Pensando com Paulo Freire

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Pensando com

Paulo Freire

1a. edição


Série Realidade Brasileira Pensando com Paulo Freire Realização: TV Educativa do Paraná / Governo do Paraná Ministério da Cultura / Governo Federal Parcerias: Escola Nacional Florestan Fernandes Fundação Darcy Ribeiro Coordenação: Elson Faxina Evelaine Martines Ficha técnica do caderno no. 2: Pensando com Paulo Freire Autores: Ana Inês Souza e Marco Fernandes Organizadores: Elson Faxina e Evelaine Martines Ilustração: Anderson Augusto de Souza Pereira Projeto gráfico e diagramação: Bernardo Vaz Diagramador assistente: Rafael Gregório

S729p

Souza, Ana Inês Pensando com Paulo Freire / Ana Inês Souza, Marco Fernandes; ilustrado por Anderson Augusto de Souza Pereira. – Guararema, SP: Escola Nacional Florestan Fernandes, 2010. 56 p. : il. (Série Realidade Brasileira / organizada por Evelaine Martines e Elson Faxina) Acompanha material audiovisual sob o título Pensando com Paulo Freire. ISBN xxx-xx-xxxxx-xx-x 1. Educação - Brasil. 2. Ciências Sociais - Brasil. 3. Intelectuais - Brasil. 4. Filosofia da educação – Brasil. I. Fernandes, Marco. II. Escola Nacional Florestan Fernandes (Brasil). III. Título. CDD: 370.981 CDU: 37 (81)


Apresentação Este caderno, intitulado Pensando com Paulo Freire, faz parte da série Realidade Brasileira – grandes pensadores, composta, nesta primeira fase, de seis documentários produzidos para televisão e, ao mesmo tempo, destinados ao estudo nas universidades, bibliotecas públicas, pontos de cultura e movimentos sociais brasileiros comprometidos com a democratização estrutural da realidade política, econômica, social e cultural do país e da América Latina. A finalidade desta série é documentar e incentivar a discussão das ideias, obras e práticas sociais dos principais pensadores brasileiros que marcaram o século XX, propondo leituras críticas profundas da realidade de seu tempo e vislumbrando novos caminhos que deveriam ter sido trilhados naquele momento por governantes, lideranças políticas, empresariais, sociais, culturais e religiosas para que as transformações de base que visassem à construção de uma nação independente, soberana, livre e democrática pudessem ter tido ali o início de sua construção. São todos, necessariamente, pensadores já falecidos, mas, acima de tudo, aqueles cujas ideias não envelheceram e continuam incontestavelmente atuais a desafiar as lideranças deste limiar de novo milênio. Assim, nesta primeira fase, foram produzidos documentários sobre os seguintes pensadores: Caio Prado Junior, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Madre Cristina e Paulo Freire. Cada documentário audiovisual trata de um único pensador, tem em média 54 minutos de duração e está dividido em três blocos para veiculação em uma hora de televisão. Apresentação

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Cada documentário é acompanhado de um caderno, que busca ampliar o conhecimento e as reflexões referentes ao respectivo pensador, a fim de estimular e orientar professores e monitores em como usar este documento audiovisual em sala de aula, grupos de estudos, pontos de cultura ou comunidades que se reúnam com o objetivo de conhecer a realidade brasileira e encontrar formas de contribuir na transformação social, de forma a garantir que vivamos em uma sociedade justa e, portanto, radicalmente democrática. Esses cadernos, portanto, devem ser tomados como uma ferramenta de trabalho, que possa ajudar a aprofundar os conteúdos dos documentários. E, para isso, foram reproduzidos oito mil kits, distribuídos a televisões públicas, bibliotecas públicas, pontos de cultura, organizações sociais e culturais e próreitorias de extensão das universidades públicas de todo o país. Espera-se, com isso, possibilitar aos estudantes, aos militantes dos movimentos sociais, aos frequentadores dos pontos de cultura e à audiência das televisões do campo público conhecerem o pensamento, as obras e as atuações política, social e cultural de pensadores que marcaram a história do Brasil, e que são pouco difundidos hoje pela grande mídia, levando-os a compreender os princípios básicos e elementos fundamentais do pensamento do respectivo autor e estimulá-los à leitura de suas obras. Nosso horizonte é estimular o público jovem a ampliar o conhecimento sobre a sociedade brasileira, bem como fomentar a consciência crítica ao pensamento hegemônico ora vigente. Esta série de documentários e respectivos cadernos se justifica pela inexistência de um material com esses objetivos didáticos e, ao mesmo tempo, de difusão e aprofundamento do pensamento, obras e práticas desses pensadores, que possa

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alcançar tão amplo leque, que vai do público televisivo aos estudantes e militantes de causas sociais. Por isso, graças ao apoio do Ministério da Cultura (MinC), a TV E-Paraná e a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em parceria com a Fundação Darcy Ribeiro (Fundar), deram início a esse projeto. A produção desta série surge da experiência da ENFF em organizar cursos sobre a realidade brasileira, por meio de parceria com diversas universidades, e tem o objetivo de completar, numa segunda fase, 20 documentários e respectivos cadernos que possam nos ajudar a pensar questões políticas, econômicas, sociais e culturais de nosso país, tomando por base a vida e obra de 20 dos mais renomados intelectuais, pensadores e pesquisadores brasileiros. Para assegurar a qualidade técnica de conteúdo e linguagem tanto impressa quanto audiovisual dessas produções foi constituída uma coordenação geral, com a orientação de diversos consultores, intelectuais que têm conhecimento científico sobre os pensadores selecionados. Com isso, os conteúdos trabalhados nos documentários foram indicados pelo respectivo consultor, que também produziu um caderno, com informações e reflexões referentes ao pensador. No caso deste Caderno, referente a Paulo Freire, a consultora foi Ana Inês Souza, que contou com o apoio do historiador Marco Fernandes. Ambos traçam a trajetória de Paulo Freire e apresentam trechos de várias de suas obras, bem como a palavra de alguns escritores que escreveram sobre este educador. Por outro lado, coube a nós também o acompanhamento da produção dos documentários para TV, a fim de garantir uma qualidade final que compatibilizasse a densidade do conteúdo e das reflexões do autor com a leveza de ritmo narrativo do Apresentação

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audiovisual. Nossa preocupação foi manter um rigor técnico e profissional que dessem a cada documentário condições de ser veiculado em qualquer canal de televisão de sinal aberto, assim como em salas de aula e ambientes específicos de projeção audiovisual. Neste sentido, o documentário audiovisual que traz o mesmo título, Pensando com Paulo Freire, foi produzido por Tânia Quaresma e busca harmonizar os depoimentos de diversos intelectuais e do próprio Paulo Freire com uma sequência de cenas de um processo comunitária de educação popular. Cremos e esperamos que este conjunto, formado por documentário audiovisual e caderno, possa nos ajudar a aprofundar um pouco mais o conhecimento sobre um dos homens mais importantes que o Brasil gerou no Século XX; alguém que lutou em cada dia de sua vida para a construção da autonomia do brasileiro como senhor de direitos e sujeito de sua própria história. Que essas duas obras - documentário e caderno - nos ajudem a multiplicar a voz de Paulo Freire, no sonho de que surja um “Paulo Freire” em cada escola, universidade, movimento social e comunidade deste nosso Brasil. Curitiba - Paraná, fevereiro de 2012 Elson Faxina Jornalista, professor UFPR Assessor de Comunicação da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos/PR Evelaine Martines Educadora social ENFF – Escola Nacional Florestan Fernandes

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Não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens. O educador do povo brasileiro

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Leituras da obra de Paulo Freire

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Dos que pensam Paulo Freire

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Mais sobre Paulo Freire

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Apresentação

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Paulo Freire O educador do povo brasileiro

Paulo Freire é, certamente, o pensador brasileiro mais conhecido no Brasil e no exterior. No continente latino-americano, da Terra do Fogo (sul da Argentina) ao Rio Grande (norte do México, na fronteira com os EUA), Freire é a grande referência para milhares de educadores nas escolas e espaços alternativos de educação, pois suas idéias e sua prática pedagógica foram fundamentais para a construção do que hoje conhecemos como “educação popular”, cujo objetivo último é o de educar os sujeitos para a transformação social. Por isso mesmo, dificilmente se encontrará um movimento social deste continente, no campo ou na cidade, que não tenha alguma inspiração nas idéias e na prática deste educador. A obra de Paulo Freire deve constituir-se assim em instrumento de ação concreta para todos e todas que, ao se inserirem na luta pela transformação da realidade, queiram também fazer-se pessoas melhores. Ele nos provoca e convoca à autoavaliação permanente, sem o que, nas suas próprias palavras, militantes e revoluções se burocratizam, se cristalizam e esquecem os motivos que os fez entrar na luta. Paulo Freire foi e é, através de seu exemplo, “um educador para a liberdade” que não separa sua vida de seus escritos. É por


isso que ele diz em “Pedagogia da esperança”1 e em “Essa escola chamada vida”2 que seu pensamento enquanto “prática da liberdade” foi se construindo a partir de experiências vividas na infância e adolescência, na convivência com “os de baixo”. Que foi se amalgamando com os anos de trabalho no SESI3. Com o companheirismo de Elza durante 42 anos e de Nita nos últimos 10 anos de sua vida, ambas as mulheres fortes, educadoras e primeiras leitoras críticas de seus escritos. Aliado a isso, o pensamento de Freire foi se fortalecendo e clarificando com sua militância na Ação Católica, no Movimento de Cultura Popular do Recife, na Campanha Nacional de Alfabetização do Governo João Goulart (1961-64); e, que se aprofundou e radicalizou, nos anos 60 e 70, em seu exílio forçado pela ditadura civil-militar.

