O Reino de Hatley- Capítulo 1

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Capítulo 1 É uma noite sem estrelas no céu. Uma noite sombria, fria e a densa neblina toma conta das ruas. A cidade está deserta. Não há carros, não há luzes acesas em prédios e casas, não há pessoas, e nem ao menos comércios vinte e quatro horas que estejam abertos. Raios aparecem poderosos no céu e iluminam os cantos mais obscuros dos becos, dando uma aparência medonha e sombria a eles. O silêncio prevalece na cidade, porém, eu o quebro. Estou sendo perseguida. Estou correndo o mais rápido que posso e luto contra o cansaço para permanecer no mesmo ritmo. O que quer que esteja em meu encalço, não é humano. Enquanto estou ofegante e à beira da desistência, meu perseguidor continua em um ritmo acelerado e não demonstra sinais de cansaço como qualquer ser humano normal demonstraria. O que quer que esteja em meu encalço, está determinado a capturar sua presa. Não ouso olhar para trás. Não consigo. Os barulhos que o ser que me persegue reproduz me aterrorizam e fazem os cabelos da minha nuca e os pelos do meu braço se arrepiarem. Fazem meus músculos perderem a força que necessitam para fugir. E apesar de tudo, apenas continuo correndo, pois sei que parar significa minha morte. Sem destino, sem hora para parar e apenas desejando com que isso acabe de uma vez. Sinto o hálito quente e sedento por sangue em minhas costas e em uma tentativa desesperada de fazer uma curva e tentar me proteger, sou atacada. Tenho tempo de sentir suas presas perfurando meu braço direito e ver o sangue escorrer quando dou um pulo na cama e, aterrorizada, procuro por qualquer pista de que tudo aquilo foi real, mas para minha sorte, nada foi. Eu já deveria saber. Já deveria ter me acostumado; já que desde que nos mudamos para Hatley esses pesadelos têm sido frequentes. São sempre os mesmos, e consequentemente, sempre acordo no mesmo estado de choque, mas no final, tudo está como sempre foi: silencioso e normal. Algo nessa cidade está me fazendo ter tais pesadelos, mas não tenho ideia de como e por quê. Já tentei levar em consideração que talvez o motivo fosse saudade da minha antiga cidade e que talvez meu estado psicológico estivesse me colocando contra a minha cidade atual, porém, nada na minha antiga cidade, a não ser as pessoas que me apeguei conforme o tempo, me faria sentir falta de lá. Então prefiro descartar a ideia, já que não faz muito sentido. Mas o que são esses sonhos? O que eles estão tentando me dizer? E por que eles começaram depois que nos mudamos para Hatley? Não tenho a mínima ideia, mas em minha lista mental, meu próximo objetivo é: descobrir o motivo de isso estar acontecendo. Depois de me acalmar e minha respiração voltar ao normal, olho o relógio na cabeceira da minha cama marcando seis horas da manhã e decido me levantar e me aprontar para mais um dia de aula. Dou uma breve olhada em meu irmão, Caio, para me certificar de que está tudo bem, pois algumas vezes sente medo e vem ao meu quarto no meio da noite. Dorme como um anjo, apesar de roncar muito. Observo o quarto e vejo que não há sinal de batalha. Então dessa vez não tive nenhuma luta corporal com meus móveis (a propósito, sou sonâmbula, e em nada ajuda me debater durante o sonho).


