Revista Soul #4 - novembro de 2017

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Soul GÊNERO E DIVERSIDADE

Ano 02, Edição 04, Novembro de 2017

MILITÂNCIA FRUTÍFERA

Monstros e fechação contra o preconceito

BRINCANDO DE APRENDER Boneca e bola para quem quiser

NEM TUDO SÃO CORES

População LGBT+ é vulnerável à depressão

ENTREVISTA

Reverendo Bruno Almeida, da Igreja Anglicana

FREUD EXPLICA?

‘Todo mundo quer saber com quem você se deita’

TRANS NA PÓS

Pingue-pongue com Leandro Colling

TATOO DO BLACK!

Quem disse que preto não pode?

DIVERSIDADE EM SÉRIE(S)

Dicas para uma maratona do babado

PERFIL

Beatriz Grappi, a ourives do mar

K-POP E ACARAJÉ

Música popular coreana fãs em Salvador NOVEMBRO 2017

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Revista Soul - Projeto interdisciplinar produzido pelos alunos do curso de Jornalismo, da Faculdade Social da Bahia (FSBA), Salvador/BA, nas disciplinas de Práticas Integrativas III e Planejamento Gráfico, com a colaboração de Redação Jornalística II e Estágio Supervisionado I. Coordenação do curso de Jornalismo: Bárbara Souza Edição geral: Elisangela Sandes Edição de texto: Bárbara Souza e Claudiane Carvalho Edição de arte: Elisangela Sandes Revisão: Adriana Telles, Bárbara Souza e Claudiane Carvalho Projeto gráfico: Alunos do 6º semestre do curso de Jornalismo TEXTOS: Didica Vasconcelos, Edielson Santana, Elane Rosa, Harrison Lago, Nilson Marinho, Onã Rudá, Roseli Servilha, Harrison Lago, Íris Leandro, Caroline Rodrigues, Daniel Serrano, Carla da Mata e Vanessa Brunt. EDITORIAL: Claudiane Carvalho CAPA: Elisangela Sandes FOTOS E ILUSTRAÇÕES: Roseli Servilha, Elisangela Sandes, Freepik e Divulgação. COLABORADORES: Luiz Lopes

Faculdade Social da Bahia – FSBA. Av. Oceânica, 2717, Ondina, Salvador – BA. CEP 40170-010. www.fsba.edu.br (71) 4009-2840 Diretora: Margareth Passos Vice-diretor: Fernando Miranda Coordenadora Acadêmica: Ornélia Marques

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REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 1

(JUNHO – 2016) Empoderamento feminino, a doença do preconceito (‘que dizima também quem paga o dízimo’) e combate ao feminicídio foram os temas de destaque na Capa da 1ª edição da Revista Soul, que materializou o projeto editorial proposto e concebido por estudantes do 5º semestre do curso de Jornalismo. A edição inaugural tratou de temas que só há pouco tempo passaram a ser abordados pela mídia sob o enfoque dos direitos humanos e respeito à diversidade. Um enfoque que se empenha em deixar de lado o olhar que reforça o estigma social e patologização das questões de gênero e diversidade – ou ao menos se empenha em fazê-lo. Cultura, religiosidade, serviço, curiosidades: a diversidade temática foi a marca da edição nº 1 da revista. Ah, sim: teve gorda na Soul e terá sempre! Como sempre terá magros(as), homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais, transgêneros, jovens, idosos (as), gente. 4

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NOVEMBRO 2017

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 2

(NOVEMBRO – 2016) A 2ª edição da Soul fez jus à temática que ancora editorialmente a publicação: diversidade e gênero. Foram várias as vozes ouvidas e os posicionamentos apresentados. A principal chamada de Capa foi a entrevista com o editor-chefe do canal LGBT do jornal Correio, líder na Bahia, o jornalista Jorge Gauthier. Cultura indígena, história de luta das mulheres por direitos, inclusão de pessoas com deficiência auditiva e combate à violência doméstica também estão entre os temas das matérias da edição nº 2. A Soul reuniu diversos gêneros jornalísticos: reportagens, uma entrevista pingue-pongue com o deputado federal Jean Wyllys e dois artigos: um do estudante de Jornalismo Théo Meirelles, da FSBA, sobre ‘Transexualidade e mídia’, e outro, da advogada e professora Natália Silveira, que integra o corpo docente da FSBA e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Ufba.

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 3

(JUNHO – 2017) Muito além do arco-íris. A terceira edição da revista Soul publicou uma reportagem sobre 56 identidades de gênero. Isso mesmo: cinquenta e seis. A relação das crianças com a diferença – e os cuidados para que o preconceito de adultos não seja incutido nas mentes abertas dos pequenos – crossdressing e alternativas de mobilidade urbana integraram a edição nº3 da Soul. A publicação trouxe ainda uma reportagem sobre como a indigesta proposta de reforma previdenciária do governo Temer afeta, particularmente, as mulheres. Outra matéria conta um pouco da história e trajetória de Rico Dalassam, um dos expoentes da nova geração do rap brasileiro e o primeiro rapper assumidamente gay do país. E mais: uma entrevista exclusiva com Russo Passapusso, cantor da premiada Baiana System, que rejeita a classificação de ‘música alternativa’ para a banda.


Editorial

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preconceito não é natural, é uma construção social tecida desde a socialização primária (família), com tramas que são continuadas na socialização secundária. Rever esses percursos e entender as dinâmicas de produção dos estigmas são desafios à educação contemporânea. A Soul é engajada nessa proposta e comunga a ideia freiriana de que a mudança social se faz pelas vias da educação comprometida com a complexidade humana. Precisamos das práticas de ensinar-aprender, porque somos incompletos. Entretanto, a eficácia dessas práticas está condicionada à compreensão da multidimensionalidade humana. Além disso, é necessário romper com as dicotomias e dualidades para instaurar o continuum. Em sua quarta edição, a Soul reafirma o seu compromisso com a cidadania, engendrada na diversidade e interação. Aliás, o multiculturalismo prevê, em sua modulação mais desejada, a interculturalidade. Andamos por aí, captando, na sociedade, demonstrações de que há, sim, a busca por um mundo melhor e pela coexistência. Olha só o que encontramos nessas “andanças”. Pessoas trans têm garantida a reserva de vagas na pós-graduação da UFBA. A pele preta pode ser tatuada e, mais, com identidade étnica. E você, já ouviu falar em K-poppers? Com certeza, você conhece a manifestação cultural denominada Parada Gay. Mas, sabe quantas são realizadas em Salvador? A Soul conversou com o reverendo Bruno Almeida. Um diálogo possível ( a entrevista) para tratar da necessidade de outros diálogos possíveis. Bem… para entender a metáfora, é só passear pelas nossas páginas. Ouça os áudios, construa seu próprio percurso de leitura, através dos hiperlinks e, depois, conta pra gente o que você descobriu como andarilho por aqui! Visitar novas terras e novas culturas é muito bom para que não seja perdido o senso de relatividade. COM AFETO NOVEMBRO 2017

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ENTREVISTA

MODA

CULTURA

Reverendo Bruno Almeida Cristã e inclusiva

Guarda-chuvas ou guarda-looks?

Séries para assistir a diversidade

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Onã Rudá

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COMPORTAMENTO A parada é orgulho! Edielson Silva

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PERFIL

Alquimia inspirada no mar Íris Leandro

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O fruto de Clarissa! Nilson Marinho

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Pioneirismo e Cidadania

SAÚDE

Em preto e Branco!

Vanessa Brunt

K-Pop, K-idol, K-covers, K-poppers.... e diversidade

Elane Rosa

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Harrison Lago

IDENTIDADE

ARTIGO

#PelePretaTatuada

Freud explica?

Didica Vasconcelos

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Luiz Lopes

TECNOLOGIA

EDUCAÇÃO

Para inspirar: 7 perfis do instagram que quebram padrões

É de menina ou de menino?!

Vanessa Brunt

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Roseli Servilha

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Daniel Serrano e Carla da Mata

Quadro em branco Nilson Marinho

Nilson Marinho

VANGUARDA

CRÔNICA

MICROCONTO

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Caroline Rodrigues

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Ponto de Cruz

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VOZES DA DIVERSIDADE

UMA PARADA LGBT+ EM CADA CANTO DE SALVADOR

PAPO RETO E REGRA CLARA: NOME SOCIAL É UM DIREITO!

TATUAGEM E BELEZA NA PELE NEGRA NOVEMBRO 2017

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ENTREVISTA

Reverendo Bruno Almeida

Cristã e inclusiva

Nesta entrevista exclusiva à SOUL, o líder religioso revela que a comunidade LGBT é reconhecida e representada na Igreja Anglicana da Bahia TEXTO: ONÃ RUDÁ EDIÇÃO: BÁRBARA SOUZA

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á exatos 500 anos a chamada Reforma Protestante, conhecida também como Reforma Luterana, abalou alicerces do catolicismo. Em 1517, um jovem teólogo e monge apresentou ao seu bispo uma relação de 95 teses e manifestou seu desejo de discutir abertamente questões teológicas em Wittenberg, na Alemanha. As teses de Martinho Lutero e suas críticas a certas práticas da Igreja, como a venda de indulgências e a vida de riqueza de líderes católicos, repercutiram imediatamente e desencadearam uma revolução religiosa que se disseminou pela Europa. A reforma do jovem Lutero, então com 34 anos, deu origem ao protestantismo e pavimentou o caminho para o surgimento de outras tantas religiões. Cinco séculos depois, a conversa da reportagem da SOUL com um líder da Igreja Anglicana, surgida no momento histórico da reforma luterana, revela um pouco da diversidade de posicionamentos nas religiões de fé cristã. Os anglicanos seguem as Sagradas Escrituras, acreditam na Santíssima Trindade e ordenam homossexuais “declarados” como líderes religiosos. “Cerca 35 a 40% dos membros da comunidade são homossexuais. No próximo ano, um encontro entre autoridades vai discutir o casamento entre pessoas do mesmo sexo”, estima o reverendo Bruno Almeida, da Igreja Anglicana da Bahia. Mas ele ressalta que há comunidades e reverendos que “são contra”. A “discussão” sobre o casamento homoafetivo está em pauta, mas “com relação ao acolhimento de pessoas LGBT, isso já está mais ou menos pacificado”. Ou seja, pode até faltar consenso, mas existe respeito. CONFIRA!

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– Há quanto tempo existe Igreja Anglicana na Bahia, quais os principais princípios e onde funciona? REVERENDO BRUNO – A igreja Anglicana está presente em Salvador, há mais de 200 anos, estamos aqui desde 1815, sendo igreja de uma comunidade desde o início, mas muito atuante. Hoje, na Bahia, nós temos comunidade em Salvador, Feira de Santana, Alagoinhas, Ilha de Itaparica e Ilhéus, e ela tem de maneira geral sempre se comprometido com a causa dos excluídos, daqueles que são marginalizados na nossa sociedade. Um dos casos mais emblemáticos e históricos é com o Reverendo Jorge Parker, ainda no século XIX, que disciplina um membro da igreja lhe proibindo participar da eucaristia porque ele era senhor de escravos, e embora a legislação brasileira na época permitisse, a posição da igreja era contrária à escravidão. Ela (a igreja) tem historicamente sempre se colocado a favor das minorias, dos excluídos, da sociedade. Hoje em Salvador, nós funcionamos no Largo do Papagaio, no Bonfim.