A família, a fome e o educador Paulo Reglus Neves Freire nasceu no Recife-PE, Estrada do Encanamento, no Bairro da Casa Amarela, em 19 de setembro de 1921. Filho de Joaquim Temístocles Freire, policial militar e espírita; e Edeltrudes Neves Freire, dona de casa e católica. Foram eles que alfabetizaram o menino “Paulinho” à sombra das mangueiras, com palavras de seu próprio mundo, tendo o chão do quintal como quadro-negro e os gravetos como giz.4

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 6 ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, p. 19-20. 2 FREIRE, Paulo e BETTO, Frei. Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho. 3 ed. São Paulo : Ática, 1986, p. 7-8. 3 Serviço Social da Indústria, Departamento Regional de Pernambuco, Divisão de Educação e Cultura, 1947-1957. 4 FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. 39ª ed. São Paulo : Cortez, 2000, p. 15. 1

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Aos 10 anos de idade, Paulo A obra de Paulo Freire deve se mudaria com sua família para constituir-se assim em instrumenJaboatão, a 18 quilômetros do to de ação concreta para todos e Recife, onde seus pais busca- todas que, ao se inserirem na luta riam melhores condições de pela transformação da realidade, vida para superar o impacto queiram também fazer-se pessoas sofrido pela crise econômica melhores. mundial de 1929, iniciada com o famoso crash da Bolsa de Nova York. Entretanto, a vida em Jaboatão continuou muito dura e sofrida. Aí, aos 13 anos, Paulo Freire perdeu seu pai, agravando ainda mais a situação da família. Em entrevista ao Sindicato dos Professores de São Paulo (SINPRO-SP), em 1991, Paulo Freire relata o seguinte: “Eu me lembro de certos momentos da vida de minha mãe e quando eu me lembro deles tenho uma sensação de mágoa. Era, por exemplo, acompanhando-a que eu pude ver com que rosto de vergonha, de intimidação ela ficava quando o sujeito da venda – minha mãe ainda não havia posto o corpo inteiro na porta – gritava por trás do balcão que não venderia a ela porque a dívida já era grande e que ele não acrescentaria mais. Ela nem balbuciava um ‘desculpe’ ou ‘muito obrigada’, voltava-se para a rua e saía e eu atrás, sem comentários também. Essa coisa me marcou profundamente”5. Mas, se em Jaboatão, Paulo Freire conheceu a fome e se converteu, ainda menino, em homem pela dor6, foi aí tambémque ele se descobriu um menino cheio de “anúncios docentes”7, um Paulo Freire: trechos da entrevista dada ao Jornal do Sindicato em 1991. São Paulo : SINPRO-SP, s/d, p. 2. 6 FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação, uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3ª ed., São Paulo : Moraes, 1980, p. 14. 7 Paulo Freire: trechos da entrevista dada ao jornal do sindicato em 1991. São 5

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menino “em trânsito” da infância para a adolescência e desta à juventude. Jogou bola com “os meninos do povo”, nadou no rio e teve sua “primeira iluminação” quando contemplou, pela primeira vez, “uma moça despida”8. Aí viveu até os 20 anos. Em Jaboatão terminou a escola primária. Então a mãe de Paulo Freire viajava diariamente a Recife tentando conseguir uma bolsa de estudos para seu filho dar continuidade aos estudos. Após muitas idas e vindas, “dona Tudinha” conseguiu colocar “Paulinho” no Ginásio Oswaldo Cruz. Aos 15 anos Paulo Freire faria seu exame de admissão ao ginásio, “quando ainda escrevia rato com dois “rr”. Aos 20, porém, no curso pré-jurídico, já lera os ‘Serões Gramaticais’, de Carneiro Ribeiro, a ‘Réplica’ e a ‘Tréplica’ de Rui Barbosa, alguns gramáticos portugueses e outros brasileiros, e começava a introduzir-me [diz Paulo Freire] em estudos de Filosofia e Psicologia da Linguagem, enquanto me tornava professor do curso ginasial”9. Aos 23 anos (1944) casa-se com Elza com quem, nas próprias palavras de Paulo Freire, prosseguiu o diálogo que se iniciara com os pais. Com Elza, Paulo Freire teve cinco filhos: três meninas e dois meninos, ampliando ainda mais sua ‘área dialogal’10. Elza, então professora primária, foi uma pessoa importantíssima na vida de Paulo Freire e quem o incentivou a se dedicar à Educação. Mesmo sendo aluno no curso de Direito, Paulo Freire se dedicava muito mais àquela área.

Paulo : SINPRO-SP, s/s, p. 2. 8 FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação, uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3ª ed., São Paulo : Moraes, 1980, p. 14. 9 Idem. 10 Idem, p. 15.

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Nos trilhos da educação popular Licenciado em Direito pela atual Universidade Federal de Pernambuco (à época, Faculdade de Direito do Recife) abandonaria a carreira logo após sua primeira causa como advogado e aceitaria o convite para trabalhar na Divisão de Educação do SESI (Serviço Social da Indústria), onde ficaria por 10 anos (1947-1957), dos quais três como superintendente. Nestes 10 anos, Paulo Freire experimentaria o que ele chamou de uma “educação social”, nos “Círculos de Pais e Professores”, repetindo seu DIÁLOGO com o povo, com quem ensinando aprendeu, e com quem aprendendo ensinou. Paradoxalmente, este período de trabalho numa recém-criada instituição burguesa, constituiu-se em um “tempo fundante” para quem mais tarde escreveria a “Pedagogia do Oprimido”. “Na Divisão de Educação [do SESI, diz Paulo Freire], aprendi as técnicas diferentes de ter encontro com grupos de adultos, aprendi, retifiquei os erros que eu cometi através das críticas que os operários me faziam, começando pelas coisas mais tradicionais até chegar a uma coisa que, eu acho, nunca foi feita em termos de prática na escola, que a gente chamava naquela época, pomposamente, de Círculo de Pais e Mestres e que eu amenizei, chamando de Pais e Professores”. “Comecei a fazer Círculos, reuniões programadas e conseguia uma frequência enorme. Discutia antes com os professores a problemática fundamental que eles viam naquela escola, escolhíamos a temática parcial, porque caberia à família dar a outra ponte. A primeira eu fiz. Daí em diante, terminava-se a reunião fazia-se a temática da próxima, o que eu chamava de ‘carta temário’. Os professores tinham um seminário comigo sobre o tema que ia ser discutido

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na próxima reunião, faziam seminário com os alunos, que eram os primeiros a convocar os pais, para que não perdessem a reunião. Na ‘carta temário’ eu desafiava os pais para que eles discutissem com os companheiros de rua, com os vizinhos. Eles precisavam trazer para o Círculo não a opinião deles, mas da rua toda, do bairro, se possível. Resultado: passávamos a ter 95% de frequência”11.

A partir deste trabalho, Paulo Freire foi se dando conta da dimensão política da educação. A própria prática foi se impondo a ele como uma tarefa que já não era mais apenas pedagógica. O processo de desocultação, de desvelamento da realidade o empurrava para o campo da política e para uma opção de classe. É quando a classe dominante começa a vê-lo como “um potencial subversivo”12.

