Em Prosa e Poesia

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em prosa e poesia


Uni-verso das letras Quando o espírito clama, há sempre um universo de folhas brancas, vazias, a nos recepcionar. Lá, depositamos o que nos consome. Sentimos o alívio de nos desengasgar. Assim, motivados, reviramos nossos arquivos, encontramos mais e mais rascunhos, como se fossem punhados de cacos, pedaços de seres que não existem. Percebemos, “desadormecidos”, que o cheiro de café fresco prenuncia o amanhecer do nosso espírito. Com renovado alento, tentamos reinventar os conceitos que não servem mais. Nesse universo, empunhamos uma lanterna. Explorando trilhas que começaram lá atrás, que nos fazem partir de um passado, herança tão distante, enfim, seguimos. Escrevendo, sentindo, expressando, fazemos de conta que podemos ajudar alguém. Todavia, encenando o papel de lanterneiros, apenas tentamos ressuscitar as nossas próprias esperanças.


Não sou, não penso Minha linha vital já se apaga E agora, então? Levem-me, moribundo, aos palcos reais Por trás da minha cortina Eis, enfim, a solução Descerrem os panos, por caridade Encenem, por mim, os meus atos De tudo, somente o que não sei O tudo que sei, a bem da verdade


Acreditei na sorte, acreditei no amor. Amei tudo, sem medo, em cada momento. Amei o céu, amei o mar, e tanto ... Temperei-me (a própria carne) com desejos juvenis. Fui imortal, invencível. E não me arrependi. Mas, de tão sedento, nem percebi o meu tempo. Quando me sopraram seus ventos, eu já não era fruto, nem flor, somente poeira (e poesia). Inconteste, a cada dia, de volta a vida me conduzia.


Roupa Velha

Perdas não choram por ninguém. Eu sei. Penduricalhos, brincos, adereços se desprendem, simplesmente. E daí? Se alguns dedos, braços e orelhas ficam... Se exploro a penumbra de minhas ruelas desconhecidas, amo, choro, sinto mais, é porque vivo mais.

Sou avarento comigo, mesquinho, e recolho minhas migalhas caídas pelo caminho. Avisto a minha própria cena do mundo. Tudo precisa passar percebido. Inclusive aqueles mendigos que me batem de ombros na noite, ou se estiram pelos chãos mais frios. Agora, eles já estão comigo. Pois tornei-me, mais uma vez, de carne e osso.


Não importam as queimaduras de sol. Se a chuva é intensa, também não importa. Ela somente me molha, mas sou impermeável. Que se acalmem distâncias e tempos. Os destinos, também, precisam esperar. Se descuidei, caí na roda que gira tão devagar, vago-me num ciclo enorme, tudo bem. O meu futuro não desapareceu, apenas foi afastado para um pouco mais além.


Estranhamente, lampejos heroicos me tocam. Então, flagro-me doando (nem sei como, nem por quê) mudas de sorrisos gastos. São velhas peças, vestimentas que não uso mais. Difíceis mesmo de achar, esquecidas no fundo de minhas gavetas. Até ressalto o caimento mas, como desleixado doador, não reconheço o devido valor. Por fim, apenas desdenho: "é mesmo roupa velha que já não me serve ..."

Roupa Velha

Não há, nem haverá conforto iminente. Uma nova mudança sucede outra, e outra, e outra, sem ganhos fáceis, sem calmarias à vista. Essas tormentas também não choram por mim. Não deixam que sossegue nenhum pensamento, ou distenda-se algum músculo estressado. Não cessam. Caminham juntas, sobem e descem escadas, telhados, chicoteando-me, como seu escravo serviçal.


Escondi-me por veias, ruelas Embebedei-me com meu próprio cheiro Aroma de Minho, Colônia, Bento, Madrid Essências, recantos Que buquês me persigam, agora Afinal, já não os visitava, há tanto Sangue esparramado e embriagante Condimento em que me fiz Que nunca se desprenda de mim Meus escuros traidores, meros delatores Que me cerquem, que neguem toda a luz Que neguem meus versos, antes do primeiro cantar E deem-me vida, mesmo assim


Como entender os humanos? São as mais estranhas de minhas crias soltas. Eles inventam suas coisinhas. Transformam prazer entorpecente, sexo, comida, padrões estéticos em moedas. E vivem por elas. São diferentes, todos. Distintos, belos, feios, poderosos, miseráveis. Engaiolam-se no interior de suas máquinas, de suas posses, de suas alegorias, desfilando uma vaidade indisfarçável. Tal exibicionismo, por vezes ridículo, os leva ao deleite de alguma forma de poder. Desconfio que tentam me imitar, construindo tronos de ouro. Estão descontrolados, guiados por falsos mitos. Desejam até me superar, adotando seus próprios céus e infernos. Mas, para quê? Se todos sabem que, ao fim, morrerão, um a um? Audaciosos. Admito, também o fui, um dia.


Homo Contabilis

Transparecemos modernidade Acomodados em geringonças fumacentas Somos espectadores de um tempo agitado, temporal Enxergamos cada pingo resvalador E palhetas guardiãs dançam seu vai-e-vem Filas de pensamentos, que se espremem, engarrafados Presos nas instâncias do nunca Num breve tempo, da ociosidade vão se revelando Enquanto isso, no compasso de nossos corações No ritmo do inflar e desinflar de nossos pulmões Transformamos a sobrevivência num amontoado de estranhices Para nada viver


Sem saber, afinal, por que choro Nem por que chora esta chuva sobre mim Dedico-me somente a contar e contabilizar Conto cada segundo, cada hora, cada dia Contabilizo perdas e ganhos, tudo Em tudo, percebo cifras e quantidades Sou um minúsculo ponto no mapa, eståtico Permaneço incomodado, e acomodado Transformando o tempo num amontoado de horas, minutos, segundos Um passar vago, vazio, sem nada entender


Flashes de tudo Tarde da noite Na mente, ainda, flashes de tudo Tudo que mais se fez E se não fez O que menos ficou O que mais, o que mais? Do que não cessará Daquilo que não se completou Do cansaço aos pedaços Aos poucos, do revelar Mesmo que uma luz, tão tímida, nem desponte Posto que é tarde Tarde demais para ser noite Cedo demais para ser dia Algo que nem findou E que, sei lá Se, por fim, começará


O que restou Música que descortina No meu cubículo, acústico mundo Outrora, de tantos ritos empandeirados No meu recanto, agora Um choro deslavado Lembranças, palavras, somente Conforto para quem já não vive, Para quem sobrevive No recanto, recatado, parado Eu e o pranto, somente Sinal aberto, para o mundo era inevitável seguir Eu, minha mente solitária E o choro, companheiro que restou


E eu dizia Ainda é cedo Cedo, cedo Cedo, cedo

Uma menina me ensinou Quase tudo que eu sei Era quase escravidão Mas ela me tratava como um rei

Ela falou: "Você tem medo." Aí eu disse: "Quem tem medo é você." Falamos o que não devia Nunca ser dito por ninguém Ela me disse "Eu não sei ...


Ela me diz que é medo, medo, medo. Tenho pavor de sua voz. Talvez não da sua voz. Tenho pavor da sua palavra. Não da sua palavra, admito. Tenho pavor do seu pavor. Não do seu pavor, exatamente. Tenho pavor desse medo. Porque ela me diz, quando me vê, quando empurra meus olhos para o chão. Ela me diz que é medo, seu nome é medo. Peço que me leve um tanto mais. Vai ver que isso passa. Até um fim leve. Leve. Que seja assim o que me tem aos poucos. Do jeito que tiver. Diga o que disser, louvada seja a minha fuga, cantada aos versos, gritada ao leu, fadigada, encortinada em mim. E que me fuja, então. Faça bater, em disparada, no coração, a certeza dos que vivem. Uma dor, antes de coisa alguma, que me sirva. Um amor, o desejo de quem se inventa e reinventa. À deriva, sim, perdido. Depois de tudo, ancorado num tempo qualquer, dentre tantos em que simultaneamente navego. Dentre tantos, enfim, peço que me leve um tanto mais. Vai ver que passa.

