Fronteiras do Pensamento 2016

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Sábado e Domingo, 23 e 24 de abril de 2016

A grande

virada Eneida Serrano

Ciclo de conferências debate as revoluções individuais e coletivas que podem mudar o mundo contemporâneo


PORTO ALEGRE, SÁBADO E DOMINGO, 23 E 24 DE ABRIL DE 2016

CURADORIA CURADORIA

Fronteiras,

temporada 2016

U

ma grande transformação foi feita pelo Dr. Denis Mukwege quando resolveu criar, em 1999, o Hospital de Panzi, na República do Congo. Uma grande mudança foi liderada por Mary Robinson, na Irlanda, no início dos anos de 1990, e levou o país a uma década vertiginosa de desenvolvimento. Uma grande renovação para a democracia conduziu Václav Havel, tal qual uma obra de arte, na República Tcheca, na chamada Revolução de Veludo. Na América Latina, talvez não haja uma grande inovação como a feita pelo Chile contemporâneo, rumo a uma economia aberta e desenvolvida. Na Ásia, o maior exemplo vem da Coreia do Sul, que, em quatro décadas, se tornou uma potência tecnológica e um país modelo em termos de educação. Uma grande virada, como as indicadas anteriormente, pode ocorrer no plano individual ou no coletivo. No campo da economia ou da cultura. A afirmação dos direitos humanos, no mundo contemporâneo, é uma grande virada. A saída de mais de um bilhão de pessoas da linha de miséria, no plano global, talvez seja a grande virada do último quarto de século. Neste ano, o Fronteiras do Pensamento quer dar a sua contribuição nesta direção. O foco não é produzir uma resposta uniforme, mas esclarecer os termos do debate. Em meio ao recrudescimento do fundamentalismo islâmico e da xenofobia, em especial na Europa, não é a hora de falarmos sobre tolerância? Em meio a uma crise econômica que assola o Brasil, não seria a hora de falarmos a respeito de novas agendas de desenvolvimento? Em meio à “guerra digital”, à aparente banalização das relações humanas e da cultura, nesta “civilização do espetáculo” como bem define Vargas Llosa, não é hora de apostarmos na grande arte, na criação estética, na possibilidade do diálogo intelectual e no esclarecimento público?

O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado por Braskem, com patrocínio da Unimed Porto Alegre e parceria cultural da PUCRS. Empresas parceiras: Liberty Seguros, CMPC Celulose Riograndense, Souto Correa e Sulgás. Parceria institucional: Fecomércio e Unicred. Apoio institucional: UFCSPA, Embaixada da França e Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Universidade parceira: UFRGS. Promoção: Grupo RBS. COMO PARTICIPAR O acesso ao ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento Porto Alegre se dará exclusivamente através da aquisição do pacote de ingressos para os 8 encontros da temporada 2016. VALOR DO PACOTE DE INGRESSOS

“A afirmação dos direitos humanos, no mundo contemporâneo, é uma grande virada. A saída de mais de um bilhão de pessoas da linha de miséria, no plano global, talvez seja a grande virada do último quarto de século.” Este é o desafio proposto nesta temporada: investigar a natureza da grande virada contemporânea. Os historiadores parecem concordar que a nossa época é marcada por uma sensação difusa de “aceleração” do tempo histórico. Percebemos isso, de algum modo, quando lemos Madame Bovary e mergulhamos, pela imaginação de Flaubert, no lento cotidiano do século 19, no tempo que se arrasta, no tédio das tradições cristalizadas. Tudo parece ter mudado ao longo do século 20. O século da vertigem, inaugurado pela onda de inovações da segunda revolução industrial. O século da imagem em movimento, da suprema aceleração, que levou o homem do 14 Bis à conquista da Lua em inacreditáveis 63 anos. Dos anos de 1960, herdamos a revolução cultural. A ruptura definitiva produzida pela marcha dos direitos civis, a emancipação feminina e a emergência do que o sociólogo Anthony Giddens chamou de “sociedade reflexiva”. Qualquer cronologia, nesse âmbito, é precária. Quem sabe

o Maio de 68, a “revolução de tudo e de coisa nenhuma”, o mito fundador em forma de flash mob, a erupção do happening, da arte pop, da “aldeia global” e da “cultura de mídia” promovida pela televisão... A revolução cultural prefaciou o grande processo de integração econômica dos anos de 1980, o amplo progresso das democracias nos anos de 1990, e o avanço exponencial da computação e, logo, da internet nestas últimas três décadas. Vem daí essa “grande passagem” da escassez à abundância. O mundo em que as migrações humanas explodiram. Em que a ideia de fronteira é cada vez mais obsoleta. O mundo da revolução silenciosa da economia do compartilhamento, em que cada indivíduo será, cada vez mais, um agente econômico com iniciativa e autonomia. O mundo da chamada “revolução maker”, por muitos considerada a antessala de uma nova revolução industrial. Então, a grande virada contemporânea não seria, na linha do que sugere Ray Kurzweil, Peter Diamandis ou Jeremy Rifkin, uma passagem, ainda não perfeitamente evidente, de um mundo fundado no paradigma da escassez para um mundo da abundância? O mundo dos “universais”: acesso universal à educação, à conectividade, a um nível básico de dignidade pessoal, como sugerem as recém-anunciadas metas para o desenvolvimento sustentável da ONU, para 2030? O Fronteiras do Pensamento terá, em 2016, um sentido indisfarçavelmente otimista. A visão do mundo como “potência”. Do Brasil que, indiscutivelmente, precisa de uma grande virada. Do plano por vezes misterioso de nossa própria vida. Cada um de nós. Nossas pequenas revoluções. Nossa disposição de migrar. De arriscar um pouco mais, em um mundo que percebemos mais excitante, mais pleno de informação e de oportunidades.

INTEIRA R$ 1.560,00 50% DESCONTO R$ 780,00 Inscritos no Fronteiras em edições anteriores Médicos cooperados Unimed Porto Alegre Professores PUCRS, UFRGS e UFCSPA Meia-entrada conforme legislação 30% DESCONTO R$ 1.092,00 Para titulares do Clube do Assinante dos jornais do Grupo RBS. Todos os valores parcelados em até 5 vezes sem juros nos cartões de crédito. IMPORTANTE Descontos não cumulativos. Os ingressos não serão vendidos individualmente. Não haverá emissão de certificado. Programação sujeita a alterações. PONTOS DE VENDA Palavraria Rua Vasco da Gama, 165 | 3268.4260 StudioClio Rua José do Patrocínio, 698 | 3254.7200 Bamboletras Rua General Lima e Silva, 776, loja 3 | 3221.8764 VENDA www.ticketsforfun.com.br sem taxa de conveniência HORÁRIO DAS CONFERÊNCIAS Início às 19h45 LOCAL DAS CONFERÊNCIAS Salão de Atos da UFRGS *Apenas a conferência de Ian McEwan será realizada no Araújo Vianna.

FERNANDO SCHÜLER Curador do Fronteiras do Pensamento

INFORMAÇÕES e VENDAS

4020.2050

www.fronteiras.com EXPEDIENTE REVISTA: Coordenação e Edição: Cybeli Moraes e Luciana Thomé | Diagramação: Aluísio Pinheiro | Fotos: Bruno Alencastro | Fotos capa e ensaio: Eneida Serrano | Revisão: Renato Deitos | Supervisão editorial: Carlos André Moreira e Letícia Duarte | Conselho editorial : Claudia Laitano e Michele Mastalir *As opiniões expressas nos artigos desta revista são de inteira responsabilidade de seus autores.