Soul – Existem critérios ou regras

mínimas para frequentar a igreja? REVERENDO BRUNO – A Igreja é aberta pra qualquer pessoa participar, inclusive a eucaristia é aberta pra todos os batizados, independentemente de qual tradição religiosa. Contudo para se tornar membro da igreja é fundamental que a pessoa esteja disposta a abraçar o “ethos anglicano”, que a gente chama do “Quadrilátero de Lambeth” (elaborado no século XIX, reúne os princípios e a base da igreja). É essa pessoa estar aberta a viver dentro de uma igreja que tem por princípio a diversidade, a diversidade doutrinária, a diversidade dos membros, a diversidade sexual, as muitas diversidades possíveis de viver dentro da comunidade.

Soul – Nesse contexto incluímos a comunidade LGBT?

RB – Sim. Nós temos casais LGBTs

que são membros da paróquia há anos.

do ano que vem esse assunto deve ser votado e a gente não sabe qual é o resultado.

Soul – Existe alguma posição ofi-

Soul – E como está a configuração

cial da Igreja no Brasil sobre a questão LGBT e o Casamento Religioso? RB – Primeira coisa é a gente deixar claro que, no Brasil, a Igreja Anglicana não tem uma posição oficial sobre algumas coisas, o que nós temos é um documento da Câmara dos Bispos que recomenda a todos os padres, ou todos os reverendos, reverendas e comunidades a acolher pastoralmente a comunidade LGBT. Ao lado disso, nós fizemos “indabas” (termo africano que equivaleria a algo como ‘tempestade de ideias’ ou brainstorm), depois fizemos encontros, foi feita uma cartilha de superação da sexualidade contra os preconceitos e de esclarecimentos, e, nesse momento, nós estamos em preparação para o Sínodo (encontro de autoridades religiosas) do ano que vem, quando a gente vai discutir a questão do casamento homoafetivo. Estamos preparando os encontros diocesanos, nos quais cada diocese vai fazer uma Confelíder (espécie de conferência) tendo como tema a discussão do Sínodo de 2018, mas principalmente a discussão do casamento homoafetivo, porque no Sínodo

para essa votação? RB – Tem dentro da Igreja Anglicana uma parte do clero favorável ao casamento, que é o meu caso, o caso da Bahia. A gente tem feito campanha, tem participado, estamos nas comissões nacionais. Mas tem comunidades e reverendos que são contra. Então hoje nós temos uma discussão com relação ao casamento, mas com relação ao acolhimento de pessoas LGBT, isso já está mais ou menos pacificado.

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– Há quanto tempo a Igreja Anglicana aborda a questão LGBT e como tem sido a receptividade dos membros e clérigos? RB – Há pouco mais de 10 anos que essa temática vem sendo tratada na igreja do Brasil, é bom lembrar que em outras Igrejas como Canadá, Escócia, se eu não me engano, parte dos Estados Unidos, o casamento e a ordenação já são temas que já foram vencidos, foram aprovados, mas no caso do Brasil, algumas comunidades acabaram rompendo a comunhão com a Igreja Anglicana. Um caso famoso é o cisma que se dá na Diocese do Recife, em função do tema. Aí você tinha um grupo de NOVEMBRO 2017

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“pessoas” (Clérigos e Leigos) que não estavam dispostos a negociar e acabaram rompendo com a Igreja Anglicana, então permanecem anglicanas, mas sem estar em comunhão com a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil ou com a comunhão Anglicana.

Soul – O que pessoas LGBTs podem fazer na Igreja Anglicana que nas outras igrejas não podem? RB – É difícil dizer isso. O que eu posso dizer é que dentro da Igreja Anglicana eles são membros plenos, então eles podem ser membros da junta paroquial, reverendos, assumir as mais diferentes funções e inclusive viver com o seu companheiro sem qualquer problema, sem qualquer subterfúgio. É um casal reconhecido pela comunidade como casal e vive plenamente a sua vida dentro da igreja sem nenhuma restrição.

“Dentro da Igreja Anglicana eles (os homossexuais) são membros plenos, então eles podem ser membros da junta paroquial, reverendos, assumir as mais diferentes funções e inclusive viver com o seu companheiro sem qualquer problema, sem qualquer subterfúgio”.

Soul – Existe algum grupo específico da igreja que debate o tema? RB – Sim, hoje, quem tem estado mais à frente dessa discussão dentro da Igreja Nacional é o SAD (Serviço Anglicano de Diaconia) inclusive com publicações, com livros, com promoção de eventos. Ano passado, aqui em Salvador, nós realizamos o 4° Simpósio Regional e 1° Internacional de Sexualidades, quando, de novo, o tema foi discutido, debatido com pessoas do Brasil inteiro, membros da igreja anglicana e de outras confissões de fé.

necessariamente é a mesma coisa que homossexual, homoafetivo hoje. Há distinções que não vale a pena entrar. A segunda é que a maioria dos textos que são utilizados contra essa prática, como Levíticos, que é um dos textos mais utilizados, é o mesmo texto que é contra comer camarão, comer pimenta, comer arraia e assim sucessivamente e esses textos foram todos flexibilizados pro mundo moderno e para a questão da sexualidade, não. Ou tem alguém muito mau caráter por trás fazendo a escolha do que vale ou não, e há uma seleção deliberada de alguns temas pra mudar, em detrimento de outros. Ou a interpretação está sendo diferente para o mesmo texto. Porque ou tudo vale ou tudo é relativo.

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Soul –Como é a relação nas demais

– Existe contradição entre a fé cristã e a prática de vida de uma pessoa LGBT? RB – A rigor não, não existe nada que possa ser contrário. Bom! Deixa eu tentar esclarecer um pouco mais, mas a resposta é “não”. A primeira coisa é que dentro do texto bíblico a gente não pode falar em homossexualidade, porque o conceito de homossexualidade é relativamente jovem, o máximo que você vai poder falar é a prática de relação sexual entre duas pessoas do mesmo sexo, que não 10

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igrejas anglicanas no Brasil afora? RB – Nós temos, no Brasil, dois tipos de comunidades. Comunidades que já abraçaram o tema e discutem livremente, que é o caso aqui do “Bom Pastor” (Paróquia Anglicana em Salvador), Santíssima Trindade, em São Paulo, São Lucas, no Rio de Janeiro, que são as maiores, digamos assim, mas tem uma série de outras comunidades, a Catedral de Curitiba, e um grupo de comunidade bem menor que é contra a temática.

Aí é bom lembrar mais uma vez, que essas comunidades que eu tô dizendo que “são contra a temática”, não é que elas não acolham pessoas LGBTs, inclusive casais na paróquia... eles são acolhidos, elas são contra, em geral, ao sacramento do matrimônio, então isso é bom deixar claro. Mas saindo do tema, não temos grandes dificuldades.

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– Quais atividades de acolhimento da comunidade, além dos debates, existem em alguma pastoral? RB – Hoje, em Salvador, a gente não tem uma pastoral específica porque na realidade nós não temos nenhuma pastoral específica, de nenhum tema. O que a gente tem é a convivência diária da comunidade (LGBT) e o tema é tratado regularmente, mas não com data específica, então a gente tem feito acolhimento, discussões, mas nada sistematizado.

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– Na sua comunidade tem mais LGBTs homens ou mulheres?


RB – Lá na paróquia, pelo me-

nos declarado que eu conheça só LGBT homem, feminino, se tem, nunca se declarou. Em relação à paróquia eu acho que eles seriam, hoje, em torno de 35 a 40% da comunidade. Então é um número expressivo.

Soul – Algum ordenado?

RB – Sim. Temos dois que são ho-

moafetivos declarados que foram ordenados ao diaconato, dois anos atrás, e um presbítero, no ano passado. O segundo vai ser ordenado presbítero (presbítero é padre/reverendo), em dezembro desse ano (2017), sem problema algum, com companheiro, com tudo direitinho, participando da celebração, usando a estola, tudo bonitinho.

Soul – O que o senhor acha da po-

sição da maioria das igrejas evangélicas e protestantes com relação a temas como o casamento LGBT no religioso e mesmo no civil? RB – A primeira coisa que eu diria como Anglicano é “Com respeito”. Eu acho que elas têm todo direito de pensar assim, e acho que elas não têm o direito de intervir no Estado, aí mais uma vez princípio protestante, Igreja e Estado são independentes, separados. Então que a igreja seja contra, ela tem o direito e deve continuar nesse caminho, embora eu não concorde. O que eu sou radicalmente contra é interferência da Igreja em Políticas de Estado. Igreja e Estado não se misturam.

Soul –É possível contar com todos

e todas no combate à violência LGBTfóbica? RB – Com “todos” é uma palavra pesada, seria um sonho a gente poder contar com todos, mas que uma parcela da sociedade cristã que de fato consegue compreender o texto bíblico, como fé de prática e regra, onde o texto me conclama claramente a defender os oprimidos, a defender os pequenos. Quando Jesus é questionado “como é que será chegar no

reino do céu”, Ele vai dizer “Eu tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber estava preso, nu e me vestiste”. Então assim, pra mim é muito clara no texto bíblico uma opção preferencial pelos pobres, pelos marginalizados, pelos excluídos, então todo cristão que de fato compreende o texto bíblico, independentemente de ser a favor ou não da homoafetividade, de defender a

bandeira ou não, mas por causa da dignidade humana, que o texto bíblico nos impele a viver, a ser sal da terra e luz do mundo, deveria estar unidos na superação da violência. Com isso eu não tô dizendo que eles devem concordar com a temática, mas combater a violência, preconceito, a lgbtfobia e assim sucessivamente... Deveria ser compromisso de todo cristão e toda cristã.

SER ANGLICANO SIGNIFICA... Texto afixado na entrada da Catedral de Cantuária – Igreja-Mãe da Comunhão Anglicana de Canterbury 1 Ser parte da Igreja de Cristo, sem excluir ou isolar-se de outros cristãos, participando da vida do povo de Deus, com suas alegrias e tristezas. 2 Pertencer a uma comunidade onde cada pessoa é respeitada em sua individualidade e pode utilizar os seus talentos. 3 Apresentar uma teologia baseada nas Escrituras Sagradas e na Tradição, coerente com a inteligência e com a razão. 4 Estar disposto a celebrar a unidade na diversidade. 5 Considerar com serenidade as Escrituras Sagradas, sem crer que cada passagem deva ser interpretada literalmente. 6 Preferir a liberdade em Cristo, mais que a uniformidade de opiniões. 7 Sentir devoção e reverência pelos Sacramentos, sem tentar definir cada ponto desses grandes mistérios. 8 Conceber o ministério como dever e privilégio de todos os batizados. 9 Insistir na moralidade (aquilo que é bom, edifica) e evitar o moralismo (que define a salvação decorrente de uma conduta e não pela obra de Cristo). 10 Participar da herança apostólica, a fé no Evangelho de Cristo. 11 Ser parte de uma história antiga e sagrada, que se renova a cada dia. 12 Crer que a Igreja é de todos e que todos têm o privilégio de sustentá-la segundo a possibilidade de cada um. Fonte: http://www.anglicanatradicional.com.br/anglicanismo.html

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COMPORTAMENTO

A parada é orgulho ! Além do tradicional evento que acontece no centro de Salvador, vários bairros como Cajazeiras, Liberdade e Pituba têm uma parada para chamar de sua. TEXTO: EDIELSON SILVA

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láudio Barbosa, 25 anos, participa todos os anos da parada do orgulho LGBT da Bahia no centro de Salvador: “é muito mais que um compromisso, é uma forma de eu ir pra rua gritar e pedir respeito”, mas também acompanha o evento similar de Pernambués, que integra a união das paradas da Cidade do Salvador.

