Balaclava de Ezter Liu

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balaclava Ezter Liu

eu nao sou continente

levante

i

balaclava

alturas esfinge anáguas para zarpar instruções para subidas tratado de dentro acho feriados hiroshima neste caso especificamente levante! algum agreste a margem reativa fortaleza travessia negócio trajetos parentescos avalanche

nasce a esperança espera primórdios fêmea vai encarar?

ilha
como
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não me encha de flores de filhos nem de fados não me ofereça prendas nem bodas e não me envolva com esses mil abraços de me impor limites eu não sou seu continente e não me venha com esses aviões em esquadra sobrevoar meu território

não despeje suas bombas sobre minhas vilas e nem tente invadir minhas normandias

eu não sou seu continente

não invente capitanias e não desenhe mapas com esse vinco no lençol pra demarcar minhas superfícies não proponha tratados com letras do tamanho de formigas nem pactos nem acordo de paz nenhuma

e u nã o s ou s eu c onti nen te não ultrapasse minhas fronteiras não exploda minhas pontes não tente arapucas artefatos bélicos minas terrestres não subestime minhas trincheiras yo no soy tu continente

ilha
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não quero sua catequese nem sua crítica nem sua nota nem sua poda nem seu afago nem esse beijo de dizer amores que me deixa muda

não planeje embargos nem emboscadas não queira ocupar meus peitos nem meus pátios

eu não sou seu continente não venha não avance não queira que eu seja sua terra prometida eu não sou já disse:

eu não sou seu continente

eu sou essa ilha pequena e vivo à mercê do mau tempo

eu sou essa ilha que sabe onde ficam os limites

eu sou essa ilha cercada de tralhas por todos os lados eu sou essa ilha pequena onde não se chega a nado eu sou essa ilha pequena e nenhum porto te ofereço eu sou essa ilha pequena e é assim que eu permaneço

eu não sou seu continente

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alturas

Eu me ergo - uma Medusa que abre os olhosentre os suores dos homens desses vagões Me ergo serpente com todo escárnio, toda impostura e o meu veneno vermelho nos salões

Eu me ergo - um broto invisívelnum vaso rachado esquecido no quintal Me ergo uma Deméter morena derrubando cercas de arame farpado do bico do mapa até a América central

Eu me ergo - na ponta de um guindasteno primeiro porto do atlântico sul Me ergo como um rabo de baleia como a vela branca de um barco sozinho Iemanjá boiando no espelho azul

Eu me ergo - uma Themis de bronzeimensa, súbita, cega e gelada E nas minhas mãos uma espada para a terrível justiça das revanches no meio da praça abandonada

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Eu me ergo - rainha dos redemoinhosno uivo do vento e no grito da trovoada na dança embaraçada dos cabelos tenho na boca o sopro de uma Iansã encarnada

Eu me ergo - dona das areiasmiragem para o capricho da visão Uma Vesta manipulando o fogo um lume uma chama um braseiro na cama de meu inflamado coração

Eu me ergo - na pele parda dessa cidade dormentesalto por cima das desventuras êxtase de todo grito Ávida de todas as forças grávida de todas as alturas

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esfinge

Meu coração de esfinge fria pedra preciosa mente em dizer que arde risca o céu descampado E cai feito estrela morta E como uma força fluida meu coração me engana

Meu coração aos trancos destrambelhado e forte cala longas distâncias bate um largo suplício forja um perene pulso E toda ladeira abaixo meu coração descamba

Meu coração destroços desencadeia ecos fundos vazados surdos pelos buracos negros dessa caverna escura E todas as arapucas meu coração desmonta

Meu coração fechado quase afogado bate nessas marés tão altas tão à deriva de tudo e em nada mais se ancora meu coração descrente rema do cais pra fora

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Meu coração fantasma nessa alameda longa vai pela noite a dentro com o ruído das correntes e peso das bigornas E madrugada a fora meu coração me assombra

Meu coração faminto faísca de nervo exposto mil decibéis acima mil megatons a frente como abraço de serpente Incendeia lambe atiça E até quem me decifra meu coração devora