VAGAS LIMITADAS

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MUDANÇA MUDANÇA

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Pensamentos que inquietam e revolucionam

A

s coisas, ao menos aquelas que são secas e duras, têm lá no fundo, bem no miolo, uma outra parte e um outro jeito. Só conhece a coisa inteira quem se arrisca a esse núcleo tão profundo quanto agitado: no miolo, nada é igual à casca e tudo é fresco e de grande viço. Virar tudo do avesso em busca do sumo, começar outra vez e, de repente, parar para colher o tenro e fino, tudo só é possível através da imaginação. A edição de 2016, que comemora os 10 anos do Fronteiras do Pensamento, é sobre isso, sobre as mudanças proporcionadas pela potência da abstração e por suas virtudes inerentes. Participando pela segunda vez do Fronteiras, Mario Vargas Llosa faz a conferência de abertura. Conhecido por seu talento como ficcionista, defensor da democracia e da liberdade, Llosa traz sua experiência na política latino-americana num conturbado momento na vida nacional. Com a crença de que a arte – a literatura – é uma via de acesso para o lado próspero e sumarento que as mudanças radicais representam, o Fronteiras traz também o britânico Ian McEwan e o francês Michel Houellebecq – que participou da primeira edição do ciclo de conferências, em 2007 –, autores que têm abordado, embora de maneiras diversas, o fundamentalismo religioso e os embates entre fé e ciência. Ocupado em fazer das mídias digitais e da internet canais de disseminação do conhecimento, dedicando-se a elaborar uma linguagem universal para a rede, Pierre Lévy, que também esteve presente na primeira edição em Porto Alegre, representa a crença de que tudo criado por mente e mão humana é acervo e repertório comum. Por outro lado, advogando que a mudança se dá através da particularidade e do original, o norte-americano Henry Louis Gates Jr. combate a visão padronizada e eurocêntrica, sustentando que a cultura negra deve ser abordada de sua origem e não a partir da perspectiva do Ocidente. Como a imaginação implica romper padrões e só através do rompimento se vai ao sumo, o alemão Peter Sloterdijk classifica o papel da filosofia como marginal: os filósofos contemporâneos devem pensar de forma ousada, longe do seguro e do convencional, permitindose as intrincadas questões e as hipercom-

“A edição que comemora os 10 anos do Fronteiras do Pensamento é sobre isso, sobre as mudanças proporcionadas pela potência da abstração e por suas virtudes inerentes.”

plexidades da atualidade. Sabendo que as subjetividades são variadas, a crença na aceleração da vida tem gerado grande ansiedade individual e coletiva, e toda a atenção e a dedicação intelectual se têm dado no plano horizontal em detrimento ao conhecimento profundo e vertical, o projeto também traz a Porto Alegre a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco. Autora das biografias de Sigmund Freud e de Jacques Lacan, Elisabeth crê que sua disciplina deve evoluir e acompanhar as mudanças contemporâneas, fugindo do conhecimento inflexível e cristalizado. Então, para materializar a potência da imaginação, são necessárias medidas concretas, e o Fronteiras fecha o ciclo com o arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl. Responsável por tornar Copenhague a referência em termos de planejamento e qualidade de vida no mundo todo, o depoimento de Gehl trará infor-

mações para que se pense a cidade como o local da mudança e da felicidade para as pessoas – e essa deve ser, mesmo, a grande virada civilizatória. Se, de fato, a imaginação é o combustível da mudança, e a experiência tem mostrado que sim, cabe a cada um e a todos inventar aquele modo de vida que, ao mesmo tempo em que nos permite como indivíduos ser íntegros e singulares, como sociedade nos diferencie e nos restitua a dignidade que nos tem sido subtraída. O Fronteiras do Pensamento fecha seus primeiros 10 anos de vida certo de que gente muito comprometida com o mergulho ao miolo sumarento passou por aqui – gente que nos contagiou a todos da melhor maneira, aquela mais inquietante e revolucionária. CÍNTIA MOSCOVICH Escritora e Mestre em Teoria Literária pela PUCRS BRUNO ALENCASTRO

A experiência mostrou que a imaginação é o combustível da virada necessária e cabe a cada um reinventar a vida


PALAVRAS PALAVRAS

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O diálogo como via para o

entendimento

O

s gregos antigos acreditavam que o diálogo conduz ao conhecimento. Freud, no século 19, defendeu que a fala tem a capacidade de levar à cura ou, pelo menos, a um aprendizado sobre como lidar melhor com o sofrimento. Embora estes pensamentos tenham passado por releituras, nossa crença no poder do diálogo se mantém, mesmo que desafiada o tempo todo pelo radicalismo e pela intolerância. É assim que o Fronteiras do Pensamento completa 10 anos de convicção nesta estratégia tão antiga e, ao mesmo tempo, eficaz de difusão do saber. Pensadores das mais diversas áreas, como filosofia,

literatura, economia, urbanismo e sustentabilidade, vêm apresentando alguns dos dilemas da atualidade e apontando caminhos possíveis, com a única certeza de que não há uma solução pronta. Há inúmeras transformações em andamento, e o tema da edição deste ano – A grande virada – convoca um debate sobre como responder a um tempo no qual as revoluções parecem ocorrer de maneira cada vez mais rápida. O sociólogo espanhol Manuel Castells, por exemplo, já falou da necessidade de repensar a educação em todos os níveis. Afinal, com tudo que está disponível na internet, a função da escola não seria mais simplesmente transmitir informação, mas empoderar intelectualmente os estudantes

para se apropriarem desse material de acordo com seus projetos intelectuais e profissionais. Como resultado, o processo educativo se torna mais dialógico. Mas, por razões diversas e às vezes obscuras, o diálogo tem sido, em algumas instâncias, uma via marginalizada, quando não subversiva e utópica, em um contexto de guerra e violência. Este é um dos temas caros à obra ficcional e ensaística do escritor israelense David Grossman, que participa de uma ação especial do Fronteiras na Feira do Livro de Porto Alegre. Embora ele já tenha declarado que a única função de um escritor é contar boas histórias, sua obra e sua biografia testemunham que a literatura é tam-

bém uma busca pelo entendimento e, se não for pedir muito, pela paz. Ao lado dos também escritores Amós Oz e A. B. Yehoshua, Grossman tem sido uma das vozes críticas ao discurso de radicais de parte a parte, israelenses e palestinos. Em ensaios, entrevistas e artigos na imprensa, ele defende a solução de dois Estados para dois povos. Mesmo que esta solução pareça cada vez mais distante nas circunstâncias recentes, a seu ver não há motivo para diminuir o esforço em buscá-la. Não é à toa que, entre os personagens de seus livros, estejam crianças que contemplam o mundo com a pureza e o espanto que os adultos parecem ter perdido. No conflito do Oriente Médio, como Grossman decla-

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Os contextos de guerra e violência não podem interromper nossa capacidade de dialogar


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A função da escola não seria mais simplesmente transmitr informação, mas empoderar os estudantes

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rou em 2006, o diálogo é “a arma que ainda não utilizamos”. Naquele ano, o escritor perdeu o filho Uri, 20 anos, que era soldado na guerra contra o Hezbollah no sul do Líbano. A tragédia ocorreu dois dias antes de um cessar-fogo, trégua que Grossman, Oz e Yehoshua haviam pedido publicamente dois dias antes. No emocionante pronunciamento que realizou no funeral do filho, depois publicado em diferentes jornais, o autor declarou: “Não direi nada agora sobre a guerra na qual você foi morto. Nós, a sua família, já perdemos esta guerra”. Como crítico de determinadas políticas de governo, mas defensor da existência do Estado de Israel, ao lado de um Estado palestino, o autor é uma voz independente cada vez mais necessária. Cinco anos depois da morte de Uri, Grossman publicou o livro Fora do tempo. Combinando prosa e poesia, em uma sofisticada construção estilística, a obra coloca, lado a lado, personagens que perderam filhos em circunstâncias diversas. O formato lembra um texto para teatro, compondo uma verdadeira polifonia. No segmento final, os personagens falam em uníssono: “E para a guerra, / por que foram para a guerra? [...] / e como é que vocês / estão mortos, e nós / conseguimos / ficar vivos? [...]”. A obra de Grossman é a celebração da arte de encontrar palavras para expressar o inominável. Fábio Prikladnicki Jornalista e Doutor em Literatura Comparada pela UFRGS

“Há inúmeras transformações em andamento, e o tema da edição deste ano – A grande virada – convoca um debate sobre como responder a um tempo no qual as revoluções parecem ocorrer de maneira cada vez mais rápida.”

A literatura nos 10 anos de Fronteiras Nosso conhecimento da realidade ocorre por meio da imaginação, disse Alberto Manguel em Porto Alegre, ao falar de uma biblioteca imaginária universal. Affonso Romano de Sant’Anna defendeu que o desafio hoje é justamente a intersecção entre o sujeito e o seu tempo. Por isso, Ferreira Gullar afirmou que é necessário inventar – coisa que a literatura faz em relação à realidade, ainda que viva sempre no limite desta, como referiu Åsne Seierstad sobre suas experiências na guerra. Orhan Pamuk afirmou que o romance é a principal maneira de comunicar a humanidade, e é por meio dos romances que há 150 anos aprendemos sobre o mundo em testemunhos sobre nações e políticas, como revelaram os olhares de Pedro

Juan Gutiérrez sobre seu país, Cuba. Daí o papel central da leitura, como disse Milton Hatoum, na formação da cidadania, e o pensamento de que todo o direito que “emagrece” os direitos dos outros não é passível de ser discutido, na opinião de Valter Hugo Mãe. Se a vida não possui forma, como disse Salman Rushdie, um livro formata, e por isso cria significados – na maioria das vezes com a intenção de produzir um mundo melhor, como refletiu Mia Couto. Em 10 anos de Fronteiras do Pensamento, foram muitos os debates sobre uma das maiores formas de comunicação da humanidade – e a temporada de 2016 promete aquecer mais estas discussões. Leia nas páginas seguintes sobre Mario Vargas Llosa, Michel Houellebecq e Ian McEwan.

