[URSULA TRONCOSO] Monografia

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ARTIGAS EDUCADOR



Para meu orientador em mais esse estudo, Celso PĂ´la Pazzanese.

Desenho de Caco Bressane, 2005.

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ARTIGAS EDUCADOR a presença de Vilanova Artigas na universidade e sua colaboração para o ensino da arquitetura

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“Quanto faças, supremamente faze. Mais vale, se a memória é quanto temos, Lembrar muito que pouco. E se o muito no pouco te é possível, Mais ampla liberdade de lembrança Te tornará teu dono.”

Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa.

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índice introdução ........................................................................................... 11 linha do tempo .................................................................................... 12 engenheiro arquiteto ........................................................................... 15 o arquiteto político ............................................................................... 21 viagem aos estados unidos ................................................................. 27 a primeira escola de arquitetura .......................................................... 33 reforma de 62 ...................................................................................... 35 projetar uma nova escola..................................................................... 45 o ateliê da maranhão............................................................................ 51 fórum de 68.......................................................................................... 53 inauguração da FAUUSP .................................................................... 59 silenciamento ....................................................................................... 65 a volta dos cassados ........................................................................... 67 os seminários....................................................................................... 71 uma molecagem medieval .................................................................. 75 reflexões finais..................................................................................... 79 anexos.................................................................................................. 83 bibliografia ........................................................................................... 95

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introdução Nas próximas páginas vamos buscar um pouco da história desse personagem chave da arquitetura brasileira. Vamos buscar essa história sob um viés: jogaremos luz em uma das várias facetas da vida desse arquiteto – e, a meu ver, a mais importante delas. Neste caderno, vamos relembrar o Artigas professor, educador. Aquele que dedicou mais de trinta anos da sua vida para elaborar e dar forma ao ensino da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e, que nesse esforço, acabou por ditar os rumos do ensino da arquitetura em todo o país. Nos anos 60, as aulas inaugurais do professor Artigas eram famosas. “Quando ele vinha dar a primeira aula era uma expectativa imensa”, conta o arquiteto Ruy Ohtake, “tinha gente olhando de fora das janelas, porque na sala já não se podia ficar, de tão lotada”. Esta aula a que Ruy Ohtake se refere foi publicada no livro Caminhos da Arquitetura, de 2004. Com o título “O desenho”, ela foi fundamental para formar o que hoje entendemos sobre o significado dessa palavra. Artigas explicava que o desenho é uma linguagem, a linguagem do arquiteto, e que dava conta tanto da técnica quanto da arte. Muito embora os dois conceitos, arte e técnica, fossem geralmente entendidos um em contraposição ao outro, ele não acreditava nessa separação e dizia que a técnica era utilizada “para a apropriação da natureza”, e que a arte era “o uso da técnica para a realização do que a mente humana cria dentro de si mesma”. Esse, portanto, seria “um conflito que não separa, mas une”. Porque, se por um lado o desenho é “risco, traçado, mediação para a expressão de um plano a realizar; por outro lado é desígnio, intenção, propósito, projeto humano no sentido de proposta do espírito”. Portanto, para desenhar era necessário desejar, ter algo em mente, projetar. Esse, segundo Artigas, deveria ser o objeto do arquiteto, o que ele deveria aprender e o que poderia ensinar e dispor para a sociedade. No final das aulas, deixava uma pergunta para os alunos: “que catedrais tendes em mente?” 11


SE FORMA ENGENEIRO ARQUITETO VIAGEM AOS EUA

1946

1937 ACONTECIMENTOS GERAIS ACONTECIMENTOS PESSOAIS

1939

1943

CONCURSO COM WARCHAVCHIK

1945

I CONGRESSO BRASILEIRO DE ARQUITETOS

FUNDAÇÃO DO IAB SP


ABERTURA DO CURSO ARQUITETURA NA POLI

FÓRUM 68 REFORMA 62

ABERTURA DA FAU MARANHÃO

VOLTA À FAUUSP AULA O DESENHO

1948

1950 1951

1962

1967 1968

1963

1961

ELABORAÇÃO DO PROJETO DA FAUUSP

INAUGURAÇÃO DO EDIFÍCIO SEDE DO IAB SP

GALPÃO NA MARANHÃO ATELIÊ INTERDISCIPLINAR

1969

1979 1984

INAUGURAÇÃO FAUUSP E CASSAÇÃO CONCURSO PARA PROFESSOR TITULAR

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Vilanova Artigas em foto de 1938.

engenheiro arquiteto João Vilanova Artigas se formou engenheiro arquiteto em 1937, na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Dois anos depois, em 1939, ele participou de um concurso com o Gregori Warchavchik, arquiteto Ucraniano que chegou ao Brasil em meados da década de vinte. Eles projetaram juntos uma proposta para o Paço Municipal de São Paulo. Os jovens arquitetos ficaram em segundo lugar, em primeiro ficou a proposta do conhecido escritório do arquiteto Ramos de Azevedo. Artigas ainda não sabia, mas esse concurso seria crucial para determinar o início da sua carreira no ensino de arquitetura. Luiz Ignácio de Anhaia Mello, na época professor do curso de Engenheiro Arquiteto da Escola Politécnica, viu a proposta apresentada pela dupla e convidou Vilanova Artigas para ser seu professor assistente na disciplina de Estética, Composição e Urbanismo. Para Anhaia Mello, a inserção urbana da proposta era seu ponto alto. O projeto unia a Praça da Sé e a Praça Clóvis Bevilaqua e não considerava o edifício do Paço como uma massa isolada, pelo contrário, o apresentava em relação à cidade e seu entorno.