À deriva


Ferrugem da Alma Assombramento, vulto Do que não mais se enxerga De tão curto, imediato, beco emparedado A tranca no lado de fora Cobertor, covarde ausente Corpo que implora e treme Entregue ao frio, à solidão da mente Muitos menos a mais Medo, ferrugem da alma Olhar turvo, desencanto De um nada se apodera O medo de tudo


Sem Rima

Arrastado, somente Por tudo, juro Nada desejando Eis o desdenhar suplicante de um homem Que coisa nenhuma inspira Que revive das sobras, Do sentir apoucado Do que era Mera complacĂŞncia De mais, amainado, pelo menos Quimera, sem estima, sem vida Sem alĂŠm, sem nome, sem rima


Como dizer lamúrias à desesperança que delas está empanturrada? Como enumerar infinitos pedidos a pedintes espelhados? Como revelar o mais simples e comum cansaço, nada proveitoso? Ninguém, em sã consciência, dá ouvidos à desgraça alheia, ao desfortúnio. Todos precisamos folhear fotos sorridentes, enxergar as alegrias, curtir amenidades. Nem só de pão vive o homem.


Certamente, se faltar ânimo para vestir a armadura matutina, a primeira batalha já estará perdida. Ora, para que dizer bom dia? De nada servirá cumprimentar um maldito, indesejado, mero pedágio, purgatório do porvir mais pessimista possível. Já não basta ter dormido com os dormidos, comido a comida que não foi servida? Isso é veneno para a alma. Eu sei. Quem dera pudéssemos falar com os olhos, e acalmar o coração angustiado. A calmaria é como um ombro amigo. Nela, repousa a tormenta mais inquietante. Silenciosamente, rogamoslhe por reclusão. E meditamos, como monges modernos, enclausurados nas masmorras de um mundo virtual, que pisca sua luz, a cada clique.


Lua amarela

Bela, nascida somente Para ser possuĂ­da Para o meu olhar Passagem Por onde passo E me perco Avoado, arremetido Meu perto ĂŠ caminho Seu longe embranquece E foge


Garrafas ao mar Águas me correm Garrafas que boiam Prisões dos meus barcos Velas içadas, sopradas em vão Por tantos ventos Tão pequeno mundo Atracado num tempo Que nem consegue passar


Tão desatinado redemoinho Que gira no vento da noite Não importa o que penso ou não penso, sinto ou não sinto Adormeço em seus delírios de bailarino O sono fagueiro nada me pede Suas dormências até dançam por mim Abrandam-se curvas e esquinas, Vida ligeira que liga princípio e fim Desconcerto de tudo, embriagado mundo Repentino e feliz


Cheiro de terra molhada Presente a dor do meu tempo Florescer que não chega Presente a dor disfarçada Ironia que passa, passa, sorrindo Sorrindo de quê? Presente a dor verdadeira Que corta e fere o solo, retalha os pedaços No meu pensamento, um cheiro de terra molhada Desembrulhando as sementes


Agora tardio N達o mais que um dia Um novo dia Rotina, que sina, infinda Ando, sem estrada Passando, passando Meu conforto, meu calor Minha casa sem porta Espreita-me, suspeita minha Este agora tardio Futuro, o lado de fora Sobejo do que n達o passa T達o frio, t達o frio


O melhor dos sonhos Se és real, não sei Talvez uma ilusão O melhor de meus lados Uma grande vontade, uma paixão O que está acima do bem e do mal Um sim e um não desencontrados Algo para não tocar Que nada sejas, afinal A falta de chão, o largo vazio Olhar que me transpassa Um suar frio, um desejo Que não sejas o que vejo Tudo bem Mas, visites meus sonhos


Flechas mergulham, uma a uma Estalando um pingar aturdido Angústia inteiramente minha Como o tique e o taque do tempo Espatifando seus ecos Devora-me todo o senso Sei o quanto me doem Setas afiadas Sei, também, que há chuva lá fora Repercutindo outras tantas Meras sinfonias remotas Convenhamos, temporal inaldito Nada que seja meu, que me toque Tanto assim Goteiras talvez me bastem As minhas águas Somente minhas, enfim

O lado de fora


Lembrando do amor Para onde foram todos os sonhos? Perdas, derrotas, desencontros, solavancos do caminho acabaram vitimando minhas paixões. Estragos, cicatrizes que trago. Não sou mais, não quero tanto mais do que quis. Não, não, não... Que coisa! Nem mais repreendo meus nãos. Um dia, fomos vidas geniosas, faiscantes, e quase não cabíamos numa casa compartilhada. Tão inconstantes, nossos sentimentos diferentes ou indiferentes. Ora acomodavam, ora instigavam, ora descontrolavam tudo. Descobertas, todas e tantas. Conquistas e reconquistas. Pouco a pouco, odiosas rotinas foram apagando os melhores detalhes da vida, abanando suas mãos, regendo, ditando o ritmo. Para confortar-me, agora, tento embaralhar os registros. Mas, não me reconheço no meu próprio passado. Estou diferente. E a mulher que tanto amei? Lembrei-me, repentinamente, de seu olhar tímido, um jeito de não saber por quê. Lembrei-me dos nossos planos, das coisas que eram tão novas, de paixões juvenis. O tempo não perdoou nossos descuidos, e continua se arvorando a ordenar: passa, passa!


Chuva que cai, sem parar. Sua inconveniência petulante vaza por todos os cantos. Ora, que covarde delatora é essa? Nada protege, nada preserva. Não que eu a tema ou simplesmente deteste seu infindável pingar. Mas, percebo as suas incoerências. Enquanto insiste em execrar fissuras dissimuladas pelas paredes e tetos, esconde tão habilmente o azul do céu, empurrando-o para o avesso de suas nuvens. Isso não é justo. Lava e leva do chão o sumo, de forma sorrateira. Não se importa com mais nada, apenas deságua. Diferente de outras agitadoras, prefere fomentar o tédio, sem causar espanto, sem roncar no céu. Aglomerando-se em bandos, suas águas correm, lentamente, avançam. Escorrem por vielas, dispostas a tudo. São batalhões guerrilheiros que se aquartelam nas lagoas, nas ruas interditadas, nos baixios encharcados. Para onde marcham, encaminhando suas guarnições, já não há lugar. Libertinas, acariciam todas as peles. Escorrem e param, quando bem entendem. Tocam em todos, lambem suas partes, entregam-se a qualquer um. Envolvem-se com intimidade, impregnando-se sem pedir licença. Deixam para trás lábios arroxeados, corpos tremidos, sequiosos de algum calor, que tudo fariam por uma fronha, pelo esconderijo de um cobertor.


Uma pena que este mundo seja tão solitário e urbano; que seja, cada vez mais, tão desbotado. Bem que eu poderia tomar banho em biqueiras de velhos casarões, ver o mato esverdear-se, perseguir minhas lembranças, improvisar barreiros e neles navegar com barquinhos de papel. Mas, por aqui, nada me remete ao passado. Só enxergo bueiros estourados, asfalto e chão cimentado. Como são frios os respingos que me alfinetam. O gelo do tempo invernoso dói muito além dos meus ossos. Incômodo, mal que me aperta o peito, aflição sem nome, sem explicação. Minha racionalidade me torna ainda mais frágil, diante das doenças sem nome. Impiedosas, cruéis são essas águas e a tinta negra que lhes serve de companhia, que esconde o meu Sol, nos confins sei lá de onde. Sofro de um mal acinzentado. É este que me assola. Acídia, olhar vago. O espírito deseja clamar. Para quê? Sua voz já se perde, em meio aos chuviscos.


Agora tardio

N達o mais que um dia Um novo dia Rotina, que sina, infinda Ando, sem estrada Passando, passando Meu conforto, meu calor Minha casa sem porta Espreita-me, suspeita minha Este agora tardio Futuro, o lado de fora Sobejo do que n達o passa T達o frio, t達o frio


London, London!

Empreste-me seus olhos, querida, enquanto vê o novo velho mundo. Bem junto, eu verei também, assim. London, London! Conte-me das esperanças, projetos, da sua vontade de aprender, conhecer. Alegria, alegria! Tudo estará bem, estará melhor a cada dia. Dizem que os cinzas são tons meio londrinos, por essência. Talvez, nas noites mais chuvosas, seja até difícil enxergar estrelas, por aí. Que pena. Mas, vou contar um segredo: espalhei algumas das minhas preferidas, pelo céu inteiro. Elas nunca lhe faltarão. Nem importa que estejam escondidas por nuvens. Lembre-se: são mais suas do que minhas, agora. Imagine nelas, em brilho e cores piscantes, o meu amor. E retribua, minha filha, por favor. Rabisque um fiapo de lua, seu sorriso, para mim. Bem junto, eu vou sorrir também, assim.


Navegar é preciso; viver não é preciso". Quero para mim o espírito [d]esta frase...