A politização do educador No final dos anos 50, Paulo Freire engaja-se na Ação Católica e, logo em seguida, no Movimento de Cultura Popular (MCP), a convite do então prefeito do Recife, Miguel Arraes, formado por um grupo de intelectuais e artistas. No MCP Paulo Freire aprofunda e sistematiza algumas das questões sobre as quais se perguntava durante seus anos de trabalho com os operários da base do SESI. No MCP coordenava os “Círculos de Cultura” e os “Centros de Cultura”, funcionando como intelectual orgânico da classe trabalhadora, ou seja, como um intelectual comprometido com a luta pela melhoria da vida dos trabalhadores e pela Paulo Freire: trechos da entrevista dada ao jornal do sindicato em 1991. São Paulo : SINPRO-SP, s/s, p. 4. 12 FREIRE, Paulo e BETTO, Frei. Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho. 3ª ed., São Paulo : Ática, 1986, p. 13. 11

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transformação social. Nestes A própria prática foi se impondo a “Círculos”, os trabalhadores se ele como uma tarefa que já não era reuniam para estudar e debater mais apenas pedagógica. O procestemas do interesse de sua classe. so de desocultação, de desvelamenÉ importante atentar para to da realidade o empurrava para o contexto brasileiro daquele o campo da política e para uma momento, em que as ideologias opção de classe. do desenvolvimentismo e do nacionalismo, cujo projeto era industrializar e modernizar o país, eram muito fortes. Estava se cumprindo o Plano de Metas do então presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961) de desenvolver o Brasil “50 anos em cinco”. O país fervilhava em meio a um debate político onde uma das expressões mais acabadas foi a criação do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), vinculado ao Ministério da Educação, que convergia tanto as teses do nacional-desenvolvimentismo, quanto dos setores mais progressistas, inserindo-se nas mobilizações pelas Reformas de Base já no Governo João Goulart (1961-64)13. A experiência dos Círculos de Cultura no MCP do Recife levou Paulo Freire à experiência de alfabetização, fundada na ideia de que “toda leitura da palavra pressupõe uma leitura anterior do mundo, e toda a leitura da palavra implica a volta sobre a leitura do mundo”14, num movimento dialético que engajava o Ver a contextualização de José Eustáquio Romão in: FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez e Instituto Paulo Freire, 2001. Ver também “Contexto histórico da experiência no Brasil e no Chile”, in: FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação, uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3ª ed., São Paulo : Moraes, 1980. 14 FREIRE, Paulo; BETTO, Frei. Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho. 3ª ed., São Paulo : Ática, 1986, p.15. 13

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alfabetizando num processo de transformação da realidade. No processo de alfabetização o debate sobre Cultura e Natureza, se alongava no debate sobre o Trabalho e a História, mostrando aos trabalhadores que, se era possível transformar a natureza (o mundo que ele não fez) muito mais o era transformar o mundo que ele fez, ou seja, o mundo da cultura e da história. O ponto alto desta educação problematizadora foi a experiência de Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1962, quando 300 trabalhadores foram alfabetizados em 45 dias, impressionando profundamente a sociedade brasileira. Por conta disso, Paulo Freire foi chamado a coordenar o Plano Nacional de Alfabetização no Governo João Goulart. “E foi assim que, entre junho de 1963 e março de 1964, foram realizados cursos de formação de coordenadores na maior parte das capitais dos estados brasileiros (no estado da Guanabara se inscreveram mais de 6.000 pessoas; igualmente criaram-se cursos nos estados do Rio Grande do Norte, São Paulo, Bahia, Sergipe e Rio Grande do Sul, que agrupavam vários milhares de pessoas). O plano de ação de 1964 previa a instalação de 20.000 círculos de cultura, capazes de formar, no mesmo ano, por volta de 2 milhões de alunos. Cada círculo educava, em dois meses, 30 alunos”. “Assim começava, a nível nacional, uma campanha de alfabetização que haveria de alcançar primeiro as zonas urbanas, para estender-se imediatamente aos setores rurais”. “Os grupos reacionários não podiam compreender que um educador católico se fizesse representante dos oprimidos: com maior razão lhes era impossível admitir que levar a cultura ao povo fosse conduzi-lo a duvidar da validade de seus privilégios. Preferiram acusar Paulo Freire – o ódio pelo comunismo era muito forte – de ideias que não são as suas, e atacar o movimento de democratização da

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cultura, no qual percebiam o germe da rebelião, baseando-se em que uma pedagogia da liberdade é, por si, fonte de rebeldia”15.

Assim, com o golpe de 1964, todo este trabalho foi interrompido e Paulo Freire foi levado à prisão por cerca de 70 dias, onde foi submetido a interrogatórios no Recife e no Rio de Janeiro. Sendo solto, ainda no Rio, Paulo Freire resolve pedir asilo na Embaixada da Bolívia e sair do país. São 16 anos de exílio, a maior parte vivida no Chile e na Suíça.

Educador de uma sociedade em transformação Para Paulo Freire, nos anos 50 e início dos 60, a sociedade brasileira vivia um trânsito de um passado colonial, escravocrata, rural e latifundista para um futuro nacional, industrial e urbano. A educação deveria estar organicamente ligada a este contexto, impulsionando o trânsito para o segundo pólo, ou seja, uma sociedade democrática. Que educação seria capaz de conter o risco da massificação e impulsionar o avanço da consciência crítica? Encaminharíamos o nosso agir educativo [continua Paulo Freire], no sentido da consciência do grupo, e não no da ênfase exclusiva do indivíduo. Sentimento grupal que nos é lamentavelmente ausente. As condições histórico-culturais em que nos formamos […] nos levaram a esta posição individualista. Impossibilitaram a criação do homem ‘solidarista’, só recentemente emergindo das nossas condições culturais que vivemos, mas indeciso nessa solidariedade e necessitando, por isso mesmo, de educação 15 FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação, uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3ª ed. São Paulo : Moraes, 1980, pp. 17-18.

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fortemente endereçada neste sentido. De educação que deve desvestir-se de todo o ranço, de todo estímulo a esta culturológica marca individualista. Que dinamize, ao contrário, o espírito comunitário16. A dialogicidade das famílias com esta escola se fará crescente na medida em que se ampliem as áreas de sua ingerência. Esta ampliação vai se realizar, sobretudo com o chamamento que a escola deve fazer às famílias, agregadas em associação, para participar de sua direção. […]. Os Círculos de Pais e Professores po“Não estamos realmente dem e devem fazer-se meio para a criação emprestando sentido das associações de famílias, dentro de cada messiânico à escola. escola.17. Estamos, sim, afirmando Imagine-se o que não poderiam obter e reclamando o seu papel escolas assim democraticamente abertas, com a motivação das famílias a elas ligadas e democratizador. Papel ampliando essa motivação a outros grupos que a fará autêntica da comunidade local, no sentido da reforma dentro das condições de deficiências da própria comunidade. […]. Deixaria de ser então a escola esta culturais da nossa quase ‘ausência nas áreas onde se instala atualidade. e passaria a ser o que deve ser: ‘presença’ atuante. ‘Presença’ interferente no seu contexto. Algo vivo e organicamente integrado no seu contexto18. Não estamos realmente emprestando sentido messiânico à escola. Estamos, sim, afirmando e reclamando o seu papel democratizador. Papel que a fará autêntica dentro das condições culturais da nossa atualidade19.

FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. São Paulo : Cortez e Instituto Paulo Freire, 2001, p. 85. 17 Idem, p. 95. 18 Idem, p. 96. 19 Idem, p. 97. 16

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As citações acima mostram o quanto Paulo Freire estava encharcado do clima brasileiro no final dos anos 50 – a esperança na transição para uma nação democrática e as possibilidades de participação popular. De certa forma, nessa obra de 1959, Paulo Freire expõe como numa enxurrada, suas descobertas feitas durante os anos de trabalho no SESI e elabora sua proposta educativa que será radicalizada nas obras que escreverá durante o exílio. A metodologia proposta nos Círculos de Cultura permitia avançar para reflexões de temas como trabalho-cultura-história que contribuíam para a superação do senso comum ou explicação limitada da realidade, desvelando-a através da problematização feita pelo diálogo. Temos aqui, portanto, uma nova teoria do conhecimento, que já não quer mais interpretar o que é o interesse das classes populares de um ponto de vista externo a elas, mas “ousa perguntar às classes populares qual é a sua maneira de expressar-se no mundo, qual é a sua palavra20”. É por isso que Paulo Freire fala de método de conhecimento e não método de alfabetização ou de ensino. No capítulo III de “Pedagogia do oprimido”, Paulo Freire explicita a dialogicidade como categoria essencial da educação como prática da liberdade ou educação dialógica, que começa na busca do conteúdo programático. “O momento deste buscar é o que inaugura o diálogo da educação como prática da liberdade. É o momento em que se realiza a investigação do que chamamos de ‘universo temático’ do povo ou o conjunto de seus ‘temas geradores’. “Esta investigação implica, necessariamente, uma FREIRE, Paulo; BETTO, Frei. Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho. 3ª ed., São Paulo : Ática, 1986, p.29. 20

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metodologia que não pode contradizer a dialogicidade da educação libertadora. Daí que seja igualmente dialógica. Daí que, conscientizadora também, proporcione, ao mesmo tempo, a apreensão dos ‘temas geradores’ e a tomada de consciência dos indivíduos em torno dos mesmos. [...] O que se pretende investigar, realmente, não são os homens, como se fossem peças de uma engrenagem, mas o seu pensamento-linguagem referido à realidade, os níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão do mundo, em que se encontram envolvidos seus ‘temas geradores’”21.