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Realizada em Salvador, a Parada LGBT da Bahia arrasta pessoas de todo o Brasil, o que movimenta o comércio e atrai diversos turistas. Segundo o site do Grupo Gay da Bahia (GGB), o evento deste ano reuniu cerca de 900 mil pessoas nas ruas da capital baiana, encerrando a “VI Semana da Diversidade LGBT” que teve debates, apre-

sentações de música, dança e exibição de filmes. Sempre com um tema que estimule a sociedade a ter mais respeito à diversidade, a parada de 2017 contou com show de drag queens e cantoras como Karol Conka e Valeska Popozuda. Apesar da importância e repercussão da parada, o evento ainda não é reconhecido pela


FOTO: ROSY SILVA

legislação municipal como uma manifestação cultural. Segundo a vereadora de Salvador Marta Rodrigues (PT) “não existe um projeto de resolução ou um projeto de lei confirmando ou reconhecendo isso na Câmara para colocar no calendário”. Atualmente a parada em Salvador conta com o apoio da Secretaria Municipal de Reparação (Semur), que intermedeia as isenções de impostos junto aos órgãos municipais e do Governo do Estado. A vereadora afirma que o legislativo municipal deverá incluir uma emenda no Plano Purianual (PPA) para dar apoio aos eventos LGBT, inclusive à parada.

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A DE TEM PARAD *Arraial do Retiro * Boca do Rio * Bosque das Bromélias *

Cajazeiras * Canabrava * Castelo Branco * Cidade Baixa * Engenho Velho da Federação * Fazenda Grande do Retiro * Itapuã * Liberdade * Marechal Rondon * Nordeste de Amaralina * Pau da Lima * Paripe (Parada do Subúrbio) * Periperi * Pernambués * Pituba * Plataforma * São Gonçalo do Retiro * Tororó * Vila Canária.

NOS BAIRROS

Articulador e membro da União das Paradas LGBT da Cidade do Salvador, Yorrann afirma que a ideia de realizar versões locais do evento nos bairros é “levar para as comunidades a conscientização da importância do respeito à diversidade sexual e de gênero, além do combate à discriminação, ao preconceito e à LGBTfobia” Os eventos que acontecem nos bairros seguem um cronograma definido pelas lideranças de cada lugar, por isso algumas datas coincidem, mas nenhuma delas ocorre no mesmo dia que a parada do centro da cidade, para que todos possam participar. O calendário das Paradas LGBT + da Bahia está disponível no blog http://paradaslgbtba.blogspot. com.br/2017/07/paradas-lgbt-da-bahia-2017.html.

“Levar para as comunidades a conscientização da importância do respeito à diversidade sexual e de gênero, além do combate à discriminação, ao preconceito e à LGBTfobia” (Yorrann, da União das Paradas LGBT da Cidade do Salvador)

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PERFIL

Alquimia inspirada

Designer e estilista transforma pedras, metais e rendas em joias raras TEXTO: ÍRIS MOREIRA LEANDRO

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ilvana Beatriz Grappi (53) é do interior de Córdoba, na Argentina, e há mais de 30 anos vive na Bahia. Assim como a escritora Clarice Lispector carregou, durante toda vida, o excêntrico sotaque ucraniano, mesmo tendo vindo para o Brasil ainda bebê, Grappi traz na fala as raízes de onde veio. A fala é calma e pausada, os olhos têm a cor do oceano. São eles que veem primeiro as joias personalizadas com pedras e materiais orgânicos criadas pelas mãos talentosas dessa argentina tão bem familiarizada em terras baianas. A artista nasceu em 14 de maio de 1964, “em horário estratégico, meio dia, veio para o almoço”, segundo sua mãe, Dona Nélida Gasparucci Grappi (83). Coincidência ou não, no Brasil, era um momento de plena efervescência pós-golpe de Estado com a deposição do presidente João Goulart e, na Argentina, faltavam dois anos para o começo da ditadura militar desencadeada com a retirada do presidente Arturo Ilia do seu posto.

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Córdoba, conforme Dona Nélida, é uma cidade fundada por italianos que foram para a Argentina em 1878. Em meio a esse cenário de caos, nasceu Silvana, criança calma e observadora que, na infância, sonhava alto ao ver sua avó e tias costurando vestidos para festas e, naquele universo de tecidos, linhas e novelos de lã, o coração pulsava. Dali, brotaram os primeiros desenhos de Grappi, rastros da reconhecida design de joias que hoje é. “Amava fazer castelos de papelão; trabalhar com esses materiais, em geral, me fascinava”, conta Grappi. Um dos casos curiosos revelados por sua mãe é que, com apenas nove anos, Silvana fez um colete de crochê. “Ficou perfeito e minha irmã, tia de Silvana, usou por um bom tempo; ficamos surpreendidos”, relembra Nélida. A ligação com a família sempre foi intensa. Sua mãe é companheira de morada na Ladeira da Barra, em Salvador. Por parte de mãe e pai, ela tem como irmã Mônica Grappi (51), que segue rumos parecidos, é designer gráfica; e, por parte pai, tem Letícia Grappi (23), estudante de arquitetura, e Luis Grappi (18), que estuda Ciências da Computação. Falar em seus irmãos, principalmente Mônica, que nasceu dois anos depois e por isso a acompanhou nas brincadei-


no mar Algumas peças inspiradas no mar, nos orixás e no signo de peixes

As joias de Silvana são feitas a mão e podem ser feitas, também, sob encomenda temática

ras, faz Silvana recordar de mais pontos curiosos da infância, como seu amor pelas cores, que fica patente quando ela aponta como sua cor favorita o “arco íris”. As cores até hoje lhe acompanham, sendo umas de suas áreas de pesquisa. Com 22 anos, Silvana Grappi estudou estilismo e modelagem tridimensional (moulage) nada mais nada menos do que em Paris (na França),

pois, no Brasil, não havia escolas de moda. Em 2014, formou-se em Desigin de Produto na Universidade do Estado da Bahia, trabalhou com alta costura no prêt-à-porter e em ateliers da França, da Argentina e de São Paulo; e prestou consultorias a diversas marcas de roupas. No ano de 2005, viveu uma guinada na carreira pois teve uma joia classificada no Prêmio NOVEMBRO 2017

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IBGM de Design de Joias, e ela entrou no catálogo de designers premiadas pelo Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos. Hoje, Silvana tem marca própria e faz peças personalizadas para desfiles e sob encomenda. Apesar dos excelentes cursos e das variadas experiências na bagagem, o sucesso não viria não fosse o mar de Salvador, fonte inspiradora da designer. As águas salgadas são seu lugar de paz e reencontro consigo, não é à toa que reside tendo como vista a Baía de Todos os Santos. Os projetos e as coleções feitos por ela refletem essa relação com a natureza. São exemplos Floresta e Primavera. Os colares “Poema” e “Potência”, da Coleção Perfume, foram feitos para as estampas da estilista Luciana Galeão. “Eu tinha que criar algo que tivesse harmonia com essas estampas, daí surgiram as ideias das flores e do perfume. Trabalhei as formas modelando tudo com papel, fios e chapas de alumínio”, explica.

TAURINA

O processo de confecção, é claro, também requer sensibilidade: é preciso ir sentindo os diversos tipos de materiais, tendo como parâmetro a forma da forma que se quer obter, até chegar na escolha final, ou seja, definir que matéria-prima será utilizada. Silvana faz uma ampla pesquisa de materiais, técnicas, acabamentos e possibilidades, passando por papelão, emborrachado, ferro, alumínio, chegando às fibras, aos tecidos, aos produtos recicláveis (como papéis de radiografia, garrafas PET, vidros quebrados e madeiras), aos materiais orgânicos (como galhos, ouro, prata e pedras preciosas). Um dos diferenciais do trabalho é que ela junta os conhecimentos adquiridos sobre alta costura com aqueles sobre pedras e, a partir daí, surgem criativas peças como rendas aliadas a metais.

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Na astrologia, o elemento água prevalece como influência de cosmogonia/personalidade e tem o ascendente e a lua em câncer, que sugerem tendência à intensa sensibilidade e ligação com as emoções, as águas internas. Contudo, o signo de Touro (elemento terra), seu regente solar, lhe dá pés no chão, foco, firmeza, equilibrando o turbilhão de águas. Taurinos tendem a se dar bem profissionalmente, como no caso de Grappi. Alguém muito próximo dela é o cineasta Raul Barros (52), companheiro, amante e amigo desde 2012, quando se conheceram no Sebo Praia dos Livros, também na Barra. “Nos conhecemos em uma noite na Praia dos Livros, onde eu preparava massas e comandava divertidas noitadas. Logo me interessei por ela e, ao que parece, foi recíproco”, brinca Raul, cujo senso de humor encanta a designer, que costuma rir sem medidas de todas as piadas. Raul lembra, com entusiasmo, das viagens que fizeram juntos, “Uma vez, na Chapada Diamantina, no interior da Bahia, fizemos uma grande e perigosa caminhada, o que a levou ao pânico, retratado por ataques de choro.” Em outro momento, em Córdoba, onde ela nasceu, “pude conhecer a sua gente, enfim, compreender melhor quem era Grappi”, lembra Raul, que se dirige a ela sempre pelo nome de Grappi, enquanto sua família prefere chama-la de Silvana e alguns outros, poucos, Beatriz, seu segundo nome. Silvana, Grappi ou Beatriz, quem é ela, afinal? Aos olhos de Raul, Dona Neri, Letícia, Mônica e Luis, algo que não pode faltar para descrever Grappi é seu gosto pelo cinema, o que pode ter facilitado a proximidade com Raul. Outros hobbies são ficar em casa, ter momentos de tranquilidade, praticar pilates e, com frequência, nadar nas águas agora frias do Porto da Barra.

Coleção Perfume para o desfile Jardim de Linhas, de Luciana Galeão


FOTOS: DÔRA ARAUJO

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FOTO: ADELOYÁ MAGNONI

VANGUARDA

PIONEIRISMO E CIDADANIA UFBA reserva vagas na pós-graduação para pessoas trans TEXTO: DANIEL SERRANO E CARLA MATTA

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ela primeira vez na história do ensino brasileiro, a reserva de vagas garante o ingresso de travesti, transexual e transgênero nos cursos de mestrado e doutorado da Universidade Federal da Bahia. A UFBA é pioneira nesta modalidade de cotas e os primeiros estudantes contemplados começaram a frequentar as aulas neste mês de novembro, quando iniciou o semestre 2017.2 – o calendário acadêmico da UFBA foi alterado por conta da greve de 139 dias em 2015. Vale lembrar que a instituição também saiu na frente ao implantar um curso de graduação em Gênero e Diversidade (com a primeira turma de bacharéis formada em 2013). As cotas têm o objetivo de promover uma reparação social através da equidade, acelerando o processo de inclusão de minorias. O professor da UFBA e coordenador do grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade (CUS), Leandro Colling, conversa com a Soul sobre a importância dessa iniciativa para reduzir a discriminação e impulsionar a profissionalização da minoria trans para o ambiente acadêmico e corporativo.

SOUL – Dentro do conjunto de batalhas e conquistas sociais que vêm sendo realizadas pelos diferentes grupos de identidade de gênero, como você avalia as cotas para trans na pós-graduação? COLLING - As cotas sempre são vistas como medidas de reparação, vide as cotas para pessoas negras. As cotas são importantes, mas sabemos que junto delas devem existir políticas de permanência e diver18

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sas outras ações de combate aos preconceitos. Essas outras ações nem sempre caminham no mesmo passo das cotas. Mas, ainda assim, as cotas são importantes.

