Lugar de Passagem: uma história contada por Manoel Alves

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7 2 rio Manoel Alves rio Seco rio Tajuva rio Forquilha rio Pingador rio Camargo Morro Grande rio Morto Meleiro rio Mãe Luzia rio Araranguá oceano Atlântico Içara Criciúma Maracajá Araranguá Turvo Timbé do Sul Forquilinha 1 4 7 10 2 5 8 11 3 6 9 12 Curso do Rio Manoel Alves LO S N 1 2 5 7 10 11 12 1

Lugar de Passagem

uma história contada por Manoel Alves

Os rios que eu encontro vão seguindo comigo. Rios são de água pouca, em que a água sempre está por um fio. Cortados no verão que faz secar todos os rios. Rios todos com nome e que abraço como a amigos. Uns com nome de gente, outros com nome de bicho, uns com nome de santo, muitos só com apelido. Mas todos como a gente que por aqui tenho visto: a gente cuja vida se interrompe quando os rios.

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APRESENTAÇÃO

Lugar de Passagem – Uma história contada por Manoel Alves é um projeto aprovado pelo Prêmio Elisabete Anderle de Apoio à Cultura/Artes (2020), por meio da Fundação Catarinense de Cultura (FCC) do Estado de Santa Catarina, que se propôs a explorar as relações históricas e geográficas do rio Manoel Alves através do registro fotográfico de seu percurso e de uma narrativa ficcional resultando neste material gráfico.

Poder percorrer o itinerário do rio – que nasce no pé da Serra Geral, na comunidade de Três Barras/Morro Grande, passa pelo município de Meleiro, deságua no rio Mãe Luzia até se encontrar com o mar – foi uma oportunidade incrível de redescobrir estes lugares e de poder registrar um pouco de suas belezas e peculiaridades que merecem ser exibidas.

O rio Manoel Alves é formado por um conjunto de nascentes que crescem longe dos olhos humanos e tem passado despercebido pelos cidadãos que habitam seu entorno. É um dos recursos naturais indispensáveis aos seres vivos, além de ter grande importância cultural, social, econômica e histórica para a região. Enxergar o rio pela sua beleza pura, através de um olhar sensível e demorado, revela-se como uma possibilidade de reaproximar o ser humano da generosidade da natureza.

Esta publicação apresenta-se, portanto, como um recurso pedagógico transdisciplinar para que professores e professoras dos municípios de Morro Grande e Meleiro possam mediar novas pesquisas e interatividades entre estudantes, comunidade e meio ambiente.

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rio ManoelAlves 6 7

Ah, infeliz daquele que por algum motivo não viu o tempo alterar seu curso entre momentos turbulentos, calmos e por vezes até parados! Porque todo dia é diferente e benza-deus que é assim! Já pensou viver a vida inteira no mesmo ritmo, no mesmo jeito?

Tem vezes que as coisas vão acontecendo tudo junto sem parar, parece que a gente não vai dar conta de tanta coisa e se enche, quase que extravasa os limites e adentra em outros lugares. As pessoas não querem atravessar por estes momentos, mas eles chegam sem dar aviso e vão embora assim como chegaram. Só as marcas ficam!

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Rio Seco 10
rio Tejuva 12
Rio Pingador 14 15

Mas você sabe: tem quem queira viver isolado. Se bem que, até certo ponto, dá para tomar lonjura das outras pessoas. O que não dá é fechar os olhos e viver sem ver, sem sentir as coisas. Tem coisas que a gente só conhece quando os olhos estão fechados. Me diga: dá pra mergulhar em água gelada e não sentir o corpo endurecer e a alma amolecer? Digo por mim: não dá, a vida carece de ter coragem.

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tema o movimento: estas mudanças que nunca acabam e que sempre se transformam em outras coisas.

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De primeiro, tem meu nome: Manoel Alves. Contam que fui chamado assim, depois que um homem – dizem importante – desapareceu quando estava caminhando rio adentro. Ele vinha de longe, no lombo do cavalo, com sabedoria aprendida na prática para desenhar as curvas dos rios. E faz tempo, foi em 1860, ou quase isso. Época difícil, de mata fechada, de começo, de calos nas mãos, de luta e de sangue, e de tantas outras misérias e injustiças. Este fato, nada tem registrado em papel carimbado, destes que defendem a verdade das palavras. Só tem mesmo, a palavra falada pelas pessoas sábias, estas que guardam um punhado de vivências no bolso da memória.