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Maquete do concurso para Paço Municipal de São Paulo desenvolvido com Gregori Warchavchik, 1939. 17



Detalhe de maquete do concurso para Paço Municipal de São Paulo desenvolvido com Gregori Warchavchik, 1939. 19



Almoço do IAB RJ,1943. Vilanova Artigas está sentado olhando para trás, no lado direito e embaixo.

o arquiteto político Em 1943, foi fundado o departamento estadual do Instituto de Arquitetos do Brasil em São Paulo. Nesta época, O IAB começa a se tornar uma entidade federal com seus diversos departamentos estaduais. O instituto se fortalece cada vez mais e passa a ter uma atuação politizada, como, por exemplo, exigir a libertação de presos políticos e o fim da ditatura Vargas. Ainda não existiam faculdades de arquitetura no país, a primeira abriria em 1945 no Rio de Janeiro, na Faculdade Nacional de Arquitetura. Nesse período, era o IAB que fazia a ponte para as reuniões entre diplomados e estudantes, e os encontros se intensificaram. Eram nesses encontros, que as ideias se tornavam propostas, e os engenheiros arquitetos pensavam um modo de desconectar a arquitetura da engenharia dentro das universidades. Esses arquitetos estava preocupados com questões a respeito do progresso brasileiro, da construção e planejamento de suas cidades, e esses temas não eram encontrados no dia a dia do ensino da Engenharia de Edificações, que tinha um foco bastante restrito na construção de edifícios. Foi o IAB SP que organizou o 1º Congresso Brasileiro de Arquitetos, em 45. Artigas estava muito envolvido nesses encontros e debatia com seus colegas não só a profissão, mas também a questão da defasagem do ensino das universidades em relação às urgências do país. Os encontros, a convivência e o debate foram cruciais para conectar esse grupo de pessoas. 21



Almoço do IAB no Jockey Club em São Paulo,1944. Da esquerda para a direita, em pé: Aldo Ferreira, Hélio Duarte, Jaime Fonseca Rodriges, Rino Levi, Roberto Cerqueira César, Léo Moraes, Abelardo de Souza, Otávio Lotufo, Régis. Sentados: Eduardo Kneese de Melo, Charles Wright, Kurt Lang, João Vilanova Artigas, Franco Kosuta, Cardim Filho. 23



Almoço no edifício sede do IAB SP após sua inauguração, em 1949/51.

O edifício sede do IAB SP na Rua General Jardim foi construído a partir de um concurso interno de projetos financiado pela Caixa Econômica Federal e teve 13 propostas consideradas pelo seguinte júri: Firmino Saldanha (presidente do IAB na época), Oscar Niemeyer, Gregori Warchavchick, Hélio Uchôa e Fernando Brito. Por recomendação do júri, foram selecionadas 3 propostas finalistas e partir da união destas propostas fez-se o projeto final do edifício. Uniram-se então os arquitetos Rino Levi, Roberto Cerqueira César, Abelardo de Souza, Hélio Duarte, Zenon Lotufo, Jacob Rucht, Galian Ciampaglia e Miguel Forte. A equipe misturava arquitetos paulistas e cariocas, profissionais mais experientes e jovens, e de 1947 até 1951, eles conduziram o projeto e construção do edifício dentro do escritório do Rino Levi em São Paulo. Numa espécie de “crowdfunding analógico”, os arquitetos recorreram a um financiamento coletivo para ajudar a terminar construção, interessados aderiram e o dinheiro arrecadado ajudou a terminar a obra em dois anos. 25



Anúncio no jornal dos ganhadores das bolsas da Fundação Guggenheim,1946.

“Uma escola de arquitetura deve estar intimamente ligada com a indústria, com o povo e tudo o mais do país a que serve”. Vilanova Artigas