SOUL - A política de cotas existe na UFBA desde 2005, por que só agora (em 2017) surgiram as cotas para trans? E por que na pós? COLLING - Eu acho que as pessoas trans entraram nas co-

Pela primeira vez, pessoas trans estão produzindo conhecimento sobre si mesmas.


tas da pós-graduação porque, neste momento, se pensou em reserva de vagas na pós-graduação. Não existiam cotas da pós e, mediante debates, resolveram incluir não apenas pessoas negras, mas também as pessoas trans e com deficiência.

SOUL - Leandro, e quanto às vagas? Qual a quantidade oferecida? COLLING - A portaria da UFBA determina que cada programa deve reservar pelo menos uma vaga para as pessoas trans. Mas cada programa tem a liberdade de aumentar esse número, o que não pode é não reservar essa vaga. Caso não exista candidato trans, a vaga pode ser ocupada por pessoa cisgênera.

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– Em visitas aos campi e conversas com colegas, observamos que ainda há um estranhamento em relação à presença de pessoas trans na pós-graduação. De que forma podem ser feitas políticas de inclusão e acolhimento? COLLING – Mas a presença de pessoas trans na pós-graduação é mesmo uma novidade. A primeira travesti doutora é Luma Nogueira, do Ceará, que defendeu sua tese em 2012, ou seja, foi ontem. Ainda temos poucas pessoas trans nos cursos de graduação, e a maioria dessas pessoas são homens transexuais, o que nos diz muita coisa sobre como as pessoas travestis são ainda mais subalternizadas nesse processo todo. Apesar

de poucas, essas pessoas trans na graduação e pós-graduação estão produzindo uma grande modificação porque, pela primeira vez, essas pessoas estão produzindo conhecimento sobre si mesmas. Antes, sempre eram as pessoas cisgêneras que escreviam e produziam conhecimento sobre pessoas trans.

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- A conquista é fruto do ativismo? COLLING - Sim, no sentido amplo do ativismo, uma combinação de fatores que inclui a presença do ativismo e do debate em torno dessas questões dentro da universidade. As cotas são políticas de reparação e fazem parte de uma das ações para combater a exclusão.

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MODA

Guarda-chuvas ou guarda-looks?

Artesã faz moda com restos de guarda-chuvas encontrados nas ruas de Salvador TEXTO: CAROLINE RODRIGUES

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huva passageira, chuva forte, chuva, chuvisco, chuvarada. Não importa qual o tipo, o que interessa é que todo mundo procura se esconder da bendita em um guarda-chuvas. E é disso que Marleide Pitanga, 37, procura se encharcar. De chuva? Não, de guarda-chuvas. Ela reaproveita o tecido das conhecidas sombrinhas para produzir roupas. A ideia de confeccionar roupas com a inusitada matéria-prima surgiu a partir de pesquisas na internet. O resultado foi a criação do próprio negócio. Há uma década, Marleide desenha e costura saias, blusas, shorts, fantasias, bermudas masculinas, bolsas e até biquínis. As produções custam entre R$ 25,00 e R$ 80,00 e a renda extra auxilia no sustento da família. O faturamento é maior nas vendas por atacado, como uma encomenda feita no último mês de fevereiro para uma escola, com lucro de aproximadamente 1 salário mínimo. Outras boas oportunidades surgem nas datas comemorativas . “Agora mesmo já estou recebendo encomendas para o Halloween”, comemora. Marleide conta ainda que nunca fez curso de corte e costura e se considera autodidata. Segundo ela, o modo de fabricação é simples: primeiro, é necessária a desmontagem do 20

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guarda chuva (retirada das grades, dos metais e costura), exceto para alguns modelos. Depois, vem a parte da secagem, que pode acontecer sob o sol em varal simples. E, por último, com o material pronto, vem a execução das ideias na máquina de costura. As peças fizeram tanto sucesso que proporcionaram parcerias com escolas, centros comunitários e algumas microempresas que recolhem doações de guardas chuvas inutilizáveis. Em colégios, Marleide já realizou desfiles, palestras e ações em geral voltadas a sustentabilidade.

A professora Eliana Rocha, de 41 anos, é cliente fiel e relata que sempre que a sua filha precisa de um trabalho escolar relacionado a roupas, principalmente em datas comemorativas, ela recorre ao trabalho de Marleide. Ela admira o trabalho realizado e gosta da “ideia da produção de ótimas roupas de um material que nem


se pensa ser útil para além da sua função primária”, conta.

O LIXO EM NÚMEROS

Estudo feito pela Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), em 2016, aponta que o país gerou 78,3 milhões de toneladas de lixo urbano. Já em 2017, a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) avalia que, por ano, geramos quase 80 milhões de toneladas de resíduos e reciclamos apenas 3%. E ainda segundo a Abimaq, o Brasil perde economicamente cerca de R$ 120 bilhões por ano em materiais com potencial de reciclagem. O Sindicato das Indústrias de

Fiação e Tecelagem do Estado de São Paulo (Sindtêxtil) indica que, anualmente, durante corte das fábricas, o Brasil descarta 175 mil toneladas de retalhos, que seriam utilizáveis. Para a designer de moda Luciana Galeão, vivemos a era das revoluções criativas, porque muitas empresas brasileiras têm se preocupado com o resultado dessas pesquisas que revelam o excesso de lixo têxtil. Luciana lançou, em 2011, uma coleção feita de tecidos produzidos com restos de uniformes de operários da arena Fonte Nova. Um exemplo internacional de que reciclar não pode sair da moda é o da marca Garbage Gone Glam, conhecida por utilizar materiais como sacos de papéis, embalagens, plástico, revistas e caixas na produção das suas coleções. Para a artesã e costureira baiana Marleide Silva, levar o lixo ao luxo é prazeroso, porque chique mesmo é ser sustentável. NOVEMBRO 2017

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SAÚDE

O preconceito pode ser causa de depressão entre LGBTs TEXTO: ELANE ROSA

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ão 365 dias do ano marcados pelo desânimo e por uma tristeza profunda. Assim, Carla* define os seus dias. Homossexual, diagnosticada com depressão, a jovem, de 24 anos, atribui ao preconceito o fator principal da sua doença. Ela confessa que sua família se mostra acolhedora, mas o difícil é enfrentar “o mundo lá fora”. “Quando me vi tendo que crescer, percebi que tudo seria muito mais difícil por causa da minha orientação sexual”, confessa. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde – OMS, o Brasil possui 11,5 milhões de pessoas com depressão. Dentre essas, encontram-se os LGBTS, um grupo considerado mais vulnerável a desenvolver os sintomas da enfermidade. Para a psiquiatra Larissa de Freitas, a falta de aceitação social e os conflitos vividos por uma pessoa, devido à sua condição, são, sim, um dos motivadores da doença. “A população LGBT acaba tendo mais disparadores (situações estressoras negativas) que podem iniciar um quadro depressivo, caso o indivíduo já tenha uma propensão genética. Não é pela orientação sexual em si, mas pela carga social negativa, a que o sujeito está submetido”, esclarece. Carla conhece essa realidade desde os 16 anos, mas o tratamento demorou quase 7 para ser iniciado. De acordo Larissa,

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o acompanhamento médico é importante, porque o próprio corpo pede ajuda “Diversas substâncias pró-inflamatórias se encontram ali indevidamente, gerando stress oxidativo e causando dano ao tecido neuronal em alguma escala. O tratamento visa justamente à normalização desse ambiente celular, revertendo o quadro depressivo e devolvendo a qualidade de vida ao paciente”, explica. Desanimada e sem forças, a jovem estudante de Educação Física, por exemplo, abandonou o curso de graduação no quarto semestre e nem mesmo a academia de ginástica – sua maior paixão – se mostrava um lugar prazeroso. A psicóloga Irlanda Bastos esclarece que o preconceito é um fator externo, que pode ser internalizado pelo sujeito, causando profundo sofrimento: “o próprio indivíduo acaba se autodiscriminando”. Carla sente na pele essa dor e a define: “A dificuldade é encarar o outro de igual para igual”.

UM DIAGNÓSTICO SOCIAL PREOCUPANTE

Em 2017, o GGB - Grupo Gay da Bahia divulgou que, a cada 25 horas, um gay é assassinado. Esses dados confirmam que o LGBT está convivendo com dificuldades numa sociedade LGB-

Tfóbica. Marcos*, homossexual, assumiu sua identidade de gênero há uma década e, desde então, convive com algumas das principais formas de impulsionar a depressão. “Culpas acumuladas e tentativas de reverter essa situação podem gerar depressão, em algum momento”, pondera. A dificuldade da sociedade de lidar com a homossexualidade e de romper com os padrões heteronormativos gera uma série de atos violentos à população LGBT. A socióloga Mônica Coutinho relembra que é um dever da sociedade garantir ao indivíduo o exercício da sua sexualidade e afetividade plena. “O fato de um cidadão não aceitar não implica que ele possa desrespeitar o direito do outro”, afirma taxativa. Aliás, os LGBTs dispõem de uma ferramenta para denunciar os diversos casos de homofobia através do site: Observatório da Discriminação Racial e LGBT: http://observatorioracialelgbt. salvador.ba.gov.br/denunciar . A homofobia tem gerado graves problemas psicológicos envolvendo a aceitação social da população LGBT. O número de atendimentos para este segmento tem crescido nos últimos anos, e isto está relacionado à visibilidade da causa, à repercussão sobre o assunto e à criação de espaços de auxilio especializado. O Centro Municipal de Referência LGBT em Salvador, que oferece apoios psicológico


e jurídico, contabilizou mais de 600 atendimentos em um ano, apesar de ainda não ter estrutura para ampliar o serviço e ser pouco conhecido. Carla* expõe que, durante o seu processo, a maior dificuldade foi encontrar locais que oferecessem assistência gratuita e o alto custo dos medicamentos e do acompanhamento terapêutico impediu que ela continuasse. “Precisei abandonar o tratamento, por isso, não tenho melhorado”, lamenta.

EM BUSCA DO TRATAMENTO

Além das consultas com o psiquiatra, a psicoterapia é fundamental para o tratamento da depressão, observa a psicóloga Tânia Aguiar. Se as mediações restabelecem o equilíbrio químico neurológico, as sessões com o psicólogo ou analista promovem o autoconhecimento. Porém, recentes descobertas apontam novos aliados na luta contra a depressão, como os exercícios físicos, acupuntura e meditação. Estudos publicados na revista Obstetrics & Gynecology comprovam a eficácia da acupuntura para depressão em mulheres gestantes. Já as atividades físicas liberam substâncias como a endorfina e os neuromediadores, ligados ao bem-estar, e ativam o sistema imunológico. Através da meditação, é possível controlar a respiração e as emoções. Essas alternativas, entretanto, são auxiliares aos tratamentos tradicionais. Na capital baiana, além das emergências psiquiátricas públicas e as clínicas escola, o atendimento gratuito também ocorre nos CAPS - Centro de Atendimento Psicossocial, http://www.saude.ba.gov. br/hjm/images/documentos/ caps_bahia_salvador.pdf, oferecendo assistência para al-

Um giro histórico! Ao longo da história, a homossexualidade e outras orientações de gênero nem sempre foram olhadas pelas lentes do preconceito. Na Grécia antiga, em tribos indígenas, a identidade de gênero não era questão. Já no século passado, os nazistas puniam severamente os homossexuais e, na década de 50, nos EUA, um homossexual poderia ser preso por ser homossexual. No Brasil as leis garantem o direito ao livre exercício da sua orientação sexual. Atualmente, a constituição obteve grandes avanços quando ins-

guns transtornos mentais leves e graves. O CAPS tem como propósito evitar o internamento hospitalar e aproximar o paciente da família. Uma equipe multidisciplinar de saúde, formada por psicólogos, psiquiatras, enfermeiros, entre outros, busca humanizar

taurado em 28 de abril de 2016 o decreto de número 8.727, que em suas normas dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero, reafirmando direitos aos transexuais e travestis. A constituição brasileira assegura o direito a identidade de gênero, quando em sua carta magna de 1988 já se apresentava protetora aos princípios do ser social. O advogado Miguel Bonfim destaca a importância dos princípios básicos da isonomia, segundo os quais todos os cidadãos são iguais.

os atendimentos. A proposta é quebrar os tabus que envolvem os pacientes psiquiátricos, utilizando o tratamento adequado, junto a uma sociedade formada por indivíduos mais cidadãos. Assim, Carla* e milhões de pessoas poderão ter 365 dias do ano de esperança e motivos para lutar.