Radical e em diálogo A experiência do exílio trará a Paulo Freire novos aprendizados que o farão superar seus próprios limites e avançar para posições mais radicais, porém nunca sectárias. O DIÁLOGO continuou sendo a chave de sua pedagogia. No Chile, para onde se mudou em 1965 - juntando-se a muitos outros brasileiros exilados - teve a oportunidade de aprofundar suas práticas educativas, coordenando trabalhos de alfabetização de inúmeros camponeses chilenos. Neste período, encontrou tempo e condições favoráveis para sistematizar suas idéias, que resultaram na publicação de sua obra mais conhecida, a “Pedagogia do oprimido”. Porém, suas atividades começaram a incomodar a setores mais conservadores do governo chileno, que deixaram de ver com bons olhos a sua permanência no país. Sentindo-se perseguido, Freire decide deixar o Chile em 1969.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1987, pp. 87-88. 21

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Após uma breve passagem pelos EUA, aceitando o convite da célebre Universidade Harvard para ministrar alguns cursos e palestras, Paulo Freire aceita o convite para o cargo de “consultor especial” do Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas, sediado em Genebra (Suíça) para onde se muda em 1970. Desde Genebra, Freire passa a viajar pelo mundo aprofundando suas práticas pedagógicas e difundindo seu método popular de alfabetização. No início dos anos 70, atuou principalmente nas ex-colônias portuguesas na África: Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe e, Radicalidade democrática principalmente, Guiné-Bissau, de onde e justiça social são extraiu o material de um livro, “Cartas a conceitos inseparáveis, Guiné-Bissau”. Graças a essas andanças, na pedagogia freireana, Freire foi se tornando mundialmente conhecido e consolidando sua posição da produção de de educador popular comprometido conhecimento. com as classes populares e com a transformação social em qualquer lugar que estivesse. Somente com a Lei de Anistia, de 1979, pode enfim retornar ao Brasil, o que acontece em 1980. Paulo Freire se faz assim um exemplo: de humildade, coerência, responsabilidade, compromisso. Sempre atento ao outro, às diferenças culturais, à pluralidade de ideias, às diversas visões de mundo; mas jamais contemporizando com as desigualdades sociais. Radicalidade democrática e justiça social são conceitos inseparáveis, na pedagogia freireana, da produção de conhecimento. “No fundo [diz Paulo Freire], as quatro dimensões da natureza da prática educativa são: a gnoseológica (ou do “conhecimento”), a estética, a ética e a política. A prática educativa fecha essas quatro dimensões. Como educador, o professor faz política, então, ele tem que se assumir politicamente. Para saber que ele tem um Paulo Freire

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sonho que é político. Qual a utopia dele? Que modelo de sociedade ele gostaria de provocar, de produzir com os outros?”22 É esta totalidade da prática educativa que faz da pedagogia freireana uma pedagogia radical. Uma pedagogia que obriga o educador a se reeducar enquanto educa. Que partindo dos saberes de experiência feito, vai re-significá-lo no diálogo com os conhecimentos científicos, em cujo processo, educador e educando se transformam, ao mesmo tempo em que agem sobre o mundo.

Re-aprendendo o Brasil Ao voltar do exílio, coerente com sua pedagogia, Paulo Freire vai re-aprender o Brasil. Por isso, durante quase toda a década de 80, seus escritos se dão em diálogo com outros autores. Nesta mesma década Paulo sofre um grande impacto com a morte de sua companheira Elza, com quem havia vivido durante mais de 40 anos. Momento de profunda tristeza que só conseguiu ser superado com o companheirismo de Ana Maria Araújo (a Nita), sua segunda esposa, com quem re-encontrou o gosto pela vida. E, à medida que vai re-aprendendo seu país, ao lado de Nita, vai se engajando nas novas lutas que se colocam durante o processo de redemocratização. Filia-se ao recém-criado Partido dos Trabalhadores e, no final da década (1988), assume por pouco mais de dois anos a função de Secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo na Gestão de Luiza Erundina. Para falar dessa experiência, Paulo Freire escreve o livro “A educação na cidade”, que “apresenta Paulo Freire: trechos da entrevista dada ao Jornal do Sindicato em 1991. São Paulo : SINPRO-SP, s/d, p. 8. 22

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um conjunto de reflexões educativas, As pessoas, o povo, os administrativas e pedagógicas em direção trabalhadores não são à construção de uma gestão participativa recipientes vazios onde onde se garanta vez e voz ao povo desde podemos depositar nossas a hora de planejar, de desenvolver, de verdades revolucionárias, avaliar, até o momento de socializar os nossas teorias e técnicas, ganhos e refletir sobre as perdas”23. nossa visão de mundo. Na década de 90, Paulo Freire escreveria e publicaria outros livros, dos quais, o último, “Pedagogia da Autonomia”, é uma espécie de síntese, um conjunto de saberes necessários à prática educativa, onde reafirma os princípios de historicidade, politicidade, dialogicidade, ética, amorosidade e esperança. Este é Paulo Freire – um exemplo! Oxalá, nós, que nos qualificamos como educadores populares, militantes sociais, lutadores e lutadoras do povo, tenhamos humildade para aprender com o povo, os grupos, as comunidades, os assentados, moradores de vilas e bairros onde pisamos. Toda a obra de Paulo Freire está encharcada desta advertência: cuidado! As pessoas, o povo, os trabalhadores não são recipientes vazios onde podemos depositar nossas verdades revolucionárias, nossas teorias e técnicas, nossa visão de mundo. Precisamos estudar com cuidado, por exemplo: “Extensão ou comunicação”. “Ação cultural para a liberdade”; “Educação como prática da liberdade”; onde Paulo Freire discute exaustivamente o papel do “educador”, seja ele um agrônomo, professor, militante, junto aos “educandos” - camponês, operário, coletor de material reciclável, artesão, etc. ALBUQUERQUE, Targélia de Souza. A Educação na cidade. In: SOUZA, Ana Inês e outras (Orgs.). Paulo Freire, vida e obra. São Paulo : Expressão Popular, 2001, p. 361. 23

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Paulo Freire nos deixou em 2 de maio de 1997, quando escrevia as “Cartas Pedagógicas” que seriam publicadas por sua esposa Ana Maria Araújo Freire em 2000 sob o título “Pedagogia da Indignação”. Entretanto, apesar de sua vasta obra, é importante lembrar de Paulo Freire como um exemplo e, como ele mesmo dizia, como um homem que amava intensamente – o mundo, as plantas, os bichos, as gentes – e por isso lutava para que a justiça social se implantasse antes da caridade.

“Saudade é exatamente a falta da presença”24.

Compromisso com a transformação da realidade A educação proposta por Paulo Freire é fruto de uma pedagogia radical. Uma pedagogia que busca desvelar a raiz dos problemas, dos fatos, das situações vivenciadas. Desvelar a realidade significa retirar o véu da ideologia que impregna as práticas sociais cotidianas e o senso comum. Como fazer isto? A partir do DIÁLOGO, principal categoria do pensamento freireano. Um diálogo que problematiza a realidade. Portanto, a realidade concreta é o ponto de partida desta metodologia. Mas a realidade concreta, para Paulo Freire, não é apenas o mero dado, objetivo, materiaDesvelar a realidade lizado, mas são estes dados mais a insignifica retirar o véu da terpretação que os sujeitos envolvidos ideologia que impregna as dão a eles. práticas sociais cotidianas É na explicação da realidade vivida e o senso comum. que os sujeitos explicitam sua visão de Paulo Freire, citado por Carlos Rodrigues Brandão em História do menino que lia o mundo, p. 46. 24

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mundo, as bases de sua interpretação, que será o centro do processo educativo. Portanto, o diálogo começa já na busca do tema gerador. Pensemos na experiência dos “círculos de cultura”, que é como Freire chamava os grupos de jovens e adultos, educandos e educadores, que se formavam com o objetivo de alfabetizar aqueles que ainda não sabiam ler e escrever. Uma vez formado, a primeira tarefa do círculo de cultura é descobrir, por meio de uma pesquisa coletiva - em visitas às associações locais, aos espaços coletivos, aos bares, praças, às casas das pessoas etc. - e munidos de um bloco de nota, de um gravador ou de uma boa memória, quais os “temas geradores”- ou o “universo temático” - específicos daquela comunidade, ou seja, que palavras traduzem e representam sua identidade coletiva, seus problemas cotidianos ou suas características físicas e sociais. Note-se que, ao juntar educadores e educandos numa mesma tarefa, já se começa a construir entre ambos uma relação que não é hierárquica, em que o “professor sabe tudo” e o “aluno não sabe nada”. Uma vez selecionado um conjunto de 10 ou 20 palavras que, além de traduzir a realidade local, também respondesse às necessidades semânticas, ortográficas e fonéticas (palavras com “ss”, “s”, “lh”, “ch” etc.), partia-se então para os debates sobre os significados destas palavras. Por exemplo, se num bairro de periferia se escolheu o termo “favela” como um dos temas geradores, cabia a um dos educadores disparar a discussão entre todos os participantes. Depois de realizado o debate, todos se debruçavam sobre as letras e as sílabas das palavras, bem como suas variações e outras combinações de sílabas que formem outras palavras: “fa”, “fe”, “fi”, “fo, “fu”, “va”, “ve”, “vi”, “vo, “vu”, “la”, “le”, “li”, “lo”, “lu”...E então: “fala”, “vela”, “leva”, “fila” etc. Desta forma, o aprendizado das palavras é Paulo Freire