viagem aos estados unidos Os arquitetos paulistas, formados dentro da faculdade de engenharia, sentiam a urgência de estabelecer as bases para uma faculdade de Arquitetura, que estaria mais próxima dos temas que afligiam os profissionais daquela época. Em 1946, Artigas ganha uma bolsa da Fundação Guggenheim para ir ao Estados Unidos, Ele é enviado por Anhaia Mello com uma missão: a de pesquisar programas de ensino de arquitetura americanos e trazer essa experiência para a criação da faculdade de arquitetura em São Paulo. Em poucos meses nos Estados Unidos, Artigas desiste de buscar nas grandes instituições, como Harvard e MIT, os caminhos para a escola de arquitetura brasileira. Ele concluiu que mesmo essas instituições tinham muitas coisas a melhorar, e saiu em uma viagem de automóvel por aquele país, e, durante mais de um ano, buscou exemplos mais progressistas para se inspirar. Em uma carta que escreveu para seu amigo Oswaldo Correa Gonçalves, em 1946, falou um pouco sobre suas impressões: “As grandes universidades tem colunas por fora e por dentro. São templos por dentro e por fora. E eu, há anos já, venho mostrando banana para os monumentos, e colecionando a opinião dos alunos, dos arquitetos, dos que trabalham”. Neste momento, Artigas forma muitas das bases de seu pensamento pedagógico, ele diz, “o que é mais importante, é como organizar uma escola para nós de maneira que se adapte às nossas possibilidades, ao nosso meio”. E, numa crítica às faculdades brasileiras, ele escreve: “O principal responsável pela precariedade do ensino universitário entre nós é o espírito que o criou. As nossas escolas superiores não têm vitalidade, elas não se transformam nunca; não são autônomas, dependem da politicagem e muito”. E conclui, “Vamos trabalhar meu amigo. É a única solução. Vamos aprender a saber. Quem sabe berra alto e se faz ouvir. Eu estou orgulhoso porque vejo confirmadas aqui uma porção de cousas que andei defendendo aí. Mas ainda precisamos trabalhar muito”. 27



Trecho da carta de Artigas para Oswaldo Correa Gonçalves, 1946.

“Eu queria dizer que, no fundo, as escolas não são os lugares onde o cidadão tira seu diploma, mas são um laboratório de pesquisa sobre o assunto. Sendo assim, elas despertam o interesse não só dos alunos mas também dos profissionais. E o interesse é mútuo.” Vilanova Artigas

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Estados Unidos,1946. 31



Vila Penteado abriga a nova FAU Maranhão,1950.

a primeira escola de arquitetura De volta ao Brasil, Artigas seguiu no seu empenho para a criação da escola de arquitetura da Universidade de São Paulo, que foi reconhecida e fundada em 1948. A escola teve como primeira sede o palacete da Vila Penteado, na Rua Maranhão, em Higienópolis, onde ficou de 1950 até 1969. O Prof. Anhaia Mello era o diretor desta nova faculdade de arquitetura. Nesse período, a FAU Maranhão foi o epicentro das elucubrações do que viriam a ser a reforma de ensino de 1962. O período dos anos 50 até 62 foi muito profícuo. Um esforço enorme foi feito, por muitos arquitetos, com a liderança de Artigas, para desenhar como seria o ensino de arquitetura no Brasil. Um grupo grande de pessoas estava envolvido, dentre elas os arquitetos Carlos Millan, Jean Maitrejean, Rino Levi, Abelardo de Souza e Flavio Motta. Esse era um momento histórico importante, seis escolas de arquitetura haviam sido criadas por todo o Brasil. Na mesma época, se construía Brasília e a função do arquiteto e sua relação com o desenvolvimento do país passou para a pauta do dia. A discussão para a formulação de programas de ensino estava borbulhando, pois até então seus currículos não passavam de um apanhado de matérias trazidas das faculdades de Engenharia e Belas Artes. As escolas de arquitetura haviam herdado parte dos currículos e dos professores dessas duas faculdades, o “que não satisfazia as necessidades desse novo arquiteto que o Artigas vislumbrava”, comenta Jean Maitrejean, amigo e parceiro de Artigas na reforma de ensino. 33


Organograma da reforma do curso de arquitetura para a reforma de 62, 1957. Nele podemos notar a presença do ateliê com metade das horas aula em todos os anos.


“Esse programa amadureceu até 62 e foi um dos mais exuberante e fertilizantes, cheio de brilho e contribuições gigantescas, a minha certamente era a maior de todas. Mas não era isolada, jamais.” Vilanova Artigas

reforma de 62 O que preocupava o professor Artigas era como seria esse “arquiteto brasileiro”. A chamada reformas de ensino da FAUUSP de 1962, se constitue em várias anotações, manuscritos e encontros, que acabariam culminando na definição do programa da faculdade. Rosa Artigas, filha do arquiteto, explica que a reforma foi “uma obra aberta”, e que tinha a pretensão de atuar em três níveis: primeiro, “definir o estatuto da faculdade”, e com isso resolver os problemas burocráticos, para que eles tivessem certa independência da reitoria da universidade; segundo, “ampliar o conceito de projeto”, com a criação do ateliê interdisciplinar; e, por último, estabelecer a periodicidade dos Fóruns, que seriam encontros anuais de alunos, diretores e professores para “discutir, criticar e modificar” os rumos do ensino - se adaptando, desta maneira, às questões atuais do país e do mundo, tendo em vista que o ensino deveria ser algo vivo e em constante transformação. Sobre o conceito do Ateliê, há um texto do arquiteto Carlos Millan, de 1962, que explica o que eles entediam por projeto, e porque acreditavam que essa era a função mais importante do arquiteto. Segundo ele, o Ateliê seria criado para unificar todas as cadeiras de composição, deixando de fora as técnicas e específicas. O conteúdo ensinado ali seria o cerne da profissão, reunido no que foi chamado Departamento de Projeto, onde estão concentrados até hoje as matérias de Projeto de Edificações, Planejamento Urbano, Paisagismo, Desenho Industrial (ou do objeto) e Comunicação Visual. Para Millan, o Ateliê era onde o aluno deveria entrar “em contato com os problemas vivos da arquitetura, da forma mais próxima daquela que os terá como profissionais”. As matérias técnicas estariam então a serviço dos trabalhos do Ateliê, que usaria seus conhecimentos para comprovar teorias e impulsionar pesquisas. Como dizia Artigas, a faculdade deveria “preparar um profissional que acompanhe, ajude, organize e fixe diretrizes para o desenvolvimento industrial brasileiro”. 35



Manuscrito de Artigas com orientações para a reforma de 62 sobre o Desenho Industrial, 1956.