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TECNOLOGIA

PARA INSPIRAR: 7 perfis do Instagram que quebram padrões TEXTO: VANESSA BRUNT

Pessoas e perfis. Pessoas como você, como nós, como deveria ser. Se muitos utilizam as redes sociais para mascarar as duras realidades, outros as usam para fazer jus ao intitulado perfil e incentivar seguidores a passarem pelas tristezas da vida com maior garra e visão para os ganhos das perdas. Confira sete perfis do Instagram que quebram padrões sociais e preconceitos através das imagens e mensagens. que é singular e ainda bela, justamente por enxergar cada um dos fatores como qualidades próprias. As fotos com maquiagem e sem maquiagem, também brincam com outro ponto a ser criticado. Isso porque a jovem mostra que a make pode dar suporte para o autoconhecimento, mas que saber estar sem ela e enxergar os encantos dos traços crus é ainda mais importante e meio para cuidar da saúde.

1. Ellora Haronne (@ellorahaonne)

A garota de 19 anos, que faz vídeos, reforça debates no Instagram. Ela trata da autoestima como quebra de padrões sociais sobre o que seria um corpo ideal. Sem photoshop, sem barriga encolhida e sem a busca do ângulo que poderia deixar o corpo o mais próximo possível dos padrões, a youtuber mostra o lado belo de certas gordurinhas e do amor-próprio, com o lembrete de 24

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NAS LEGENDAS: A Elloha utiliza as legendas como fragmentos de diários. Indica filmes e séries que abordam temáticas feministas, como relacionamentos abusivos, ou traz relatos e desabafos sobre acontecimentos do seu cotidiano, sempre em forma de empoderamento. Respondendo comentários, ela interage com os 169 mil seguidores para aprofundar os temas.

2. DaMata

(@damatamakeup) As peles negras passaram por dificuldades, durante muitos séculos, para encontrar maquiagens em tons ideais. As inspirações para as makes também não eram lá tão acessíveis. Com a internet, youtubers e outros influenciadores digitais passaram a ganhar espaço, levando consciência e base sobre a questão. Mas além de servir como um guia e acréscimo para o tema, a maquiadora DaMata quebra outros padrões com a sua ousadia. As maquiagens produzidas pela profissional não são feitas dentro de cores da tendência ou de parâmetros populares. Ela cria, experimenta e incentiva o lembrete de que não existe fórmula. Cabelos de várias cores e formatos, maquiagens coloridas e/ou de


tons semelhantes: são apenas alguns dos pontos possíveis de visualizar no perfil, que ainda mistura vários gêneros e estilos de seres humanos nos cliques, mostrando pessoas maquiadas pela DaMata, que não deixa de aparecer em algumas imagens, com automakes. NAS LEGENDAS: Além de mensagens sobre empoderamento feminino, a DaMata reforça a ideia das imagens não somente explicando o que foi utilizado nas maquiagens demonstradas, mas instigando comentários e reforços para as quebras de muitos dos seguimentos de moda. A profissional ainda divulga projetos feministas em algumas palavras que acompanham as imagens.

escolhida por quem a tem. Ainda sofrendo com os prejulgamentos, ele começou a mostrar que é uma pessoa repleta de sonhos, conteúdos reflexivos e muito estilo próprio através de um blog, no qual dividia as experiências de morar sozinho. Ele saiu de Pirajuí, cidade onde nasceu e tem cerca de 20 mil habitantes, para morar e estudar em Bauru, com quase 400 mil habitantes, com 18 anos. As experiências também viraram um canal no YouTube. As temáticas foram então ganhando mistura e abrindo alas para muitas outras, que enfatizam o quanto Mateus compartilha aprendizados e inspirações, quase esquecendo de um mínimo detalhe. Do estilo praiano ao menos casual, ele ainda relembra que todos somos vários gostos em um ser. Dicas de filmes, livros, séries e outras indicações culturais não ficam de fora. NAS LEGENDAS: Mateus brinca, assim como faz no nome que colocou no próprio perfil, com o próprio nanismo, formulando críticas. Ele ainda traz o bom humor para quebrar padrões sociais, fazendo graça sobre murchar barriga. Algumas legendas, no entanto, trazem tons mais sérios e de desabafos.

3. Mateus Baptistella (@vireiadulto)

O nanismo ainda é alvo de diversos preconceitos. Mas Mateus veio para ratificar que tamanho nada determina, assim como nenhuma característica exterior não

4. Suelen Lima (@rostodeneve)

Suelen chegou para quebrar mais um preconceito, a gordofobia. A jovem, que ainda enaltece a beleza dos cachos e emite dicas de cuidados para com a pele e cabelo, produz o lembrete de que estar acima do peso nem sempre é por culpa da pessoa que assim vive ou significa ser sinônimo de uma saúde debilitada. Esbanjando bem-estar, a blogueira que curte cada pedacinho do próprio corpo, não foca na ideia de mudar a estética e ser fitness. Com comidas recheadas que brincam com a apresentação de outros pratos mais saudáveis, a ruiva come de tudo e mostra que está muito feliz assim, afinal, atividades físicas e outras formas estão presentes na vida para ser mais saudável, mas ela deixa claro que a alegria pelas bochechas belíssimas e pelas curvas que tem. Outro perfil antigordofobia e traz formas únicas de fazer a própria make é o da Hannah Alves (https://www.instagram.com/hannahalvesp/). NAS LEGENDAS: Com cunho íntimo, a instablogger apresenta relatos cotidianos e desabafos nas legendas, além de outras que destrincham as indicações de produtos de beleza. Dicas de restaurantes e outros locais também não ficam de fora, com a avaliação da Suelen. NOVEMBRO 2017

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5. Alex B.

(@alexb244) Com 60 anos, a modelo britânica não tem vergonha alguma de exibir o seu corpo, tendo participado, inclusive, de ensaios de nú artístico. Alex já pousou para importantes revistas, como as Vogues italiana e britânica. Amante da dança, também é praticante assumida de ioga e apresenta o estilo de vida com os pilares que defende em união: corpo, mente e espírito. Em festas e viagens, Alex mostra que curte a vida como em qualquer idade, e mostra a beleza que existe nas rugas, as exibindo como poesias no próprio corpo. Ela ainda quebra padrões da moda com as vestimentas que utilizam duas ou mais estampas e enaltece a beleza dos fios brancos. Os perfis da Laura (https://www.instagram. com/terukolaura/) e da Nicola (https://www.instagram. com/nicolajgriffin/) seguem o estilo da Alex. NAS LEGENDAS: Em inglês, as palavras trazem dicas de viagens, eventos culturais e matérias que a Alex considerou relevantes. Geralmente, as indicações apresentam outras quebras de padrões, como é o caso do empoderamento negro.

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6. Gabi Barbosa (@gbbrbs)

Blogueira que apresenta apenas roupas com as quais se sente confortável, Gabi não segue o que está na moda, e sim o que a faz poder bater perna por aí sem cansar ou sentir apertos pelo corpo. Geralmente com tênis e outros sapatos baixos, ela apresenta looks para todos os tipos de ocasiões, ainda com mistura de estilos. Ora com looks que pegou do armário do namorado, ora com vestidos ou saias, a jovem feminista não se prende a um único formato. As inspirações artísticas ficam em diversos cliques, nos quais apresenta livros, filmes, frase e músicas que abordam, principalmente, o feminismo. Dicas de viagens e sobre vida independente, também não ficam de fora dos cliques da própria casa e que apresentam uma vida que segue o estilo minimalista. NAS LEGENDAS: No blog e nas próprias legendas, Gabi reflete sobre machismo, feminismo e outros quesitos que visam quebrar preconceitos. Ao cortar o cabelo, por exemplo, ela fez relatos dos julgamentos que sofreu. Uma estratégia chamada Armário Cápsula também é defendida no acompanhamento das fotos, que apresentam a ideia de aproveitar ao máximo as roupas, dando novos formatos e utilidades para as antigas.

7. Sara Geurts (@sarageurts)

A indústria da moda muitas vezes é pautada em estereótipos. Mas, para cada pessoa que se sente sem representação nas passarelas e capas de revista, existe algum pioneiro que decidiu enfrentar preconceitos e redefinir o que significa “se parecer com uma modelo”. Para Sara Geurts, uma modelo de 26 anos com uma rara condição de pele, isso significou aceitar as partes do próprio corpo que ela mesma já tinha considerado feias e transformá-las em qualidades. Ela tinha 10 anos de idade quando foi diagnosticada com uma rara condição genética chamada síndrome de Ehlers-Danlos, ou Cútis Elástica. O problema causa dores severas nas juntas e ossos frágeis, além de retardar a produção de colágeno, fazendo com que a pele se torne elástica e com uma aparência enrugada. Aos 26 anos, ela está mostrando ao mundo que não tem que ter vergonha de nada em sua aparência. Com fotos em diversos ângulos e locais, Sara mostra autoconfiança e dá exemplo. NAS LEGENDAS: Em inglês, as mensagens seguem o estilo de autoajuda, com frases de diversos autores e relatos da própria Sara.


CRÔNICA

Quadro em branco TEXTO: NILSON MARINHO

urante a festa do seu tio materno, Raul de Sousa Medeiros Britto - assim mesmo, como dois ts-, de apenas oito anos, mantém a roupa longe de qualquer nódoa. A disciplina e a higiene de Rauzito, como é carinhosamente tratado pela família, é fruto do investimento feito pelos pais em um colégio católico de excelência. Na escola religiosa fundada no começo do século passado, as freiras rudes e anêmicas prezam em ocupar o tempo ocioso do alunado com atividades extracurriculares e evangelizadoras. “Inglês, natação e, nos finais de semana, ele canta no coral da igreja, além de participar de ações beneficentes da paróquia”, conta a mãe do garoto para os outros convidados. Enquanto repreende com olhares a criançada que berra e rouba canapés reservados aos adultos, Selma discorre sobre os valores familiares. No final, fala com louvor sobre a importância da educação bilíngue e da preocupação em preparar a cria para enfrentar a concorrência das principais instituições de ensino superior “O mercado está cada vez mais exigente, não é mesmo?”, justifica-se para uma pedagoga presente. Na mesa oposta, o marido, um bancário de péssimo hálito e aparência, degusta um uísque trazido, por ele mesmo, para causar desconforto ao cunhado, com quem cultiva uma relação superficial, baseada em trocas de farpas e comparação de contas bancárias. “Esse ano decidimos ir para um lugar mais em conta. A região vinícola do Uruguai foi a nossa opção, mas, sem dúvida, os melhores vinhos estão na Itália, nosso próximo destino”, diz, enquanto olha com desprezo para o anfitrião da festa. No meio do frenesi de toda aquela gente, Rauzito parece alheio à hipocrisia. Frio, pálido, tácito. Seria ele um quadro em branco a ser pincelado pelas convicções daquela sociedade emergente?

