegue lembrar-se com riqueza de detalhes de fatos ocorridos em sua mocidade, há mais de 60 anos. Ela é uma verdadeira mina de ouro para a minha escrita, e eu me transformei em seu ghostwriter. Boca do Acre, onde nasci, é minha Macondo, e espero conseguir eternizála com um mínimo do requinte literário do maravilhoso García Marquez. Ousadia? Mas li em algum lugar que é preciso pensar grande... Da série que eu denomino “As histórias da Vidinha”, selecionei a que segue. Martins era uma daquelas figuras incomuns da fauna de per-

sonagens que habitavam a pequena Boca do Acre. Funcionário público, trabalhava como tratorista. Mas o que o tornava uma figura singular


não era o seu trabalho, e sim o seu incurável temor por almas, espíritos e coisas ditas sobrenaturais; e outras até naturais, como a morte. Quando alguém morria na cidade, podia até ser muito querido ou da família, Martins Bruzugú jamais ia a velórios ou enterros. Acometido de enorme temor, desaparecia mata adentro rumo aos seringais e ali permanecia, por vários dias, completamente isolado, até que o morto estivesse bem morto e enterrado muitos e muitos palmos abaixo da terra; e sua alma bem distante de Boca do Acre e deste mundo. Quando o caboclo Martins Bruzugú e sua mulher, a franzina Tereza, se mudaram para Rio Branco, Boca do Acre ficou tristemente saudosa. Porém, mamãe e papai, que sempre que podiam ou necessitavam subiam o rio Acre no Estrela rumo a Rio Branco, tinham a sorte de poder rever nessas oportunidades, o velho amigo Martins e se hospedar em sua nova casa. Numa dessas inúmeras viagens, a estadia não seria como as outras... Eram os idos de 1960, e corria solta, ao menos naquela parte do planeta, a notícia de que o mundo em breve iria acabar... Primeiro haveria uma escu-

ridão total e em seguida o fim de tudo!

boa viagem? - Maravilhosa! Mas é sempre bom chegar, não é? E vocês, como têm passado? - Bem, “Vidinha” - Cadê o velho Bruzugú aquele caboclo danado? - Ele tá fora, Seu David. Foi à cidade fazer umas compras. Mas logo, logo ele vai chegar. E o doce sorriso

de boas vindas deu lugar a uma expressão de tensão. Mamãe, que

conhecia aquela expressão de longa data, perguntou: - Está acontecendo alguma coisa, Tereza? Eu conheço essa tua cara. - Pois é... É essa história maluca de fim do mundo. O Martins tem me deixado alucinada com isso... Venham, vou lhes mostrar uma coisa. E os levou à dispensa, nos fundos da casa. Quando abriu a porta, papai e mamãe puderam ver dezenas, quiçá centenas de caixas de velas. - Puxa! O caboclo Martins tá comerciando com velas agora? - Nada disso, Seu David, antes fosse. Ele está é arruinando com nossas economias, comprando caixas e mais caixas de velas todo santo dia e entupindo a dispensa com elas. - Mas para quê tanta vela, Tereza? Se não é para revender, então o

Martins pirou de vez! - Pois é, Vidinha, dessa vez o meu velho passou das contas e virou motivo de gozação pra toda a gente da cidade. - Tereza, oh! Tereza, cadê você, muié? Vem cá me ajudar. Era Martins Bruzugú a gritar no portão. Foram os três ao seu encontro. - Oi gente! Vocês já chegaram? Que bom. E continuou a descarregar a Rural Willys, que estava com a carroceria abarrotada de caixas de velas. - Ei, caboclo! Deixa eu te ajudar com isso. - Não precisa não, David, vocês devem estar cansados da viagem. Deixa que a Tereza me ajuda com isso. Ela já está acostumada... Meia hora depois, Martins veio ao encontro de meus pais no jardim: - E aquele motorzão, o Estrela, se comportou bem como sempre, David? Olha, Vidinha, a Tereza deixou um quarto bem arrumadinho pra vocês e agora tá lá na cozinha acabando de preparar o nosso almoço. Comprei um baita tracajá pra comemorar a chegada de vocês. Enquanto isso,

vou colocando a conversa em dia aqui com meu velho amigo David , o rei de Boca do Acre. E riu desbragadamente, como costumava fazer