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Não há ninguém que não tenha o que ensinar, assim como não há ninguém que não tenha o que aprender.

acompanhado pela reflexão sobre a realidade dos educandos e é dado um passo importante para o aprendizado sobre o mundo e as relações sociais que os cercam. Mas, a ideia do tema gerador não serve só para alfabetização, mas também para a educação política de pessoas já alfabetizadas. Aqui a problematização se dá a partir de situações existenciais, num diálogo que, criando conhecimento vai desvelando a realidade. Neste diálogo, que se desenrola a partir dos temas geradores, educador e educando se transformam e aprendem mutuamente. Não há ninguém que não tenha o que ensinar, assim como não há ninguém que não tenha o que aprender. E mediatizados pelo mundo, educador e educando constroem conhecimento novo ou dão novos significados a conhecimentos anteriores, cuja interpretação era limitada. Quanta diferença para as cartilhas tradicionais, nas quais se podia aprender a ler as palavras, mas não se aprendia a ler o mundo! Afinal, o que a frase “Ivo viu a uva” me permite ajudar a compreender, além do simples uso das letras? Para não falar, é claro, que o interesse despertado por palavras e temas do cotidiano dos educandos, seguidos de debates sobre seus significados, se mostrou um poderoso estímulo ao aprendizado. Afinal, não foi à toa que a famosa experiência de Angicos (RN) impressionou tanto ao país, pela rapidez com que foi possível alfabetizar os trabalhadores.Tampouco foi à toa que tais iniciativas despertaram a ira da classe dominante brasileira, resultando na perseguição de Paulo Freire logo após o golpe de 1964. Portanto, esta educação é um ato político que reeduca todos os sujeitos envolvidos. È mais do que transmissão de conteúdos.

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Envolve postura e atitude diante do mundo e do outro, que é diferente de mim. Não é a teoria ou os conceitos abstratos que educam. É a prática concreta que, sendo pensada à luz da teoria, transforma a realidade. Graças a estas características o “método Paulo Freire” de alfabetização e educação popular foi apropriado e difundido por milhares de militantes e educadores populares em todo o Brasil nos anos 70, ainda que o próprio Freire estivesse exilado no exterior por imposição da ditadura civil-militar (além de ter sido difundido por grande parte da América Latina e da África, no mesmo período). Munidos das orientações freireanas, estes educadores foram capazes de ajudar a impulsionar, em inúmeras comunidades populares do campo e da cidade, o surgimento dos movimentos populares que lutavam por terra, moradia, educação, saúde e outros direitos para a classe trabalhadora. Evidentemente, uma prática de alfabetização e educação popular que é, ao mesmo tempo, uma discussão sobre as condições concretas da vida dos educandos, acaba por se tornar um instrumento de organização Evidentemente, uma popular para a defesa e a conquista de prática de alfabetização suas reivindicações. e educação popular que Para tal, contaram também com o é, ao mesmo tempo, uma apoio dos setores mais progressistas da discussão sobre as condiIgreja Católica que, sob a inspiração da ções concretas da vida dos Teologia da Libertação, pregavam que a educandos, acaba por se “opção pelos pobres” que nos foi ensitornar um instrumento de nada por Jesus Cristo na Bíblia deveria significar o engajamento nas lutas po- organização popular para pulares e pela redemocratização de um a defesa e a conquista de país que sofria sob o domínio dos fuzis suas reivindicações. Paulo Freire

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da ditadura. Foi no espaço das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que estes educadores e militantes – nem todos necessariamente católicos – puderam desenvolver tais atividades. No final dos anos 70 e começo dos anos 80 estes esforços, somados ao crescimento do movimento sindical combativo, culminaram com a formação do Partido dos Trabalhadores (1980) e o fim da ditadura (1984).

Transformando as pessoas e a sociedade Esta é a pedagogia de Paulo Freire – uma práxis transformadora das estruturas e das pessoas. E, neste sentido, para além de uma pedagogia, ou um método, a metodologia freireana concebe o ser humano se construindo historicamente, ao mesmo tempo em que transforma o mundo onde vive, uma verdadeira antropologia da educação. Daí que outra idéia-força no pensamento freireano é o conceito de CULTURA, que em relação dialética com o conceito de natureza, apontam para a história como ação humana e, portanto, ajudam a superar o “fatalismo”, ou a idéia de que “nada irá mudar”. Cultura para Paulo Freire, é tudo aquilo produzido pelo homem. Com base nisso, trabalhadores de qualquer área de atividade começam a se ver como produtores de cultura e avançam em autoestima, criatividade, responsabilidade. Não é possível estudar Paulo Freire, sem olhar para nossa própria pratica. E isto é dolorido porque implica descobrir o opressor que hospedamos dentro de nós mesmos. Significa morrer, para nascer de novo. Por isso a pedagogia freireana é uma pedagogia radical, que propõe subverter a ordem social injusta vigente em todos os seus níveis: pessoal, micro

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e macroestrutural. Não é uma didática, (...) para além de uma ou uma tática política. Ainda que um pedagogia, ou um conjunto de técnicas ou pequenas método, a metodologia ações, como: o jeito de dispor as freireana concebe o ser carteiras numa sala de aula, o debate humano se construindo em círculos, o jeito de coordenar historicamente, ao mesmo uma reunião, a distribuição coletiva de tempo em que transforma tarefas, o estudo em pequenos grupos, o mundo onde vive, uma façam parte do exercício democrático, verdadeira antropologia da do combate ao autoritarismo e, portanto, da desconcentração de poder. educação. Porque todas essas pequenas ações restituem, gradativamente, a palavra àquelas pessoas que, historicamente, aprenderam apenas a ouvir e obedecer. Ajudam a construir autonomia com responsabilidade. Desafiam a superar limites pessoais. São essas, em suma, as características principais daquilo que, a partir de então, passamos a chamar de “educação popular”, em contraposição às formas tradicionais e autoritárias de educar. Num primeiro momento, “educação popular” era entendida somente como aquela realizada fora das instituições formais de educação (escolas e universidades), mas hoje já é um conceito mais amplo, que se liga mais ao tipo de prática educativa e menos ao espaço em que ela é realizada. Neste sentido, embora tenha sido pensada a partir da realidade brasileira e latino-americana, a pedagogia freireana serve para qualquer lugar do mundo, onde existam oprimidos e opressores. Para Paulo Freire, sua “teoria da ação dialógica” pressupõe dois momentos fundamentais: o reconhecimento da desumanização e o engajamento em um processo de humanização. Ou, dito de outra forma, pressupõe o momento da Paulo Freire

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denúncia e o momento do anúncio. Ambos construídos dialogicamente, num processo de problematização que relaciona os fenômenos entre si, com suas causas e efeitos; o simples e o complexo; o local e o global. Numa espécie de espiral que, unindo teoria e pratica, permite compreender o funcionamento da sociedade, na medida em que vai desvelando a realidade. Em suas próprias palavras: “não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e eticamente, “(...) não há utopia verdadeira por nós, mulheres e homens.25” fora da tensão entre a Portanto a UTOPIA, outra categodenúncia de um presente ria fundante do pensamento freireano não é o irrealizável, mas algo tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um inscrito historicamente. Paulo Freire mostra, com sua futuro a ser criado, construído, própria vida, a concepção de ser política, estética e eticamente, humano que fundamenta sua pepor nós, mulheres e homens. dagogia, um ser humano que se constrói social e historicamente. Que não se faz sozinho, mas na relação com outros seres humanos e com o mundo, na medida em que agindo sobre ele, o transforma, o faz melhor ou pior, dependendo do conteúdo de sua ação. Aprendeu que a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Portanto, a adoção da metodologia freireana implica em opção, tomada de atitude, postura. O passo a ser dado, pressupõe riscos, porque o novo não está pronto, precisa ser construído, do projeto à execução. E isto assusta. A maioria das pessoas FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 6 ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, p. 91. 25

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prefere levar uma vida medí- (...) a cabeça pensa a partir de ocre porque não quer correr onde os pés pisam. riscos. Prefere nadar a favor da correnteza. Mas a construção do novo exige ousadia e criatividade. Exige romper com práticas e costumes cristalizados. É difícil delimitar na obra de Paulo Freire, categorias teóricas puras. Mas podemos destacar alguns valores e princípios pedagógicos, alguns dos quais já abordados aqui, mas reforçados a seguir. O principal deles é a “dialogicidade”, porque para Freire, o dialogo é a matriz da democracia. Outro é o trabalho coletivo e o respeito ao conhecimento de-experiência-feito: “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo; os homens se educam entre si, mediatizadas pelo mundo”26. E ainda, podemos acrescentar: a ética, a tolerância, a política, a esperança, a indignação e a autonomia. Todos esses princípios constituem “tijolos” na construção do protagonismo e da emancipação popular e não podem ser pensados isoladamente, mas de forma integrada, totalizante. Esses princípios nos permitem olhar a vida e as potencialidades humanas em todas as suas dimensões. O capitalismo nos dividiu, nos fragmentou. Temos que reaprender a nos construir por inteiro. E para isso é preciso que ações concretas sejam realizadas e um conjunto de atividades sejam colocadas à disposição das novas gerações para que elas percebam que o caminho não é único. E que não existe apenas um jeito de caminhar. Mas que novos caminhos se fazem ao andar. E podem ser muito mais prazerosos, podem dar muito mais sentido às suas vidas, do que o que a sociedade atual oferece. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1987, p. 68. 26

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No mundo de hoje, onde a mídia tomou conta do imaginário popular, vendendo um modo de vida que só beneficia o mercado; onde a ideologia do consumo e o individualismo competitivo tornaram-se objetivos de vida; e o limite do sonho constitui-se naquilo que o dinheiro pode comprar, a pedagogia de Paulo Freire é de uma atualidade impressionante. Faz-se urgente, mais do que nunca na história humana, um processo de desvelamento da realidade, de desconstrução do senso comum e de transformação da prática cotidiana.