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CULTURA

Séries para assistir à diversidade Sufoco. Ligar. Diversidade. Lutas. Lugar. Representatividade. Conectar. Com. Olhos. Ar. TEXTO: VANESSA BRUNT

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o Brasil, as polêmicas e teorias tratadas em séries estrangeiras têm ocupado mais as redes sociais do que produtos da dramaturgia brasileira, como já aconteceu nos debates digitais acalorados sobre novelas como Avenida Brasil e do recente caso raro de A Força do Querer. Pesquisa realizada pelo professor Pedro Curi, da ESPM-RJ, apontou que 77% dos brasileiros não estão satisfeitos com a qualidade e o conteúdo das séries e novelas nacionais. Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense, Curi é atualmente um dos principais pesquisadores dos hábitos de consumo de fãs brasileiros de séries. De acordo com o estudo, apenas 3,7% afirmam sempre assistir às séries feitas no Brasil. Ou seja, os brasileiros estão cada vez mais consumindo séries e filmes fora da programação da TV aberta. Além disso, os debates sobre esse tipo de produção têm crescido em plataformas como o site Filmow e em rede sociais. Em paralelo, o universo virtual deu ainda mais espaço para o ativismo e, assim, para as crescentes lutas por respeito, igualdade e equidade. Como então, não mesclar um ponto ao outro? Streamings como a Netflix passaram a criar, cada vez mais, produtos com temas que fogem ao clichê e questionam o status quo. Se já existiam, de forma tímida, produções que abordavam, desde os anos 2000, temáticas como as voltadas ao tema LGBT, agora esses assuntos são focos de algumas tramas, que discutem a necessidade do respeito acima de teores culturais. Para assistir a diversidade, nos dois sentidos possíveis, confira séries que tratam desde a homossexualidade sem estereótipos até questões como gordofobia, xenofobia e racismo. E ainda tem um detalhe curioso: todas as tramas escolhidas têm mais de um personagem principal.

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1. This Is Us Uma crônica sobre interligações entre as histórias de diferentes pessoas que se cruzam. A trama, que mostra as semelhanças das diferenças, aborda temáticas como racismo, gordofobia, adoção, crítica aos diversos padrões sociais e luta pela representação de grupos nas grandes mídias, que amplificam estereótipos.Com dois recortes temporais, a trama traz reflexões para além das basilares, mostrando, ainda, como os vestígios disseminados há séculos atrás - em faltas de respeito culturais -, ainda prosseguem.


uma tenista em ascensão que lida com assumir-se, uma aspirante a escritora e uma jornalista bissexual, trazem mensagens sobre amizade e respeito, em uma série que trouxe espaço de destaque para atrizes de diversas idades e realidades.

2. Sense 8 A série original da Netflix aborda temas como xenofobia, liberdade sexual e transgeneridade. A trama exibe as realidades de oito desconhecidos, de diferentes países. Os personagens descobrem que estão mentalmente e emocionalmente ligados um ao outro. Juntos, eles exploram as realidades alheias e sentem como é viver na pele do outro, como da transgênero Nomi(Jamie Clayton) e do homossexual Lito (Miguel Ángel). Sense8 relembra o quanto estamos todos conectados e trata, acima de tudo, de empatia. Confira o trailer do episódio final aqui, solicitado por fãs, que foram atendidos após cancelamento da série.

que acabam criando - e virando - um único quadro familiar. A personagem colombiana Gloria (Sofía Vegara), lida com o machismo e a xenofobia, enquanto o casal formado por Mitchell (Jesse Tyler Ferguson) e Cameron (Eric Stonestreet), quebram ideologias retrógradas, ao darem grandes suportes para as criações dos menores na trama.

4. The Get Down The Get Down é uma superprodução musical da Netflix que apresenta, através de um enredo ficcional com características documentais, como emergiu o hip-hop e o grafitte no subúrbios de Nova York e como funcionava o sucesso da música Disco. Na série são debatidos assuntos relacionados à condição de ser negro na realidade passada e atual, os preconceitos às artes – como as vindas da periferia – e as relações entre os grupos que vivem nas áreas menos privilegiadas.

3. The L Word

5. Modern Family

A trama aborda as vidas e relacionamentos de uma série de mulheres lésbicas e bissexuais que vão sendo empoderadas ao decorrer, com os suportes umas das outras. Ainda estão presentes temáticas como alcoolismo e machismo. Uma diretora artística de uma galeria de arte, um casal que tenta conceber um bebê por inseminação artificial,

A série aborda a homoafetividade, a adoção, o divórcio e os preconceitos perante famílias com membros de diversidades étnico-raciais e culturais, além de criticar prejulgamentos sobre os relacionamentos em que as faixas etárias não são próximas. Os temas são abordados a partir dos relacionamentos ocorrentes entre três famílias

6. Six Feet Under A série desenlaça um drama familiar, retratado por um grupo de pessoas donas de uma funerária. A trama lida com assuntos como homossexualidade, feminismo e religião. Ao mesmo tempo, os casos das vidas dos mortos se misturam com as reflexões dos protagonistas, trazendo o tópico da morte de forma diferenciada, ao explorar os seus múltiplos níveis, pessoal, religioso e filosófico, não a propondo apenas como um mero ímpeto conveniente para a solução de um assassinato.

Dá uma olhadinha em Grey’s Anatomy, porque todos os temas listados aqui, estão presentes nela. NOVEMBRO 2017

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IDENTIDADE

#PelePretaTatuada Onde o preconceito não tem vez TEXTO: DIDICA VASCONCELOS

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ocê já observou como é difícil encontrar informações, na internet, sobre tatuagem em pele negra? Em contrapartida, em uma rápida pesquisa no Google, por exemplo, você se depara com páginas e páginas de fotos, vídeos, artigos em revistas e jornais, entre outros. Pois bem, pensando nisso, a Soul apresenta a você o projeto “Pele Preta Tatuada”, que faz do desenho um forte elemento de identidade. Venha com a gente em um percurso que começa com a escolha do tatuador até o resultado final, ou seja, a arte pela diversidade impressa na pele.

PROCURANDO O TATUADOR

Tatuador, afrodescendente, 37, Finho Caldas, como é conhecido entre os pares, criou o projeto #PelePretaTatuada, há quase 2 anos na cidade de Salvador, onde 50,8 por cento da população tem ancestralidade africana, segundo o último censo de 2015. Depois de conversar com amigos e visitar diferentes publicações da área, Finho percebeu a pouca divulgação sobre desenhos na pele de tons escuros. “Em revistas com uma média de 70 páginas de fo-

tos, só encontramos uma ou duas imagens de modelos negros. Nas reportagens, há referências à dificuldade de se encontrar profissionais especializados”, garante. O músico e escritor Robson Véio, 46 anos, não enfrenta esse problema. Amigo e cliente de Finho, compartilha com seu tatuador a preocupação com o empoderamento negro e, por isso, abraçou o projeto. “Sou preto e tenho a pele tatuada, isso já me fez participar do projeto. Já conheço Finho há muitos anos e sempre tivemos fortes discussões sobre a africanidade”, relata.

EM BUSCA DE UM CONCEITO

Mas, não basta “riscar” a pela negra, o desenho precisa carregar história, ter a narrativa de um povo e de uma luta secular. As tatuagens de Finho Caldas têm uma preocupação étnico racial. Imagens inspirados na diáspora africana, penteados afros nas cabeças de mulheres negras, características físicas em destaque nas caricaturas, orixás e elementos do candomblé são alguns dos desenhos que integram o projeto #PelePretaTatuada.

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Tudo isso sem abrir mão da ironia: “Também busco referências que já existem, como as pin ups. Aí, subverto a mulher caucasiana para mulher negra”. Para Finho, a arte também é um ato político, de representação e cidadania. Ver um Obama na Casa Branca, um casal como Jay Z e Beyoncé nas paradas do cenário pop internacional ou Lázaro Ramos e Tais Araújo como representações nacionais de luta consiste em marcos históricos. “Hoje, temos o negro ocupando cargos de poder e temos que ocupar tudo mesmo. Acho massa que os meninos e as meninas, de pele negra, estejam crescendo e vendo essa representatividade”, comemora Finho. O cliente do tatuador, Robson Véio, complementa: “eu entendo que devemos estar em todos os espaços e criar meios alternativos de viver”.

PEGANDO NA AGULHA

Em suas buscas por um tatuador e pelas melhores tatuagens, Robson declara que sempre foi desencorajado com frases como “tatuagem não pega em pele preta”, “vai fazer queloide”. O queloide é uma proliferação fibrosa que ocorre após traumas, como a perfuração da agulha de tatuagem, cirurgia ou queimadura, e tem maior incidência na pessoa negra. Segundo Finho, a pele negra vai solicitar cuidado dobrado após a tatuagem, não se pode abrir mão das pomadas prescritas, não ficar exposto ao sol, nem ir à praia até a cicatrização. Além disso, o tatuador pode desenvolver técnicas específicas: “eu tento não machucar tanto a pele”.

especial para o projeto. “Quero aproveitar o Novembro Negro e fazer uma semana de tatuagens do “Pele Preta Tatuada”. Se você ficou empolgado, é só acompanhar a programação nas redes sociais do artista. Robson recomenda e convida para o “manifesto”: “me tatuei algumas vezes com o #PelePretaTatuada e as minha tatuagens ,para além de serem imagens em pele preta, têm significados empoderados, cada u m a com sua dor e amor.

AGORA, SIM, IDENTIDADE NA PELE

Se você tem pele preta e o orgulho de fazer parte do povo que, em maior proporção, construiu esse país, novembro é um mês NOVEMBRO 2017

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PERFIL

O fruto de

Clarissa!

O encontro entre arte e crítica social na performance da drag fora dos padrões TEXTO: NILSON MARINHO

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larissa Nunes, 18 anos, nunca esteve ali. Nunca coube naquela vida pacata e tediosa que levou por 17 anos - longos e tortuosos, decerto. Quando se deu conta, já não era mais aquela mocinha amada pela avó que a criara com muito zelo. Era preciso partir, pegar a estrada rumo ao território desconhecido. Assim o fez. Deixou a pacata Ipirá, no centro-norte baiano, e percorreu 250 quilômetros para chegar a Salvador, capital da Bahia. Trouxe pouca bagagem e uma grande vontade de ser quem realmente era: Clarissa, não a mesma de antes, é claro.


A Clarissa de agora não tem amarras, nem é supervisionada pelos olhares de reprovação daquela gente conservadora. Como sempre quis abraçar o mundo, decidiu ser duas, só para poder dar conta de aconchegar, em seus braços, o universo. E foi assim que nasceu a Frutífera Ilha, numa dessas noites de fechação e muito porre. A Frutífera, a propósito, é o nome da persona que toma conta dela, é um estado performático, como a própria Clarissa define. A jovem, que há cerca de um ano é artista independente e drag queen, passou a transformar suas inquietações em arte. “Ela (Frutífera) nasceu como uma forma de representar minha vivência na cidade. Eu tento expor a hostilidade do dia a dia, o racismo, a questão de ser mulher periférica em Salvador em performance. Tudo isso gerou uma estética ampla, futurista, que é monstruosa”, explica a artista.