Fernando Pessoa


Navegar é preciso Nó atado. Uma trava me prende, desgosto futuro, presente, passado. Cunha no sapato, pedra de infortúnios mal curados, incompreendidos. Casulo, lugar comum, repositório para as almas humanas mais aflitas. Corredor purgatório ou sina, destino compartilhado, eis a razão angustiante que comboia alguns seres: resolver-se! Do desprezo irresponsável ao pragmatismo encoivarado, que sanha estressante. Tantos modismos. Queremos ser pobres coitados. Queremos ser fortes, dínamos de força. Os extremos nos cativam. Suplicante, mas altivo, vivo. Engasgos me alavancam. Se vejo ou imagino enxergar o escape desejado, se uma corda de poço roçame a cabeça, no escuro, sobrevivo. Gelo, congelo em suas águas profundas, debato-me em desespero, cansado, enquanto pressinto que mais uma de minhas vidas se esvai. Derrapagens me sacolejam o corpo. O caminho não é reto. Os túneis infindáveis e as ansiedades sinuosas tentam me curvar. São fantasmas, tormentas de tantos oceanos no fim do caminho. Elas me ensinam as lições mais duras, e inesquecíveis. Decerto, por onde navego, raja a brisa desse viver que nunca será preciso.


Fotos do meu tempo Recolho meus versos de ontem, esquecidos em algum lugar. Sons de ednardos e belchiores, meus panfletos, meus rascunhos, lembranças de sonhos e futuros. Minhas iras inexplicáveis, meus silêncios. Como desejei, como busquei, como me considerei incerto, como forcei a roda do tempo, para que girasse mais e mais rapidamente. Ansiei por tudo. Eu me entreguei a um amanhã, que não chegava. Imaginando-o tão grande, encurtei os meus caminhos. Andei pensativo, em silêncio. Por que não falei mais? Meus medos, meu recatado mundo. Resguardei-me tanto. Por que não me arrisquei? Por que não sorri e chorei mais? Por que não amei mais? Velhas ruas, prédios, personagens, cenas congeladas são apenas imagens silenciosas. Coleciono todas as fotos do meu tempo. Resgatando aquela poesia, a melodia, o romantismo, a revolta involuntária, tento refazerme deste sentir melancólico. Tento juntar os pedaços. Faces do bem e do mal, fantasia, paixão, medo, angústia. Tarefa inglória. São meros retalhos. Em novos versos, reaprendo-me tão desentendido.


Garrafas ao mar

Águas me correm Garrafas que boiam Prisões dos meus barcos Velas içadas, sopradas em vão Por tantos ventos Tão pequeno mundo Atracado num tempo Que nem consegue passar


1 PRESSENTIMENTO - CAVALOS DO CÃO

Um dia diferente. Na mente, uma programação estranha me levava à expedição de colinas e morros, velhos conhecidos. Saíra de minha casa, bem depois do almoço. Estava só, e desejava aquela solidão. Companhia apenas dos pássaros, dos bichos pequenos, das plantas e folhagens. Eu seguia, caminhando pela mata. Os galhos se engalfinhavam, rolavam, invadiam minhas trilhas. Eu não sabia o que procurar, ao certo. Talvez lembranças. Confiava. Desconfiava. Empreendendo a meiofuga/meio-procura, eu embaralhava todas as imagens. Ao meu redor, tudo estava vigorosamente verde. Porém, minha pressa acabava por transformar os detalhes da paisagem em simples borrões. Tudo corria bem, até que um besouro negro zumbiu-me o juízo, passando ao largo, bem perto. Ele não dava trégua, indo, voltando, inquieto. Pousava na minha atenção. Não. Não devia ser bom vento que o trazia. Pressenti. Cruz, cruz, fiz o sinal da cruz. Essa era uma tradição do meu lugar: temer os Cavalos do Cão. Eles são conhecidos como emissários das agruras, mesmo que transpareçam inocência marimbôndica. Por via das dúvidas, não me custaria encenar o ritual (pensei). A superstição nada explicava, coisa alguma, nem tampouco garantia a minha salvação, certamente. Mas servia-me de alívio e encomendava alento ao espírito. Somos um amontoado de inexplicações, mesmo. Então, "cruz, cruz, cruz", repetia vigorosamente a ladainha; e transpassava meus dedos indicadores, um sobre o outro, conformando improvisado crucifixo. O besouro, desavisado, fugia por fugir, sem saber que estava confirmando os poderes mágicos dos quais me investi.


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Ôpa! Um espinho me rasgou a pele do braço. O corte se abriu, com bordas rosadas. Nada de sangue. Será que eu estava realmente vivo? Nunca me dei bem com sangue mesmo. E a vida o que era, então? Desconfiado, pouco sabia, apesar daquele gonzaguinhar que me perseguia. E que me dizia lá, meu irmão. Só poderia ser a batida de um coração, a mais doce ilusão. Iludidovivo, então, esquecendo de todos os sentidos, da obsessão pelo prazer e pela eternidade, eu me indagava: será que fiz mais do que podia, do que deveria? Será que extrapolei os planos sagrados da criação? Sem eira nem beira, sem bagagens, sem esquinas, sem viseiras, sem rotinas, observava a angústia do relógio. Meu tempo era finito. Eis uma quase certeza incentivadora. Descendo e subindo ribanceiras, encontrei, enfim, uma estrada transversal. Algo me impedia de atravessar a pista-fronteira. Fui levado por uma correnteza marginal, como se aquilo fosse um riacho negro e asfáltico. Fatalmente, a primeira noite me abraçaria. Coberto de cinzas e de frio, segurei nas cordas da estrada, para não me desgarrar. Mero e escurecido caminho de flashes passantes, que se perdia no meu olhar. Eu avistava e desavistava seu risco tão contínuo e vazio. Quem me dera fosse um rio, quem me dera fosse um rio. Perseguiam-me sombras que nunca atacavam. Seriam novos cavalos voadores? Ameaças acossavam o escuro da noite, sem desfecho real. Sem me levar, sem me trazer à vida. Não. Não deveria ser bom sinal. Pressenti, mais uma vez.


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De repente, estrondos metálicos, freios arrastados, o susto! Seria o fim de tudo? Apressei o passo, dobrando a mais sinuosa das curvas. Um clarão se aproximava. Vi fumaça dançando num facho de luz. Acho que alguma alma já se avoava. Meu Deus! Não pude evitar a imagem do corpo estendido. Tudo mudou, nesse instante. Aproximando-me, sem querer chegar, sem querer parar, abaixei a cabeça. Nada a fazer, nada a falar. Fato consumado.

ANJOS QUE ME LEVEM

Senti-me tão perdido, ali, parado. Como um ser desgarrado que não sabia como, nem para onde voltar. E tudo mais parecia sem jeito. Impotente, imaginei-me capotando, refazendo aquela provável cena. Mero passageiro. Desejei também a hora de descansar. Experimentei todas as dores atravessarem meu corpo, sem parar em lugar nenhum. Metástase sem freio. Desejei não buscar mais solução. Cavalos que me avisem, anjos que me levem. Que a vida se erga desse chão, sem o peso das angústias, que tudo se desfaça e se (re)faça, então. Eu não podia fazer nada. Tinha mãos, tinha mãos. Para que serviam? A cena, aos poucos, se completava, com sirenes, luzes, gritos, choros, e perplexidade. Filas de congestionamento formavam o cordão de um grande terço, visto lá de cima. Orações ao espírito acompanharam sua ascensão. Debaixo do lençol, repousava um corpo deixado para trás. Condutores apressados e curiosos ainda diminuíam a marcha, e perguntavam o que ocorreu. Quem foi o culpado? Ele fugiu.


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Talvez fugido mesmo, o tal culpado chorava, desconsolado, no canto. Os chegantes alvoroçados queriam justiça, a qualquer custo. Procuravam por um dibólico ser, por um matador. Descontrolados, nada mais queriam do que outras mortes compensadoras. As mortes nos assustam, mas são populares entre nós. Nosso sangue se paga com sangue, sustentam alguns. Eu voltei a sentir meu corte no braço. Começa a vazar, enfim. Pagamento à vista. Desconsolado, voltei-me para o escuro da mata. Tentei escapar dos sons e daquelas luzes vermelhas. Avistei algum vagalume escondido no meio dos arbustos. Aproximando-me, pude enxergar melhor. Era um telefone caído, na beira da estrada. O objeto se acendia, silenciosa e intermitentemente. Na sua tela, piscava a expressão “amor da minha vida”. Titubeei um pouco, mas decidi atender. Antes disso, afastei-me do barulho. Apresentei-me como portador daquele achado. Pedi alguma referência do dono. Uma voz feminina, tranquila, suave, sussurrava, enquanto minha ansiedade me consumia: quem seria, quem seria? Ela acabou revelando que procurava pelo marido. Na impossibilidade do contato, já demonstrava preocupação. “O senhor poderia me ligar em alguns minutos?” Alegou que o filho precisava de sua atenção momentânea. Em instantes, eu retornaria, para ouvir sua súplica: "Por favor, poderia procurá-lo na rua tal? Na frente do prédio, vai avistar um veículo laranja, com faixas laterais, bem chamativo; ele está nesse endereço, agora, bem perto do senhor. Isso vai aliviar minha angústia; estou com pressentimentos ..." Eu virei para o lado, e meus olhos queriam desfazer tudo aquilo: os ferros retorcidos, o carro fumegante de rodas para cima.