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2 Leituras da obra de Paulo Freire Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho Paulo Freire e Frei Betto. São Paulo, Ática, 1986. (...) nesse momento, surge neste país uma nova postura epistemológica, quer dizer, uma nova maneira de pensar o Brasil, de encarar o Brasil. E, sobretudo, uma tentativa de aproximação do universo popular. E essa tentativa de aproximação se refletiu em todo o processo de criação artística. Todo esse pessoal do Cinema Novo, da Bossa Nova surge aí. Assim como tem o Movimento de Cultura Popular no Recife, havia os Centros de Cultura Popular da União Nacional dos Estudantes no Brasil inteiro, que suscitavam manifestações de arte com um conteúdo pró-causas populares. Hoje a gente tem uma visão mais crítica, sabe que anda não era o próprio povo manifestando a sua criação artística, ainda éramos nós, universitários, intelectuais, falando em novo do povo. Por exemplo, a obra de Oduvaldo Vianna Filho, as primeiras peças do Guarnieri, refletem bem isso. Nós interpretávamos a realidade, a partir dos interesses da classe popular.


O método do Paulo Freire aparece como a grande novidade. É a primeira contribuição naquele momento, que já não quer interpretar o que é o interesse das classes populares, mas ousa perguntar à classes populares qual é a sua maneira de expressar-se no mundo, qual é a sua palavra. E, até então, a palavra que interpretava o popular era a nossa palavra. Vinha de um mundo não popular, embora ideológica e politicamente comprometido com a causa popular. (p. 23).

Pedagogia do oprimido 17ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987

E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores. […] Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos. (p. 30-31). A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação. (p. 41). Daí que, estabelecida a relação opressora, esteja inaugurada a violência, que jamais foi até hoje, na história, deflagrada pelos oprimidos. Como poderiam os oprimidos dar início à violência, se eles são o resultado de uma violência?

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Como poderiam ser os promotores de algo que, ao instaurar-se objetivamente, os constitui? Não haveria oprimidos, se não houvesse a relação de violência que os conforma como violentados, numa situação objetiva de opressão. Inauguram a violência os que oprimem, os que exploram, os que não se reconhecem nos outros; não os oprimidos, os explorados, os que não são reconhecidos pelos que os oprimem como outro. Inauguram o desamor, não os desamados, mas os que não amam, porque apenas se amam. Os que inauguram o terror não são os débeis, que a ele são submetidos, mas os violentos que, com seu poder, criam a situação concreta em que se geram os ‘demitidos da vida’, os esfarrapados do mundo. Quem inaugura a tirania não são os tiranizados, mas os tiranos. Quem inaugura o ódio, não são os odiados, mas os que primeiro odiaram. (p. 42-43). E crer no povo é a condição prévia, indispensável, à mudança revolucionária. Um revolucionário se reconhece mais por esta crença no povo, que o engaja, do que por mil ações sem ela. (p. 48). O caminho, por isto mesmo, para um trabalho de libertação a ser realizado pela liderança revolucionária, não é a ‘propaganda libertador’. Não está no mero ato de ‘depositar’ a crença da liberdade nos oprimidos, pensando conquistar sua confiança, mas no dialogar com eles. Precisamos estar convencidos de que o convencimento dos oprimidos de que devem lutar por sua libertação não é doação que lhes faça a liderança revolucionária, mas resultado de sua Leituras da obra de Paulo Freire

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conscientização. (p. 54) Se os líderes revolucionários de todos os tempos afirmam a necessidade do convencimento das massas oprimidas para que aceitem a luta pela libertação – o que de resto é óbvio – reconhecem implicitamente o sentido pedagógico desta luta. Muitos, porém, talvez por preconceitos naturais e explicáveis contra a pedagogia, terminam usando, na sua ação métodos que são empregados na ‘educação’ que serve ao opressor. Negam a ação pedagógica no processo de libertação, mas usam a propaganda para convencer... (p. 55). Sobre a educação tradicional ou a ‘educação bancária’, segundo Paulo Freire: a) o educador é o que educa; os educandos, os que são educados; b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; c) o educador é o que pensa; os educandos os pensados; d) o educador, o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente; e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados; f) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos, os que seguem a prescrição; g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador; h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele; i) o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonicamente a liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele; j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos”. (p. 59).

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Sendo fundamento do diálogo, o amor é também diálogo. (p. 80). Todo o nosso esforço neste ensaio foi falar desta coisa óbvia: assim como o opressor, para oprimir, precisa de uma teoria da ação opressora; os oprimidos, para se libertarem, igualmente necessitam de uma teoria da sua ação. O opressor elabora a teoria de sua ação necessariamente sem o povo, pois que é contra ele. O povo, por sua vez, enquanto esmagado e oprimido, introjetando o opressor, não pode, sozinho, constituir a teoria de sua ação libertadora. Somente no encontro dele com a liderança revolucionária, na comunhão de ambos, na práxis de ambos, é que esta teoria se faz e se re-faz. A colocação que, em termos aproximativos, meramente introdutórios, tentamos fazer da questão da pedagogia do oprimido nos trouxe à análise, também aproximativa e introdutória, da teoria da ação antidialógica, que serve à opressão, e da teoria dialógica da ação, que serve à libertação. (p. 183).

Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 6ª ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra. Nunca um acontecimento, um fato, um feito, um gesto de raiva ou de amor, um poema, uma tela, uma canção, um livro tem por trás de si uma única razão. Um acontecimento, um fato, um feito, uma canção, um gesto, um poema, um livro se acham sempre envolvidos em densas tramas, tocados por múltiplas razões de ser de que algumas estão mais próximas do ocorrido ou do criado, de que outras são mais visíveis enquanto razão de ser. Por isso é Leituras da obra de Paulo Freire

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que a mim me interessou sempre muito mais a compreensão do processo em que e como as coisas se dão do que o produto em si. (p. 18). Interessante, no contexto da infância e da adolescência, na convivência com a malvadez dos poderosos, com a fragilidade que precisa virar a força dos dominados, que o tempo fundante do SESI, cheio de ‘soldaduras’ e ‘ligaduras’ de velhas e puras ‘adivinhações’ a que meu novo saber emergindo de forma crítica deu sentido, eu ‘li’ a razão de ser ou algumas delas, as tramas de livros já escritos e que eu não lera ainda e de livros que ainda seriam escritos e que viriam a iluminar a memória viva que me marcava. Marx, Lukács, Fromm, Gramsci, Fanon, Memmi, Sartre, Kosik, Agnes Heller, M. Ponty, Simone Weill, Arendt, Marcuse... Anos depois, a posta em prática de algumas das ‘soldaduras’ e ‘ligaduras’ realizadas no tempo fundante do SESI me levaram ao exílio, uma espécie de ‘ancoradouro’ que tornou possível religar lembranças, reconhecer fatos, feitos, gestos, unir conhecimentos, soldar momentos, re-conhecer para conhecer melhor. (p. 19-20). “Este aprendizado, de história longa, é ensaiado na minha tese universitária […], continua esboçado em ‘Educação como prática da liberdade’ e se explicita definitivamente na ‘Pedagogia do oprimido’. Um momento, até poderia dizer, solene, entre outros, deste aprendizado, ocorreu durante a jornada […] de falas em que discuti a questão da autoridade, da liberdade, do castigo e do prêmio em educação.[...]. Baseando-me num excelente estudo de Piaget sobre o código moral da criança, sua representação mental do castigo, a proporção entre a provável caus do castigo e este, falei longamente citando o próprio Piaget, sobre o assunto, defendendo uma relação dialógica, amorosa, entre pais, mães, filhas, filhos, que fosse substituindo o uso de castigos violentos.