DAVID GROSSMAN (1954), escritor israelense, é um dos mais importantes ficcionistas contemporâneos, autor de obras de ficção e não ficção com livros traduzidos para mais de 30 idiomas. Filho de um trabalhador que saiu da Polônia durante a II Guerra Mundial, desenvolveu um interesse precoce pela literatura. Reconhecido por sua obra de tom pacifista, defende que a literatura pode ser uma arma poderosa no resgate da dimensão humana do conflito. No Brasil, sua mais recente publicação é O livro da gramática interior, lançada em 2015 pela Companhia das Letras. A vinda de Grossman, no dia 30 de outubro, faz parte das comemorações dos 10 anos do projeto, em uma parceria Fronteiras do Pensamento, Feira do Livro de Porto Alegre e Braskem.


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CULTURA CULTURA

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As aspirações da crítica humanista E

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m geral, quando se fala em Mario Vargas Llosa em nosso país, principalmente nos meios culturais, é comum que o seu trabalho seja quase exclusivamente associado à atividade de escritor, ao âmbito específico da prosa de ficção. A ampla consagração de seu talento a partir do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, em 2010, popularizou ainda mais seu nome e seus livros entre o público brasileiro. Com menos frequência, no entanto, reconhecemos por aqui sua militância associada ao campo da crítica cultural e política, atividade que vem praticando diligentemente por décadas, como homem de ideias e formador de opinião. O que tentarei defender é justamente a coerência entre o escritor e o homem de imprensa; o crítico literário e o analista político; o artista e o homem de palanques. Acompanhar a obra ensaística de Vargas Llosa – em livros como A verdade das mentiras, A linguagem da paixão ou A civilização do espetáculo –, complementarmente à leitura de seus romances e contos, possibilita uma melhor e mais complexa compreensão de sua visão integradora de literatura e de mundo. E é neste sentido que relaciono sua crítica cultural às antigas aspirações humanistas de vida e criação literária ligada a um projeto de sociedade, de civilização e, também, de formação individual. Segundo essa perspectiva, a literatura pressupõe cognição, entendimento, interpretação, experiência, visão organizada da realidade; quer dizer, a literatura se relaciona ao conhecimento, à capacidade referencial da linguagem humana, e à necessidade de dar sentido à existência. Diz-se que toda crítica tende à autobiografia, quer dizer, à manifestação da subjetividade do crítico. No caso de Llosa, não é diferente: sua crítica social, cultural e literária foge da imparcialidade, da impessoalidade e não se preocupa com a tão propagada – e mal compreendida – “objetividade científica”. Em todas as suas argumentações estão subjacentes escolhas estéticas, políticas e éticas. Ele é como pensador e artista aquilo que o preocupa enquanto homem, como indivíduo imerso em suas circunstâncias. A legitimação acadêmica de um crítico e ensaísta depende, muitas vezes, da utilização de jargões abstrusos e compreensíveis apenas para os “iniciados”. O filósofo

As obras de Llosa usam terminologias de textos jornalísticos ou de conversas entre pessoas intelectualmente curiosas, longe da linguagem cifrada dos especialistas


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BRUNO ALENCASTRO

Para Vargas Llosa, os escritores devem sempre transcender as próprias ideologias que por ventura defendam

André Comte-Sponville ironiza essa tendência afirmando que “águas rasas só podem parecer profundas se forem turvas”. Os textos de Llosa, por mais profundos, sutis ou mesmo difíceis que possam ser, nunca usam uma terminologia diferente, por exemplo, da de um texto jornalístico ou de uma conversação natural entre pessoas intelectualmente curiosas (longe da linguagem cifrada dos especialistas). Não obstante, fica claro para o leitor que as ideias do escritor não são, e nem têm a intenção de ser, populares ou facilmente assimiláveis. Ele assume, assim, o autêntico papel do intelectual, que deve ser sempre o de duvidar do senso comum, das verdades inabaláveis e dos dogmas estabelecidos. Sua verve de polemista resulta de sua convicção e de sua independência. Trata-se, portanto, de um crítico autônomo em relação aos modismos teóricos; e autodeterminado no que se refere ao próprio percurso intelectual. A subversão de regras e métodos é uma característica comum aos críticos genuínos, que se aproveitam de ferramentas teóricas de maneira própria, em busca de uma forma de investigação peculiar e de acordo com as suas “verdades íntimas”. Para Vargas Llosa, os escritores devem sempre transcender as próprias ideologias que por ventura defendam. A ficção literária aceita de antemão sua natureza ilusória e limitada; as ideologias, por outro lado, tentam se impor como a versão final da História: o caminho necessário da humanidade. Ideologia e ficção assumem, no pensamento do crítico peruano, posições diametralmente opostas. O autor de O sonho do celta sugere ainda que o mais eficaz antídoto que a civilização criou contra todos os dogmas e convicções fechadas foi a literatura. A literatura, dessa forma, é entendida como um instrumento crítico em si mesmo, pois nos mostra a realidade de forma complexa, e vai muito além do que o maniqueísmo

dos discursos políticos de uma determinada época e lugar deixa entrever. Por outro lado, não se pode confundir sua crítica às ideologias com uma negação dos discursos de valor. De uma forma ou de outra, a questão do valor (moral ou estético) esteve presente em todos os capítulos da obra do autor. É impossível fugir dessa questão, sobretudo ao se falar de Llosa como crítico. Seus valores humanista-liberais estão presentes em cada ensaio ou artigo, ainda que estes tratem de temas não políticos. Certas correntes de crítica literária de inspiração marxista faziam crer que o socialismo, quando implantado, suplantaria o discurso moral, após o fim dos conflitos sociais, numa clara afirmação de que tais conflitos eram a única questão moral a ser discutida. Após a queda do muro de Berlim, muitos autores e críticos que não conseguiram escapar dessa concepção ficaram presos a utopias ultrapassadas ou simplesmente aderiram à onda niilista tão característica da pós-modernidade. Em sua trajetória intelectual tão peculiar, Llosa, mesmo após renegar os valores socialistas, manteve a crença em certos valores universais e na possibilidade de conhecimento objetivo. Tal posicionamento o colocou literalmente “contra a corrente” – ou contra vento e maré, como diz o título de uma de suas obras autobiográficas. A visão libertária de mundo de Vargas Llosa perpassa todo seu universo intelectual e é o fulcro do seu pensamento e de sua arte. Voltando-se à realidade ou à fantasia, ele está permanentemente construindo narrativas sobre o significado e o valor de ser livre – e do mal de não o ser. Eduardo Cesar Maia Ferreira Filho Doutor em Teoria da Literatura pela UFPE, Master em Filosofia pela Universidade de Salamanca (Espanha), professor da UFPE e editor da revista Café Colombo

"O autor de O sonho do celta sugere ainda que o mais eficaz antídoto que a civilização criou contra todos os dogmas e convicções fechadas foi a literatura. A literatura, dessa forma, é entendida como um instrumento crítico em si mesmo, pois nos mostra a realidade de forma complexa, e vai muito além do que o maniqueísmo dos discursos políticos de uma determinada época e lugar deixa entrever."

MARIO VARGAS LLOSA (1936), Prêmio Nobel de Literatura, é jornalista, dramaturgo, ensaísta e crítico literário peruano e reconhecido como um dos mais importantes escritores da atualidade. Travessuras da menina má, lançado em 2006, é seu livro mais conhecido. Com tons autobiográficos, conta a história de uma paixão arrebatadora e traça um panorama das transformações sociais e políticas ocorridas na Europa e na América Latina ao longo de 40 anos. Desde 1990, é colunista do jornal El País, textos estes traduzidos e publicados em diversos veículos de comunicação pelo mundo. O escritor já recebeu o Prêmio Nacional de Cultura do Peru, em 1967, o Prêmio Príncipe de Astúrias, em 1986, e o Prêmio Miguel de Cervantes, em 1994, entre outras importantes condecorações. Crítico dos regimes ditatoriais e do populismo demagógico, é defensor da democracia e da liberdade, e um exímio observador da história latinoamericana recente.