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Não aguentaria não sentir o que me cercava. Afinal, já me fazia parte. A tragédia se entranhara, carcomendo-me por dentro. Aquela era uma cruz, (an)dor de outro penitente que me entregaram para carregar. Se pudesse, eu devolveria tudo. Que ficasse com o frio e o cobertor. Ora, ora, mas que hora tão errada, meu Senhor.

A HORA DE FUGIR

Estava pronto para me deixar (uma das minhas partes) em algum lugar, e escapar com as sobras, como somente uma sombra sem corpo. Estava pronto para me deixar escapar, já sem qualquer claridade, sem espírito, sem fé. Minha consciência de nada valia, nem respondia. Reservada. Comecei a me separar daquela velha-nova-angústia. Não me culpem. Compreendam que não era minha. Suportava outras cargas bem anteriores sobre minhas costas. Lembram-se? Meu desespero, andando pela mata, sem rumo, atordoado por cavalos do (mundo) cão. Quem achou por bem me endereçar mais essa? Então, façamos de conta que nada aconteceu (façamos de conta que isso é possível). Sei lá, sei lá! Estou falando aos ventos, às luzes estroboscópicas das ambulâncias, aos ouvintes que nada ouvem, aos amigos, aos inimigos que invento, em voz alta, em voz baixa, sozinho, no meio da confusão. Meu vinho, cadê meu vinho? O aparelhinho renitente voltou a tocar. Vibrando, abria uns braços tão luminosos e piscantes em apelação (que dava até dó). Queria me agarrar, acredito. Mas não tinha mãos, somente piscas alucinados, que imploravam: não, não, por favor não me desampare. Não me trate com indiferença, não faça de conta que não é da sua conta! Nem acreditava no que parecia ouvir de mim. Esse negócio é sensitivo e programado. Imaginei. Apertei o botão verde; apertei o botão vermelho. Desisti. A segunda chamada seria imediata. Estampava-se no visor “não atender”. Então, se o dono da linha não desejava, por que eu o desejaria, meu caro? Outra fonte insistia: “não atender2”. Tocou, tocou, tocou. Bem ... Faria sentido bisbilhotar aquilo? Talvez. Caiu a ligação.


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E veio outra, na mesma balada: “o problema é a rima”. Com esses títulos tão sugestivos, eu atenderia somente para matar a curiosidade. Nenhum dos contatos estava identificado pelo nome. Que curioso! Quem quer falar? Boa noite, senhor; essa ligação será gravada para sua segurança... Huuum... Poderia me confirmar alguns dados pessoais, senhor? Não. Somente se você explicar essa tal rima. Ou, então, ligue depois, por favor. Virou festa. Mais uma chamada desconhecida. Chama, chama: “Sedutora!” Consegui ouvir. Que voz! Não seria para menos. Ela me saúda de um jeito todo especial, e me canta, quase me toca, sem pedir licença. Eu desliguei. Ufa!


7 PORQUE OS POETAS ANSEIAM O FUTURO

Nem cantos sedutores, nem grunhidos ofegantes: não era isso que precisava, ou merecia. Sem pensar duas vezes, devolvi aquela máquina infernal ao seu esconderijo. "Fique lá, que eu sigo cá." E tem mais: caso encontrasse algum outro aparelhinho piscante, perdido, suplicante, usaria todos os poderes para simplesmente afastá-lo do meu caminho (cruz, cruz...). Mas, ainda, faltava-me sair da cena. Acordaria, olharia para o lado, esfregando os olhos. Tratei de escolher o (in)voluntário mais disposto, o melhor dentre os candidatos que me rodeavam. Chamando um atencioso socorrista, indiquei-lhe o brilho piscante falso-vagaluminoso. Passei-lhe o feitiço. Que siga em frente! Estaria, assim, entregue a missão. Sorte: a oportunidade encontrara um ente preparado. Fechei os olhos, novamente, andei sobre o fogo, até não sentilo queimar. Bolhas me almofadavam os pés. Tudo viraria lembrança, a partir daquele momento. Algo a ser apagado, ou modificado. A versão das histórias sempre se molda aos escrúpulos dos vencedores, ou dos sobreviventes, simples remanescentes. Assim aconteceu, mais uma vez; e heroicamente. Quanto a mim, não desejava simplesmente voltar à fidedigna realidade. Deleguei à noite todos os meus domínios. Deveria me conduzir. A eleita nada me indicava, em princípio, fechando-se em tons sombrios e reticentes. Desorientado, acabei me entregando aos acasos que inexistiam de verdade. Caminhos condicionados, urbanos, foram abrindo alternativas de marcar. Era um enorme gabarito. Eu parava, para ver as ruas girando, casas passando, acenos, abraços, beijos de chegada e despedida. A lua pousava no horizonte.


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Acendendo-se naquele fundo negro, a bela perguntava, convencida de sua exuberância: melhor assim, melhor assim? Eu pensava com meus botões: que me viessem as minhas rotinas, de meu passado ressurgissem todas as velhas sinas, tudo menos os cavalos do cão. Passando-me, com a ponta dos dedos, assim encontraria uma casa de sonhos. Lugar de volta, o mesmo lugar da partida, sempre assim. Cíclicos, mortais, previsíveis, inventivos, poéticos, sensíveis: humanos. Ao lado do portão semiaberto, assentava-se tranquilo o dono. Não me chamara, posto que era tão cedo. Nem me rejeitara. Passivo, receptivo, como uma fotografia antiga, ondulava-se apenas ao soprar da primeira brisa matutina. O dia se entregou ao sol, enfim. Diante do frescor daquela imagem, não imaginava de forma alguma deixá-la desgarrar-se. Meu (in)vento mágico soprava, enquanto sentia um arrepio. Sim, desejava reencontrar-me com este quase futuro. Enfim, já conseguia vê-lo, tão nitidamente. Roguei-lhe por todos, e por mim: ressuscita-me, ainda que mais não seja, ...


O Amor (Caetano Veloso, inspirado em Maiakovski)

" Ressuscita-me Ainda Que mais n達o seja Porque sou poeta E ansiava o futuro "


RUA ESTREITA

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Carros enfileirados na via. Semáforo fechado. Iniciava-se a contagem para condutores ansiosos. Aumentavam os giros das máquinas. Os giros sanguíneos também se aceleravam. Corações a mil, num bombear frenético. Verde. Ninguém partiu. Na passarela de pedestres, um rapaz se ajoelhara, desafiando os veículos. Rua estreita, sem opções de desvio. Os burros eram tapados. Não havia como passar. Fazer o quê? _ Passe por cima desse infeliz! Gritou a moça de óculos escuros. Eram tantos desconhecidos, que se protegiam, acomodados no interior de geringonças metálicas. Pareciam irritados e trêmulos. Intermitentes e barulhentas acelerações não rendiam um centímetro de locomoção. Que decepção! Condutores nada conseguiam fazer, enquanto os automóveis fumavam e davam baforadas, a todo tempo. Eu olhava para os personagens, e para aquelas simples máquinas, queimando e pitando suas impaciências. Os pedestres tinham melhor sorte. Passavam, olhavam para o mendigo da rua; jogavam-lhe uma moeda, o pedágio. E seguiam, deslocando-se com muito maior eficiência. As tralhas baforentas, mesmo assim, não se acabrunhavam. Seus passageiros faziam pose. Eu enxergava os orgulhosos e convencidos, cheios de empáfia. Cena ridícula. Dentro do primeiro veículo, por sorte ou providência, um condutor abaixou o vidro da janela, e gritou: _ Sou médico!