Vou até a janela e abro as cortinas para deixar o pouco de claridade que há no céu se espalhar pelo quarto. Os pássaros cantam, o vento derruba as últimas folhas das árvores quase dando as boas-vindas ao inverno, as pessoas se cumprimentam gentilmente nas ruas... a beleza de Hatley é impressionante. Não consigo entender por que ela me traria tantos pesadelos. Tudo aqui parece ser de uma época antiga. Os comércios, as moradias, as praças; tudo tem uma característica rústica e eu acho isso encantador. Depois de alguns minutos observando a vida lá fora decido me arrumar. Vou ao banheiro, tento deixar meu cabelo de uma forma apresentável, mas não há muito o que fazer com ele. Decidi cortá-lo bem curto para não ter trabalho algum, mas o que eu não imaginava, era que daria mais trabalho que meu antigo corte. Desisto de deixá-lo apresentável e deixo como sempre foi: rebelde. Vou ao meu guarda roupa e me viro para me certificar de que Caio está realmente dormindo. Troco de roupa, coloco um tênis e um moletom e me sento no parapeito da janela para observar um pouco mais da nova cidade em que vivo. Apesar da beleza da cidade, ainda não a conheci completamente. Tenho uma mania de passar por um processo de conhecimento a cada cidade que visito. Vou a bibliotecas, pesquiso e leio sobre elas, ando pelos lugares menos visitados e por último, pelos mais visitados. Gosto de explorar e conhecer o lugar que estou pisando. Gosto de ir além e saber do que a maioria das pessoas não sabem. Porém, isso não está acontecendo muito facilmente aqui em Hatley. Minha mãe não me deixa passar por alguns lugares, pois os considera perigosos. Porém, durante a noite, dou meu jeito e saio escondida para alguns deles. Nessas minhas saídas, percebi que a cidade tem uma grande área verde e está cercada de florestas bizarras por toda parte. Tenho vontade de me aventurar por essa floresta, mas às vezes, mesmo eu que não tenho medo de muitas coisas, me sinto um pouco aterrorizada apenas em observá-las de longe. Muitas vezes não só a aparência delas me assusta, mas também os sons que saem de dentro dela. Nada convidativos. Não tenho ideia de quais criaturas vivem lá, mas não espero descobri-las tão cedo. Depois de alguns minutos, saio do parapeito da janela e vou até a cozinha tomar meu café da manhã. Coloco pães, leite, queijo e goiabada sobre a mesa e aprecio a comida enquanto olho pela porta que dá para o nosso quintal. Quando me mudei para cá, pensei que me adaptar à nova vida seria uma das coisas mais difíceis que faria na minha vida, mas logo vejo que a calma e a paz que cercam o lugar onde vivo vão me ajudar a me adaptar mais rápido do que penso. Ao terminar, percebo que minha mãe ainda não acordou e aproveito a oportunidade para ir à escola caminhando, para conhecer um pouco mais da cidade sozinha. Pego minha mochila e saio pela porta da frente tentando fazer o mínimo de barulho possível. A caminhada até a escola não é tão longa, mas para que dure mais, faço o trajeto de um caminho mais longo e passo por áreas da cidade que nunca estive. Enquanto caminho, noto que em algumas casas, geralmente nas casas com estilo mais antigo, há símbolos desenhados em suas portas. Os símbolos têm um formato circular e


são desenhados de uma maneira muito detalhada. Pelo que posso distinguir, um eclipse. Não dá para saber se é solar ou lunar, mas pelas cores, laranja e amarelo, provavelmente é solar. É bonito, porém, estranho. Por que são desenhados apenas em algumas casas? E principalmente: por que são desenhados? Guardo minhas dúvidas para mim e continuo a observar. Mais uma vez presto atenção na parte mais atrativa e menos atrativa ao mesmo tempo: a floresta. Mesmo a luz do dia parece não ser capaz de penetrar a escuridão que as pertence. Dá a impressão de que não podem ser tocadas pelas coisas bonitas do universo. Apesar de me despertar medo, essa floresta desperta um sentimento mais forte em mim: a curiosidade. E em minha lista mental, coloco mais um objetivo: traçar este mesmo caminho durante a noite para me aventurar um pouco.