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IGUALDADE

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Equalizar as diferenças

para o bem comum

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m termos etimológicos, a origem da palavra igualdade se inicia no latim aequalitas, “aquilo que é igual” ou “semelhante”. Nesse sentido, igualdade representa a ausência de diferenciação entre duas coisas que possuem particularidades, mantendo a mesma valoração social e simbólica ancorada na ausência de hierarquias entre os indivíduos em sociedade. Ou seja, a palavra igualdade deve ser associada à uniformização (jurídica, política, social e cultural) sem a descaracterização das particularidades culturais, políticas e sociais dos indivíduos dentro de uma equalização das diferenças, visando o bem comum. Nas sociedades modernas, como é o caso da América Latina, é preciso pensar sobre igualdade como analisou o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos: “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”. Desde os primórdios da colonização no século 16, a construção social, política e cultural das sociedades latino-americanas se desenvolveu de maneira perversa, em que as bases da modernização eurocêntrica focadas no etnocentrismo (na ideia de “raças humanas superiores”) dos colonizadores foram responsáveis pelo deslocamento, entre 1502 até 1866 (diáspora africana), de 11,2 milhões de africanos para o continente latino-americano, escravizados, como demonstra o livro Os negros na América Latina, do historiador Henry Louis Gates Jr. Para a Comissão Econômica das Nações Unidas (Cepal), os afrodescendentes podem chegar até cerca de 30% da população da América Latina e do Caribe, sendo as mulheres negras o grupo mais vulnerável, de menor expectativa de vida, com níveis mais baixos de educação formal e acesso mais limitado aos serviços públicos, em relação à restante população latino-americana. A inquietante permanência das desigualdades obscurece os princípios da igualdade e tem um alto custo político, social e cultural para o continente, aumentando as chances do ressurgimento de velhos conflitos sociopolíticos oriundos da segregação étnico-racial, à qual parte significativa das populações latino-americanas foi submetida, ao longo dos últimos séculos. Recuperando as contribuições de Ga-

“A inquietante permanência das desigualdades obscurece os princípios da igualdade e tem um alto custo político, social e cultural para o continente, aumentando as chances do ressurgimento de velhos conflitos sociopolíticos oriundos da segregação étnico-racial.” BRUNO ALENCASTRO

tes, há relatos preciosos de diálogos que o autor estabeleceu com acadêmicos, personalidades e cidadãos comuns, tendo como princípio suas observações sobre a questão racial em cada país, sempre procurando comparações com os EUA. Gates visitou, por um período de seis meses, Brasil, México, Peru, República Dominicana, Haiti e Cuba. No Brasil, país que recebeu da África cerca de 4,8 milhões de seres humanos, Gates teve contato com as teorias de “democracia racial” desenvolvidas por Gilberto Freyre. O autor é um dos primeiros a transformar a negatividade da

questão da miscigenação em positividade na construção da sociedade brasileira, mas seu mito das três raças, ainda hoje, encobre os conflitos raciais como possibilidade a todos de se reconhecerem como nacionais. Por outro lado, apesar de Gates ter vivenciado novas representações sociais sobre o processo de miscigenação, relata que ficou desapontado com as desigualdades na ausência de negros nos espaços mais elitizados da sociedade brasileira. Em pleno século 21, pouco se alterou o estatuto socioeconômico dos negros e mestiços que continuam confinados nos

níveis mais baixos da escala social. O pesquisador também não imaginava que a influência africana na música, na dança, nas festas, na culinária, na religiosidade fosse tão grande e consistente. Ou seja, do ponto de vista discursivo, há um orgulho de sermos uma “democracia racial”, mas, na prática, mantemos, três séculos depois, nas relações sociais o legado do período escravocrata. Elizardo Scarpati Costa Pós-Doutorado em Sociologia pela Unisinos e Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra

HENRY LOUIS GATES JR. (1950), historiador e crítico literário norte-americano, é um dos mais respeitados especialistas contemporâneos em culturas africanas e afro-americanas. Desde 1991, é professor na Universidade de Harvard, onde dirige o Centro Hutchins para Pesquisa Africana e Afro-americana. Autor de mais de uma dezena de livros, entre eles Os negros na América Latina, também investe no gênero documentário como forma de disseminação de conhecimento. É o criador de 14 produções audiovisuais, incluindo The african americans: Many rivers to cross, de 2013, vencedor do Emmy de Notícias e Documentários. Também atua como apresentador do Public Broadcasting Service e publica artigos em veículos como The New Yorker, The New York Times e Time.


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REDE BRUNO ALENCASTRO

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A essência da

internet N

O conhecimento presente no mundo pode ser interligado em sistemas hipermidiáticos

o começo da década de 1990, todos nós, da primeira geração de internautas, estávamos ávidos para tentar discutir e entender o que estava acontecendo no contexto deste novo meio de comunicação. As indagações do tipo: “Qual será o impacto em jornais, rádios e TV?”, “Qual a abrangência deste ambiente de diálogo de todos para todos?” e, até mesmo, “Será que a internet é realmente um meio de comunicação ou um ambiente informacional com novas características?”. Vários autores já tinham esboçado conceitos de interatividade e relações em espaços cibernéticos, mas Pierre Lévy parecia também vislumbrar uma urgência em investigar a internet e seus desdobramentos. A obra de Lévy foi densa na última década do século passado e serviu de referência para as discussões sobre o meio e a cultura que se formava em torno dele, denominada então de cibercultura. Em A máquina Universo – Criação, cognição e cultura informática, de 1987, Lévy inicia a sua trajetória para tentar entender como computadores começavam a provocar um novo diálogo cognitivo. E, em As árvores de conhecimento, ele traça uma tese sobre como o conhecimento pode ser interligado em sistemas hipermidiáticos. Este mapa do conhecimento se constituiu em um fundamento para sistemas como o da Wikipédia. O livro As tecnologias da inteligência foi possivelmente a obra pela qual Lévy se tornou mais conhecido no Brasil, não somente no meio acadêmico, mas também dentro das novas empresas que começavam a navegar na rede. Este livro realça três tópicos estruturais: o hipertexto, as linguagens do conhecimento e a coletividade em rede. Nestas ênfases ele desdobra conceitos e os

PIERRE LÉVY (1956), filósofo francês, é um reconhecido pesquisador das tecnologias da inteligência e investiga as interações entre informação e sociedade. Atualmente, é professor de Inteligência Coletiva na Universidade de Ottawa. Nas duas últimas décadas, está trabalhando na criação de uma linguagem universal na rede através do Information Economy Meta-Language – IEML. Segundo o projeto, o mundo vive a quarta revolução e chegará a um sistema semântico de metadata universal situado na nuvem, construído colaborativamente e capaz de orientar o futuro da comunicação digital. Lévy é um dos mais importantes defensores do uso do computador, em especial da internet, para a ampliação e a democratização do conhecimento humano.

“A obra de Lévy foi densa na última década do século passado e serviu de referência para as discussões sobre o meio e a cultura que se formava em torno dele, denominada então de cibercultura.”

aplica no universo da internet. Este conjunto fez com que esta obra fosse uma das mais citadas nos pioneiros estudos sobre cibercultura no Brasil, ampliados posteriormente em Cibercultura e O que é virtual?, completando a trilogia essencial do autor. Lévy, como todo precursor, teve dificuldade de conseguir evidenciar a importância do que estava falando na época pré-histórica da internet. Os exemplos não eram fáceis de serem visualizados e, somente agora, com as redes sociais e a internet como um todo disseminadas, as peças de seu trabalho parecem se encaixar. O filósofo chamava a atenção para a potencialidade das interações coletivas e como isto teria impactos na sociedade. Ao mesmo tempo, dizia que o virtual era uma potência do real, e vice-versa, nos mostrando que a rede poderia expandir desde questões que sempre enobrecem o desenvolvimento humano como também propagar os nossos piores conflitos. Hoje ele poderia exemplificar tudo isso com a facilidade de mostrar somente os casos ao nosso redor. Mas, como pioneiro inquieto, tem preferido continuar buscando algo que ainda é difícil de compreender: uma nova linguagem universal. Eduardo Campos Pellanda Pós-doutor pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Pesquisador e coordenador do Ubilab da Famecos/PUCRS


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O que hรก na virada

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deste mar?