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anáguas

aquela fé fincada no coração da noite é a mesma que tenho no movimento das marés um olho nas anáguas da avó o outro nos tornozelos da filha aquela fé nos relevos passados

é a mesma para as densidades futuras com linhas finas de esferográfica está escrito em minha mão: que eu me inauguro que eu me despeço que eu - cíclicarecomeço

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para zarpar não existe janela que dê vista para o desejo e o medo em harmonia não existe um lugar em que o desejo com o medo coexista

- para zarpar, coragem! medo é pra quem fica

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instruções

para subidas

Saiba do cume saiba mais de si Veja se tudo está suficientemente íngreme para ser escalada a montanha primeiro precisa existir

Lembre o ar é coisa mais importante respire e siga Aguente não se pode apressar as coisas doloridas esteja em movimento o tempo é um senhorio hostil Você pode até fazer uma prece nos momentos de pausa mas não deixe de acender boas fogueiras Você vai encontrar alguns oráculos no caminho é possível duvidar de todos e se render a todos no minuto seguinte

Saiba da vista saiba mais de si Entenda é tudo um abismo invertido Entenda é tudo mesmo subida e sempre vai ter algum tipo de cume enquanto houver

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vida

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tratado então me desarmo e danço para esquecer farpas quinas e trancas e correr descalça nessas redondezas então me desarmo e assino comigo mesma um tratado distraído de soltar os pesos e inventar levezas então me desarmo e escorro pelas calhas pelas telhas pelos cantos depois evaporo condenso precipito então me desarmo e sigo lanço um facho de luz sobre esse prisma e irradio um calor muito bonito

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mariposas

agora

apresso meus passos no escuro

- foi um medo novo que ganhei por esses dias acendo lâmpadas inúteis em quartos vazios compro velas e fósforos lampiões e pavios

tenho clareado muito tenho iluminado pouco alimento as fogueiras mantenho o fôlego de cada brasa

e não é por gostar de mariposas que espalho essas luminárias pela casa

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de dentro

as flores sangram no verde meus pés afundam no canteiro trago a palavra na agulha para o disparo certeiro aqui meu corpo fagulha viajo no pensamento zunem as abelhas de dentro nos arredores do tempo

a lágrima beira a linha d’água meu choro é meu cadeado feixe de capim navalha nesse meu ombro cansado não há consolo que valha me perco no sentimento rugem as feras de dentro nas ribanceiras do tempo

na ponta da rua nasce a noite meu riso lança um estilhaço ando contando os tropeços ando perdendo o compasso e no escuro anoiteço viajo no firmamento uivam as lobas de dentro nesse retalho de tempo

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acho

Isso é tudo que eu sei eu acho. eu que prefiro a prosa a esses versos mal arranjados

isso é tudo que eu sei eu acho. eu que prefiro a máscara a essa confusão que estampo no rosto

isso é tudo que eu sei eu acho. eu que prefiro o silêncio a esse volume que me esborra dos lábios

e não procuro certeza: eu acho

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feriados

O amor é presença constante nas quinas do expediente

O amor se enfiou nas gavetas e emperrou o fichário

O amor se instalou na poeira quando eu lhe neguei o peito

O amor atrás dessa porta e embaixo do tapete

O amor circula nas veias feito doença latente

Que de repente acha um jeito se modifica e se mostra

Me esborra pelos olhos e altera a minha paisagem

O amor manda em meus músculos o amor é feito uma câimbra

E vibra na ponta dos dedos enquanto eu tateio palavras

O amor vem feito um gigante depois se encolhe e se esconde O amor vestido de culpa sentado num banco de praça

Seu lugar é na vigília entre o real e o sonho Seu lugar deveria ser

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no tempo da amnésia

Penso me perco e esqueço os trovões das entrelinhas

O amor é um contrato longo com muitas letras miúdas

Uma oração sem sujeito o amor é só predicado E eu sou a que faz gambiarras pra fingir que me resolvo

E transformo galhos secos num buquê cheio de orvalho E enfeito os meus cabelos com as sobras do seu prato

Não sei se há oferenda meu coração é só mágoa Meus gânglios e meus tecidos tomados todos de assalto

Não sei se morro ou me curo desse mal adivinhado Não sei se ajoelho e choro não sei se corro e me calo

No eco dos dias santos o amor fica calado Acostumada ao silêncio pois meu deus sempre foi mudo

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Respondo eu mesma no espelho a mesma pergunta que faço: - o amor é um dia vermelho marcado no calendário.