- Preparar um profissional que

Acompanhe Ajude Organize Fixe diretrizes

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o desenvolvimento industrial dos brasileiros

- Traçar esboço histórico do desenho industrial nacional e universal. - Criar um corpo de doutrina próprio que informe as linhas de desenvolvimento de nosso desenho industrial. - Aproveitar nas formas industriais o patrimônio artístico popular e erudito do Brasil. - Concorrer para a formação do espírito de “designer” no brasileiro, marcando a diferença entre o fato arquitetônico e o do objeto industrial.

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Manuscrito de Artigas com orientações para a reforma de 62 sobre o Desenho Industrial, 1956.

- Concorrer para a diferenciação entre “design” e invenção. - Criar uma consciência profissional característica. - O arquiteto contém o “designer”. Nem sempre o “designer” é arquiteto. - Criar consciência de que a funcionalidade da forma implica também no respeito aos métodos de produção industrial. - O desenho industrial tem visão cultural específica. Eticamente serve ao desenvolvimento cultural da indústria de um lado e do consumidor de outro. Não é subalterno aos interesses obscurantistas.

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Manuscrito de Artigas com orientações para a reforma de 62 sobre o Desenho Industrial, 1956.

- Organizar uma bibliografia especializada. - Discutir os problemas da linha em seminários. - O desenho industrial não se confunde com o objeto arquitetônico. Mas também deve destacar-se cada vez com mais clareza dos aspectos da comunicação visual. - Indústria implica em produção em série.

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Manuscrito com Tabela de Orientações Pedagógicas, 1956.

teórica Importância do desenho técnico como linguagem para a realização formal

prática Desenho técnico aperfeiçoado

Objetos ex:

Modelo (sempre)

Fazer

(individual)

Técnico (relevo)

Os métodos de produção industrial como definidores das formas

Equipes pequenas para estudo de métodos de produção

Aperfeiçoamento dos objetos existentes

Relação entre desenho e materiais (desenho de exercício, desenho de máximos)

Resultados de pesquisas de equipes exprimidos individualmente

Projeto de grupo de objetos relacionados a uma só diretriz Ex: jogo de xadrez, conjunto para mesa de escritório.

A forma do ponto de vista estético A função da forma Estudo crítico da origem da forma do desenho industrial

Síntese

Individual

Objetos industriais

O objeto brasileiro Um patrimônio formal 43



Croquis de Artigas para o projeto da FAU USP, 1961

“Só o Artigas poderia fazer.” Paulo Mendes da Rocha

projetar uma nova escola Em paralelo com a elaboração das propostas pedagógicas para a reforma de 62, começaram os movimentos para a construção do edifício da FAU USP na Cidade Universitária. “Estávamos todos reunidos na sala do Anhaia, discutindo quem iria fazer o projeto e, por unanimidade, elegemos o Artigas”, conta Pedro Paulo de Melo Saraiva, na época professor assistente de Artigas. “só ele desenhar definitivamente aquilo, com aqueles horizontes espaciais”, completa Paulo Mendes da Rocha, que também era seu assistente. Nada mais justo. Afinal, para se projetar o edifício tinha-se que conhecer o programa, o que seria feito dentro dele, como ele seria utilizado. E quem melhor que o Artigas poderia ter isso em mente? Ele projetou e construiu o prédio da FAU USP tal qual seu sonho de ensino. Uma praça central coberta, com acesso livre e franco, para congregação dos alunos e dos professores; a biblioteca, que define e delimita essa praça; as rampas, que permitem o encontro e incluem o passeio, a conversa e a contemplação dentro do próprio edifício de estudo; o último andar, resguardado e protegido pela altura, mas ao mesmo tempo aberto, com os ateliês integrados; e a cobertura, que deixa entrar a luz, como se todos estivessem estudando embaixo de uma grande árvore. O edifício da FAU USP é um manifesto em concreto de todos seus pensamentos mais profundos em relação à arquitetura, à profissão de arquiteto e sua função dentro da sociedade. Artigas ia embalado por um movimento social e nacional, essa era a época das Reformas de Base que não tinham sido emplacadas durante o governo do Juscelino Kubitschek, e estavam sendo tocadas, a partir de 61, pelo então presidente João Goulart. As “reformas” contemplavam a reforma fiscal, urbana, administrativa, agrária e universitária, e previam a necessidade de modificações na Constituição para solucionar conflitos, principalmente os relacionados à posse de terras. Os movimentos populares e grupos de esquerda se fortaleciam, ao mesmo tempo em que enfrentavam uma forte resistência dos setores mais conservadores do governo. 45



Croquis para o projeto da FAU USP, 1961.