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A

pesar de a fotografia ser o resultado de um estar presente, ela nunca é o que é, mas o efeito de uma escolha. Aquilo que você deixar ela ser. Esta forma de entender é o que permite, nesta revista, usar o mar registrado por Eneida Serrano para representar uma grande virada. Ou, como pretexto, nas palavras da própria fotógrafa, para refletir sobre um dos mais caros e flutuantes valores da existência humana contemporânea: o tempo. “A fotografia pode documentar uma viagem e ser ponto de partida para muitas outras, verdadeiras ou imaginárias. Ela tem seu fascínio justamente nessa ambiguidade”, anotou Eneida, em 1996, muito antes destes cliques da praia de Atlântida. Mas também por isso é que tais registros integram um trabalho sempre in process. “Como viajar na direção do oeste. Atrasa-se o relógio, recupera-se o tempo”, disse a fotógrafa em outro de seus trabalhos. Tal qual a vida, toda obra de um fotógrafo parece convergir para um enxergar, cortar, selecionar para, daí, olhar. Pois o olhar é sempre busca e interferência, como revela a passagem de O livro dos abraços, de Eduardo Galeano, na qual um pai leva seu filho para conhecer o mar. Chegando lá, a imensidão é tanta, a beleza emudece... Até que o menino pede, estupefato: “Me ajuda a olhar”. O trecho é um dos escolhidos por Eneida para traduzir a experiência impressa nestas páginas. Exemplo de artefato que a cultura humana inventa para poder pensar a respeito de si, a fotografia convida a avaliar nossa relação com tempos futuros, presentes e pretéritos (im) (mais que)perfeitos. Impossível não pôr em tensão a memória, o tempo e o senso de realidade quando se fotografa. É tortuosa a contemplação... o silêncio... a paciência do pescador que fita o mar, nos quais Eneida se inspirou para mergulhar no necessário exercício de uma dúvida de si – paradoxalmente, no mesmo ambiente pleno de timelines, repletas de profusão, pressa e imagens que impelem o tempo a rolar com a rapidez de um passar de dedos. Conectar e dormir, tolerar e julgar, esconder e mostrar, crer e duvidar, em uma mesma onda, podem nos estar afogando... No entanto, é deste mesmo ambiente que viemos: foi a água nossa primeira realidade, ao menos, por nove meses de imersão pacífica. Nada de novo no front, a não ser, o lugar de onde se olha. A escolha do ângulo. Está aí o segredo para perceber a possibilidade de uma virada, só factível com o livre exercício do pensar que vem e vai. Basta um momento. Cybeli Moraes Doutora em Comunicação e professora da Unisinos Eneida Serrano é jornalista e fotógrafa, com passagem por redações como Veja, IstoÉ e Zero Hora. Atualmente, desenvolve projetos autorais presentes em mais de 40 exposições. Dedicouse à pesquisa da história da fotografia gaúcha, divulgando as obras de Lunara e Sioma Breitman em livro e filme. Algumas das imagens da série Mar e Tempo foram finalistas no Prêmio Porto Seguro de Fotografia, em 2009.

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MORAL

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O equilíbrio perfeito entre impulsos mesquinhos e outros nem tanto não só cria personagens profundos como reflete um cenário caótico

Recriando o complexo

mundo moderno N a primeira cena de Sábado, romance publicado em 2005, o neurocirurgião Henry Perowne observa Londres através da janela do quarto. Se antes Perowne acredita atravessar uma sucessão de dias “desconcertantes e assustadores”, naquele momento, insone, examinando o entorno, a cidade semiadormecida lhe parece “um sucesso, uma invenção genial, uma obra-prima biológica – milhões de pessoas que formigam em torno das conquistas de séculos”. A despeito do que está por vir, o personagem sente uma pontada de otimismo em relação às conquistas humanas. Esta pequena cena fornece um bom panorama da segunda fase da obra de Ian McEwan. A primeira, marcada por ro-

mances perturbadores na linha de O jardim de cimento, valeu ao autor a conhecida alcunha de “Ian Macabro”. De alguns anos para cá – ainda mais frio e analítico, mas menos afeito ao lúgubre e menos inclinado ao pessimismo –, McEwan tem se dedicado a recriar o mundo moderno em toda a sua complexidade. Se é fácil ver aí um projeto ambicioso, também é fácil constatar que o autor, mesmo ainda em atividade, foi bem-sucedido em sua execução. Isso se deve, em parte, ao fato de que McEwan desenvolve seus personagens e temas de forma meticulosa, quase obsessiva. A reunião das qualidades que o definem – o domínio técnico, o rigor, a própria vontade de compor um quadro mais completo da atualidade – não é compartilhada por nenhum outro escritor vivo. Seguindo a trilha aberta pelo bom e

velho romance inglês, os livros de Ian McEwan embaralham os opostos e as distâncias, medindo bem as nuances e as escalas. Em outras palavras, seus enredos procuram conciliar o externo e o interno. O todo e o detalhe. O maior e o menor. O esforço de elaborar elementos tão diversos invariavelmente resulta em dilemas éticos e morais difíceis de resolver. Basta lembrar de A balada de Adam Henry, último livro do escritor publicado no Brasil, no qual uma juíza precisa determinar se um adolescente com leucemia receberá ou não uma transfusão de sangue que ele veementemente rejeita. A religião do garoto, o Adam Henry do título, o impede de admitir uma doação do tipo. Sem o procedimento, no entanto, ele pode morrer. Como Adam é menor de idade, a decisão cabe ao tribunal. McEwan já deixou clara a vontade

de sondar questões políticas e culturais – passadas e atuais – que ultrapassam as fronteiras de seu próprio país. Em Solar, trata do aquecimento global; em Serena, tangencia a época da Guerra Fria; no já mencionado Sábado, analisa o terrorismo. Já no estupendo Reparação, um punhado de períodos e circunstâncias importantes são escrutinados. Mesmo em narrativas cujo foco recai exclusivamente sobre os personagens, como na novela Na praia, a realidade dos anos de repressão sexual está subentendida – não como algo incidental, mas como ruído de fundo bem assinalado por um autor experiente. Os conflitos entre os personagens, sempre presentes, não raro misturam interesses particulares e coletivos. Amsterdam, livro que rendeu ao autor o prestigioso Prêmio Man Booker, é um bom exemplo do artifício. Dois


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“Seguindo a trilha aberta pelo bom e velho romance inglês, os livros de Ian McEwan embaralham os opostos e as distâncias, medindo bem as nuances e as escalas. Em outras palavras, seus enredos procuram conciliar o externo e o interno. O todo e o detalhe. O maior e o menor.”

amigos de longa data, um jornalista e um compositor, brigam por ciúme e vaidade, mas também para garantir alguma glória e dignidade. O equilíbrio perfeito entre impulsos mesquinhos e outros nem tanto não só cria personagens complexos como reflete um cenário caótico e igualmente prenhe de potencialidades e nuances. Como um bom regente – as referências musicais, sobretudo à música erudita, são frequentes ao longo de toda a obra do autor –, McEwan sabe conciliar e modular o tom, o tempo, o ritmo. Seus romances são cerebrais sem deixar de ser viscerais. Mesmo A balada de Adam Henry, visto por alguns críticos como um retrato daquilo que seria uma oposição (descabida) entre o pensamento lógico e o religioso, é muito mais do que isso. Com notável sutileza, McEwan mostra que não é possível assimilar e defender um sistema de crenças sem fazer uso da razão. Os dilemas propostos pelo autor não cessam de desafiar os leitores, que não raro têm de assumir uma posição ou outra diante da engenhosidade das tramas. Não restam dúvidas de que o olhar afiado de McEwan — como Henry Perowne à janela, capaz de enxergar luz e sombra – continua a ver o que poucos veem. Segui-lo é um movimento essencial para começar a entender o nosso tempo. Camila von Holdefer Crítica literária e editora do site livrosabertos.com.br

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IAN MCEWAN (1948), escritor britânico, é um dos mais importantes ficcionistas de sua geração. Em 1998, ganhou o Prêmio Man Booker pelo romance Amsterdam. Seu livro mais conhecido, Reparação, alcançou grande sucesso mundial e foi escolhido como o melhor romance de 2002 pela revista Time, indicado ao Prêmio Booker de Ficção e ao Prêmio Whitbread e vencedor do Prêmio Literário W. H. Smith. Adaptado para o cinema em 2007, teve sete indicações ao Oscar, dentre elas a de melhor filme. Em 2007, lançou Na praia, romance indicado ao Prêmio Man Booker de ficção e vencedor do British Book como livro e autor do ano. A balada de Adam Henry, livro mais recente publicado no Brasil, publicado pela Companhia das Letras.