MONSTROS À SOLTA

É noite de terça-feira e estamos na Avenida Carlos Gomes, centro de Salvador. De dia, a via que liga o bairro Dois de Julho à Praça Castro Alves, é agitada; à noite, em especial depois da 22h, um silêncio toma conta do local. Na avenida, apenas alguns taxistas à espera de clientes, que parecem nunca chegar, e bêbados que tropeçam na calçada, buscando o rumo de casa. A Avenida parece dormir. Engana-se quem pensa assim. Pelo menos, ninguém dorme no sobrado de dois andares que, à luz do dia, passa despercebido. O lugar em questão é o Âncora do Marujo, local conhecido da cena queer da cidade. Por lá, drags, gays, lésbicas, heteros, assexuados, trans e travestis se encontram, seja para tomar uma cerveja barata (R$6), para performar ou para se sentir mais seguros em um ambiente onde as pessoas parecem não se

importar com as particularidades de cada um. Aos poucos, o lugar mal iluminado - de propósito - e claustrofóbico começa a encher. As drags mais experientes, já prontas para o espetáculo, desfilam com destreza entre as mesas, comprimentando os conhecidos com beijos à francesa, para não borrar a maquiagem. As artistas novas na casa são fáceis de ser reconhecidas: o andar deselegante denuncia a pouca experiência. Se, nos pés, o salto predomina; nas vestimentas e maquiagens, a feminilidade não parece ser regra. Pelo menos, é assim para a Frutífera que, antes de se intitular drag, se reconhece como monstra. “Se ela é monstra e carrega toda essa estética é porque ela é a influência do que absorvo ao meu redor. Ela é esse bafo mesmo, a mistura de tudo que, quando bate, se transforma nisso”. E os aspectos monstruosos estão nos cortes das roupas, feitas, geralmente, com materiais recicláveis, sem deixar de reparar na maquiagem que, por vezes, beira a bizarrice. O figurino da Frutífera, usado no último 27 de setembro , foi produzido por ela mesma, com peças compradas em um bazar e alguns retalhos de plásticos que serviram de saia. Uma tela metálica adornou a cabeça da drag, enquanto ela esteve no palco do Marujo performando para uma plateia animada. Se no tablado o clima é de festa, nos bastidores nem tanto. Por ser mulher e drag, a Frutífera vem colhendo alguns desafetos com aqueles que sempre estiveram à frente da arte. Em uma apresentação na casa, onde todo o elenco escalado da noite

era de mulheres, a artista ouviu de um garoto gay que estava na plateia. “Mulher não sabe fazer drag, são acabadas”, decretou o espectador para a fúria das artistas femininas. “O meio drag deveria ser queer, mas não é. Ele é GGG*, aquela hegemonia de bicha misógina que fica fazendo a linha mulher, mas, no dia a dia, fica criticando a gente”. O comentário era sobre as roupas e a maquiagem que, de propósito, fogem da obviedade da moda feminina. “Existe mulher fazendo drag na linha garotona, com maquiagem cara, o que é mainstream. Não sou e nem tenho a intenção de ser a Pabllo Vittar”, afirma a Frutífera, antes de bebericar um drink servido para as artistas da noite. *GGG é uma nomeação usada para denunciar a hiper representatividade do homem gay e a invisibilização de outras siglas dentro do movimento LGBT. Na mídia, toda a luta LGBT se resume a imagem do homem gay, isso fica evidente nas expressões: Meio Gay, Comunidade Gay, Parada Gay, Lobby Gay, ativismo Gay, boate gay , etc. NOVEMBRO 2017

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ARTIGO

Freud explica? TEXTO: LUIZ LOPES*

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acilmente encontramos na mídia em geral, notícia sobre a intimidade de alguém. Com quem ele está namorando, quem se separou, onde estava passando férias, bem como os vazamentos dos nudes e registros de sexo recebem muitas curtidas, comentários e se espalham de forma viral. Geralmente esse alguém é um famoso, mas também vemos anônimo serem noticiados por algum aspecto de sua intimidade ter escapado a privacidade. Quando o conteúdo está relacionado a sexualidade da pessoa ainda mais interessante é a notícias. Vejamos como exemplo um ator famoso que é constantemente alvo de indagações sobre uma suposta homossexualidade. Há sites, blogs, canais no youtube especializados em noticiar a vida das celebridades. Sabemos de casos onde a perseguição de paparazzi à celebridades resultou em acidentes e mortes, dos anônimos que se 34

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tornaram famosos e até mesmo do sofrimento causado em alguns pela exposição excessiva de sua vida. De tudo isso é mais importante tentarmos entender o porquê essa curiosidade tanto nos interessa do que a confirmação ou negação dos fatos. Mas não é somente nas redes sociais que podemos perceber o interesse na vida alheia. No cotidiano percebemos que é comum desprendermos tempo e energia para especular sobre a vida sexual dos amigos, familiares e conhecidos e até mesmo dos desconhecidos. Ainda mais quando se foge dos padrões sexuais heteronormativos. O tédio das reuniões familiares quase sempre é resolvido com perguntas, comentários ou piadas sobre a longevidade da solteirice de alguém, o amigo ou amiga estranha do outro, o neto ou sobrinho que ainda não existe. Tem sempre uma tia responsável por proferir tais questionamentos.

Ao longo dos séculos existiram diferentes compreensões sobre a sexualidade humana. Mas ainda hoje é um dos temas tabus de nossa sociedade. A cultura, os valores morais, questões econômicas e politicas constituem um conjunto de aspectos que influenciam na maneira que entendemos e lidamos com a nossa sexualidade. Os dispositivos de controle estabelecem diferentes formas de regulação social p e l a via da sexualidade. Sendo assim são construídos os pa- drões de normalidades que devem ser seguidos por todos e como consequência também as formas de combate aos comportamentos desviantes. Podemos verificar isso buscando elementos na nossa história. As mulheres, por exemplo, durante muitos anos tinham como único destino a maternidade. Ser bonita, prendada e ter boa conduta moral eram os re-


quisitos básicos e fundamentais para o casamento. Havia consequências graves para aquelas que não permanecessem castas até o matrimonio. Aos homens as exigências eram outras. A masculinidade era medida pela capacidade de demonstração de força, coragem, determinação e de ser um provedor. Somente com algumas mulheres os homens podiam dar vazão a suas fantasias e essas não eram com suas esposas ou namoradas. A homossexuali-

dade era entendida como o desvio a essa lógica binaria dos sexos opostos e por isso foi significada como doença sendo necessário construir diversa estratégias, com o respaldo científico, para extirpar o mal. Existem algumas mudanças na contemporaneidade. Para uma geração inteira de mulheres, a maternidade não é um

destino. Há outras possibilidades diferentes do pacto matrimonial para a eternidade. As configurações familiares se apresentam de forma tão diversa que, às vezes, é difícil acompanhar e até mesmo compreender as diferentes formas de associação afetivo/ amorosa. Neste sentido tem grande relevancia o trabalho dos movimentos sociais, a revolução feminista, o desenvolvimento dos estudos sobre a sexualidade na medicina, na psicologia, na antropologia. A compreensão da ineficácia dos tratamentos de reversão sexual fez com que as ciências médicas e “psi” retirassem o status de doença da homossexualidade e assim reorientasse as suas práticas profissionais e não os sujeitos. Percebemos os efeitos desse avanço nas novas gerações de adolescente que vivenciam práticas que transitam em diferentes contextos sem muita preocupação com padrões ou expectativas. O assunto é tratado com mais frequência na televisão, cinema, nas artes e também nas redes sociais. Isso não significa que todas essas abordagens sejam isentas de preconceito, determinismo, julgamentos e equívocos. Mas é importante considerar que temos construído outros espaços para falar e expressar a diversidade. A contribuição da psicanalise foi de extrema importância na medida em que nos ajudou a entender as diferentes manifestações da sexualidade como formas de singularização dos sujeitos. São diferentes soluções diante de um conjunto de variáveis que influenciam na sua organização psíquica tais como, os aspectos biológicos, os processos de identificação, as relações familiares etc. Esse caminho percorrido amplia a compreensão sobre as manifestações da sexualidade

para outra lógica que não a da patologização. Assim fica mais claro percebemos que o sofrimento vivenciado ainda hoje, pelas pessoas que manifestam suas sexualidades não hegemônicas são efeitos da incapacidade dos demais se relacionar com o diferente. As depressões, tentativas de suicídio, o medo, a rejeição, as violências são situações comuns vivenciadas por pessoas LGBT´s, sendo necessário a construção de estratégias cotidianas de enfrentamentos para terem as suas experiências reconhecidas. As atitudes preconceituosas contam mais sobre o seu autor do que sobre as vítimas do preconceito. A violência, o desrespeito, a raiva e a discriminação são reações diante da dificuldade em reconhecer em si aquilo que enxerga no outro. É um mecanismo de defesa que impede de fazer contato com suas dificuldades, desejos, frustrações e fantasias. Essa limitação é resultado da falta de reflexão sobre si mesmo e sobre o outro, sobre as relações e é isso que produz o preconceito. E na ação violenta, na energia desprendida para xingar e perseguir que os sujeitos conseguem fazer contato com todos esses conteúdos que os pertence, mas sem reconhecer que são seus. É assim também, na fofoca, na perseguição, na difamação, na disseminação de informações falsas e na especulação da sexualidade alheia. Se tivermos um pouco de paciência e atenção e escutarmos atentamente o discurso de uma dessas pessoas preconceituosas, fofoqueiras e preocupadas com a vida alheia podemos comprovar que as justificativas para o julgamento, os comentários e conteúdos estão recheados das fantasias do próprio sujeito. Luiz Lopes é psicólogo e coordenador do curso de Psicologia da FSBA. NOVEMBRO 2017

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EDUCAÇÃO

É de menina ou de menino?