Neste desenho vemos a preocupação do Artigas com a distribuição das atividades de ateliê, pesquisa, auditório, exposições e oficinas e proximidade destas funções com a biblioteca. O espaço de modelagem também ganha protagonismo. O projeto vai sendo pensado em relação ao esquema curricular.

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Croquis para o projeto da FAU USP, 1961

Este croqui mostra uma ideia para a planta da área de estúdios, além de uma perspectiva desta mesma área, com divisória e um pé direito de 4,5m. No desenho ele se faz uma pergunta: aulas teóricas dentro do ateliê?

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Ateliê de projeto construído na FAU Maranhão,1963.

“A eficácia de seu discurso era movida pela paixão, pela angústia que ele tinha de transmitir conhecimento” Paulo Mendes da Rocha

o ateliê da maranhão O grupo envolvido no desenvolvimento do programa pedagógico da Reforma de 62 pôde experimentar pela primeira vez, na prática, o funcionamento do ateliê. A partir de 63, os professores começaram a dar aulas num galpão improvisado no terreno da FAU Maranhão. Era aqui que Vilanova Artigas ministravas suas aulas inaugurais e foi aqui que, em 67, ministrou sua aula intitulada “O desenho”. O professor Artigas “trouxe para a nossa profissão uma consciência social, cultural e tecnológica muito importante”, diz, em depoimento, Pedro Paulo de Melo Saraiva. Ele, junto com Paulo Mendes da Rocha, foi chamado por Vilanova Artigas para ser seu professor assistente. “Poxa, Artigas, dois caras do Mackenzie?”, perguntaram seus colegas, com algum espanto. Os dois jovens arquitetos aceitaram o convite e Paulo Mendes da Rocha percebeu “a oportunidade de fazer uma segunda faculdade de arquitetura”. Sobre o professor Artigas, Paulo Mendes relata: “a eficácia de seu discurso era movida pela paixão, pela angústia que ele tinha de transmitir conhecimento”. E Jean Maitrejean completa o cenário, “ele entusiasmava os alunos, dizia que tudo devia ter um desenho, um projeto, e que isso estava na mão dos alunos. Nós em pouco tempo éramos, com nossa régua T e sem cavalo, Dom Quixotes que defendíamos a arquitetura moderna”. 51



Prancha de anotações de Artigas para o Fórum de1968. Projeto como principal tema, e os 4 sub grupos: Comunicação Visual, Desenho Industrial, Edificações e Paisagem.

fórum de 68 O Fórum de 68 foi o primeiro fórum da FAU USP, feito com a primeira turma que acabava de se formar, pós reforma 62. Na reforma estava previsto que os fóruns aconteceriam de 5 em 5 anos. Neles todo o rumo da faculdade deveria ser debatido e revisto. No debate deviam estar os professores, diretores, alunos e funcionários da faculdade. O fórum era a instancia mais democrática, e foi estabelecida para que todos pudessem ter voz. O principal tema defendido por Artigas e seu grupo, desde as formulações dos anos 50, e que guiou o novo currículo para a faculdade de arquitetura de São Paulo, era a importância do projeto e do desenho. Desde lá até o fórum, porém, um grupo liderado pelo arquiteto Sérgio Ferro, que havia se formado em 62 e chamado para ser professor da FAU USP pelo próprio Artigas, contestava este conceito. Este grupo, depois denominado como Arquitetura Nova, questionava a importância dada ao projeto, considerando que ele era uma ferramenta opressora e elitista, de controle e poder. Eles faziam parte de uma esquerda radical que acreditava que o arquiteto deveria sair de sua mesa de projeto e se aproximar mais do canteiro de obras. A partir desse pensamento, se desenvolveu movimento de mutirões de construção. O fórum foi feito às pressas, pois o cenário político nacional endurecia a cada dia que passava, e o grupo de arquitetos em defesa de mudanças e da democracia, principalmente os comunistas como Vilanova Artigas, começavam a ser cada vez mais coibidos em suas liberdades. Desde março 64, o Brasil vivia sobre o Regime Militar, no início pensou-se que o golpe poderia ser mais brando, e grandes parcelas da sociedade o apoiaram. Mas, com o passar dos anos, declarações abertas em prol da democracia ou pensamentos mais à esquerda eram cada dia mais mal vistos. 53



Prancha de anotações para o Fórum de1968.

Uma das nove pranchas apresentadas por Artigas, esta falando sobre o tema Construção. Ela busca esquematizar e organizar as horas livres dos professores no Ateliê Interdepartamental, que serviria com um lugar para pôr em prática os aprendizados das diversas disciplinas, com os alunos sendo orientados por professores de diferentes áreas.

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Prancha de anotações para o Fórum de1968.

Prancha com considerações sobre o vestibular. Para Artigas, o vestibular era de extrema importância para determinar quais eram os conhecimentos que importavam na faculdade de arquitetura. Ele escreve: “Parece que agora (o vestibular) pode começar a ser consequente! O conhecimento trazido de seu programa deve ser o “útil” para a FAU, não um teste mais ou menos.”

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Inauguração do edifício da FAU USP, 1969.