Compre seu pacote de ingressos até o dia 30 de abril e garanta um convite extra para a conferência especial de 10 anos do Fronteiras do Pensamento com Ian McEwan no Araújo Vianna.

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O autor inglês desenvolve seus personagens e temas de forma meticulosa, quase obsessiva


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CONFLITO CONFLITO

À sombra da

civilização A

mais macabra efeméride literária deu-se a 7 de janeiro de 2015, quando Michel Houellebecq lançou seu romance Submissão. Naquele dia, uma charge sua estampava a capa da revista Charlie Hebdo, em que ele dizia: “Em 2015 eu perco meus dentes, em 2022 eu faço Ramadã”. Às 11 horas e 30 minutos da manhã daquele dia fatídico, enquanto o autor ainda concedia

entrevistas, ocorreu o atentado à revista e as perseguições, que deixaram 11 vítimas fatais. Tinha início a mais recente temporada de ataques terroristas contra Paris: em 23 de novembro do mesmo ano, mais 130 vítimas. Se alguém nasceu para ser polemista, impossível cenário com maior carga dramática. Mas não é por isso que alguém encontrará Houellebecq, em livros ou no Fronteiras do Pensamento, e sim para

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Em Submissão, a ficção política é projetada para 2022, quando um candidato da União da Fraternidade Muçulmana vence a eleição presidencial francesa

pensar junto com um autor de expressão inteligente, elegante e cínica, com olhos para o cotidiano de mesquinharias que marca a intimidade do homem urbano. A prosa cética de Houellebecq desmonta o lustro de sofisticação de narcisismos cevados no imaginário da alta cultura europeia e fustiga, com especial perícia, o pequeno-burguês, alvo histórico da literatura francesa, desde Molière e seu Burguês fidalgo, escrito em 1670. Não à toa,

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“A prosa cética de Houellebecq desmonta o lustro de sofisticação de narcisismos cevados no imaginário da alta cultura europeia e fustiga, com especial perícia, o pequeno-burguês, alvo histórico da literatura francesa.” Houellebecq é um dos autores franceses mais lidos e traduzidos da atualidade, merecedor do prêmio Goncourt de 2010, por seu O mapa e o território, onde a trama segue a vida de um artista, Jed Martin, e


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disseca o mercado de arte e a alta sociedade francesa. Outros quatro livros completam sua estante: Extensão do domínio da luta, Partículas elementares, Plataforma e A possibilidade de uma ilha. Em Submissão, Houellebecq expõe em primeira pessoa o pensamento e a saga de um professor da Universidade Paris III, especializado na obra do romancista francês J. K. Huysmans (1848-1907), desencantado com sua condição decadente e solitária. O coração do livro, todavia, é a ficção política projetada para 2022, quando um candidato da União da Fraternidade Muçulmana, apoiado pela esquerda e pela direita, vence a eleição presidencial francesa e inicia um programa maometano de reformas, transformando a pátria do laicismo contemporâneo em uma teocracia islâmica. Isso significa poligamia, sujeição feminina, banimento dos professores ateus em prol dos fiéis e a expansão da França para o Mediterrâneo, integrando-a aos regimes islâmicos do norte africano e dando a esta a liderança de um novo império europeu. Ironia das ironias, este destino reverte o feito épico de que há séculos se ufanam os franceses: a vitória de Carlos Martel na batalha de Poitiers, em 10 de outubro de 732, que barrou o avanço

omíada na Europa medieval e manteve o islã confinado na península ibérica. Voltando àquele dia de janeiro, em que à sombra desse livro perturbador o periódico iconoclasta banhou-se em sangue, evidenciaram-se a gravidade do conflito e, uma vez mais, o drama vivido na França e no mundo. Separados por um oceano e muitas distâncias históricas, cá não sentimos tão intensamente o peso deste conflito entre islã e o Ocidente cristão (incluindo-se ateus e judeus), mas sabemos que é um dos principais problemas da era atual, juntamente com a degradação ambiental e os exageros do capitalismo globalizado. A angústia histórica (“onde vamos parar?”) ora não necessita de Sófocles, Shakespeare ou Sartre para ocupar a cena cotidiana e pautar nossa reflexão. Melhor, então, que o façamos com a inteligência de bons autores, como Houellebecq, e melhor ainda se o drama passar-se apenas em uma ficção especulativa, preocupante mas bela, como concerto de ideias e paradoxos da civilização atual. Francisco Marshall, Historiador e arqueólogo, professor do Departamento de História da UFRGS

Reprodução da capa da revista Charlie Hebdo, com uma charge de Houellebecq, publicada no dia do atentado à redação

MICHEL HOUELLEBECQ (1958), escritor francês, tem livros traduzidos em vários idiomas e produz uma ficção controversa e provocadora. Em 1998, ganhou fama mundial ao lançar Partículas elementares, obra que fala da questão da humanidade em uma narrativa singular e genial, e se transformou num clássico do niilismo. Em 7 de janeiro de 2015, quando ocorreu o atentado contra os jornalistas da publicação Charlie Hebdo, o escritor era a capa da edição do dia. Assustado e apreensivo, Houellebecq interrompeu na época a divulgação do seu mais recente romance, Submissão, e se confinou no interior da França. Inicialmente apontado como islamofóbico e inverossímil, o livro é o mais incendiário dos seus trabalhos e toca na sensível questão da integração dos jovens muçulmanos à sociedade francesa.

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SUBJETIVIDADE

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Ada essência experiência humana

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o ano de 1929, em O mal-estar na cultura, Freud adverte: “Os homens de hoje levaram tão longe o domínio das forças da natureza que, com a ajuda delas, tornou-se-lhes fácil exterminar uns aos outros, até o último. (...) É isso que explica boa parte de sua atual agitação, de sua infelicidade e de sua angústia”. Elisabeth Roudinesco, ao longo de sua obra, vem nos proporcionando um olhar crítico para a subjetividade contemporânea e os desafios decorrentes dessa realidade lançados aos pensadores do sofrimento psíquico. Mais pontualmente, no livro Por que a Psicanálise?, ela aponta que, ao longo de 20 anos, o culto de si e o cuidado terapêutico se tornaram os grandes modelos de uma organização da sociedade ocidental que os sociólogos e psicanalistas caracterizaram como narcísica. Passamos a falar de uma “cultura do narcisismo” ou da necessidade moderna da “estima de si”, como de uma injunção ao mesmo tempo negativa e positiva. Mais adiante, pensou-se que, graças à psicanálise, o homem não seria mais condenado ao inferno de suas paixões e poderia curar-se. Em uma palavra, sonhou-se que a psicanálise cumpriria enfim, pelo conjunto da sociedade, o desejo de Narciso de ser liberado do desejo.

“Somente a psicanálise foi capaz, desde suas origens, de realizar a síntese dos quatro grandes modelos de psiquiatria dinâmica que são necessários a uma apreensão da loucura e da doença psíquica.” Mas, ao final dos anos de 1970, ocorre um declínio da psicanálise nos Estados Unidos. Apesar de sua potência institucional, de sua expansão em todos os setores da psiquiatria e da evolução clínica da terceira geração de psicanalistas, a psicanálise foi atacada com a mesma força com que foi adulada em outros tempos. Os participantes do antifreudismo dos anos de 1980 a 2000 utilizaram argumentos empíricos idênticos aos ar-

gumentos já utilizados para criticar os pioneiros do freudismo: recusar a cura freudiana alegando ineficácia terapêutica, propondo, em oposição, as terapias biológicas, farmacológicas ou cognitivas fundadas numa concepção experimental do homem e reduzindo o psiquismo a neurônios e à subjetividade aos comportamentos instintivos. Inscrita no movimento de uma globalização econômica que transforma os homens em objetos, a sociedade então depressiva não queria mais ouvir falar de culpa, sentido íntimo, consciência, desejo e inconsciente. Mais encerrada na lógica narcísica, mais longe da ideia de subjetividade, interessada pelo indivíduo, portanto, para contabilizar seus sucessos, e pelo sujeito sofredor para encará-lo como uma vítima – ao passo que se procura incessantemente codificar o déficit, medir a deficiência ou quantificar o trauma, é para nunca mais ter que se interrogar sobre a origem deles. Mas, assim como salienta Roudinesco, o homem doente da sociedade depressiva não é responsável por coisa alguma em sua vida, como também já não tem o direito de imaginar que sua morte possa ser um ato decorrente de sua consciência ou de seu inconsciente. Por isso, cabe salientar: somente a psicanálise foi capaz, desde suas origens, de realizar a síntese dos quatro grandes modelos da psiquiatria dinâmica que são