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aquelas pedras. De cima, dá pra ver, e bem, o caminho onde passo. Que nem rastro de formiga: de tanto passar no mesmo lugar, afunda a terra. Mas a verdade é que: o caminhar, se dá pelo meio.

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A mata, úmida e sombreada por Tajuvas, é morada dos bichos mansos, compositores

Pedras tem aos montes: grande, comprida, redonda, pequena, afiada, miúda, repartida, furada e até pintada. Boa para base de casa e estrada, melhor ainda, é para o poeta, que tem sabedoria para tirar fogo de pedra.

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O que sei, é que pedra não gosta de mudança. Ficam ali no mesmo lugar, esperando, sabe-se lá o que. Tem vezes, só quando fico agitado, me lanço com força nas pedras, só para ouvir elas gritarem. Pedras, quando querem, são boas para barulho, e, quando querem, são boas para silêncio. Entre cachoeiras e rio Seco, no silêncio das palavras, o coração é que cadencia a caminhada.

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Sei que estou contando pelos altos, pulando partes, pois preciso avançar com esta história, procurar as saídas. Que nem água de rio: sempre escoa para algum lugar. E, quando não escoa, é tirada aos baldes. Porque tem disso. Abrem-se desvios para matar a sede da terra que depois de lavrada, fará crescer plantas e sustento. Aqui, uma vez, existiam muitos grãos que diversificavam a produção. Hoje, tem apenas um que domina quase toda a região: o grão de arroz. A paisagem, que já enfrenta a troca das estações, se modifica em cada etapa do cultivo.

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Em época de terra arada, nua, só aparece a cor marrom-avermelhada. Os tons frios e quentes do céu; as nuvens brancas, cinzas, quase pretas; o verde forte e fraco do mato e da montanha: ficam todos de briga para ver quem chama mais atenção com a cor da terra arada. Depois vem o

destorroamento, só quem é trabalhador do arroz ou bom conhecedor é que sabe de todo preparo que a terra precisa até receber a semente. Será que tem algum entendedor da língua da terra para perguntar se ela consente com tanta mexeção? Não sei. Só sei que tem que ter limites!

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Quando todo o preparo está pronto, a terra fica escondida pela água, até vestir a semente com um broto verde e comprido. Quando isso acontece, parece que o céu encosta na terra e as nuvens caem sobre o espelho da água que enchem as granjas de arroz. Água esta que vem do reservatório das nuvens, dos açudes e do rio. Coitado do rio, as vezes ele nem dá conta!

O broto crescido e cacheado faz na paisagem um tapete verdejante, desses de perder de vista. O calor e o passar dos dias é que transformam este tapete em amarelo cor de palha, dando sinal de amadurecimento. Assim começa a corrida dos trabalhadores do arroz para cortar toda a produção antes da chuva e do vento. Quem vive do arroz também vive em pé de guerra com o tempo.

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E desse alongamento da paisagem vem também o alongamento da relação. Explico melhor: se é o rio que vai pra terra, que da terra faz brotar o alimento, que vem ser a comida nossa de todo dia, pergunto: quanto de rio têm no nosso prato?

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Deixamos de lado as deambulações e vamos andando com minha história, porque logo depois de passar por aquele Morro Grande, me encontro com outro amigo, de grande generosidade. Mas coitado, tem nome de defunto! Queria saber o motivo do seu nome, se ele nem parece estar Morto! Quando chove ele fica marrom, que nem cor do barro: uma tinta tão forte que me tinge inteiro. Mas bonito é ver nosso encontro, quase sempre estamos animados, cheios e dispostos para seguir no mesmo trajeto. Andanças da vida!

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Passarinho que voa, tem visão privilegiada. Consegue ver do alto todo nosso percurso. Me contou outro dia que ando em ziguezague. Este costume vem desde pequeno, não tem quem me põe jeito de andar em linha reta! Venho no embalo, sem pressa, quero mesmo é desviar dos obstáculos. Jornada sinuosa, que nem quando ensaio a escritura da letra M. Ensaio tanto que consigo um M bem aparente.

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Não sei, pode ser coisa do acaso, mas quando consigo é bem na travessia pelo Meleiro – produtor antigo de mel – que hoje só leva o nome. E não é que isso acontece bem no meio do meu percurso! Que também é letra de Manoel e do Morro Grande por onde passo! Devo de ter alguma cisma com o M. Complexo esses meandros!