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Durante as aulas só consigo me sentir entediada. Os professores não tornam as coisas mais fáceis e nem as matérias mais atrativas. Até português e inglês, que são minhas matérias preferidas, se tornam entediantes com a maneira que os professores as ensinam. Olho no relógio de um em um minuto para me certificar de que essa tortura logo acabaria, porém, o tempo não passa enquanto a professora de matemática fala. Decido prestar atenção. Depois das três primeiras aulas, o sinal toca nos alertando para o intervalo. Como ainda não fiz amigos, costumo ir até a cantina sozinha, comprar o meu lanche de sempre e comer sozinha em um canto afastado de tudo e todos, mas que me dá uma boa visão de tudo. Não sou tão boa em me socializar, então espero que conforme o tempo alguém se aproxime de mim, como aconteceu nas outras escolas em que estudei. Como de costume, peço um salgado de frango acompanhado de um suco de acerola com laranja e vou até meu canto isolado da escola para saboreá-los. Desse canto posso observar todas as pessoas e suas maneiras de agir umas com as outras, para que eu possa saber com quem exatamente devo ou não me relacionar. Já descobri facilmente com quem não devo me relacionar. As gêmeas Luciana e Bruna que estão no terceiro ano como eu, implicam com todos que ficam no seu caminho, e é por isso que eu fico fora. Durante minhas observações, notei um garoto de moletom cinza com o capuz na cabeça que cobria quase todo seu rosto. Dava para notar pelo menos um de seus olhos, e eles me encaravam. Eram de um verde bem claro e ao mesmo tempo profundos. Eram encantadores, mas ao mesmo tempo, um pouco assustadores. Eu o encarei por um instante também, mas logo percebi que isso não o intimidava, fazendo com que eu ficasse envergonhada e me sentindo obrigada a desviar o olhar. Permiti-me ficar um bom tempo olhando para outra direção, mas assim que voltei o olhar na direção do garoto, ele já não estava mais lá. Fiquei um tanto quanto desapontada, mas não podia


culpá-lo. Eu era um pouco entediante. Porém, de qualquer maneira, em minha lista mental adicionei mais um objetivo: descobrir quem era o tal garoto misterioso, e talvez, fazer uma tentativa de socialização. O sinal tocou novamente e eu me dirigi para as três últimas aulas. Como eu já previa, entediantes. E o relógio foi mais observado do que a própria professora. Porém, olhar para o relógio de nada adiantava a passar o tempo mais rápido, então decidi prestar atenção novamente. Quando as três últimas aulas acabaram, fui uma das primeiras alunas a sair da sala de aula. Estava empolgada em explorar. Já do lado de fora da escola liguei para minha mãe. - Alô? – Perguntou ela, que ainda não tinha gravado o número do meu celular em sua agenda. - Oi mãe, sou eu. Dá para gravar meu número na sua agenda de uma vez por todas? - Oi filha, desculpa, mas eu ainda não sei fazer isso. Quando você chegar para o almoço você me ajuda. - Então, foi por isso mesmo que eu liguei... vou almoçar em alguma lanchonete aqui na cidade e pretendo chegar um pouco tarde. - O que vai fazer? – O tom de voz dela deu a entender que estava ficando nervosa e automaticamente eu também. - Quero conhecer um pouco da cidade e TENTAR fazer novos amigos como você mesma me recomendou a fazer. – A parte do “tentar fazer novos amigos” era mentira, mas para convencê-la, mentir era necessário. - Hum... – Odiava quando ela pensava no assunto, mas o que eu precisava fazer era ter paciência. - E aí, posso ou não? - Tudo bem... – Seu tom de voz mostrou que ela estava apreensiva. - Mãe, eu já tenho quase dezoito anos, não há com o que se preocupar, de verdade. Eu sei me virar bem sozinha, tudo bem? - Sim, eu sei disso. – Ela deu uma risadinha. – E você tem razão, precisa fazer novos amigos, não aguento mais você aqui em casa enchendo o nosso saco. – Nós rimos. – Tudo bem, pode ir. Mas por favor, não chegue tão tarde. Essa cidade me assusta às vezes. Ela parece um pouco perigosa. - Ela não deve ser assim. Lembre-se que as aparências enganam. - É verdade. Bom, de qualquer forma, não chegue tarde. E não desligue o celular caso eu precise falar com você.


