Revista Afromundo - Nº 2

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linhaça, os solventes, quebrei o cavalete e os pincéis a marteladas. Saí do ateliê, deixando atrás de mim parte de minha vida assassinada. Perambulei com dor na alma, odiando pela primeira vez a terra que amo, cheio de raiva contra uma sociedade em decadência e medíocre.Foram quinze dias de purgatório, durante os quais me perdi nas ruas de Salvador. Um dia acordei tranqüilo. Reencontrei o verde das árvores, ouvi de novo o canto dos passarinhos, voltei a amar o azul da Bahia. A pé tomei o caminho de volta ao ateliê. Senti então uma tristeza amarga, chorei de saudade dos meus trabalhos destruídos. E novamente aceitei meu destino. Com 50 cruzeiros dados por meu irmão, comprei material de pintura. Voltei a pintar. Descoberta da arte negra – dos signos-símbolos do candomblé: Oxê de Xangô, o machado duplo, no mesmo eixo central, recriado por mim e posteriormente transformado em forma fundamental de minha pintura, Xaxará de Omolu, Ibiri de Nana, Abebê de Oxum, ferros de Osanhe e de Ogum, Pachorô de Oxalá, os pegis com sua organização compositiva quase geométrica, contas e colares coloridos dos orixás. Na pintura buscava uma linguagem, um estilo para expressar uma realidade poética, extraordinariamente rica, que me cercava, para torná-lo universal, contemporânea. Pacientemente fazia o transpasse de todo esse mundo para o plano estético. Com o peso da Bahia sobre mim – a cultura vivenciada – com o sangue negro nas veias – a atavismo – com os olhos abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade – cirando meus signos-símbolos, procuro transformar em linguagem visual o mundo encantado, mágico e provavelmente místico que flui continuamente dentro de mim. O substrato vem da terra, tão ligado que sou ao complexo cultural da Bahia. Partindo desses dados pessoais e regionais, busco uma linguagem autêntica para me expressar plasticamente [...]”  Silvestre Silva

Autobiografia de Rubem Valentim “Nasci num sobrado com sacada de ferro, à Rua Maciel de Baixo, 17, Distrito da Sé. De pais pobres, fui o primeiro de seis filhos. Custei a nascer e levei muitas palmadas para chorar. Em compensação comecei a gritar com força incomum, o que apavorou os presentes. Foi, ao que parece, meu primeiro grito de protesto comtra a violência. Dos quatro aos treze anos, vivi à rua Futuro do Tororó, onde morava gente de classe média e também gente muito pobre e humilde. Cresci tomando consciência das diferenças de classe, de dinheiro sempre escasso e das injustiças que marcavam meu pequeno mundo. Brinquei muito na rua. O prazer maior era empinar arraias e fazê-las com gosto. Durante as festas juninas era um não-acabar de fazer balões de papel colorido, bem como altares de Santo Antônio decorados com recortes de papel de seda e folhas douradas. Mas de todos meus encantos infantis nenhum se comparava ao de fazer presépios. Mundo poético, popular, de cor e riqueza imaginativas, que ficou em mim e influenciou profundamente minha arte. Me perdia na contemplação das igrejas: o ouro dos altares, as imagens, o silêncio, o cheiro de incenso e de velas queimando. Cantochão. Procissões. O Natal e a Paixão. Minha família, católica, de quando em vez ia ver um caboclo num candomblé. O baiano, para sua felicidade, é católico e animista. [...] Meu primeiro contato importante com a arte contemporânea ocorreu em 1948, na exposição de artistas nacionais e estrangeiros organizada por Marques Rebelo na Biblioteca Pública de Salvador. Fui vê-la várias vezes, deslumbrando, perdido, chocado com aquele mundo fantástico e tão novo para mim. Aluguei uma sala num velho sobrado de três andares, com sacada de ferro. Pela manhã desenhava composições com garrafas, latas, moringas, vasos, ex-votos e cerâmica popular. Elaborava esquemas de cor e valores. À tarde, fazia pesquisas formais – livres, imaginosas. Ou ia ao Museu de Arte conversar com José Valladares, que me emprestava livros e revistas sobre arte. Reproduzia imagens de um livro grosso sobre Cézanne, copiando-as à óleo, com valores em cinza. Com Cezanne aprendi a compor. Fiz cópias também de Modigliani, Matisse, Braque, Picasso e Chagal. Através de Klee compreendi a liberdade de expressão plástica e o valor fundamental da imaginação criadora. Sempre lutando para vencer as dificuldades de execução. Nunca fui muito habilidoso – felizmente. Vivia com sacrifício, sem dinheiro. Um dia, no ateliê, perdi a cabeça. Rasguei os cadernos de desenho, destruí todos os meus estudos, as telas, esvaziei os tubos de tinta, despejei os óleos de

Rubem Valentim 1922-1991 (In memorian)

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