Ansiosos por chegar a Rio Branco, papai e mamãe faziam planos de como aproveitar seu tempo livre na cidade, os belos passeios e as boas compras que fariam, e como seria agradável e divertido rever o velho amigo Martins Bruguzu. E assim, dois dias rio acima, finalmente o Estrela atracou no cais de Rio Branco. Papai e mamãe seguiram direto para a casa de seus amigos. Tereza, no jardim, recebeu-os com seu doce sorriso: - Oi gente! Que bom que vocês chegaram. Vamos entrando. Fizeram 31


C RÔNIC A quando estava alegre. - E aí, David? Você continua cada vez mais rico, não é? - Vocês é que pensam. Eu mesmo

não sei onde está todo esse dinheiro que todo mundo diz que eu tenho. Só

sei que trabalho muito e tenho muitas despesas. As coisas não são tão fáceis como se pensa. Era meu pai e seu velho discurso sobre como a vida é dura e que o dinheiro não cai do céu... - Deixa disso, David! Você sempre escondendo o jogo, como um bom judeu... E a política? Você tá pensando em sair candidato a prefeito de novo? - Não sei, não, Martins. Ainda estou avaliando se vale a pena, mas acho que não. Depois de toda aquela despesa de campanha da última eleição e toda aquela guerra política que foi... Não que eu tenha medo daqueles bandidos dos irmãos Correia, que aquele desgraçado do Adelino mandou pra me matar. Isso não! Que eu sou muito homem e sei bem me defender! É que é muita despesa e dor de cabeça. Vou seguir tocando meus negócios. Eles já me dão trabalho suficiente. Mas me conta de você, pois eu tô vendo que, pra variar, você tá querendo me enrolar. Que loucura é essa de comprar tanta vela, Martins? - Ah, David! Estão dizendo que o

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mundo vai acabar em pouco tempo; e que primeiro vai haver uma grande escuridão e pronto! O fim de tudo! Como eu não quero morrer no escuro, resolvi me prevenir comprando velas... Só falta mandar benzer. Amanhã vou passar lá na igreja de novo e trazer o danado do padre nem que seja à força, que Deus e Nossa Senhora me perdoem por falar assim. E dizendo isso começou a se benzer. - Deixa disso, homem, para de ser cagão! Você não vê que isso é história pra boi dormir; coisa de quem não tem o que fazer na vida... - Eu sei que é verdade. Muita gente tá falando nisso. Gente séria, que sabe das coisas. Vem cá, deixa eu te mostrar outra coisa que vou fazer pra me prevenir. Martins levou papai até o interior da casa e falou com riqueza de detalhes acerca da passarela de cimento que faria para acender sobre ela as velas, de forma que não viessem a queimar o piso e a casa, que eram de madeira. - A passarela vai começar no meu quarto, passar pela sala até o portão. Assim estarei seguro. O cozido de tracajá estava farto e saboroso. Naquela noite, o jantar foi um leve lanche com quitutes locais: bolo de aipim, tapioca, suco de cupuaçu e frutas da região: pupunha, tucumã, manga, graviola.