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Você não sabe o que acontece lá dentro Você não sabe

Até que acontece Um dia desses lá dentro alguma coisa explode

E seu coração: Hiroshima

Seu coração todo Hiroshima Você não sabe você não faz ideia tudo Hiroshima seu coração e o tórax todo Tudo Vira Hiroshima Você não sabe

Mas deixa escapar pela boca

Um cogumelo de fumaça Sim.

Um cogumelo sai da sua boca feito de fumaça Por dentro Agora Nada mais termina Por dentro: Você Hiroshima

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neste caso especificamente

procurando motivo para o próximo passo presa nesta forja em que derreto percebo a impotência diante do peso desse excelentíssimo lastro em que me deito procurando nem sei o que mais me ajude em meus papéis horríveis minha cara enjoada nessa enfadada dança que executo conforme essa música cansada procurando nos espelhos essa mulher cheia de umbigos :essa mulher e seus muitos nascimentos :agoniada com todas essas portas :agoniada com o país dos cadeados

procurando motivo para o próximo passo :com as regras imundas dos banheiros públicos e essas plantas e esses dez ou doze vasos :todos entupidos com papéis molhados

procurando motivo para o próximo passo :nas duas possibilidades desse corredor sem portas procurando motivos :e olhando o quadro: o país incinerado cheirando a cinzas procurando motivo para o próximo passo :duas lagoas chorando um rio penso :duas pessoas e um descampado acho procurando entender um pouco desse assunto

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:eterno cíclico espiralado :essa mentira esses sinônimos esses tropeços :atravessados na luz que penetra o breu do quarto procurando em todo canto esse motivo que falta :deve estar dentro :só pode :deve estar cru :deve estar verde :deve ser ovo :deve estar larva continuo arregalando os olhos e não vejo continuo usando lupas e não acho continuo aflita tateando palheiros procurando motivo para o próximo passo :no centro da coivara acuada nem é junho ainda eu penso :essa fogueira não pode ser pra santo :e a essas pessoas de unhas limpas eu não devo nada

presa do lado de fora do sequestro :adivinhando doenças :ensaiando infartos :pensando em qual distúrbio me comerá as noites no próximo passo presa do lado de fora da tela :procurando motivo para o próximo passo :querendo que o próximo passo me tropece e jogue pro lado de fora desse palco mas parece que não existe fora :para os que precisam de motivo :para pessoas como eu digo :neste caso especificamente

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dentro da balaclava cinco cavernas escuras dois rios perenes uns galhos três procuras dentro da balaclava a ira que se afina o melhor arco do relevo o eterno blefe da esgrima dentro da balaclava o sal velado da fúria testa de ferro cristalino de espelho veneno de injúria. dentro da balaclava

novelo e nó ferro e ferreiro mata densa de miolos verso fácil verso ligeiro dentro da balaclava país paisagem lampejo flash veloz do segredo tropel interno distante desenho no mapa do medo

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dentro da balaclava uniforme mata densa trinta ou trinta mil histórias uma roda um raio uma prensa. dentro da balaclava a rosa a pena a franja torta uma flecha uma testa muito tensa ausência de chave e de porta

dentro da balaclava membrana nervo carne e osso caldo de ideias cabide de entulho rascunho rasura e esboço

dentro da balaclava agora ainda e desde sempre pele que se solta outro rosto mais bonito crosta que descama boca que se rasga outro desejo aflito. dentro da balaclava: o grito.

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levante!

As fogueiras ainda estão acesas, você vê?

Tem um clarão no meio da noite É aquela ameaça antiga, você vê?