2 Imediatamente, um surto de revelações. Outras janelas se entusiasmaram. _ Sou enfermeira... _ Sou engenheiro... _ Sou cabeleireiro... _ Sou prostituta... _ Sou um jornalista homossexual... _ Sou bombeiro aposentado... _ Sou matador serial (mas, abomino o uso de armas químicas)... _ Sou como vocês, sou como vocês (repetia um sujeitinho de bigode, quase desaparecido, lá atrás) ... Bem, para honrar o juramento de fraternidade humana, o médico (apenas ele) desceu do carro, apesar do “serial killer” ficar coçando os gatilhos. Aquele homem de branco ofereceu, então, seus cuidados. _ Pá, que coisa horrível o acometeu? O jovem silenciou, estranhamente. Abaixou a cabeça. Bem à sua frente, avistava-se uma capela. Estava a quase 500 metros de distância. A torre imponente era bem visível, nas redondezas. Ao refletir na sua cruz central, a luz solar encandeava, incomodando a visão de quem estava, exatamente, em cima da faixa de pedestres. Exatamente. O médico resolveu forçar a barra, perguntando ao mendigo, o primeiro transeunte que conseguiu alcançar. _ O que faz aquela cruz, ali no alto, piscando em meus olhos, exatamente nesta posição? O que significa isso? O pedinte estirou a mão, à espera de uns centavos. Ora, até as maquinetas automáticas, símbolos da modernidade portuguesa, somente funcionam com a inserção de moedas. Mas, o questionador não se apercebia do tributo exigido. Ali, na Rua Estreita, tudo gerava receita para o famoso mendigocientista.


3 Diante da falta de pagamento, não lhe sobrou alternativa. Livrouse daquele agarrão teatral e pegajoso. Arremessou o braço do suplicante ao vazio, num solavanco. Antes de empreender sua fuga, respondeu, com desdém. _ A capela é um prédio com uma cruz metálica e brilhosa, que reflete a luz do Sol... _ O mais é birra sua, ... maluco! O menino retornou à cena, gritando o motivo de sua perplexidade paralisante: _Estou vendo! _Era só o que estava a me faltar: um milagre. O médico emendou sua fala, desanimado. Bem próximo, nada me restava a observar de especial. Somente mais um céticopragmático-descrente; um ser vivente, uma vida que não conseguia se reconhecer. O pobre rico, coitado e arrogante, como tantos, somente acreditava no conhecimento que ele mesmo produzia. Considerava-se o subproduto de uma imaginária explosão: a decantada origem pirotécnica do nosso “tudomundo”. Afinal, nos currais científicos, a vida não é considerada dádiva coisa nenhuma. É fruto do acaso combinatório. “Deuses somos nós, os médicos, que salvamos vidas!” Sustentava o descrente. Tão vago era o olhar do ser racional e inteligente. Compreender o seu próprio surgimento não é coisa para meros esforçados. Certamente, a mais complicada máquina inventada pelo homem nunca passará de brinquedo, diante de um simplório organismo vivo. _ Largue-me, estou vivo! Com as mãos espalmadas, olhando para o alto, braços levantados, o menino nem imaginava o teor de sua provocação. Mas, o que é essa vida? O tal “sistema químico autossustentado, capaz de uma evolução darwiniana, por mutação aleatória”. Que definição!


4 Eu estava ali, vivo, também. Em nada acreditava, mesmo que não fosse cientista. Observava tudo. Acabara de chegar a Lisboa. Isso deveria ser uma caminhada despretensiosa. Que acontecimento bizarro acabei por presenciar! Vim para visitar a capital portuguesa, por suas características culturais, sua história, sua ambiência europeia, sua língua maravilhosa. Ainda, como um observador da confusão, embatucava-me com os acontecimentos. Atitudes encadeadas, sequenciais, personagens bem definidos. Cada um abria sua participação, ao passo que outros se paralisavam. Isso mais parecia uma encenação. Cadê as câmeras escondidas? Alguém vai saltar, dançando e cantando, inesperadamente. Tudo me transparecia, ainda, como se fora uma repetição. Minha caminhada anterior, pelas imediações do Jardim Botânico, revelou-me a mesma (e estranha) sensação. Algumas cenas eram familiares. Você já viu uma pessoa pela primeira vez e imaginou conhecê-la de algum lugar? A hipótese de que, verdadeiramente, eu já teria vivido aquilo antes era muito forte. As ocorrências recriavam situações exatas, associando o sentimento a cada acontecimento. Meu cérebro estava, então, submetido a fatores neuroquímicos. Mas, o que significa isso? Certamente, coisa nenhuma. Trata-se de uma explicação vazio-denominadora, daquelas que nomeiam o fator desconhecido e fazem de conta que descortinaram o segredo, acharam a sua quase definitiva explicação. Alguns senões se refrigeram com os respingos de nossa racionalidade. O que seria dos homens sem as teorias disfarçadas de certezas?


5 Confesso que isso me deixa assustado. Confesse, também. A visão, som, sabor ou mesmo odor de alguma coisa, sensações nos fazem pensar que experimentamos antes, embora saibamos que isso não ocorreu. Ou não saibamos. Isso também não importa. O que vale é a denominação. Atribuímos um nome ao negócio. E ficamos em paz, definitivamente. Mas, o menino ainda insistia em sua recuperação da visão, afirmando sua condição de ser vivo. Naquele momento, um incômodo ser vivo. O mendigo voltou, aproximou-se da passarela de pedestres, acomodou-se num canto de seu camarote. A mulher de óculos escuros disse que estava atrasada para um compromisso muito mais importante, outra aparição. _O que me aguarda, em outro semáforo, é muito diferente desse momento pífio. _ Qual é o seu nome, miúdo inconveniente? _ Neutrino, meu nome é Neutrino. E eu continuo vendo tudo. Heranças, lembranças inexplicáveis. Seriam causadas pela reencarnação ou por pequenas falhas em meus processos de memória? Algo escondido no fundo da minha mente era despertado. _ Eu estou ouvindo! Valha-me minha Senhora do Perpétuo Socorro! O homem que dirigia o terceiro automóvel da fila joga seu aparelho auditivo na calçada. Eu não me aguentei, diante da empolgação, e resolvi entrar no clima. _ Pois, pois, que andem os aleijados!


6 Os mais próximos não gostaram de meu desprendimento anedótico-linguístico. Somente o mendigo, ainda sentado ao meio-fio, soltou uma gargalhada, enquanto segurava nas mãos um prato de sopa. Isso me lembrou a estória da Sopa Primordial. A segunda barra forçada. Desculpem-me. Aquele negócio era todo surreal, mesmo. Vaguei, imaginei outro cenário de águas ferventes e envenenadas por compostos sulfúricos, de metais liquefeitos jorrando das camadas profundas do planeta. Nesse verdadeiro inferno, com temperatura acima dos 400 graus centígrados, calor suficiente para extinguir em pouco tempo a fauna e a flora de toda a superfície terrestre, encontrei colônias de estranhos micróbios. Corri para outro extremo do termômetro, nas águas gélidas das regiões polares. Em amostras de gelo, retiradas do fundo do lago Vostok, encontrei mais microrganismos. Seres posicionados na tênue linha que separa viventes de nãoviventes. É possível que a vida, tão persistente, seja algo maior do que pensamos. Não se resumiria a uma simplória “sopa” mágica. Ao que parece, a tal sopa teórica anda meio envenenada. Ora, ora, nem temperaturas extremas ou abundância de gases tóxicos podem servir de empecilhos para a vida. Nada conseguirá detê-la. Imaginei. Mas nada disso ajudava na solução do impasse, na Rua Estreita. Um cristão passante, com sua bíblia em mãos, lembrava os relatos mitológico-bíblicos sobre a criação. Aos berros. _ Do barro viemos; e ao barro voltaremos!


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O mendigo não parece discordar. Até para isso havia teoria científica. Sim, a argila seria a chave do mistério de como compostos orgânicos simples saltaram para a condição de material genético autorreplicante. Trata-se de um "cristal-gene". Os caras são bons de nome. Isso tudo aqui faz sentido? Pode ser que sim. Ou não. Eu me aproximei do mendigo, que estava contente com a grande movimentação de sua ruazinha. Sua sala de estar recebia visitas que, inesperadamente, se alongavam. Olhando-o, mais atentamente, perguntei sobre a precariedade quase-vivente. Desejava compreender por que os seres humanos ainda persistem, buscam a sobrevivência, em condições adversas. _ Qual é a explicação para o instinto de sobrevivência? Qual é a origem de suas forças, meu caro? Não se tratava de um mendigo comum, pude comprovar. Como o apelido já denunciara, era um físico, mesmo, desiludido com a ciência. Antes, ele se desiludiu com a vida. Um pouquinho antes, ele se desiludiu com o amor. Além de me confidenciar segredos, ele reconheceu que uma estranha programação instintiva o impedia de abandonar este mundo dos vivos. Então, permaneceu, numa condição humilhante, mas ainda persistente. _ Por que? O mendigo desconversou. Começou a falar como um pseudo conhecedor de outras forças da natureza. Minha pergunta ficou sem resposta. O pedinte passava a mão na barba mal cuidada, enquanto barbarizava teorias inventadas, alimentadas de dúvidas. Era um tresloucado blá blá blá de mendigo ou de cientista. Nem sei mais. Parou um pouco, virou o rosto rapidamente, para cuspir o osso de algum delicioso animal morto inserido na sua comida. A cusparada, gosmenta, acertou o homem de branco.