- O.K. - E leve um casaco caso faça frio. - O.K. - E... - MÃE! – Eu odiava interromper as pessoas, mas com a minha mãe, às vezes era realmente MUITO necessário. - O.K., me desculpe. Cuide-se, eu te amo. - Eu também te amo. Desliguei o celular e o coloquei na mochila. Chequei minha carteira e tinha um bom dinheiro que tinha ganhado passeando com os cachorros dos meus vizinhos, que não eram muito amigáveis por sinal, mas valeu a pena de qualquer forma. Caminhei até o centro da cidade e encontrei vários restaurantes fast food, e por mais que tenha tentado resistir à tentação, fui obrigada a comer em um deles. Entrei no local que o cardápio do lado de fora me chamou mais atenção, fiz meu pedido e me sentei em uma mesa vazia, o que não foi difícil achar, pois haviam apenas duas mesas ocupadas, e uma delas, por incrível que pareça, estava ocupada pelo garoto de moletom que eu vira na escola e que novamente me encarava. Fingi que não o vi e comi meu lanche. Descobrir quem ele era poderia ficar para outro momento. Porém, minhas tentativas de não fazer contato visual falharam miseravelmente. Mesmo em meus intervalos observando o ambiente, ele continuava me olhando. Comecei a ficar com um pouco de medo dele e me apressei a terminar o lanche. Quando terminei, levei os restos para o lixo e guardei a bandeja no lugar específico para elas. Peguei minha mochila e saí correndo do restaurante sem olhar para trás. Tudo o que eu esperava era que ele não viesse atrás de mim. Depois de uma caminhada apressada para não haver dúvidas de que ele estava me seguindo, peguei o caminho correto do qual eu queria ir. Iria para a biblioteca procurar alguns livros que falassem sobre a cidade. Não ficava tão longe, mas como eu estava a pé, iria demorar um pouco. Peguei minha câmera na mochila e fui tirando fotos das paisagens que achava mais interessante. Quando cheguei perto o suficiente da floresta, dei um zoom e tirei a foto na esperança de encontrar algo assustador. Porém, só havia árvores na foto. Continuei a caminhada tirando fotos de tudo que achava pelo caminho. Depois de um tempo, cheguei à biblioteca. Era um edifício enorme, e assim como os outros da cidade, com um aspecto rústico e encantador, porém, era um dos menos frequentados na cidade. Quando entrei, avistei apenas três pessoas lendo. Fui até o balcão e expliquei a bibliotecária o que eu desejava. Ela me disse que haviam poucos


livros relacionados à cidade, mas me levaria a uma área que talvez me ajudasse a chegar perto do que eu desejava. Eu a segui, e então tive certeza da grandeza do local. Havia estantes por todos os lados e áreas muito afastadas da entrada. Sem a ajuda de alguém, era capaz de eu me perder completamente, por isso fui tentando memorizar o caminho que fiz da entrada até a estante desejada. A bibliotecária me deixou e voltou ao balcão de entrada. Eu procurei pelos livros que achei que me ajudariam, mas encontrei poucos. Levei-os até a mesa mais próxima e comecei a ler. Passei horas lendo e procurando, e mesmo assim, não era o que eu queria. Não havia nada interessante e comecei a me perguntar o porquê de a bibliotecária achar que aquilo chegaria perto do meu desejo. Havia artigos de jornais antigos, histórias relacionadas a seres inexistentes, coisas medievais, indígenas e maldições. Talvez fossem livros de fantasia. Revoltada, peguei todos os livros e os guardei em seus devidos lugares. Fiz o caminho de volta à entrada do qual eu havia memorizado e agradeci a ajuda da bibliotecária com grosseria. Saí da biblioteca e comecei a caminhar sem rumo, imediatamente me arrependendo da grosseria e da revolta sem nexo. Eu procurei muito pouco em uma biblioteca que havia milhões de possibilidades. Mas não poderia voltar lá depois da grosseria com a bibliotecária, então concordei comigo mesma que iria me desculpar e procurar, mas em um outro dia. Decidi continuar tirando fotos para matar o tempo. Tirei principalmente das árvores da floresta, mas não encontrei nada interessante. Estava começando a achar que toda aquela pesquisa frenética era desnecessária e uma perda de tempo. Aquela cidade não tinha nada de incomum. Não havia nada para que eu me orgulhasse de morar ali ou qualquer outra coisa que me fizesse sentir feliz de viver ali. Era só mais uma cidade das milhares que encontrávamos para morar, que só serviam para me afastar de meus antigos amigos, que só serviam para me afastar de viver uma vida feliz ao lado de quem eu amo. Guardei a câmera na mochila e tirei meu livro. Sentei em um banco na praça mais próxima que encontrei e li para afastar os pensamentos.