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Meu erro não estava em citar Piaget. Até que seria tido rico, falando dele, servindo-me de um mapa, partindo do Recife, Nordeste brasileiro, estender-me ao Brasil, localizar o Brasil na América do Sul, relacioná-lo com o mundo restante e, nele, mostrar a Suíça, na Europa, terra do homem que eu estava citando. Não teria sido apenas rico, mas provocador e formador se tivesse feito isso. Meu erro estava, primeiro, no uso da minha linguagem, de minha sintaxe, sem um esforço maior de aproximação dela a dos presentes. Segundo, na quase desatenção à realidade dura da imensa audiência que tinha em frente a mim. Ao terminar, um homem ainda jovem, de uns 40 anos, mas já gasto, pediu a palavra e me deu talvez a mais clara e contundente lição que já recebi em minha vida de educador. Não sei seu nome. Não sei se vivo ainda está. Possivelmente, não. A malvadez das estruturas sócio-econômicas do país, que ganham cores mais fortes no Nordeste brasileiro, a dor, a fome, a indiferença dos poderosos, tudo isso deve havê-lo tragado desde há muito. Pediu a palavra e fez um discurso que jamais pude esquecer, que me acompanha vivo na memória do meu corpo por todo este tempo e que exerceu sobre mim enorme influência. Quase sempre, nas cerimônias acadêmicas em que torno doutor ‘honoris causa’ de alguma universidade, reconheço quanto devo também a homens como o de quem falo agora, e não apenas a cientistas, pensadores e pensadoras que igualmente me ensinaram e continuam me ensinando e sem os quais e as quais não me teria sido possível aprender, inclusive, com operário daquela noite. É que, sem a rigorosidade, que me leva à maior possibilidade de exatidão nos achados, não poderia perceber criticamente a importância do senso comum e o que nele há de bom senso. Quase sempre, nas cerimônias acadêmicas, eu o vejo de pé, numa das laterais do Leituras da obra de Paulo Freire

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salão grande, cabeça erguida, olhos vivos, voz forte, clara, seguro de si, falando sua fala lúcida. ‘Acabamos de escutar’, começou ele, ‘umas palavras bonitas do dr. Paulo Freire. Palavras bonitas mesmo. Bem ditas. Umas até simples, que a gente entende fácil. Outras, mais complicadas, mas deu pra entender as coisas mais importantes que elas todas juntas dizem’. Agora, eu queria dizer umas coisas ao doutor que acho que os meus companheiros concordam’. Me fitou manso mas penetrante e perguntou: ‘dr. Paulo, o senhor sabe onde a gente mora? O senhor já esteve na casa de um de nós?’ Começou então a descrever a geografia precária de suas casas. A escassez de cômodos, os limites ínfimos dos espaços em que os corpos se acotovelavam. Falou da falta de recursos para as mais mínimas necessidades. Falou do cansaço do corpo, da impossibilidade dos sonhos com um amanhã melhor. Da proibição que lhes era imposta de ser felizes. De ter esperança. Acompanhando seu discurso eu adivinhava os passos seguintes, sentado como se estivesse, na verdade, me afundando na cadeira, que ia virando, na necessidade de minha imaginação e do desejo do meu corpo em fuga, um buraco para me esconder. Depois, silencioso por uns segundos, passeou os olhos pelo auditório inteiro, me fitou de novo e disse: – Doutor, nunca fui à sua casa, mas vou dizer ao senhor como ela é. Quantos filhos tem? É tudo menino? – Cinco - disse eu - mais afundado ainda na cadeira. Três meninas e dois meninos. – Pois bem, doutor, sua casa deve ser uma casa solta no terreno, que a gente chama casa de ‘oitão livre’. Deve de ter um quarto só para o senhor e sua mulher. Outro quarto grande, é pras três meninas. Tem outro tipo de doutor que tem um quarto para cada

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filho e filha. Mas o senhor não é desse tipo não. Tem outro quarto para os dois meninos. Banheiro com água quente. Cozinha com a ‘linha Arno. Um quarto de empregada bem menor do que os dos filhos e no lado de fora da casa. Um jardinzinho com grama ‘ingresa’ (inglesa). O senhor deve ter ainda um quarto onde bota os livros – sua livraria de estudo. Tá se vendo, por sua fala, que o senhor é homem de muitas leituras, de boa memória. Não havia nada a acrescentar nem a retirar. Aquela era a minha casa. Um mundo diferente, espaçoso, confortável. – Agora, veja, doutor, a diferença. O senhor em casa cansado. A cabeça até que pode doer no trabalho que o senhor faz. Pensar, escrever, ler, falar esses tipos de fala que o senhor fez agora. Isso tudo cansa também. Mas - continuou - uma coisa é chegar em casa,mesmo cansado, e encontrar as crianças tomadas banho, vestidinhas, limpas, bem comidas, sem fome, e a outra é encontrar os meninos sujos, com fome, gritando, fazendo barulho. E a gente tendo que acordar às quatro da manhã do outro dia pra começar tudo de novo, na dor, na tristeza, na falta de esperança. Se a gente bate nos filhos e até sai dos limites não é porque a gente não ame eles não. É porque a dureza da vida não deixa muito pra escolher. Isto é saber de classe, digo eu agora. Este discurso foi feito há cerca de 32 anos. Jamais o esqueci. Ele disse a mim, não importa que na hora em que foi feito eu não tenha percebido, muito mais do que imediatamente comunicava. Nas idas e vindas da fala, na sintaxe operária, na prosódia, nos movimentos do corpo, nas mãos do orador, nas metáforas tão comuns ao discurso popular, ele chamava a atenção do educador ali em frente, sentado, calado, se afundando em sua cadeira, para a necessidade de que, ao fazer o seu discurso ao povo, o educador esteja a par da compreensão do mundo que o povo esteja tendo. Compreensão do mundo que, condicionada pela realidade Leituras da obra de Paulo Freire

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concreta que em parte a explica, pode começar a mudar através da mudança do concreto. Mais ainda, compreensão do mundo que pode começar a mudar no momento mesmo em que o desvelamento da realidade concreta vai deixando exposta as razões de ser da própria compreensão tida até então. A mudança da compreensão, de importância fundamental, não significa, porém, ainda, a mudança do concreto. O fato de jamais haver esquecido a trama em que se deu aquele discurso é significativo. O discurso daquela noite longínqua se vem pondo diante de mim como se fosse um texto escrito, um ensaio que eu devesse constantemente revisitar. Na verdade ele foi o ponto culminante no aprendizado há muito iniciado – o de que o educador ou a educadora progressista, ainda quando as vezes tenha de falar ‘ao’ povo, deve ir transformando o ‘ao’ em ‘com’ o povo. E isso implica o respeito ao ‘saber de experiência feito’ de que sempre falo, somente a partir do qual é possível superá-lo. Naquela noite, já dentro do carro que nos conduziria de volta à casa, falei, um pouco amargo, a Elza que, só raramente não me acompanhando às reuniões, fazia excelentes observações que me ajudavam sempre. – Pensei que havia sido tão claro - disse eu. – Parece que não me entenderam. – Não terá sido você, Paulo, quem não os entendeu? - perguntou Elza, e continuou: – Creio que entenderam o fundamental de sua fala. O discurso do operário foi claro sobre isto. Eles entenderam você mas precisavam de que você os entendesse. Esta é a questão. Anos depois, a ‘Pedagogia do oprimido’ falava da teoria embutida na prática daquela noite, cuja memória eu trouxera para o exílio, ao lado da lembrança de outras tantas tramas vividas” (p. 24-28).

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Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos São Paulo, Unesp, 2000 Não é possível refazer este país, democratizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da equidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho senão viver plenamente a nossa opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que dizemos e o que fazemos. Desrespeitando os fracos, enganado os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros (p. 67). Como educador, preciso ir ‘lendo’ cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior, de que o seu é parte. O que quero dizer é o seguinte: não posso de maneira alguma, nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo. E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo ‘leitura do mundo’ que precede a ‘leitura da palavra’. Se, de um lado, não posso me adaptar o me ‘converter’ o saber ingênuo dos grupos populares, de outro, não posso, se realmente

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progressista, impor-lhes arrogantemente o meu saber como verdadeiro. O diálogo, em que se vai desafiando o grupo popular a pensar sua história social como experiência igualmente social de seus membros, vai revelando a necessidade de superar certos saberes que, desnudados, vão mostrando sua ‘incompetência’ para explicar os fatos. (p. 81).

Pedagogia da autonomia. 15ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000

É fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha no guia dos professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio aprendiz, em comunhão com o professor formador. (p. 43). Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência, um papel altamente formador. O que a raiva não pode é, perdendo os limites que a confirmam, perder-se em odiosidade. (p. 45). O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que ‘manda que ele se ponha em seu lugar’ ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima, tanto quanto o professor que se exime do seu dever de propor limites à liberdade

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do aluno, que se furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência. (p. 66). Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo. […] Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura. Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo. (p. 115).

