Programa Alkantara Festival 2016

Page 3

Será que alguém poderá dizer — Já sei o suficiente do passado posso dedicar-me ao futuro? Com esta pergunta, uma das muitas de Segunda-Feira, Cláudia Dias e Pablo Fidalgo Lareo dão o tom ao 14ª Alkantara Festival. O espetáculo começa no ano mágico de 1974 (ano da Revolução de abril, mas também do mítico combate entre Ali e Foreman em Kinshasa) e é apenas um dos vários títulos presentes num festival de artes contemporâneas que se debruça sobre o passado ou que procura conectar-se com a tradição. As nuvens escuras que pairam sobre a Europa (e, no fundo, um pouco por todo o mundo) inverteram o clássico antagonismo progressista versus conservador. Hoje ser-se “progressivo” no sentido mais lato do termo (isto é, acreditar que podemos fazer melhor enquanto sociedade) significa tentar preservar um conjunto de valores contra forças que os vão lentamente consumindo. Nesse sentido, os progressistas esforçam-se por conservar; os conservadores lutam pela mudança. Tudo isto poderia apresentar-se de uma forma negativa. Em vez de criar novas visões para o futuro estamos provavelmente demasiado focados numa luta à retaguarda. É de salientar, contudo, que este conservadorismo progressista tem, pelo menos, a valência de nos relembrar que o progresso nunca é um processo linear e que nos obriga a repensar a nossa relação com a história. Alguns dos artistas desta edição vêm de partes do mundo que, na sua história recente, viveram momentos drásticos de ruptura (descolonização, revoluções...) e dão voz a uma percepção crescente de que temos de regressar ao ponto em que rompemos com o passado para que possamos entender quem somos, onde estamos (e talvez essa ruptura não tenha sido tão radical quanto pensávamos) e para onde vamos. Esta é uma ideia muito presente no trabalho do Artista na Cidade Faustin Linyekula, que ao longo da última década tem utilizado o seu corpo e o dos seus cointérpretes em palco como um meio de ligação ao passado. Tanto Taoufiq Izeddiou como Radouan Mriziga, ambos oriundos de Marraquexe, criam, de formas opostas, elos entre a sua dança contemporânea e a herança de uma riquíssima cultura islâmica – que vai muito além dos clichés que infetam o modo como o ocidente olha para o mundo árabe. Outros ainda investigam as origens das suas próprias práticas artísticas. Takao Kawaguchi mergulha até à tradição do butô do pós-Segunda Guerra Mundial e centra-se num dos seus fundadores mais radicais e coloridos, Kazuo Ohno. Christiane Jatahy e tg STAN partem de textos de Anton Tchechov (respetivamente As Três Irmãs e O Cerejal) para retratar temas contemporâneos como a emigração. Os Contos de Joselín revisita um dos tesouros escondidos da cultura popular galega e as suas sempre relevantes histórias de poder, morte e dinheiro. Joris Lacoste, por seu turno, recorre ao stock inesgotável da palavra falada e sobrepõe expressões vocais extraídas da cacofonia do mundo - discursos políticos, conversas telefónicas, uma aula de ginástica, palavras de amor e ódio – para redefinir a forma como essas palavras ressoam juntas, libertando o seu potencial dramático, trágico ou cómico. Roger Bernat abre-nos as portas da história do cinema para explorar a sempre difícil relação entre o público e a intimidade. E Colletif Jambe regressa às origens dos jogos para entender as noções básicas das regras e das leis na sociedade. Contra a globalização da cultura, tantas vezes fachada de um mercado globalizado que põe em risco o controle sobre os nossos destinos, outros criadores tendem a focalizar-se em questões locais que, ainda assim, continuam a ter um eco universal. Ao colocar em palco o seu irmão Yasser, Rabih Mroué revisita o cenário trágico da guerra civil libanesa, levantando questões de memória e de representação. Arkadi Zaides, através das câmaras do projeto B’Tselem, olha para o impacto de meio século de ocupação na sociedade israelita. Por mais díspares que sejam as motivações e as línguas destes criadores, há um ponto em comum: o olhar que lançam ao passado não é nostálgico, mas sempre crítico, delicado e incisivo. E muitas vezes repleto de humor sério: El Conde de Torrefiel e o seu retrato de uma geração europeia perdida; Federico León a jogar ping pong com o seu próprio processo criativo; Philippe Quesne a reunir Platão e um grupo de toupeiras numa caverna, algures entre Altamira e um abrigo atómico. Todos eles demonstram que profundidade e ligeireza não são insustentavelmente opostos. O Alkantara Festival 2016 permanece um exercício de fazer muito com muito pouco. Se não houve uma evolução substancial da precariedade das condições relativamente a 2014 – quando tornámos público o risco da não continuidade – optamos por continuar a atravessar o oceano, tal como a maior parte do sector cultural em Portugal. Animados pelas recentes mudanças políticas do país, perguntamo-nos se a cultura será capaz de restaurar a sua viabilidade e capacidade de desempenhar um papel vital nos grandes debates da sociedade. Um futuro próximo dirá se esta é mais uma apreciação ingénua ou se há realmente terreno fértil do outro lado.