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Passaram-se horas e eu terminei o livro. Não havia percebido o quanto havia escurecido. Quase todos que estavam na praça já haviam ido embora, talvez há muito tempo. Comecei a caminhar de volta para casa antes que minha mãe mandasse a polícia atrás de mim ou me ligasse a cada um minuto. Caminhei sem prestar muita atenção no


caminho, pois estava perdida em meus devaneios. Odiava-me por ser aquele tipo de pessoa que se apega muito facilmente as pessoas. Odiava-me por sentir falta de pessoas que hoje vivem muito bem sem mim. Talvez já tivessem até mesmo me esquecido. Odiava-me por não saber ser tão fria quanto queria ser. Odiava-me por... perder o caminho de casa. O beco onde eu me encontrava era sem saída e eu não me lembrava de como havia parado ali. Virei-me e encarei uma floresta assustadoramente perigosa em minha frente. Onde eu estava? Como vim parar aqui e como vou voltar para casa? Comecei a caminhar de volta para a rua e eu realmente não conhecia o lugar onde estava. Não havia uma única alma por ali que pudesse me ajudar. As casas estavam completamente escuras e a única iluminação vinha dos postes, pois a lua estava coberta pelo céu nublado. Caminhei sem rumo tentando encontrar alguém que pudesse me ajudar, mas parecia que até os comércios vinte e quatro horas estavam fechados... E por um momento, um calafrio percorreu todo o meu corpo ao me lembrar de meus pesadelos. Será que eu estava dormindo no banco da praça e estava sonhando de novo? Belisquei-me para ter certeza, e aquilo com certeza doeu. Era real. E parecia com um dos cenários dos meus constantes pesadelos. Apertei o passo e procurei pela saída do beco. Meu coração batia muito forte e por um momento achei que fosse desmaiar. Eu tinha a sensação de estar sendo perseguida ou observada e olhava constantemente para trás, mas não havia ninguém. Ninguém para pedir ajuda, ninguém me perseguindo. Era apenas eu e os seres desconhecidos que viviam naquela floresta. Peguei o celular na mochila e liguei para minha mãe, que atendeu depois de sete toques. - Pelo amor de Deus, mãe, por que não atendeu logo?! - Eu não estava achando o celular, desculpe... Rebecca, você está bem? - Não mãe, eu me perdi. Eu fui almoçar logo depois que liguei para você, e depois fui até a biblioteca, mas não encontrei o que eu queria então fui até uma praça e fiquei lendo meu livro a tarde toda e não percebi o quanto havia escurecido até terminar o livro. Decidi voltar para casa logo, mas me distraí e não sei onde fui parar. Não tem nem um nome de rua por aqui! – Eu estava desesperada, mesmo que não fosse algo realmente tão preocupante quanto eu estava aparentando ser. - Calma. Eu vou tentar rastrear o sinal do seu celular de algum jeito. - Como? Você não sabe nem colocar meu número na sua agenda! - Seu irmão me ajuda nisso, obrigada. – Me senti culpada por magoá-la, mas não estava muito no clima de pedir perdão.