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Nosso bom samaritano já estava irritado com o miúdo que insistia em não ficar cego. O que ganhou com o seu ato de compaixão humana?Uma saraivada de gosma-não-primordial na cara. Eu percebi que todas aquelas discordâncias impediriam o desfecho consensual. O médico voltou, às pressas, para o carro. Seu olhar se fixou com o do jovem vivente não-cego. O miúdo levantou a cabeça, altiva e provocativamente. Seu mundo não era leitoso. Suas palavras eram firmes e insistentes. _ Eu ainda vejo! Acionou-se o motor. Foi uma partida em disparada, desesperada. O letrado e racional condutor nem sentiu o catabio. Tocado por instintos rudimentares, nada mais sentia, nada mais pensava. Um corpo lhe passara por baixo das rodas. Não imaginei que o embate fosse encerrado, assim. Eu queria gritar. Mas, guardei palavras e versos para mim. Talvez não fosse a última batalha. Fuja, fuja, vida, também dispare; revide a agressão, faça de conta que o fim não é fim. Disfarce, e volte, enquanto escorre seu sangue no chão. Meros seres, como tantos, simplesmente regidos, deveriam seguir. E dispararam seus carros, enfim, um a um. Riscaram a passarela, com a mesma tinta ainda quente, como se nada mais houvesse a fazer. Um vermelho de lembranças vibrantes. Eu perguntava: para onde foi a persistência? E apenas torcia para que alguma vida ressurgisse daqueles traços. Tudo em vão. Não há mais sangue, agora. Simples córrego de um composto líquido. Que se esvai. E talha. Química de algum nome inventado, testado. Herança perdida, sem mãe, sem pai.


(Crônica inspirada no Filme "A Perseguição", 2011)


“Meu Deus, faça alguma coisa. Mostre-me que é real. Somente assim, acreditar-Lhe-ei por todos os milagres, até o último de meus dias.” Assim, suplicava um sobrevivente, desesperado. Ele desejava apenas viver. Pobre coitado. Perdeu-se de suas crenças, perdeu-se de tudo. Sobrou-lhe uma essência (a mesma que há em mim, que há em você). Para que e por que lutamos? Por alguns dias a mais, por uns suspiros, pelo calor que imaginamos sentir, neste mundo? Não sei. Talvez eu venha a sucumbir, também, em meu próprio momento decisivo, na ânsia de entender. É certo que nenhum domínio me caberá. Sou um reles mortal. Meu corpo humano é máquina falível, apesar de programada para a vida. E o rio das minhas sinas, de toda sorte, curvado, num curso imperfeito, empurrará suas águas, erodindo todos os chãos que me acolhem, sem parar de seguir. Sou presença fincada, mas predestinada a passar. Definitivamente, sou passageiro. Sim, eu luto pela vida. Corro, corro, sem deixar-me em nenhum lugar. Corro, corro, para o meu destino. Ao meu largo, pululam tantos eus acompanhantes, seres menos nobres. Eles também estão inspirados. Rosnam, agarram, abocanham. Afinal, movem-se com a mesma sanha dos que matam, para sobreviver.


Ao final de contas Somos pequenos grãos ajuntados, poeira transformada em vida, que se multiplica, assim. Moldados em carne e osso, ganhamos corpos, mãos, engrenagens mágicas, espírito. Tocamos, tateamos o mundo. Calos nos lembram os encargos. Somos guardiões do fogo, símbolo da vida. Por anos e anos, correremos sobre esteiras. Trilhas rolarão sob nossos pés. É certo que tropeços e fadigas do tempo nos arruinarão. Mas, teimosamente, ignoraremos a maior de todas as certezas, mesmo que nos atraia para seus braços, pacientemente, a cada dia. Assistiremos às lutas de nossos precursores heroicos. Eles cumprirão a missão, abrindo o caminho. Marcharemos. Testemunharemos o tombar de tantos. Guardaremos o choro de suas despedidas. Um dia, pressentiremos a nossa própria hora. Um escassear de lágrimas, de vontades e de sorrisos nos avisará do acerto inevitável. Estaremos, enfim, prontos para devolver o que nos foi emprestado.


Asfalto lavado. Faixas que correm, correm ao meu encontro, somente para me verem passar. Meus escuros são destemidos. Não temo por nada, e sigo na estrada. Enquanto uma negra fuligem me abraça, eu me enlaço, atraco-me ao vento, meu duto seguro. Como se fora uma fina lâmina, barreira irreal, estendida à minha frente, eu furo a escuridão da noite, até roubando-lhe alguns segredos escondidos. Apertado e limitado por margens infindáveis, não me sinto tão livre. Mesmo cego, ainda confio, e nem penso em parar. O que não vejo apenas passa. É um mundo veloz, de essência volátil. Aqui, somos tão momentâneos que um simples estalo pode nos desligar. Tento aproveitar o tempo para pensar na vida. De susto em susto, a cada besouro que se espatifa, a cada flash que reflete na pista, alterno meus batimentos. E volto a pensar, trocar ideias com a solidão, passageira que me acompanha. Construo planos, versejo e canto. Enquanto passo a mão no meu bloco de rascunhos, bem do lado, arremesso folhas imaginárias pela janela. Voltem para a escuridão desconhecida, minhas sentinelas de papel, e guardem-me a cada passagem.


Há dias e dias. Eu sei. Uns marcam nossas vidas, outros somente passam. Se não me incomodassem tanto os embaçados, inundados e sombrios, eu não perceberia os extraordinários e surpreendentes, clareados de Sol. Admito. Ah, esses dias calados são tão inúteis! Sem nada a dizer, sorrateiros, somente querem fugir. Esses tais partem mesmo da gente, sem esperar que deles se faça alguma parte. E ficamos nos perguntando para onde foram todas as suas rotinas odientas, para onde despacharam todas aquelas malas vazias? Acredito mesmo que, de tão perdidos e silenciosos, até nem saibam por que vieram ao mundo. Talvez façam número por aqui, ao contar (o tempo) ou fazer de conta (que os vivemos), e vão embora.


Nosso modo de viver Como posso me assombrar com a violência? Somos violentos. É assim que gostamos, e talvez precisemos viver. A história humana foi construída com a brutalidade de seus heróis, com o sangue dos mártires. Matamos, com frieza, crueldade, de forma suja, limpa, de forma fortuita, produtiva, de todas as formas. Matamos. Sem a morte de outros seres, não conseguiríamos nos manter vivos. Somos os grandes matadores de nosso mundo. O cordeirinho precoce, o frango, o boi, o peixe, todos se tornam deliciosas guloseimas, suculentas, em nosso mastigar. Adoramos o sabor, o cheiro de suas carnes mortas e assadas. Fazemos festas, churrascadas, e nos embebedamos de tanto prazer. A violência nos dá prazer. Quebrar, triturar uma planta, roubar todos os seus frutos. Somos saqueadores da flora. E nos vangloriamos com os rótulos naturalistas. Plantas e vegetais podem ser comidos, são “naturais”, diriam os ingênuos vegetarianos. Seria porque não jorra sangue de seus caules? Vivemos melhor, enquanto amparados por nossa ingenuidade. Sejamos francos. Parece que o espírito descansa, e disfarça seu anseio matador.