Ação cultural para a liberdade 6ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982 Não há anúncio sem denúncia, assim como toda a denúncia gera anúncio. Sem este, a esperança é impossível. […] Na verdade, quem espera na pura espera vive um tempo de espera vã. A espera só tem sentido quando, cheios de esperança, lutamos para concretizar o futuro anunciado, que vai nascendo na denúncia militante. (p.59) Mais que escrever e ler que a ‘asa é da ave’, os alfabetizandos necessitam perceber a necessidade de um outro aprendizado: o de ‘escrever’ a sua vida, o de ‘ler’ a sua realidade, o que não será possível se não tomam a história nas mãos para, fazendo-a, por ela serem feitos e refeitos. Problematizar a palavra que veio do povo significa problematizar a temática a ela referida, o que envolve necessariamente a

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análise da realidade, que se vai desvelando com a superação do conhecimento puramente sensível dos fatos pela razão de ser dos mesmos. Assim, a pouco e pouco, os alfabetizandos vão percebendo o fato de, como seres humanos, falarem, não significa ainda que ‘dizem sua palavra’. (p.16 e 19). Para ser um ato de conhecimento, o processo de alfabetização de adultos deve, de um lado, necessariamente, envolver as massas populares num esforço de mobilização e de organização em que elas se apropriam, como sujeitos, ao lado dos educadores, do próprio processo. De outro, deve engajá-las na problematização permanente de sua realidade ou de sua prática nesta. (p. 55-56).

Extensão ou comunicação 7ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983

Educar e educar-se, na prática da liberdade, é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem – foi isto sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem, possam igualmente saber mais. (p. 25). Ser dialógico é não invadir a cultura do outro, é não manipular, é não sloganizar. Ser dialógico é empenhar-se na transformação constante da realidade. […] O diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o “pronunciam”, isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos. (p. 43). A educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não

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é transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados. (p. 69).

Educação como prática da liberdade 16ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983 Primeiro livro publicado pelo autor, escrito logo após a queda de João Goulart da Presidência da República, retoma as ideias centrais da tese Educação e atualidade brasileira, defendida em 1959. Marcado pelas contradições da realidade brasileira e pelo início de sua vida no exílio, este livro constituiu, nas palavras do próprio autor, a sistematização do esforço educativo por ele realizado, numa tentativa de resposta aos desafios contidos nesta passagem que fazia a sociedade brasileira, de um ontem que significava uma sociedade sem povo, para um amanhã de uma nova sociedade, sendo sujeito de si mesma. Não há educação fora das sociedades humanas e não há homem no vazio. (p. 35). A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. (p. 96).

Cartas à Cristina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994 Só quando sei cabalmente que não sei ou o que não sei, falo do não-sabido não como se o soubesse, mas como ausência superável Leituras da obra de Paulo Freire

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do conhecimento. E é assim que parto melhor para conhecer o ainda não-sabido. Sem humildade, dificilmente cumpro esta exigência. É que, inumilde, recuso conhecer minha incompetência, o melhor caminho para superá-la. E a incompetência que escamoteio e disfarço termina por, desnudando-se, desmascarar-me. (p. 17).

Caderno Pedagógico Publicação dos 50 anos da APP-Sindicato. Curitiba, 1997

Enquanto as dores, fruto das contradições do capitalismo, estiverem aí, doendo, não dá para suprimir os sonhos, os desejos e as insubmissões socialistas. Este não é um tempo de choro ou fatalismo, embora tenhamos motivo ou vontade de fazê-lo; este é um tempo dramático, desafiador, tempo de briga e de esperança. (p. 53). E o que é que nós iremos fazer face à atual capacidade (que é enorme) do capitalismo, de gerar e aumentar problemas sociais? Isso, confesso a vocês, me leva a duvidar da longevidade deste momento neoliberal. Nenhum momento anterior na história humana foi tão voraz em produzir pobreza e excluir os “não alinhados”. (p. 57).

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3 Dos que pensam Paulo Freire Carlos Rodrigues Brandão O que é método Paulo Freire, São Paulo, Brasiliense

“Entre os educadores que aceitam como seus os projetos dos movimentos populares, trabalhos de alfabetização deixam de ser programas de iniciativas externas, às vezes sutilmente impostas, de ‘grupos de igreja’, de ‘estudantes’ e assim por diante. Eles procuram responder às solicitações vindas das comunidades, de um sindicato, dos movimentos populares. O lugar das decisões do trabalho de alfabetização tende a deixar de ser o do ‘programa’ e passa a ser, também, ou apenas, o de uma comissão de moradores de uma favela, de uma associação de bairro de periferia, de uma comunidade eclesial de base, de um sindicato ou de um movimento de trabalhadores rurais. O trabalho do educador popular é o de um assessor de setores organizados do povo, que o convocam para fazer o que o povo ainda não sabe ou não pode fazer, ou para ajudar, com a sua contribuição específica, os trabalhos de educação que o povo começa a saber e a poder fazer”. (p. 98)


Carlos Rodrigues Brandão O que é método Paulo Freire. São Paulo, Brasiliense

“Nas experiências tradicionais dos programas oficiais, o ensino do ler-e-escrever mistura às palavras de ilusão uma realidade de fantasia. O mundo que ali se mostra oculta, justamente, o mundo que se vive. Através de figuras, palavras, frases, indicações de leituras, a realidade social aparece ao educando como um fetiche: um mundo dado, irreal, pronto e estático, bonito, acabado e sem conflitos. (…) A educação imposta aparece como ofertada. O interesse político de tornar, também a educação, um instrumento de reprodução da desigualdade e de ocultação da realidade à consciência, aparece como uma questão de trabalho técnico sustentado por princípios de ciências neutras. Assim, a educação que serve, nas mãos do poder que oprime, para ocultar de todos a própria realidade da opressão e para fazer os homens cada vez mais diferentes pelo grau diferenciado de saber que distribui, oculta-se a si mesma (…) A consciência do oprimido, que aprende com o trabalho pedagógico de educação do opressor a pensar como ele e a legitimar a ordem de Mundo que ele impõe, aprende a pensar por si própria. Aprende a desvelar a mentira do saber imposto, quando aprende a fazer a prática política cujo horizonte é a sua liberdade. É a construção progressiva, mas irreversível, de uma sociedade conquistada pelo povo, e, então, reconduzida ao diálogo”. (p. 106)

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Celso Beisiegel Estado e educação popular: um estudo sobre a educação de adultos. São Paulo, Pioneira, 1974 “O método começava por localizar e recrutar os analfabetos residentes na área escolhida para os trabalhos de alfabetização. Prosseguia mediante entrevistas com os adultos inscritos nos “círculos de cultura” e outros habitantes selecionados entre os mais antigos e os mais conhecedores da realidade. Registravam-se literalmente as palavras dos entrevistados a propósito de questões referidas às diversas esferas de suas experiências de vida no local: questões sobre experiências vividas na família, no trabalho, nas atividades religiosas, políticas recreativas etc. O conjunto das entrevistas oferecia à equipe de educadores uma extensa relação das palavras de uso corrente na localidade. Essa relação era entendida como representativa do universo vocabular local e delas se extraíam as palavras geradoras – unidade básica na organização do programa de atividades e na futura orientação dos debates que teriam lugar nos “círculos de cultura” (p. 165)

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Thiago de Mello Canção para os fonemas da alegria a Paulo Freire Peço licença para algumas coisas. Primeiramente para desfraldar este canto de amor publicamente. Sucede que só sei dizer amor quando reparto o ramo azul de estrelas que em meu peito floresce de menino. Peço licença para soletrar, no alfabeto do sol pernambucano a palavra ti-jo-lo, por exemplo, e poder ver que dentro dela vivem paredes, aconchegos e janelas, e descobrir que todos os fonemas são mágicos sinais que vão se abrindo constelação de girassóis gerando em círculos de amor que de repente estalam como flor no chão da casa. Às vezes nem há casa: é só o chão. Mas sobre o chão quem reina agora é um homem diferente, que acaba de nascer: porque unindo pedaços de palavras aos poucos vai unindo argila e orvalho,

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tristeza e pão, cambão e beija-flor, e acaba por unir a própria vida no seu peito partida e repartida quando afinal descobre num clarão que o mundo é seu também, que o seu trabalho não é a pena paga por ser homem, mas o modo de amar – e de ajudar o mundo a ser melhor. Peço licença para avisar que, ao gosto de Jesus, este homem renascido é um homem novo: ele atravessa os campos espalhando a boa-nova, e chama os companheiros a pelejar no limpo, fronte a fronte contra o bicho de quatrocentos anos, mas cujo fel espesso não resiste a quarenta horas de total ternura. Peço licença para terminar soletrando a canção de rebeldia que existe nos fonemas da alegria: canção de amor geral que eu vi crescer nos olhos do homem que aprendeu a ler. Santiago do Chile, primavera de 1964

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4 Mais sobre Paulo Freire Sites onde pode se encontrar arquivos documentais e iconográficos:

Memória da vida e obra de Paulo Freire www.projetomemoria.art.br/paulofreire Cátedra Paulo Freire, PUC-SP www.pucsp.br/paulofreire/ Biblioteca Digital Paulo Freire http://www.paulofreire.ce.ufpb.br Centro de Referência Paulo Freire, do Instituto Paulo Freire em São Paulo www.paulofreire.org/

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Ser dialógico é não invadir a cultura do outro, é não manipular, é não sloganizar. Ser dialógico é empenhar-se na transformação constante da realidade. […] O diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o “pronunciam”, isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos.




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