necessários a uma apreensão racional da loucura e da doença psíquica. Ela tomou emprestado da psiquiatria o modelo nosográfico, da psicoterapia o tratamento psíquico, da filosofia uma teoria do sujeito, e da antropologia uma concepção de cultura fundamentada na ideia de universalidade do gênero humano que respeita as diferenças. A psicanálise, portanto, não se alinha à ideia, hoje dominante, de uma redução da organização psíquica a comportamentos. Se o termo “sujeito” tem algum sentido, a subjetividade não é mensurável nem quantificável: ela é a prova, ao mesmo tempo visível e invisível, consciente e inconsciente, pela qual se afirma a essência da experiência humana. Ana Maria Gageiro Doutora pela Universidade de Paris VII e professora do Programa de Pósgraduação em Psicanálise da UFRGS

BRUNO ALENCASTRO

Se o termo "sujeito" tem algum sentido, a subjetividade não é mensurável nem quantificável

ELISABETH ROUDINESCO (1944), historiadora e psicanalista francesa, é uma reconhecida intelectual com presença ativa em publicações científicas e na imprensa. É considerada uma das maiores especialistas em história da psicanálise e transformou a complexa doutrina freudiana em matéria-prima para best-sellers, como a História da Psicanálise na França. Em 1993, publicou a biografia de Jacques Lacan. E, em 2014, a biografia de Sigmund Freud – obra que será lançada no Brasil quando de sua presença no Fronteiras –, na qual defende que a percepção da obra do médico austríaco não pode ser isolada do contexto de sua época. Atualmente, é professora e pesquisadora da Universidade de Paris VII e, desde 1996, é colaboradora do jornal Le Monde.


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FILOSOFIA FILOSOFIA

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BRUNO ALENCASTRO

A obra de Sloterdijk consiste em uma narrativa da coevolução entre vida e forma

A fronteira entre artes, ciências, filosofia

e outros saberes

P

eter Sloterdijk nasceu na pequena cidade de Karlsruhe, em 1947, onde vive e é professor de filosofia e de teoria da mídia. Pelas minhas contas, até agora sua obra ultrapassa as 5 mil páginas. Além dessa impressionante produtividade, alguns comentadores ressaltam o valor excepcional de seu ensaísmo, considerando-o um dos principais escritores vivos da língua alemã. Nesse caso, transcenderia os limites estritos da teoria. Para outros, Sloterdijk seria um dos autores mais inovadores da filosofia contemporânea. Independente do aspecto em questão, o leitor deve ter ideia da dificuldade de sintetizar uma obra dessas dimensões, que se situa na fronteira entre artes, ciências, filosofia e saberes distintos, e se encontra ainda em plena expansão. Em linhas gerais, o pensamento de Sloterdijk atualiza duas grandes matrizes da filosofia: a fenomenologia e a ontologia. Como diversos autores, de Hegel a Husserl e de Husserl a Heidegger, Sloterdijk articula fenômeno e ser, manifestação e realidade, emergência e devir. Apoiando-se no método fenomenológico, sua obra consiste em uma enorme narrativa da coevolução entre vida e forma, entre sistema e meio. Se a vida é forma, não há como separar a substância dos seres de seus modos de atualização. Por isso, alguns eixos de seu pensamento são a morfologia, a teoria dos sistemas e a metabiologia. Todos os fenômenos vivos e não vivos, humanos ou meta-humanos, podem

ser compreendidos a partir de suas manifestações formais. O método descritivo e a suspensão [epoch] possibilitam esse acesso transversal às formas de vida e à vida das formas, para além do bem e do mal. Por outro lado, Sloterdijk pode ser inserido no chamado ontological turn, a virada ontológica ocorrida na filosofia e na antropologia nas últimas décadas. A novidade de seu pensamento nesse sentido consiste na criação de uma ontologia da díade, concepção esta que tenho chamado de ontologia relacional. Se é impossível separar sistema e meio, todos os seres orgânicos e inorgânicos coexistem, em ininterruptas e novas composições. A busca da simplicidade foi o sonho fracassado da metafísica. Apagam-se as fronteiras entre natureza e técnica, entre constituído e constituinte. Não existem seres isolados. Ser é sempre sem-com. Ser é sempre relação. Ser um é sempre ser-dois. O mundo é a constante emergência de novas composições, hibridismos, multiplicidades. Como diz Sloterdijk, não é a essência que precede a essência. A coexistência é que precede a existência. Nesse sentido, acredito que a obra de Sloterdijk possa ser compreendida a partir dessas duas categorias angulares: forma e relação. Essa relacionalidade radical funda um projeto estruturalmente interdisciplinar. Por meio dele, todos os fenômenos são fenômenos de intervalo, de emergência, ou seja, relacionais. O cinismo, a economia libidinal da ira no Ocidente, as construções do eu, a biotecnologia, as te-

“Não existem seres isolados. Ser é sempre semcom. Ser é sempre relação. Ser um é sempre ser-dois. O mundo é a constante emergência de novas composições, hibridismos, multiplicidades.” orias cinéticas, a psicopolítica, a constituição da psicanálise como saber, os conflitos entre religiões, a hominização, a paleontologia, o papel das tecnologias, as teologias contemporâneas, a secularização, a politologia, as teorias da informação, dos sistemas e dos meios, as relações entre vida e arte e a identidade entre real e imaginário. Acredito que todos esses temas que atravessam a obra de Sloterdijk possam ser compreendidos à luz da trilogia Esferas, seu opus magnum. Os fenômenos não são dados da consciência, representações ou jogos de linguagem. São processos reais, internos aos seres e às formas contingentes

PETER SLOTERDIJK (1947), filósofo alemão, é um dos mais conhecidos e lidos filósofos na contemporaneidade, considerado um dos renovadores da filosofia atual. Seu livro Crítica da razão cínica, lançado em 1983, com mais de mil páginas, se tornou o maior best-seller alemão de filosofia desde a II Guerra Mundial. Sua mais recente publicação é Was geschah im 20. Jahrhundert?, livro de ensaios sobre a globalização que aborda também as questões da migração e da crise dos refugiados. Atualmente, é reitor da Escola Superior de Design, em Karlsruhe. Entre os docentes da instituição, encontram-se não apenas designers e artistas de novas mídias, mas também filósofos e sociólogos.

que esses seres assumem no espaço e no tempo. As relações de vinculação, de proximidade, de distância, de domesticação, de imunidade e de animação configuram uma ampla teoria dos meios. Essa teoria assume diversos aspectos, mas pode ser compreendida como o conjunto das formas emergentes das multiplicidades das relações. Por meio delas, ao longo de bilhões de anos, a vida veio a ser o que é. Por meio delas, o sapiens traz em si a potência de ultrapassar suas determinações e caminhar em direção a um futuro vazio. Rodrigo Petronio Escritor e filósofo, professor da FAAP. Mestre em Ciência da Religião (PUCSP), mestre em Literatura Comparada (UERJ) e doutor na interface entre Literatura Comparada e Filosofia (UERJ)