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Eles se aproximam da sua casa, você ouve? Estão armados com paus e pedras e palavras terríveis Você ouve?

Levante! Olhe nos olhos do seu inimigo Amole as garras e a língua Este é o tempo de todas as coragens e de todas as lutas

Eles estão vindo com as cruzes e penitências, você entende? Esse é o tempo de todas as forças

O tempo de quebrar o fio e perder as contas dos rosários todos

Levante! Troque de pele Lave sua alma quantas vezes for preciso

Eles estão vindo e são muitos, você sabe? Levante Não há bom sono nesse ninho de serpentes Você vai ter que usar suas armas Mesmo que sejam só unhas Mesmo que sejam só dentes

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algum agreste

É tudo seco neste lugar de poucos ricos e as bocas das pessoas pobres têm rachaduras fundas como as de um leito seco de rio

Era bom cavar um poço ou fazer cisternas para o caso de cair a boa água

É tudo seco nesse lugar de muito assunto Mas não se escreve desespero em parede sem reboco Nem se desenha aperreio em casa que não tem tranca a secura acinzenta os pés o mormaço amolece o pensamento é poeira demais pra pensar em vento

a margemMinha saída é transformar em poesia esses girassóis esfarelados transformar em poesia esse arrepio de pressentimento Ninguém sabe nadar direito Ninguém sabe nadar: lamento

A travessia pede resistência mais que força

A travessia pede paciência mais que fé

É necessário que na gente haja fôlego

Pra alcançar do outro lado a margem

Se margem houver

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reativa

Eu preciso fazer poesia três vezes ao dia mesmo sem os óculos que perdi em algum lugar dessa casa Eu preciso fazer poesia sem métrica sem açúcar sem rima sem xilocaína Eu preciso fazer poesia mesmo na defensiva e com pouca força porque o esgotamento tem batido forte Preciso fazer poesia porque o mundo está bagunçado e o meu assento na janela é privilegiado

Fazer poesia pra amansar meu cão porque tenho odiado tenho rosnado e sinto o estômago cada vez mais revirado Eu preciso fazer poesia mesmo que estejam cegas as letras do meu teclado Fazer poesia por causa das filas na caixa econômica federal e nos supermercados Porque me sinto imóvel na iminência do desastre e não sei outro jeito de mexer meus dedos nesse caso Eu preciso fazer poesia pra parar de me sentir absolutamente sozinha -sei que não estouEu tenho que fazer poesia pra não precisar da ajuda de aparelhos Eu insisto em fazer poesia mesmo estando exausta nua e descalça Porque todos os dias as notícias amolecem o meu chão E eu não sei esboçar outra reação.

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Uma mulher tem que ser sua própria muralha porque em tempos de fogueira há que se defender das tochas e estar atenta à chuva de flechas do pelotão das culpas inventadas

Uma mulher tem que ser sua própria muralha porque a propaganda invade o forte pelos flancos E o canteiro de obras tem nos olhos uma fome

Uma mulher tem que ser sua própria muralha pra que os tentáculos das paixões doentes se enganchem nos grampos e o amor encontre um jeito de atravessar o fosso

Uma mulher tem que ser sua própria muralha construir trincheiras enquanto gera e alimenta porque a prole é jovem e os predadores são ávidos

Uma mulher tem que ser sua própria muralha pra defender seu império e descobrir seus aliados porque o inimigo sorrindo delicadamente destroça

Uma mulher tem que ser sua própria muralha pra se precaver de nódulos, cistos e endométrios endurecidos pra inventar pátios internos e jardins floridos

Uma mulher tem que ser sua própria muralha enquanto pensa, enquanto cresce, enquanto ensina, enquanto fala, enquanto ama

Uma mulher tem que ser sua própria muralha e ser também a sentinela com os pés firmes no topo do mirante e os olhos no horizonte.