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Sei que cansa todo este vai e vem. Veja: jovem, que tem brilho refletido pelo sol, é desassossegado por mudança. Crescem aos altos, sem economia nas manobras. Depois de crescido, muda um leito: quer espaço para ficar abeirado pelas belezas puras da redondeza, margeado só de gente boa. Pura ilusão. O agito de todo dia faz com que as pessoas se cruzem quase sem se ver. Tem vezes que sou acometido por estes desgostos, de passar despercebido por tudo e por todos. A culpa é dos compromissos - agentes da cegueira - que empurram a gente para algum lugar, e nem sequer perguntam se é de nosso agrado.

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É que o ser humano se acostumou a fazer pontes, para passar de uma margem a outra do rio. E nem importa se é de madeira, cimento ou arame: a perseguição com os compromissos da vida, impedem de olhar para o que passa por baixo da ponte. Salvo aqueles que, feitos de astúcia e ousadia, conseguem ir e vir de uma margem a outra sem deixar de perceber as nuances de cada dia.

Rio Mãe Luzia
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Em meio ao tráfego, neste vai e vem, sigo sozinho de amigos e de amor. Queria mesmo era apostar em jogo de sorte, para encontrar um amor – dos grandes. Eu, sonhador que só, sempre acreditei de ter noiva para dividir comigo as meandragens do caminho.

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Por sorte que, depois de tanta andança, encontrei protetora Mãe Luzia. Moça feita, valente, que vem de longe e carrega junto história triste, dessas de ficar a um passo da morte. Tive um pouco de medo: medo por não saber a combinação que este ajuntamento de história resultaria. Porque a gente nunca sabe o que vem depois. Mas eu que já trazia na mente vontade de ter uma noiva, fui logo tratando de criar coragem para pedir Luzia em casamento. Nem padre, nem benzedeira: na lonjura dos barulhos e no sossego do nosso encontro, só natureza é testemunha da confluência da nossa união.

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Com desempenho de quem já encarou de frente os caminhos mais difíceis, eu e Luzia demos conta de ampliar nosso leito para deixar fluir nossa junção. De tanto movimento e tantas moldagens, aos poucos, a gente cresce de tamanho e de relevância! Quantas vezes pensamos que nada acontece, que todo dia é igual a ontem e que será igual a amanhã, numa mesmice sem fim? Há de se aprender a ter calma, porque a vida não acontece só no instante da nascença ou do falecimento, ela acontece nas miudezas da travessia. É que em todo crescimento tem um pouco de lerdeza.

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Vagueando nos desejos refletidos em cores que se alteram frequentemente, em meio ao tráfego que corta e costura nossas margens perdidas entre ruas e calçadas, evidencia-se chegada de mudanças vertiginosas. Por vezes, são os pássaros que, aos gritos, conduzem nosso curso. Depois tem as montanhas de areia que afundam nosso pé só para desacelerar a passada e deixar o olhar divagar. Mas nunca, nunquinha, pensamos encontrar tamanha imensidão de água agitada, e salina, e divertida, e perigosa.

Rio dos Porcos
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Ri o Araranguá

De costas para o mundo, deixamos para trás todo nosso feito para defrontar com tamanha grandiosidade. Trêmulos pelo vento que assovia canto desconhecido, insiste dizer que não existe limite capaz de desfazer toda nossa história. Neste instante de maravilhamento, temos necessidade de ser outra coisa: metamorfoseamo-nos em mar.

Oceanto Atlântico
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REFERÊNCIAS

COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

GOVERNO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. Plano de recurso hídricos da bacia do rio Araranguá. Etapa B Profill: Porto Alegre, 2014. Disponível em: <https://bityli.com/ qhARE> Acesso em fev 2021.

MATTOS, Eder. Meleiro: um fértil chão chão. Documentário escolar. 1982

PREFEITURA MUNICIPAL DE MELEIRO. Plano diretor municipal: Meleiro Meleiro. Consórcio Hardt-Engemin, 2008.

RONCHI, Fanir Alexandre. Meleiro: seu povo, seus costumes e suas histórias costumes e suas histórias. [s.l]: [s.d], 2001.

ROSA, J. Guimarães. Grande Sertão: veredas veredas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

____. A terceira margem do rio rio. In: Ficção completa: volume II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 409-413.

SANTA CATARINA. Meleiro: Doce magia de um povo hospitaleiro hospitaleiro. Forquilinha/SC: Gluck Edições Ltda, 2007.