Na manhã seguinte, quando papai e mamãe acordaram, Martins já havia saído na Rural. Voltou cerca de duas horas depois com o carro carregado de mais caixas de vela e agora também de sacos de cimento para construir a “passarela da salvação”, como ele mesmo cognominou o seu projeto de engenharia. Mas as crônicas da época registram que o pobre Martins não conseguiu terminar sua grande obra. No terceiro dia de estadia de meus pais em sua casa, os seus maiores temores tornaram-se realidade: ao fim da tarde, o céu azul de Rio Branco foi se tornando soturno e em minutos uma escuridão abismal tomou conta da cidade. O caboclo Martins Bruzugú, apossado pelo desespero, começou seu ritual de acendimento das velas. E de forma alucinada pôs-se de joelhos a rezar e a implorar pela sua salvação: - Valei-me, minha Nossa Senhora da Misericórdia, é o fim do mundo mesmo! Salvai-me, ó Senhor! Meu pai, sempre crente em seu Deus e descrente de todas aquelas histórias e temores sobre o fim do mundo, tentava em vão acalmar o

amigo:

- Deixa disso, rapaz. Tereza, não tem nada aí na cozinha pra ele se acalmar? Mas quem disse que ele se acalmava. Seguia acendendo velas e mais velas e a clamar aos céus por sua redenção. - Mas Tereza, será que esse caboclo não vê que isso tudo é prenúncio de... Papai não conseguiu completar a frase. Um temporal típico da floresta tropical desabou sobre eles. Momentos depois, assim como começou, a chuva parou – abruptamente – e um esplendoroso sol clareou o céu naquele fim de tarde. - É, Martins, ainda não foi desta vez - ironizou meu pai. - Mas foi por pouco...

* Elias Salgado é professor, pesquisador e gestor cultural. É diretor do portal Amazônia Judaica.


Fortunato e Raquelita Athias congratulam-se com a comunidade judaica pela significativa contribuição ao desenvolvimento da região e do país, nos 200 anos da imigração para a Amazônia

A Família Alcolumbre, presente em Macapá há mais de 100 anos, congratula-se com todo o ishuv pela passagem dos 200 anos da presença judaica na Amazônia

As famílias de Rubem David e de David Rubem Azulay

Nathan, Hadbah e Samuel Tayah congratulam-se com a comunidade pela passagem dos 200 anos da presença judaica na Amazônia

Stela Ohana e família congratulam-se com os 200 anos de imigração judaica na Amazônia

Jaime Benchimol e família

parabenizam a Comunidade Sefaradi pelos 200 anos de contribuição ao desenvolvimento da Amazônia

celebram com alegria os 200 anos da profícua presença judaica na Amazônia

Jaime Salgado e família

Leão Unger e família

parabenizam excelente iniciativa e auguram a todo o Ishuv da Amazônia e suas diásporas: Feliz 200 Anos

congratulam-se com todos os seus irmãos da Amazônia para festejar o bicentenário da presença judaica na Região Norte


Aziza & Yehuda, Moshe & Tracy, Lea Esther & Shalom Benguigui Desde a diáspora de “Eretz Amazônia” em Washington DC, congratulam-se pela data, desejando “mejorado” para os próximos 200 anos todos juntos em “Eretz Israel Hashelemah”. Besimantov!

Celebramos os 200 anos e seus personagens marcantes com felicidade e desejamos saúde e prosperidade na Eretz Amazônia dos próximos 200 anos

Denis Minev e família

Uma história para ser contada e recontada, lembrada e comemorada, são os 200 anos da presença marcante e profícua dos imigrantes judeus na Amazônia

José Moisés Alves e Família

Vidinha Salgado, seus filhos, noras, netos e bisnetos, orgulhosos de ser parte desta história, parabenizam o ishuv amazônico pelo bicentenário da sua imigração 34 AMAZÔNIA JUDAICA No2 - NOV/2010

Davis Benzecry e família alegram-se em participar da brilhante iniciativa de comemorar tão importante data, o Bicentenário da Imigração Judaica, pioneira no Brasil. Parabéns ao judaísmo amazônico

Ilko Minev e família compartilham com todos os correligionários a alegria de comemorar os 200 anos da presença judaica na Amazônia

Nos festejos dos 200 anos da presença judaica, temos orgulho de nossa origem judaico-marroquina-amazônica

Alice Benchimol

Newton Blanck e família congratulam-se com a comunidade pela passagem dos 200 anos da presença judaica na Amazônia


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