35 fortaleza

travessia

Atravessei de madrugada e sozinha o deserto do estacionamento e só de medo as minhas mãos envelheceram dez anos

Atravessei de madrugada e sozinha o deserto do estacionamento rápida com meus cotovelos mudos

Fiz sozinha um silêncio imenso -tristíssimoparecido com o silêncio que faz quando morre um grilo quase igual ao silêncio que faz nos primeiros dias em que se engaiola um pássaro

Fiz sozinha um silêncio imenso -espessosilêncio de uma presa pressentindo o bote e cheguei ligeira no oásis da luz do poste mas não ilesa, sabe?

as minhas mãos envelheceram dez anos

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negócio

Eu não tenho caminho certo não nem coleciono encruzilhadas congestionadas cheias de buzinas faróis e confusão.

E não tenho rota não nem senso de orientação Não tenho prazo nem providências urgentes Meu relógio analógico de vidro trincado diz que o tempo é um engano e eu sou outro ainda maior. Eu só tenho meus excessos e uns humores flutuantes e esses atalhos constantes

Eu não tenho muito laço não sou solta dessa árvore eu vago meu negócio é vento

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trajetos

Eu quero saber por onde você veio

Por onde andou pra chegar desse jeito

Eu quero saber que estrada recebeu teus passos e te sujou assim de lama Que canteiros você teve que pisar

Que grama

Onde se abrigou quando veio aquela chuva Que estrada te trouxe

Você escalou a montanha ou deu a volta?

Você pegou aquele atalho?

Abriu a trilha com uma foice?

Nadou no rio?

ou havia uma ponte?

Por acaso você construiu uma ponte?

Eu quero saber, é importante.

Não ligo muito para as chegadas

Mas tenho um fraco por trajetos

Me conte

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parentescos

a fé das filas preferenciais da caixa econômica federal é irmã da fé das salas de espera dos consultórios médicos prima da fé que se usa no dia do resultado da biópsia tia da fé de pernas bambas que chora no escuro mãe da fé das pulseirinhas do senhor do bonfim cunhada da fé sem tutano dos campos de futebol neta da fé fabricada nas gráficas vizinha da fé adormecida nos berços e amiga da fé fingida que não convence santo nenhum.

- a fé tem conflitos de interesse - a fé empunha seus brasões ridículos - a fé cochicha nepotismos - a fé ostenta parentescos - a fé vem terçã como febre - contagiante - con tagiosa - a fé nos botões e nas casas - a fé no futuro - no vento sob as asas - a fé nunca se basta - reluz nos faróis de neblina. – a fé não anda sozinha – não sei onde começasei que nunca termina

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avalanche

uma avalanche de bolas de gude azuis soterrou a cama logo de manhã eu ainda dormia o sono dos que se dizem justos - mas não sãoo excesso de oração me esfolou os joelhos e eles arderão pela eternidade mesmo quando a fé for só uma memória enterrada arderão pela eternidade quando só restar a montanha de vidro azul no quarto em que morri há séculos atrás no quarto em que eu não vou nascer nunca mais

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como nasce a esperança?

A esperança ela nasce no coração do caçador desarmado no olho do observador de pássaros extintos na lente dos estudiosos dos hábitos de insetos no sopro de um cego encantador de serpentes não é no musgo é no líquen dos pisos rachados numa ponta de lança num fundo de poço na incerteza de um salto ou nos passos dos que andam sem mapa

E até que nasça parece que ela fica pregada nas paredes das ante salas dos partos - e no carregado das nuvens e no prolongado do estioela às vezes nasce como um desejo de águas

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espera

ela espera a primavera espera com um vazio na lapela ela espera a primavera embora haja esse outono por dentro

ela espera a primavera espera com brilho de água nos olhos ela espera a primavera no entanto esse agridoce na língua

ela espera a primavera ela abre as janelas da casa deixa o sol tirar o mofo de suas toalhas rendadas

e no alvoroço dos cabelos essas flores adivinhadas

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primórdios

os primeiros peixes tiveram o presságio que andaríamos nus na areia branca depois de dançar entre os tentáculos da água-viva e de dormir séculos sob as algas

os primeiros pássaros tiveram a certeza que sobrevoaríamos Sumatra antes muito antes dos pequenos animais e nos desembaraçaríamos das copas para mergulhar nuvens acima

os lagartos das primeiras estepes perceberam nossa presença justamente quando abraçados nos transformávamos em rocha secando no sol

os olhos dos primeiros bichos testemunharam tudo quando ainda úmidos saímos do charco e perdemos as guelras e ganhamos o sopro os olhos dos primeiros bichos denunciaram tudo nosso durante nosso antes e o depois estávamos e completamente estávamos pressentidos sempre e desde