P.04

Will anyone be able to say – I know enough about the past to dedicate my time to the future?

Regresso ao futuro (Navegar é preciso)

With this question, one of many in Monday, Cláudia Dias and Pablo Fidalgo Lareo set the tone for the 14th Alkantara Festival. Monday starts in the magical year 1974 (of the revolution but also of the famous Ali-Foreman fight in Kinshasa) and is just one of the many works in this contemporary arts festival that look to the past or seek a connection to a tradition. The dark clouds gathering over the European continent (and pretty much the rest of the world) have upset the classic progressive-conservative antagonism. These days, to be “progressive” in the widest sense of the word (that is, to believe that we can do better, as a society, than we are doing now) means to try to hold on to/preserve/defend a set of values against the forces that are eating away at them. So the progressives struggle to conserve, while the conservatives fight to change. This could be cast in a negative light. Instead of creating new visions for a future, we progressives seem perhaps too focused on our fighting retreat. But as we look back, we are reminded that progress is never a linear process, and we are prompted to reconsider our relationship with history. Some of the artists of the festival, coming from parts of the world that were at the breaking point not too long ago (decolonization, revolutions...), give voice to a growing understanding that we have to return to the point where we broke with the past in order to understand who we are, where we are now (and maybe this breaking point wasn’t as radical as we had dreamed?) and where we are going. This idea is very much present in the work of Lisbon’s Artist of the City Faustin Linyekula, who over the past ten years has used his body on stage, and those of his coperfomers, as a medium to connect to the past. Both Taoufiq Izeddiou and Radouan Mriziga, born and raised in Marrakesh, link their contemporary dance practice to the heritage of a rich Islamic culture in very opposite ways, but always far beyond the clichés that infect the way the west looks at the Arab world. Others investigate the origins of their own artistic practice. Takao Kawaguchi digs into the postWWII tradition of Butoh and one of its most radical and colorful founders, Kazuo Ohno. Christiane Jatahy and tg STAN both use the words of Anton Chekhov to describe contemporary phenomena like emigration. Contos de Joselín revisits a hidden treasure of Galician popular culture and its ever-relevant stories about power, death and money. Joris Lacoste draws on the endless resource that is the spoken word, superposing the vocal expressions extracted from the hullabaloo of the world – political speeches, phone conversations or a gym class, words of hate and love – to allow the fullness of their theatrical, dramatic, tragic and comedic power to reverberate. Roger Bernat invites us to step into film history to explore the difficult relationship between the public and the intimate. And Collectif Jambe returns to the origins of games, to understand basic notions of rules and laws in society. In opposition to the globalization of culture, the facade on a market globalization that threatens our fundamental control over our destinies, artists tend to focus on local issues, albeit with universal resonance. Setting his youngest brother Yasser against the tragic backdrop of the Lebanese Civil War, Rabih Mroué lays bare fundamental questions of memory and representation. Arkadi Zaides looks through the camera lenses of the B’Tselem project at the impact of half a century of occupation on Israeli society. However different their motivations and languages, these artists have one thing in common: their looking back is never nostalgic, but always critical, delicate and sharp, often with a serious sense of humor. El Conde de Torrefiel’s portrait of Europe’s lost generation; Federico León playing ping pong with his creative process; Philippe Quesne bringing together Plato and a bunch of moles in a cave, somewhere between Altamira and an atomic bomb shelter – all are examples that depth and lightness need not be contradictory. The Alkantara Festival 2016 remains an exercise in doing lots with very little. Although the precariousness of our condition has basically not changed since we publicly assumed that the continuation of the festival was in danger in 2014, we have opted to extend the crossing of the ocean, like much of the Portuguese cultural sector. Heartened by the recent changes in our political landscape, we hope culture will be able to restore its viability and vital role in society’s major debates. The near future will tell if this is another naive assessment of if there truly is dry land ahead. Thomas Walgrave and the Alkantara Festival team

P.05


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.