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GUIA DE LEITURA

O rio Manoel Alves ou Mané Larve, como é chamado popularmente, está inserido na bacia hidrográfica do rio Araranguá do Extremo Sul Catarinense. Recebeu este nome em meados de 1860 para homenagear o agrimensor prático que fazia mapas de rios e grandes afluentes na região –quando esta ainda pertencia a região de Laguna. É possível encontrar nos documentos de registro geográficos e em alguns documentos históricos diferentes variações da grafia do seu nome: Manuel Alves; Manoel Alvez e Manoel Alves. Porém, devido as adaptações linguísticas, tem-se adotado a escrita do último nome com maior frequência. De acordo com o mapa geomorfológico da região, sua nascente está localizada em fundos de vales da Serra Geral, na comunidade de Três Barras, que é pertencente ao município de Morro Grande e faz limite com o estado do Rio Grande do Sul. O Plano Diretor do Município de

Meleiro (2008) descreve-o como um rio que nasce nos morros, com vales pouco profundos, encostas íngremes e vertentes suavizadas. Próximo a sua nascente, existem paleotocas –cujo interior é possível de ser visitado – que foram escavadas nos morros de arenito por animais gigantes extintos há mais de 10 mil anos.

O município de Meleiro é o segundo a ser atravessado pelo rio, sendo a sua principal bacia hidrográfica. Em pesquisas por satélites é possível identificar que o meandro do rio – caminho tortuoso de seu curso – forma no centro do município a letra M – de Manoel Alves, de Morro Grande, de Meleiro, de rio Morto, de rio Mãe Luzia e de meio.

É na comunidade de Sapiranga, pertencente ao município de Meleiro, que o rio Manoel Alves se encontra com o rio Mãe Luzia para ajudar na formação do rio Araranguá.

Este último, de grande volume e coloração variável, passa pelo município de Araranguá e deságua no oceano Atlântico pela praia do Morro dos Conventos.

Segundo pesquisas feitas via satélite, a extensão do rio Manoel Alves é de aproximadamente 55,74 km, conectando o conjunto de suas nascentes até o encontro com o rio Mãe Luzia. Juntos percorrem cerca de 5,92 km até o rio Araranguá, que, até se encontrar com o oceano Atlântico, percorre mais 32,63 km.

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O conjunto de nascentes que compõem a formação do rio Manoel Alves é composta por: rio Manoel Alves; rio Seco; rio Tajuva; rio Forquilha; rio Pingador; rio Camargo. Em seguida recebe os afluentes do rio Pilão e rio Morto. Ainda existem outros dois afluentes possíveis de visualizar em imagens de satélite e que não possuem nomes. Sendo eles: o rio da cachoeira do Bizungo e o rio que passa pela comunidade de Nova Roma.

Embora o rio Manoel Alves tenha relevância econômica e de subsistência para os municípios de Morro Grande e Meleiro, ele é também uma fonte para as relações simbólicas e afetivas com os moradores que vivem em suas margens.

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Projeto selecionado pelo Prêmio Elisabete Anderle de Apoio à Cultura – Edição 2020, executado com recursos do Governo do Estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de Cultura.

Lugar de passagem – Uma história contada por Manoel Alves

Idealização e execução do projeto AIONARA PREIS GABRIEL

Fotografia e produção textual AIONARA PREIS GABRIEL

Revisão textual

CAROLINA ZARTH

Projeto gráfico TINA MERZ

Impressão

As tipografias utilizadas são Tiempos e Poly. A impressão foi realizada na Elbert Indústria Gráfica. 1º edição, Meleiro/SC, agosto de 2021. 72p.

ISBN 978-65-00-24555-4

https://projetolugardepassagem.blogspot.com/

Projeto selecionado pelo Prêmio Elisabete Anderle de Apoio à Cultura – Edição 2020, executado com recursos do Governo do Estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de Cultura.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Gabriel, Aionara Preis

Lugar de passagem : uma história contada por Manoel Alves / Aionara Preis Gabriel. – – 1. ed. –– Meleiro, SC : Ed. da Autora, 2021.

ISBN 978-65-00-24555-4

1. Ecologia 2. Ficção brasileira 3. Fotografia I. Título. 21-68670

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção : Literatura brasileira B869.3

Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB-1/3129

CDD-B869.3

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Apoio: Realização:

Município de Meleiro Município de Morro Grande

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