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CIDADE

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Ideias para transformar o

espaço urbano A

tualmente, há muitos arquitetos famosos entre o público leigo; em geral, suas produções não têm qualidade compatível com suas famas, nem suas obras são relevantes para a sociedade como um todo. Jan Gehl é uma exceção: é bem conhecido entre os arquitetos, sem gozar da fama que os arquitetos-estrela possuem, e começa a ser conhecido por quem se interessa pelo futuro das nossas cidades. Esse reconhecimento não está baseado em charme pessoal ou estratégias de marketing, mas na capacidade das suas ideias de transformar para melhor a vida de muita gente por meio da qualificação dos espaços urbanos em que vivem. O trabalho de Jan Gehl e sua equipe está centrado sobre três temas. O primeiro é o da importância transcendental do que acontece ao nível da rua para a qualidade de vida nas cidades. Gehl crê que nos últimos 50 anos a dimensão humana foi seriamente negligenciada pelo planejamento urbano, o que é evidenciado pela falta de estudos e de visão dos urbanistas em relação ao que acontece ao nível da rua. Os estudos feitos por ele comprovam que, quanto mais atividade acontecer no nível térreo, mais segura e saudável será a cidade. Quanto mais gente estiver na rua, melhor. O sucesso das cidades depende de como os edifícios se relacionam com o solo, como se conectam entre si e como os espaços públicos ao seu redor se organizam. A vida que ocorre entre os edifícios é mais importante do que os próprios edifícios. É uma pena que a maioria dos arquitetos estejam mais interessados na forma dos edifícios do que nas atividades que eles propiciam ou impedem. Trazer as pessoas para a rua e mantê-las aí depende da criação de uma série de condições fundamentais para isso. No livro Cidades para pessoas, Gehl sugere 12 critérios para avaliar a qualidade de uma cidade quando considerada ao nível da rua. O segundo tema central é que a cidade compacta, densa e complexa é melhor e mais sustentável do que a sua versão espraiada. Em oposição à segregação de funções, cada bairro deve oferecer acesso a moradia, saúde, comércio, escola e trabalho, tendo como base a moradia e o transporte coletivo de qualidade. Misturar as atividades e reunir as pessoas é essencial para a vitalidade das cidades. O terceiro tema importante é o da mobilidade. Gehl considera muito im-

“Gehl crê que nos últimos 50 anos a dimensão humana foi seriamente negligenciada pelo planejamento urbano, o que é evidenciado pela falta de estudos e de visão dos urbanistas em relação ao que acontece ao nível da rua.” portante tomar medidas para reduzir o uso de carros particulares. A solução para o congestionamento não é simplesmente melhorar o transporte público, mas criar mais opções para o deslocamento das pessoas: a pé, de bicicleta, táxi, ônibus, trem, teleférico etc. Grande parte do trabalho da Gehl Architects é focado no uso da bicicleta, que

eles veem como um meio de transporte que vai se tornar cada vez mais comum. Uma cidade que incentiva as pessoas a caminhar e pedalar – criando condições para isso – é uma cidade mais saudável: além de aumentar a saúde individual de cada ciclista, diminui a poluição, o consumo de combustível não renovável e os gastos com saúde pública. Ler os livros de Jan Gehl nos enche de esperança de poder criar e viver em cidades melhores. No entanto, essa esperança logo se esvai quando nos damos conta de que no Brasil nos faltam duas condições essenciais. Uma é a segurança, coisa inexistente até nas cidades menores. Como aproveitar a vida na rua e nos parques se estamos sujeitos a ser assaltados a qualquer momento? Melhorias urbanísticas ajudam, mas não resolvem o problema. A outra condição é a omissão das autoridades, que muito raramente assume um papel propositivo quando se trata de urbanismo, preferindo agir como bombeiros em situações que normalmente são irreversíveis. De qualquer modo, Jan Gehl nos oferece os instrumentos para qualificar nossas cidades. Mais não pode fazer. O resto é conosco. Edson da Cunha Mahfuz Doutor em Arquitetura pela Universidade da Pensilvânia (UPenn) e professor titular de projetos na UFRGS

JAN GEHL (1936), arquiteto e urbanista dinamarquês, é reconhecido por projetos que melhoram a qualidade de vida urbana. Em 1971, publicou o livro Life between buildings, em que estuda o comportamento das pessoas nos espaços públicos e utiliza a Strøget, a primeira rua de pedestres de Copenhague, como um laboratório. Cidades para pessoas, lançado em 2010, aborda questões fundamentais como mobilidade, sustentabilidade e segurança. Em 2000, fundou o Gehl Architects, empresa que realiza consultorias para humanizar os espaços públicos, com trânsito compartilhado, ciclovias e revitalização dos centros, tendo executado projetos para cidades como São Francisco, Sidney, Nova York e São Paulo. BRUNO ALENCASTRO

Na cidade, a vida que ocorre entre os edifícios é mais importante do que os próprios edifícios


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LIVROS LIVROS

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por Tito Montenegro - Jornalista e editor da Arquipélago Editorial

Conversas com Vargas Llosa

Sem fins lucrativos Martha Nussbaum WMF Martins Fontes (2015) 176 páginas

Ricardo Setti Panda Books (2011) 232 páginas O livro reúne uma série de entrevistas realizadas pelo jornalista Ricardo Setti com o escritor peruano Mario Vargas Llosa ao longo de 25 anos, antes e depois do Prêmio Nobel de Literatura. Em diferentes contextos e oportunidades – a primeira entrevista, por exemplo, foi para a revista Playboy, em 1985 –, Llosa fala livremente sobre sua vida pessoal, a relação com seu país natal, suas convicções ideológicas, os escritores que admira e com quem conviveu e a criação de seus inesquecíveis personagens. Na conversa de 2010, depois do Nobel, o escritor conta sobre o assédio que se seguiu ao prêmio, analisa o momento da política latino-americana e revela suas experiências como ator. O resultado é uma obra que ajuda a entender a trajetória do homem que se tornou um dos grandes intelectuais do nosso tempo.

A filósofa norte-americana Martha Nussbaum, professora da Universidade de Chicago, é reconhecida por estudar temas que vão de Aristóteles à teoria da justiça, sem se descuidar, no entanto, de debates contemporâneos – como demonstra seu mais novo livro lançado no Brasil. Sem fins lucrativos defende uma reavaliação do sistema de ensino ocidental, que teria se distanciado das artes e das humanidades em favor de disciplinas diretamente relacionadas à produtividade e ao lucro. Nas palavras dela: “Os países – e seus sistemas de educação – estão descartando, de forma imprudente, competências indispensáveis para manter viva a democracia. Se essa tendência prosseguir, todos os países logo estarão produzindo gerações de máquinas lucrativas, em vez de produzir cidadãos íntegros que possam pensar por si próprios, criticar a tradição e entender o significado dos sofrimentos e das realizações dos outros”.

Por que ler os contemporâneos? Léa Masina, Daniela Langer, Rafael Bán Jacobsen e Rodrigo Rosp (organizadores) Dublinense (2014) 224 páginas O Fronteiras do Pensamento já trouxe a Porto Alegre muitos dos maiores escritores da atualidade – tradição que continua na programação de 2016, com Mario Vargas Llosa, Ian McEwan e Michel Houellebecq. Os dois últimos estão entre os nomes relacionados na coletânea de artigos Por que ler os contemporâneos?, que apresenta 101 escritores do nosso tempo em resenhas que apontam os traços mais significativos de suas obras. No texto sobre Houellebecq, por exemplo, Juremir Machado da Silva explica por que ele se tornou “o mais polêmico e bem-sucedido escritor francês dos últimos 20 anos”. Sobre McEwan, Rodrigo Rosp diz que o britânico é “dono de uma prosa elegante, capaz de grandes mergulhos nos labirintos internos dos personagens e de dissecar os pequenos absurdos do cotidiano”. Na seleção, há vários escritores que já estiveram no Fronteiras – Mia Couto e Orhan Pamuk, por exemplo – e outros que, certamente, ainda virão.

Pensar a Justiça Mais recente livro da Série Fronteiras do Pensamento Objeto de estudo dos pensadores gregos aos juristas da atualidade, o conceito do que é justo ainda hoje desafia os intelectuais das mais diversas formações, como demonstrou o professor norte-americano Michael Sandel em sua conferência no Fronteiras do Pensamento em 2014. Em um mundo em rápida transformação como o nosso, entender os significados da justiça – e as diferentes formas de aplicá-la – pode nos ajudar a lidar com

os nossos dilemas éticos individuais e coletivos, das decisões cotidianas às grandes causas dos direitos humanos. É disso que trata o recém-lançado Pensar a Justiça, novo livro da Série Fronteiras do Pensamento. Organizado pelo jornalista Jaime Spitzcovsky, o volume reúne conferências de nomes como o filósofo britânico John Gray, o médico congolês Denis Mukwege e três vencedores do Prêmio Nobel da Paz: o diplomata egípcio Mohamed ElBaradei,

o jurista timorense José Ramos-Horta e a ativista iraniana Shirin Ebadi. O livro ainda apresenta conferências de dois intelectuais brasileiros – o cientista político Roberto Romano e o psicanalista Jurandir Freire Costa –, um artigo de Eduardo Wolf sobre a obra de Michael Sandel, uma entrevista de Joana Bosak com o teórico ganês Kwame Anthony Appiah e um ensaio visual do gravurista Rubem Grilo.



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