Cevamos as nossas caças, para depois arrancar-lhes a cabeça, esquartejá-las, separar os corações, as coxas, asas. Seus corações, especialmente, serão espetados e assados em brasa. Que delícias! Acho que estou me traindo, por aqui, já levado pelo salivar, provocado por este aroma, pelos meus instintos. A violência é instintiva, é a nossa natureza. Então, por que achar tão abismal a morte violenta de seres, agressões sangrentas, banalizações da vida? Se pararmos para avaliar, isso está inserido em nossas bases existenciais. Não fossem os dogmas religiosos, que céticos julgam pouco importantes para nossa organização humana, seríamos canibais. O temor a leis superiores nos adestrou. Fomos ensinados a matar, com regras. Ceifamos qualquer tipo de vida existente sobre a terra, desde que não seja humana. Com o tempo, adaptaríamos nossas regras. E passaríamos a matar, de qualquer forma, contanto que fosse para defender a vida. Estranha a expressão. Graduamos, então, nossa violência, colocando-a numa escala, separando o que é permitido e proibido. Mas, a violência permaneceu, sempre ao nosso lado, como a fiel guardiã existencial. Somos trogloditas, treinamos, brincamos de espancar, de bater. Assistimos a tudo, no jornal televisivo, conferimos na internet, enquanto nos deleitamos à mesa, entre uma garfada e outra.


Uma visita surpreendente Meu filho, hoje é um dia como outro qualquer. Aboletado em minha rede, sozinho, pensativo, apenas relembro. Como você sabe, eu não gosto de ligar para esse negócio de celular. Até esqueço que não é mais possível. Mas, estou com saudade. Há muito tempo, não consigo conversar. Quais são as novidades? Vejo que tem olhado para mim, para minha imagem, com um ar triste. Quando vem pelos corredores, fingindo que vai checar cada janela, apagar todas as luzes do prédio, e prostra-se diante de minha imagem, percebo que seus olhos se perdem, marejam. O olhar quer atravessar a grande foto, numa busca por movimentos, gestos, palavras. Imaginando, talvez, possibilidades tão transcendentais, como a minha visita à livraria. Até me arrepio, ao concebê-la. Certamente, eu dirigiria meu Fiat velhinho, estacionaria na minha vaga. Puxaria o freio de mão, estralando suas catracas de forma estridente. Escancararia a porta, para melhor me posicionar e sair do veículo. Sentando-me lateralmente, puxaria minha muleta, sempre bem encaixada na lateral do banco. Nesta chegada imaginada, antes de finalizar meu “caqueado” ritual para levantar-me do banco, já percebo sua aproximação. É real, meu filho. Caminhamos, juntos, com pequenos passos. Você me oferece, como sempre, apoio para andar. Acompanha-me a passos menores. Noto que consegue sentir o peso de minha mão a tocar-lhe o braço. Seu olhar cuidadoso varre o chão que pisamos. Abre-se a porta de vidro. Meu livro de memórias está bem destacado, logo na entrada. Há uma seção exclusiva para autores potiguares, por aqui!


Nem consigo ter ideia do tamanho da festa, nem do tamanho da emoção. Ao adentrar na livraria, antes de qualquer conversa, eu perguntarei pelo movimento, com certeza. Está dando certo, meu filho? Sabe como eu me preocupo. Vou cobrar a banda de música. Que toque Royal Cinema, de Tonheca Dantas, e encha o ambiente com entusiasmo. Eu saudarei a todos, daquele jeito. Uma palavra, tratamento especial para cada um. Elegerei muitos diretores superintendentes na Nobel, em cada um de seus recantos. Você conhece minha empolgação. Nada consegue detê-la. Da mesma forma, como nada conseguirá me afastar da sua vida. Lembre-se disso. Perceba que o sentir de aromas do passado, das cores e dos sons que fazem vibrar a alma; o folhear de um dos meus livros; ou o recontar de minhas histórias; tudo renovará a minha memória, e relembrará a força do Amor que une PAI e FILHO. Assim, exatamente dessa forma que está imaginando, o seu coração e suas lembranças me trazem para este encontro. Não quero repreender o seu choro, este resquício de dor que não consegue se desimpregnar da saudade. Estou aqui! Você sabe que sou meio desajeitado para beijos e abraços. Seus acenos e olhares abandonados, seus gestos amorosos parecem encontrar, somente, o vazio. Mas, tenha a certeza de que posso retribuí-los. Sou seu pai. Nós, os pais, temos a capacidade de estar onde os filhos querem e precisam que estejamos.


A pressa é o caminho

Noite tão rasa, já é dia. Chaves na mão, chocalhos, capacete, minhas vestes de fantasia, meu gibão. Hora de enfrentar os perigos da mata: bichos esquisitos, minhas armadilhas matutinas. Solavancos na montaria; esforço-me para não cair. Uma dor me aparece e desaparece, aqui e ali. Mesmo sem perceber o espinheiro, sinto o alfinetar de cada espinho. Garranchos de vento me riscam o rosto. Caatinga urbana, sol que me queima a casca, lugar rude para se viver. A pressa é o caminho. Em cada trilha cruzada, sigo aboiando. Parece não existir meio, somente começo e fim. Resistindo a tudo, saio por aí, cantando para mim. Ao redor, filas de veículos, levas de transeuntes estranhos, sem face, sem nome, sem o lado de dentro. A boiada não tem casa, nem pouso. Somos joões, marias, raimundos, seres solitários, vestidos com armaduras, presos em nossos mundos. Finjo que não os vejo. Eles também. Enfim, nos sentimos seguros.


Na esquina das saudades

Empurrado, ao sabor dos ventos Atiro-me ao mar Navegador, viajante Nada me acompanha Não sei quando Lugar que não tem fim Meu espírito me chama Enquanto o procuro Ente partido Ele clama Lembrança de voltar


Selvas de piso encerado

Parece estranho. Mas, existem selvas de piso encerado. Mesmo em lugares inimagináveis, pouco espaçosos, os arbustos brotam e se põem de pé. O transitar, nestes cômodos empestados, se restringe a trilhas demarcadas. Não raro, ouve-se algum chacoalhar nas folhagens. Em seguida, o toque-toque de calçados, em ronda desenfreada. Passando para um lado, para o outro, assemelham-se aos predadores famintos. Uma bufenta iminência do perigo vai demarcando os ambientes com seu perfume. Há sempre quem se considere ameaçado, personificando sua autocondescendência. Fingindo-se de vítimas, estes seres acomodam-se num esperar cauteloso. Como as mais frágeis criaturas, aquelas que se passam por mortas, readormecem. Nas sombras dos arbustos, invocam a proteção. No silêncio, procuram guarida. Enrolam-se no menor dos espaços, como embuás. Não encontrando vida, reação, aqueles saltos inquietos seguem demarcando territórios bem estreitos, vasculhando, revirando tudo. Com a veemência de uma agressão (não intencional), batem-se portas, janelas, gavetas. E coisas se atiram ao chão, como se os próprios corpos ali fossem jogados. Cada queda, um estampido de som que aperta no peito. Uma dor, outra dor. De vez em quando, um defrontar acidental de assombrações não permite alternativas. Nada de desespero. Nada de alegria, também. Murchando, como uma descuidista flagrada, a voz engasga para dentro, único esconderijo que lhe sobrara. Simples rotina, simples rotina das selvas mais traiçoeiras.


Manhãs de inverno

Retorno do mundo dos sonhos. E acordo certo, concreto, quase revigorado, quase angustiado, por ter que recomeçar tudo, inclusive o que não findou, só adormeceu, a esperar. Recobrando a consciência, agenda de tudo, deverei caminhar neste chão, mais uma vez. O frio, o cinza da madrugada, o medo da chuva, todos os medos se mancomunam com o gelo da hibernação. Enquanto calafrios rondam, lâminas afiadas põem-se a cortar, em pedaços, o rescaldo que findou empedrando, na calada da noite. Cada retalho, filete preciso, agora perfila, à minha frente. Meu desafio está posto. Estou ciente de que nada disso importa. Apesar da manhã de inverno, é preciso reiniciar. No camarim, preparo-me para enfrentar o meu destino. Roupas e adornos, vestes teatrais, figurino, fotografia. Ensaio cada cena, recoloco cada compromisso, isso, isso, no seu lugar. Contraponto ao tormento, ganho algum alento, conforto, ao reencontrar a luz do Sol, pássaros, sons, melodias, cantigas antigas, ressoar de esperanças. Certo, concreto mesmo, este não é mais o meu refúgio imaginário. Nem forte, nem fraco, afinal, aqui serei apenas real.