- O.K., me liga assim que terminar tudo bem? Eu realmente estou com muito medo, mãe. - Sei que está. Mas não fique, eu estou aqui O.K.? Te ligo daqui a pouco. Te amo. - Te amo. Desliguei o telefone e esperei até que ela me ligasse. Não me atrevi a sair do local onde estava e me assustava com cada pequeno movimento a minha volta, até com o farfalhar das árvores da floresta e o assovio do vento em meus ouvidos. Depois de uns cinco minutos, ela me ligou de volta. - Conseguiu? – Perguntei um pouco ansiosa demais. - Sim, estou indo de carro te buscar. Quer que eu fale com você enquanto isso para que não se sinta tão nervosa? - Sim... - Tudo bem, não desligue então. Como você foi parar aí? Essa área da cidade parece não haver habitante algum. Quase nem a achamos no mapa aqui no GPS. - Eu não sei... eu estava pensando demais nos meus antigos amigos enquanto caminhava e não prestei atenção para onde estava indo. - E por que está com tanto medo? Você já não tem “quase dezoito anos e não há com o que se preocupar”? “Você sabe se virar bem sozinha” e tudo mais? – Disse ela com voz de quem está zombando da sua cara. - Rá, rá, rá, muito engraçadinha você. – Ela riu, e continuou falando comigo sobre seu dia no trabalho, o que foi realmente entediante. Enquanto conversávamos, fiquei observando a paisagem a minha volta. Olhei para a floresta e percebi que havia um par de olhos verdes me encarando. Curiosa, dei um passo em direção à floresta, porém outra coisa me chamou atenção. Em meu lado direito ouvi o barulho de um galho se partindo ao meio e folhas secas sendo pisoteadas. Olhei para o lado em reflexo do susto e me deparei com algo realmente estranho. Sua aparência era medonha. Parecia-se com um lobo, porém, era mais magro e seu corpo era comprido demais assim como suas patas. Seu rosto estava completamente deformado, como se o bicho tivesse nascido com alguma doença ou tivesse sido queimado em um incêndio. Ele abria a boca lentamente e assim, eu conseguia ver suas presas afiadas e desproporcionais ao tamanho da sua boca. A saliva escorria pelos cantos da boca, como se estivesse com sede do meu sangue. Os olhos eram amarelos e pareciam insanos. O medo se apossou de mim e todo o meu corpo ficou rígido, como se se recusasse a correr. Eu não conseguia responder minha mãe no telefone e meus dedos estavam fracos segurando o celular na orelha.