“Educa-se o jovem arquiteto para sair da escola com uma visão de mundo.” Vilanova Artigas

inauguração da FAU USP Com apreensão e alegria, o arquiteto Vilanova Artigas levanta na manhã do dia 03 de fevereiro de 1969 e vai às pressas inaugurar o novo edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Cidade Universitária. No mesmo dia acontecia o primeiro vestibular no novo edifício. Nessa época, cada faculdade coordenava seu próprio vestibular, e eram os professores do curso que acompanhavam os vestibulandos. Sem nenhuma pompa ou formalidade o edifício começou a funcionar e uma mudança foi feita da “FAU velha”, na Maranhão, para a “FAU nova”. Na revista Monolito sobre o tema, Fernando Serapião escreve: “Um caminhão subiu a rua da Consolação e desceu a Rebouças apinhado de caixas e estudantes na boleia. Amarrada atrás do veículo, uma faixa zombeteira comunicava a transferência: ‘Mamãe está feliz que eu vou pra CU’, com letras pequenas explicando a abreviação de Cidade Universitária”. 59



Inauguração do edifício da FAU USP, 1969.

“Doutor, por dentro é uma maravilha, mas por fora é uma furtaleza.” mestre de obras português

Acompanharam o Artigas, nesta primeira visita oficial, além dos embasbacados vestibulandos, o médico Helio Lourenço de Oliveira, reitor em exercício da USP, e os professores Gian Carlo Gasperini, Jon Maitrejean e Siegbert Zanettinni.

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“Eu queria fazer um prédio que não tivesse a menor concessão a nenhum barroquismo.” Vilanova Artigas

“Para este edifício se rebate, se projeta uma soma de ideais que, se eram meus, pessoais, eram também tudo aquilo que nós pensávamos que a arquitetura brasileira tinha que representar no processo gigantesco que era o fim da segunda guerra.” Vilanova Artigas

Inauguração do edifício da FAU USP, 1969. 63



Notificação de aposentadoria compulsória, 1969.

“Eles tinham opiniões do uso da liberdade que não coincidiam com as ideias que nós apoiávamos.” Vilanova Artigas

silenciamento Menos de três meses após a inauguração do edifício da FAU USP, em abril de 69, Artigas foi forçado a se aposentar de seu exercício de professor da universidade, com base no Ato Constitucional nº 5, redigido pelos militares no final de 68. Junto com ele mais dois professores, Florestan Fernandes da sociologia e Jayme Tiomno da filosofia. O Ato chegava para endurecer de vez a ditatura militar e foi utilizado para ignorar diversos pontos da constituição além de fechar o Congresso Nacional. O então reitor da USP, Hélio de Oliveira, protestou contra a determinação, utilizando-se do argumento de que a universidade estadual estava fora da gerência federal. Luís Antônio da Gama e Silva, ministro da justiça e redator do AI-5, respondeu a este protesto com o afastamento não só do reitor, mas de mais 23 professores da USP, entre eles o Paulo Mendes da Rocha e Jon Maitrejean. Tudo que havia sido trabalhado até aqui, tanto esforço, de tanta gente, desde os anos 50, com o desenvolvimento de uma matriz pedagógica, o fortalecimento da profissão nos órgãos e institutos, a construção do prédio, talvez mais ousado do mundo naquele momento em termos de direcionamento politico e conceitual, tudo, foi abruptamente paralisado, calado. Vilanova Artigas ficou dez anos sem por os pés na FAUUSP. 65



A volta dos cassados, 1979. Nessa foto se vê Artigas no centro, Paulo Mendes da Rocha à sua direita e Jon Maitrejean à sua esquerda, e no canto da foto, fumando uma cigarro, Pedro Paulo de Melo Saraiva. No fundo, próxima ao pilar está sua filha, Rosa Artigas.

a volta dos cassados A anistia política veio no início de 1979, no governo de Ernesto Geisel. No primeiro dia deste ano, todas os atos institucionais foram revogados. Os alunos e professores da universidade começaram a se articular para trazer de volta os professores que haviam sido cassados. “Os dirigentes do grêmio pressionaram o diretor Lucio Grinover, que os aconselhou a criar um fato político. Os alunos recuperaram desenhos antigos da FAU para montar uma exposição e convidaram os professores cassados para a abertura”, esclarece Fernando Serapião. Essa exposição foi chamada de Exposição dos Riscos Originais da FAU USP, organizada por alunos, teve uma publicação coordenada por Roberto Portugal Albuquerque. Ironicamente, o edifício da FAU USP recebeu diversos prêmios durante os dez anos de afastamento de Artigas da universidade, e a fascinação entorno do edifício e sua história só aumentou. A tensão era evidente tanto para Artigas, quanto para os alunos e professores que o esperavam. O dia em que “o velho” voltou a faculdade que ele havia ajudado a criar foi um dia bastante emocionante e lotado de alunos. No período que Artigas ficou fora da universidade o debate entorno da função do arquiteto na sociedade empobreceu, o projeto foi deixado de lado, “formou-se bailarinos, cenógrafos, cineastas, escritores, enfim, tudo, mas poucos arquitetos”, conta Fernando Serapião. O professor voltava para outra FAU USP, o pós modernismo e visões mais radicais contrapunham seu ideal do arquiteto brasileiro. “O caminho que nós indicamos certamente não é absoluto. Mas é preciso querer contribuir para que ele se aperfeiçoe. Percebe? Querer contribuir. Esse é o caminho. Venham!”, sinalizava Vilanova Artigas. 67