Brincadeiras podem ajudar na construção de estereótipos e preconceitos TEXTO: ROSELI SERVILHA

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ocê se lembra do que brincava quando criança? Se você for um homem, provavelmente, ouviu muito que deveria brincar de carrinho ou futebol. Se for uma mulher, certamente, as casinha e as bonecas eram a opção. Essa separação de brincadeiras e brinquedos entre “coisas de menino” ou “coisas de menina” não

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é invenção de uma determinada família. É uma construção cultural, que foi naturalizada. Desfazer essa divisão histórica não é uma tarefa fácil, mas mantê-la pode ser um incentivo para preconceitos futuros. Pais de um garoto de 7 anos e uma menina de 4, o eletricista Mário Oliveira e sua companheira Raimunda da Conceição

acreditam que as brincadeiras podem exercer influência sobre a sexualidade da criança. “Meu filho pode aprender a ser amoroso pelo meu exemplo, não precisa brincar de boneca”, garante. Segundo a psicóloga Niliane


Brito, a opinião dos adultos sobre determinadas brincadeiras acaba passando um certo preconceito para os pequenos. “A brincadeira infantil é importante, especialmente pelo prazer que sentem ao brincar, seja de carro ou de boneca. Por meio da imaginação, do lúdico, a criança faz a leitura e interpretação de si e do mundo que a rodeia. É importante deixá-la livres em suas escolhas”, aconselha. Apesar do alerta, Niliane reconhece que essas divisões são históricas, tradições que são renovadas constantemente. Antes mesmo do nascimento, os pais já começam a ter comportamentos diferenciados, quando ficam sabendo do sexo do bebê. “Só que sexo é diferente de gênero, já que o gênero é construído a partir de aspectos sociais, culturais e psicológicos”, explica. Um giro pedagógico No artigo 7 das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, publicadas em 2009, é tratada a importância de se educar, construindo novas formas de socialização e de subjetividade. Ações que sejam comprometidas com os aspectos lúdicos, mas que incentivem, simultaneamente, o rompimento das relações de dominação de gênero. Já o artigo 9 aborda a importância das escolas promoverem o respeito pelos desejos e expressões de individualidade das crianças. Com base nessas diretrizes, a pedagoga Andréa Lomanto fundou a Escola Gira Girou, que, há nove anos, trata da educação infantil fomentando uma infância mais livre. Sem separar cores ou brinquedos, a proposta é que a brincadeira seja vivenciada na plenitude da infância. “Eles estão em formação e vivem a brincadeira (e a infância) de forma sensorial, experimental”. Em meio às representações

infantis, fantasias de bruxas misturam-se com as de princesas e heróis - cada um escolhe o que quer usar, sem proibições, apenas “criançando”. Andréa defende que a família não deve colocar essa limitação, uma vez que, muitas vezes, meninos e meninas ouvem que não podem brincar com determinados brinquedos, sem nem mesmo compreender o sentido da censura. “Um dia, uma aluna me falou sobre o desejo de ter um carrinho, porque sempre a presenteavam com bonecas, e outros brinquedos. Usamos desse desejo dela para fazer uma atividade bem bacana, com todo um ritual de construção de carros, a partir de materiais recicláveis e sucatas”, relata. De acordo com Andréa, os pais que buscam a escola já conhecem a proposta. Aqueles que não se enquadram ou vão para outras instituições, ou participam de rodas de diálogos para conversar sobre o assunto. “Eles também estão em tempo de processar as coisas e se reconhecerem em novas metodologias”, destaca. A auxiliar administrativa Rosana Franco, mãe do pequeno Gabriel Levi, de 7 anos, concorda com a proposta da Gira Girou e não põe barreiras quando se trata das brincadeiras do filho. “Se ele cuida de uma boneca, está aprendendo a cuidar de uma criança. Isso aguça seu aprendizado de diversas formas, sem fazer ligação com sua sexualidade. As pessoas criam os filhos com limitações absurdas, por conta dos medos e maldades do mundo adulto”, analisa. E as reviravoltas pedagógicas não acontecem apenas em instituições privadas. Na Escola Municipal Osvaldo Cruz, mudanças metodológicas incentivam a liberdade nos espaços lúdicos da brinquedoteca. “Além de permitir que as crianças brinquem livremente, fazemos atividades que desconstroem o preconceito, sempre buscando uma forma de fazer dessas crianças adultos me-

lhores”, diz, confiante a diretora da unidade, Ana Carla Pereira. Pesquisadora sobre sexualidade e gênero, a mestranda da Universidade Federal da Bahia, Carla Freitas, explica que o pânico dos adultos de que alguma brincadeira possa construir uma identidade sexual ou de gênero dissidente cria situações de violências. Ela acrescenta que, quando os “adultxs” definem o que é de menino e de menina, restringe o potencial criativo das crianças, a partir de uma lógica sexista que pretende fixar os papéis de gênero. “O que temos de experiência sobre isso é, entre outras coisas, uma relação de poder, na qual a mulher fica socialmente subjugada”, analisa. Para Carla, a infância precisa existir para além disso, uma vez que é através da ludicidade e do espaço criativo que os processos de aprendizagens acontecem. A pesquisadora demonstra preocupação com os rumos sociais que essa discussão vem ganhando, especialmente, no cenário político. “A dita ideologia de gênero, uma das pautas da bancada fundamentalista do congresso, existe e é secular. Ela dita as regras de gênero, define o que é de menino e de menina e faz a manutenção de formas de violências simbólicas, perpetuando machismo, sexismo, cis sexismo e a intolerância a outras formas de existências”, avalia com angústia. NOVEMBRO 2017

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CULTURA

K-Pop, K-idol, K-covers, K-poppers.... e diversidade Música popular coreana conquista fãs em Salvador de relações de gênero. TEXTO: HARRISON LAGO

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uem nunca se perguntou como surge o sentimento de paixão por um cantor, cantora, banda ou grupo musical ? Além de consumir uma diversidade de produtos, existem fãs que fazem covers, ou seja, reproduzem seus ídolos com o máximo possível de fidelidade. Nesse universo, há os k-popper’s, fãs do k-pop (música popular coreana), que cantam, dançam e se vestem como os seus ídolos, os chamados K-idols. Em tempo, os covers dos K-idols são os K-covers. Esse movimento chegou com força no nosso estado e, em menos de 3 anos, já existem 362 jovens, com idades entre 12 e 25 anos, cadastrados no grupo K-Poppers Bahia. Mas, o líder Junot Freire, 21, afirma que o número é maior, pois muitos fãs não estão registrados oficialmente. Uma demonstração disso é a página oficial do grupo no facebook, que conta com 2.339 seguidores (outubro de 2017). Além dos encontros frequentes para ensaiar, os K-poppers se reúnem em eventos da cultura oriental, realizados, anualmente, na capital baiana. O Anipólitan começou em 2003 e tem um espaço exclusivo para os fãs de k-pop. Já o Bon Odori, que acontece desde 1991, dis-

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ponibiliza uma programação ao ritmo J-pop (Japan Pop), onde os k-idols cantam em japonês, alterando seu idioma de origem nas canções. Além dessas iniciativas, tem ainda o Kpop Meeting Bahia. Fãs do interior do estado e da região metropolitana viajam para curtir as atrações em Salvador. Aliás, a proposta de montar o K-poppers Bahia surgiu em um evento musical do gênero. A caravana que foi assistir ao show Music Bank, em 2014, no Rio de Janeiro, deu origem ao grupo e à programação regionais. “Agora, mantemos uma equipe coesa e compacta para realizar os projetos”, explicou Junot Freire. Ele conta que as primeiras iniciativas locais tiveram 50 pessoas e, agora, o público chega a 400 pessoas.

K-COVER’S E DIVERSIDADE No universo dos K-poppers, os k-covers têm um destaque especial. Em nome da paixão, eles ensaiam horas a fio, decoram letras de músicas em línguas estranhas à matriz latina, produzem figurinos e também assumem personagens, por vezes, distantes do seu dia a dia. O estudante universitário Vitor Andrade, 22, confessa que, inicialmente, não gostava do ritmo K-pop, mas a resistência durou pouco. “Depois, comecei a adorar as coreografias, principalmente as femininas. Hoje, gosto de tudo: figurinos, estética dos vídeos, vozes... enfim, tudo”, declarou. Pioneiro no mundo de K-pop em Salvador, com 7 anos de fã e


6 como cover, o também estudante universitário Muri Almeida, 24, explica que transita entre as performances femininas e masculinas, mas que prefere os femininos, por conta da sensualidade das girlband’s. O mesmo sentimento é compartilhado pelo líder do grupo de covers KIDDO, Tamir Silva, que passou a gostar de k-pop e ter vontade de fazer as “imitações, depois de escutar o grupo chamado “Wonder Girls”, o qual já encerrou as atividades. Além de interpretar seus ídolos, os k-covers realizam a produção de videoclipe ou “M/V”. Eles definem roteiro, gravam, editam, fazem a pós produção e todo o processo de divulgação em sites específicos e redes sociais. Vitor e Tamir elencam as produções: “já fizemos MV cover de Galaxy do Ladie’s Code, Whoo do Rainbow, Boombayah do BlackPink, Russian Roulette do Red Velvet e Fingertip do Gfriend”. Eles ainda fazem os rankings dos melhores e se divertem com as análises. Muri também participou de uma vasta quantidade de gravações e destaca os que mais marcaram sua histópria como

k-cover. “Participo de MVs covers desde 2013. Meus favoritos, até então, foram o da boyband BTS com a música “Save Me”, o da girlband Wonder Girls com a música “Why So Lonely” e, mais recentemente, meu video solo da música “Anck-Su-Namum”, da rapper Yezi”, relembra. Além de todo glamour em torno dos videoclipes, os cover’s de k-pop participam de competições e concorrem a prêmios. “O KIDDO participa de competições há 2 anos. Nós já ficamos em 3° lugar no Ateam e, em 2° lugar, no KBE Dance Contest, ganhando premiações nos dois”. (Obrigado!).

GLOSSÁRIO K-Pop: Música popular Coreana. K-Ppopper: Fãs de K-pop. K-Ídols: Ídolos/artistas do cenário –pop. K-Covers: Covers de kpop. Boy band: Grupo composto por meninos. Girl band: Grupo composto por meninas. M/V: Music vídeo

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MICROCONTO

TEXTO: NILSON MARINHO

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esde que passou a morar na cidade, rosa, que não tinha pretensão alguma de vida, agora almejava ter as belas formas das suas primas abastadas. Em uma ida ao baile anual, descaradamente, desejou ser a primeira dama e atrair os olhares dos homens de bom sobrenome. Durante toda a festa, permaneceu oculta aos olhos daquela gente, como permaneceria até o seu último suspiro. Cansada da vida fatídica, escreveu na alma, em letras de ponto cruz “aqui jaz a raquítica”. Rosa nunca imaginou que as aulas de bordado, que tivera quando mocinha, pudessem ser tão úteis.

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14 PALAVRAS COM SENTIDOS DIFERENTES PARA GAYS E HÉTEROS Já pensou que as palavras podem ter sentidos diferentes quando o assunto é a diversidade? Se liga!

1. LACRE.

6. PISAR.

Significado hétero: usado para selar, lacrar.

Significado hétero: andar, pôr os pés sobre.

Significado gay: fazer algo muito bem.

Significado gay: humilhar, ser superior.

2. HINO.

7. TIRO.

Significado hétero: composição musical de louvor a uma nação ou religião.

Significado hétero: disparo de uma arma de fogo.

Significado gay: uma música pop que agrade o público gay.

3. ELZA. Significado hétero: nome próprio. Significado gay: afanar, roubar, furtar.

4. PINTA. Significado hétero: mancha ou sinal de pequeno tamanho. Significado gay: trejeito, modo de agir, chamar atenção.

5. URSO.

Significado gay: algo de forte impacto emocional.

8. MAGIA. Significado hétero: algo extraordinário, encanto, fascínio. Significado gay: bonito, atraente, gostoso.

9. FERVER. Significado hétero: condição de fervura, ebulição. Significado gay: ir para a noite, dançar na balada.

10. GRAVAÇÃO.

Por: Harrison Lago

11. MALA. Significado hétero: recipiente para transporte de roupas e bens pessoais. Significado gay: volume da cueca ou sunga em homens.

12. ATENDIMENTO. Significado hétero: forma de prestar um serviço ao cliente ou paciente. Significado gay: receber ou ir na casa de alguém para fazer sexo.

13. EGÍPCIA. Significado hétero: relativo ao Egito. Significado gay: fingir, se fazer de louca.

14. CLOSE.

Significado hétero: animal mamífero.

Significado hétero: deixar marcado, registrado em áudio ou imagem.

Significado hétero: termo em inglês usado na fotografia e no cinema para descrever um ângulo próximo.

Significado gay: homem que tem corpo peludo, grande ou pesado.

Significado gay: fazer sexo oral em um pênis.

Significado gay: chamar atenção, aparecer, se divertir.

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