Velhos amigos Final de tarde. Encontro bem casual. Qualquer hora é hora para uma boa conversa. Uma xícara de café como anfitriã, e o abraço fraterno. Frente a frente, hora de liberar a pauta atrasada. Desavisadamente, os assuntos caíram na perigosa vala das lamentações. E tornaram-se tristonhos, melancólicos, simples constatações das fragilidades comuns. Foi um desfilar de doenças e pesos carregados sobre as costas. Mas, aí, de repente, recolhemos de nossos baús empoeirados peças (ainda muito bem conservadas) de nossa irreverência. Somos assim, presas fáceis do bom humor. Ainda bem. Entre uma piada sem graça e outra, rindo somente por amizade, misturamos café com bobagens. Refizemos, aos goles de capuchino, as melhores histórias, encontros, desencontros, pais, filhos, família, amenidades. E até nos demos conta de quão pequeno era o grande horizonte, que pensamos ter avistado um dia. A imortalidade, a audácia, a invencibilidade da juventude já se aquietaram, lá atrás. E, agora, prevalece nossa conveniente complacência com tudo. Conformados, guardamos os frouxos sorrisos, e voltamos aos nossos mundos.


SANGUE NO CANTO DO OLHO


1 Caía a noite desta sexta-feira, 19. Os instantes que antecediam a passagem de uma dita “manifestação” me deixavam apreensivo. Percebi a movimentação estranha de policiais, fortemente armados. Falavam com sotaque diferente. Talvez fossem integrantes da Força Nacional. Planejavam o melhor posicionamento para a “guerra” que se aproximava. Eu ouvia tudo, bem aproximado deles. Algum senso de preservação me aconselhava a correr para o interior da loja. Outra voz interior, mais forte, obrigava-me a ficar, e proteger a fachada. Permaneci, ali, parado, braços cruzados, na linha de tiro. Eu fitava a matilha de bichos encapuzados, que se aproximava rapidamente. O primeiro virou-se, em minha direção, gritou palavras de ódio, de raiva, e arremessou a primeira pedra. Foram várias e várias. Elas se estatelavam nos tapumes do prédio vizinho, o verdadeiro alvo. Eram pedregulhos, pedaços de louça, tijolos, que voavam, e caíam bem ali, ao meu lado. Não mexi um músculo, não me desviei, apenas fitei a matilha. Naquele instante, minhas mãos estavam frias, meus olhos atentos. Eu me envergonhava de minha espécie humana. Ao mesmo tempo, absorvia uma parte daquela ira, contaminava-me. E continuava olhando para cada um dos arremessadores. Talvez com o mesmo instinto animal, imbecilizado da mesma forma, eu planejasse o revide contra a exata pessoa (dentre os tantos) que me atacasse. Arrepiei-me, estufei o peito, e esperei que meu estopim fosse detonado. Eu chorava e sentia com tanta intensidade minha revolta que já me tornara um novo cão, pronto para a mesma luta violenta que abominava. Esperava apenas pela centelha.


2 Eles jogaram dezenas de pedras. Todas chegavam bem perto de mim. Desceram para o meu lado da rua, rasgaram os sacos do lixo que eu acabara de acondicionar na calçada. Pegaram mais pedras no chão. Meus olhos varriam as movimentações dos fantoches da violência, em seus saltinhos, no posicionar de suas mãos, no direcionamento dos arremessos. Repetia para mim mesmo: “covardes, por trás de suas máscaras!” Atrás de mim, estava uma porta de vidro, ainda intacta. Lá dentro da livraria, transeuntes já se teriam escondido, em pânico. Minha cólera era cega para alguns detalhes. Eu não via tudo que me acontecia. Somente mirava e encarava os combatentes. Como mais um idiota, tocado pelos mesmos rompantes de miséria humana, estava pronto para correr, alcançar, contra-atacar, com exatidão. Mas, tão rápido como se iniciaram, os ataques escasseavam. Os mascarados já se deslocavam, distanciando-se, carregados de pedras, paus, e muito ódio. Eu ainda tremia, suava frio, quando finalmente decidi arredar o pé da calçada. Fui ao meio da rua, recolhi o lixo espalhado pelos “manifestantes”. Mas, não consegui ficar calado. Falei ao primeiro grupo de retardatários (não encapuzados): “Por que rasgar os sacos e jogar o lixo na rua? É esse o sentido de cidadania que vocês conhecem?” Para meu espanto, as ovelhas acompanhantes responderam: “É para dar uma lição na Prefeitura ... É isso aí!” Meu choro que, um pouco antes, estava pronto, agora vacilava. Seria uma lágrima mal escorrida a lembrança desta noite. Como uma marca de sangue no canto do olho.


A VIDA (Em 7.12.2008)

Final de campeonato, um domingo especial de futebol. Sentado, à frente da tevê, esperava vibrar com os gols, as jogadas da rodada final do Campeonato Brasileiro. As emoções futebolísticas fariam meu coração bater forte. Sou torcedor do São Paulo, time pelo qual tenho simpatia, desde os tempos do mestre Telê Santana. O futebol é um esporte que me encanta, porque desafia a lógica, emociona, apaixona, surpreende. Enfim, tudo correu, conforme o esperado pela torcida tricolor. Jogo encerrado no Estádio Bezerrão; São Paulo sagrou-se campeão. Parecia que as emoções se apaziguariam e, como torcedor, eu me aprazeria com a merecida festa da vitória. Eis que, em meio à comemoração do título são-paulino, a Tv Bandeirantes passou a transmitir flash de outro acontecimento. De repente, surgiram as imagens trágicas de um torcedor vascaíno. Ao contrário do São Paulo, o Vasco estava na ponta de baixo da tabela, e teve a sua queda decretada para a segunda divisão do Futebol Brasileiro. O jovem torcedor, chamado Nando, apresentava-se transtornado, agarrando-se à beira da marquise do estádio São Januário, pronto para precipitar-se de uma altura de 20 metros. Nesse instante, meu coração de torcedor apertou-se, como se estivesse assistindo à cobrança de um pênalti contra o meu time. Não sabia se desligava o televisor, ou se virava de costas. Mas, fiquei com os olhos grelados nas cenas, muito assustado, até sussurrando, pedindo baixinho para que parassem de transmitir aquelas imagens insuportáveis.


O rapaz, que estava tomado pelo desespero, tentava o suicídio, e transmitia fielmente a mensagem de amargura de um torcedor derrotado. Agarrado na ponta da marquise, estava quase caindo, sem forças até para retornar; já passara mais de meio corpo da beira. Na arquibancada, abaixo dele, os torcedores esqueceram, por um instante, de chorar. Todos olhavam para cima, percebendo a gravidade da situação. Começaram a estender uma grande bandeira vascaína, na esperança de amparar a provável queda do suicida. Eu queria poder ajudar, também; como gostaria de fazê-lo! Cerrava o punho, remexia-me na cadeira, mas sabia da minha impotência diante dos acontecimentos. Então, comecei a pedir por aquela pessoa tão desconhecida. Eu torcia pela “defesa milagrosa do goleiro”. Os bombeiros se aproximaram do suicida, e ele se desesperava ainda mais; e eu também estava me desesperando junto. Meu Deus, como uma vida pode se esvair dessa forma? Não permita, não permita! Num lance mágico, como um goleiro que se joga no canto certo, um bombeiro herói alcança o jovem suicida, puxando-o para o lado da vida. A minha felicidade foi tanta que soquei o ar, em comemoração. Nem me importei mais com futebol, com campeonato, com gols. E, para Nando, o jogo terá prorrogação; sua real peleja, agora, poderá ser continuada, quem sabe, vencida. A verdadeira campeã tinha sido, por fim, revelada.



Pousamos numa breve calmaria, enquanto inquietações, violência, indiferenças, rodas de gelo e fogo nos serpenteiam, avisando que o tempo não parou. Miramos o que parece não concluído, batendo o pó da estrada. É certo que para o pó do nosso destino sempre retornamos. Mais uma vez, é chegada a hora de renascer. Perguntaremos aos sonhos sobre suas propostas, sobre o futuro. Enquanto nossas mãos se levantarão, para venerar a mística da vida. Aqui, nem tudo se resumirá a perda ou ganho, começo ou fim. É tempo de mãos fraternas. A mão do pedinte suplica. A mão do amigo se dispõe em prontidão. A mão que acena despede-se do tempo. A mão que gela treme de medo, titubeia, sem prumo. A mão que espalma festeja. A mão que toca tateia o mundo. A mão que pressente sente. A mão que chama acaricia. Definitivamente, uma mão cerrada entrega-se à batalha de festim. Recolhemos no chão os corpos vencidos, respingos da solidão, da angústia que nos esvaziava. Outras mãos, que se abrem, vão acolhendo todos os abraços. Acolhem o que há de novo. Enfim, a força do Amor nos conclama ao entusiasmo, à esperança. Porque é tempo, e ainda há tempo! Eu digo sim.


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Aluísio Azevedo Júnior www.aluisioazevedo.net aluisioazevedo@hotmail.com.br


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