“Em contato com a Faculdade de Arquitetura, qualquer coisa renasce em mim.” Vilanova Artigas

Palestra na exposição dos Riscos Originais da FAU USP, 1979. 69



Seminários de Estudos dos Problemas Brasileiros, princípio dos anos 80.

os seminários Artigas pôde voltar à faculdade como professor assistente. Durante os dez anos que ficou fora os outros professores haviam feito pós-graduação na própria FAU USP. “Com direitos adquiridos em jogo, a Congregação resistiu em aceitá-lo em posição de igualdade. Convocaram-no para ser professor de Estudos de Problemas Brasileiros”, explica Serapião. Esta foi uma das aulas obrigatórias impostas pela Reforma Universitária ocorrida durante a ditadura, um equivalente às aulas de Educação Moral e Cívica do ensino fundamental. Ele aceitou a provocação e usou o espaço dessa aula, que era considerada menos importante dentro da faculdade, para fazer seminários para os quais chamou muita gente outras áreas para falar. A ideia foi reviver um debate aberto de ideias e possibilidades, e, mais uma vez, retomar a discussão democrática e politizada de Brasil, embalados pelo amolecimento do governo militar. Participaram dessa aula figuras como Juca de Oliveira, Paulo Evaristo Arns e Severo Gomes. Os alunos estavam sempre presentes, preparavam os debates e participavam da sua organização, eles lotavam essas aulas. Mais uma vez, outra leva de jovens estudantes pode vivenciar a eloquência e vivacidade do agora, já velho, Professor Artigas. Os jovens se apinhavam sentados nas cadeiras, no chão e ficam de pé olhando por cima das divisórias. “Isso que é arquitetura, agora eu entendi o que eu estou fazendo aqui”, lembra Celso Pazzanese, de quando ouviu Artigas falar pela primeira vez. Anos depois, o Pôla, como é mais conhecido, ajudou a fundar a Escola da Cidade, em São Paulo. 71



SeminĂĄrios de Estudos dos Problemas Brasileiros, princĂ­pio dos anos 80. 73



Arguição do concurso para tornar-se professor titular da FAU USP, 1984.

“Havia um ar imantado, uma atmosfera quase religiosa, psicológica, existencial.” Carlos Guilherme Mota

uma molecagem medieval A história do professor Artigas encerra com um ato que pode ser considerado tragicômico. Ele teve que prestar concurso para poder ser reconhecido como professor titular da faculdade que criou, já que a Convenção Universitária votou contra seu pedido de professor Onoris Causa, posição que já era sua antes da ditatura. “Uma molecagem medieval”, como definiu o próprio Artigas. Ele acabou encarando o concurso como uma espécie de missão que precisaria enfrentar - se não por ele, por seus alunos, Muito preocupado, estudou incessantemente todos os assuntos que poderiam cair na arguição, e o tema sorteado foi: a função social do arquiteto. Este tema caiu como uma luva e Artigas falou, dentre muitas coisas. sobre a arquitetura ser uma arte com finalidade, o que a torna obrigatoriamente social. Ele diz, “gostaríamos que a problemática social pudesse contar com a arquitetura como um instrumento capaz de fazer as mudanças necessárias para o nosso país inteiro”. Quem esteve nesta arguição, em 1984, presenciou um momento histórico, como descreve o professor e historiador Carlos Guilherme Mota, convidado para fazer parte da banca de Artigas: “havia um ar imantado, uma atmosfera quase que religiosa, psicológica, existencial”. Em uma entrevista após a banca Mota declara: “este concurso mostra a universidade corporativista que aí está, e torna evidentes as contradições da USP”. Uma plateia de mais de 300 pessoas assistiu à aula de Artigas, que encerrou sua jornada pelo ensino da arquitetura com uma história às avessas. O fim de sua atuação no ensino foi quando finalmente ganhou a patente de professor titular desta universidade pós ditatura, que afogou muitos sonhos e fez nascer tantos outros que ainda estamos por concretizar. Vilanova Artigas morreu seis meses depois do concurso. 75



Banca de professores examinadores do concurso, 1984.

“Falo isso a vocês como quem apela à juventude para ter a sensibilidade de fazer com que cada um de seus edifícios, por mais modestos que possam ser, tenha uma coisa a dizer, com os tijolinhos empilhados, com a simplicidade do fato de construir.” Vilanova Artigas

Participaram da arguição os professores (da esquerda para a direita): Flávio Motta, José Arthur Giannotti, Eduardo Kneese de Mello, Carlos Guilherme Mota e Milton Vargas. A arguição de Flávio Motta foi, sem dúvida, a mais emocionante. Ele vai ao quadro negro e desenha o pilar da FAU USP e escreve a frase de Perret: “É preciso fazer cantar o ponto de apoio”. Sempre em reverência ao mestre que ele deveria analisar, ele confessa, “Todos aqui somos seus alunos. Estudantes, nós somos estudantes”. 77



Arguição do professor Flávio Motta, 1984.