Ele deu o primeiro passo em minha direção, e eu dei o primeiro passo em direção a lugar nenhum. Sem pensar, comecei a correr. Corri o mais rápido que pude, sem rumo, sem saber onde estava ou onde iria parar. Eu estava desesperada, mas não conseguia gritar, falar ou responder minha mãe no celular que eu segurava com toda a minha força na mão direita. Parecia que o ar de meus pulmões havia sumido e eu havia perdido a capacidade de falar ou ouvir qualquer outra coisa senão os barulhos que a criatura fazia atrás de mim. Usava toda a minha força para correr, e acredite, era demais. O desespero da minha mãe do outro lado da linha era explícito, mas não havia nada que eu pudesse fazer a não ser correr. Mesmo alguns segundos de distração significavam minha morte. Então eu corria, mas não havia rumo, não havia saída e parecia que eu estava dando voltas no mesmo lugar, pois tudo à minha volta parecia exatamente igual. Até que virei em uma rua que não havia saída. Era isso, eu estava perdida e iria morrer assim como morria em meus pesadelos frequentes. Minha mãe não encontraria meu corpo e eu cairia no esquecimento. Não havia o que fazer. Pensei em me esconder em algum lugar no beco, mas seria inútil. A criatura não estava tão longe de mim que não fosse capaz de ter visto que eu virei esta rua. Ela me encontraria, e certamente seria pior. Encostei-me na parede e esperei pelo monstro de olhos fechados, aguardando o momento da minha morte. Quando ouvi o som de suas patas a alguns metros a minha frente, abri os olhos. E algo inesperado aconteceu. A alguns metros atrás do monstro que me perseguia, saiu da floresta um lobo negro como a noite e correu em sua direção. Ele agarrou o pescoço do monstro e o estraçalhou. A cena da luta foi realmente terrível, e meu corpo tremia de medo. O sangue se espalhava pela rua no ponto em que o lobo havia travado a briga, e meus olhos não acreditavam no que viam. Os gritos dos animais invadiam a minha mente e eu estava prestes a gritar de terror quando tudo sessou e os únicos sons que eu ouvia eram os do monstro gemendo à beira da morte e o som das patas do lobo vindo em minha direção. Nesse momento, eu já estava agachada contra a parede e as minhas mãos estavam apertadas contra os ouvidos. O terror era evidente em meu rosto, as lágrimas escorriam descontroladamente de meus olhos e eu não via a hora de acabar logo com isso. Naquele momento, a morte era o que eu mais desejava. Não tentei fugir, não gritei e nem desviei os olhos dos olhos do lobo, apenas esperei que ele me atacasse e acabasse logo com a minha vida. Ele deu cinco passos à frente e parou a alguns centímetros de mim. Apenas me observou. Mesmo àquela distância era possível sentir o cheiro do seu bafo e o ar que soltava de sua boca roçando os pelos do meu braço. Seus olhos verdes me encaravam com curiosidade. Então, ele deu meia volta e voltou para a floresta de onde veio. Ele não me matou.


Eu havia me esquecido do ar nos meus pulmões, mas assim que ele voltou para a floresta, soltei um suspiro de alívio e respirei o mais fundo que pude, a fim de conseguir absorver o máximo de ar possível para que não faltasse da próxima vez. Coloquei o celular de volta na orelha, onde minha mãe gritava desesperada para que eu a respondesse. O celular teimava em parar quieto, pois minhas mãos tremiam muito. - Mãe... – Foi o máximo que consegui dizer no primeiro momento. Minha respiração estava ofegante, meu coração acelerado e minha força havia ido embora há muito tempo. - REBECCA, NUNCA MAIS FAÇA ISSO! QUE BRINCADEIRA IDIOTA! - Não mãe... eu... – Eu estava sem ar para respondê-la então dei uma pausa e respirei fundo antes de continuar. – Eu acabei de ser perseguida e quase atacada. - O QUE? POR QUEM? O QUE ACONTECEU? EU OUVI BARULHOS ESTRANHOS! - Era um... – Pensei um pouco antes de dizer o que era. Se eu dissesse que um monstro havia me perseguido, ela não acreditaria em mim e acharia que tudo isso não passava de uma brincadeira. Até eu mesma não acreditaria em mim. Decidi que o melhor a se fazer era mentir. – Um cachorro maluco... - Cachorro maluco? - Ele parecia ter raiva e queria me morder. Eu corri e sem querer virei para uma rua sem saída, e então um lobo o atacou e eles brigaram. - Ele te mordeu? Você está bem? - Sim, estou bem. Só estou tremendo muito e acho que vou vomitar ou desmaiar. - Eu já estou chegando, aguenta firme. E então, ela continuou falando para tentar me manter acordada, e enquanto tentava prestar atenção em cada palavra que ela pronunciava, percebi que o corpo do monstro havia sumido e tudo o que sobrara fora uma enorme poça de sangue e um monte de areia. Tentei me lembrar se a areia já estava ali antes, mas não consegui pensar em nada. Senti uma forte dor de cabeça e meus olhos ficarem pesados, avisando que o inevitável estava por vir; passei a não escutar mais as palavras da minha mãe e apaguei.


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