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fêmea

Há uma força fêmea no impulso do mundo no subentendido das coisas atrás das gavetas dentro dos espelhos entre a xícara e o pires nos desvãos da casa onde termina o corpo e começa a asa

Há uma força fêmea no impulso do mundo desde o início de tudo na retaguarda dos tronos no miolo da empunhadura uma película sutil entre a cabeça e a coroa o fôlego antes da voz que no silêncio trovoa

Há uma força fêmea no impulso do mundo no cerne do invisível desenhando o curso dos rios pelo preciso caminho das curvas adivinhando tempestades pelo timbre dos grilos guardando as sementes na segurança dos silos

Há uma força fêmea no impulso do mundo desde a descoberta do primeiro fogo que controla a altura das chamas pra medir a velocidade das faíscas que molda os metais em toda forja e prevê a direção das limalhas que desliza sem dor e sem corte no fio das navalhas

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Há uma força fêmea no impulso do mundo no primeiro verso da primeira música que segura o carretel de cada dia na distância de toda travessia que entende a trama das meadas quando venta no caos do emaranhado com a força dura de um trator alado

Há uma força fêmea no impulso do mundo do primeiro verbo até a última estrela alimento de todo peito tensão da fome diante do prato ditando os atalhos da fuga no medo velado das intuições regendo os chuviscos e as monções

E não me disse nada o misterioso deus das engrenagens mas adivinhei todos os dias por mil séculos a mesma charada Existe: uma força no impulso do mundo É uma força fêmea imensa e velada

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vai encarar?

O meu feminino é feito de ferro feito de escudo (redoma blindada de bolha de sabão)

O meu feminino é feito de verbo no imperativo feito de muitos pontos de exclamação.

O meu feminino (provavelmente) vai mostrar o dedo do meio (amorosamente)

O meu feminino é mais juta que seda mais lama que lótus é mais atrito mais grito não é rosa nem cor-de-rosa

O meu feminino vive puto da vida

O meu feminino quer matar de susto O meu feminino vai desafiar sua valentia e vai jogar sua bagunça no ventilador. Dito isso advirto:

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Qualquer dia desses meu feminino vai querer chamar você pra dançar: vai encarar?

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vozespor dentro da balaclava:

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É tudo mentira, essa balaclava nunca existiu.

Não houve proteção, camuflagem e nem escolta para atravessar os dias, as praças, a cidade.

A cabeça sempre esteve exposta e erguida, o olhar adiante de seu tempo.

A inquietação de quem já sabia, lá no fundo, da sua missão nesses tempos em que a pena muitas vezes pesa.

Ezter Liu escancarava tudo com a sua brabeza. Era aquele tipo de pessoa que falava chorando, mas falava. Dali saia tudo: dentes, lágrimas, verdades e saliva. Talvez esse fosse seu maior super poder: a palavra.

Pra mim nunca foi brabeza, sempre foi bravura.

A coragem de cuspir frases molhadas, de denunciar injustiças, de falar quando a ordem vigente era calar, sempre era calar.

O grito sim, sempre existiu Isso se faz presente em sua trajetória, em sua obra, a denúncia contida na paisagem, no belo, no feio. As suas obras são urros, clareiam túneis.

As vezes é preciso muita coragem pra não engolir o choro, “não há balaclava contra o poema”. Mery Lemos

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Edição: Carlos Gomes Revisão: Olímpia Alves

Fotografia: Produção Executiva: Mery Lemos + agente.com.vc/balaclava

2022 Ezter Liu

cip + incentivos

Este livro foi composto em Gill Sans, impresso sobre Pólem Print 80gr/m2 pela Provisual Gráfica e Editora para Ezter Liu, em Outubro de 2022

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