reflexões finais A sensação é que formulações pedagógicas que o grupo de Artigas desenvolveu durante muitos anos, nunca chegaram a ser implantadas, pelo menos não completamente. Já que eles tiveram somente o curto período entre 62 e 68 para testar algumas ideias e convicções, antes que a universidade fosse tomada pelos militares. O prédio da FAUUSP, que continha em sua raiz todas as intenções de um Brasil livre e moderno, nunca teve a chance de servir a estes ideais. Podemos pensar que os que passaram por ali, naqueles anos, puderam experimentar esses conceitos traduzidos no espaço, que não era possível calar. Podemos pensar que, após a ditadura, os ideais democráticos foram retomados. Mas há grandes evidencias que a universidade, principalmente a USP, nunca conseguiu se livrar da histórica reação conservadora e do carreirismo que se instalou ali como consequência. A contribuição de Vilanova Artigas para o ensino da arquitetura é tão intrínseca que mal conseguimos separar os fatos históricos de sua vida pessoal. Muitas das coisas que foram elaboradas nestes anos em que atuou como professor, fazem parte do cotidiano de todos os arquitetos brasileiros, estudantes ou formados até hoje. Mas, neste momento, o que mais sentimos falta é dessa visão de mundo. Foi o que o professor nos ensinou em vida: convicção, paixão, intenção e vontade para encontrar soluções para os problemas. Esse mergulho que demos na história do Artigas Educador tem como objetivo acender novamente essa chama que ele insistia em ser: “A arquitetura brasileira deve ter um compromisso com a problemática social”. A ideia com esta reflexão não é museificar o professor Artigas, pelo contrário, mas trazê-lo para os dias de hoje, numa tentativa de atualização de seu discurso. Como disse Carlos Guilherme Mota, em uma palestra ministrada recentemente no seminário de cultura da Escola da Cidade, “Nesses tempos de mediocridade avançada, é bom voltar às referências, e reconstruir uma genealogia intelectual”. Pois vamos lá! Fiquemos então com a pergunta: que escolas tendes em mente? 79



“Eu deixo o problema na vossa mão, trata da juventude pegar essa convicção dos problemas que tem que resolver e encontrar a solução para eles.” Vilanova Artigas, durante sua última entrevista antes de morrer.

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anexos Carta de Artigas a Oswaldo Correa Gonรงalves, 1946. Proposta de 1957.

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CARTA DE ARTIGAS A OSWALDO CORREA GONÇALVES (grifos do autor) N York, dez, 27. 1946 Caro Oswaldo, Acabo de receber sua carta. Apresso-me a responder, porque ela trouxe-me algumas noticias que eu precisava. Você diz que eu provavelmente estou aproveitando a viagem. Eu diria que estou antes sofrendo a viagem. Porque as diferenças entre o que vejo e o que há entre nós fazem sofrer, muito antes de gozar. E isso pela simples razão de no Brasil não haver “espírito público”, senso de comunidade de maneira alguma. Agora, só agora começa a aparecer algum espaço coletivo, e nós precisamos aproveitar esse ensejo, custe o que custar; o segredo está na luta em conjunto, na luta organizada, de todos nós para um mesmo fim, mesmo que os nossos pontos de vista individuais divirjam, como sempre acontece. Isso é razão elementar de democracia. Mas eu já estou escorregando para longe do que eu queria dizer. Vou contar a você, para que todos saibam evidentemente, o que tem sido esses três meses de estadia aqui. Na chegada eu trazia uma porção de informações e uma porção de nomes de sujeitos para procurar; é a pior coisa que pode acontecer se agente não consegue escapar da linha traçada pelos outros. Cedo descobri que nem sempre, ou quase nunca, os nomes da proa representam conteúdo. E assim, me mandaram para Boston, para que eu visse de perto e “estudasse” nas duas grandiosíssimas organizações universitárias dos EUA, Harvard e o MIT. O plano inicial feito para mim, por gente de boa vontade não há dúvida nenhuma, consistia em 5 ou 6 meses de estadia em Boston, na pesquisa de métodos para a arquitetura moderna, ensino, etc...Quase fiquei louco e com um esforço lento, consegui sacudir a carga de cima das costas como um burro bravo. Um mês depois larguei tudo porque eu tinha certeza que a turma não estava completamente certa e alguma coisa de novo deveria existir aqui. As grandes universidades têm colunas por fora e por dentro também. São templos por dentro e por fora. E eu, há anos já, venho mostrando banana para monumentos. E venho colecionando a opinião dos alunos, dos arquitetos, dos que trabalham, da turma das revistas, etc.Como você vê vou começar agora um caminho novo, e que tem se mostrado riquíssimo e prometedor. Não posso evidentemente dizer aqui nesta carta o que é, mas um ano não demora muito. E mesmo se eu dissesse agora podia isso não ter proveito porque, inclusive, reservo-me o direito de mudar de opinião. Daqui a alguns dias vou viajar para o sul, para ver umas escolas progressistas que existem por lá, e vou depois a Los Angeles e São Francisco. Se nós mantivermos contato, o que depende tão somente de você, tentarei mantê-lo informado mais de perto do que está se passando. Por agora vi as universidades de Boston e de Columbia, aqui em N. York. Mas vi também um grande número de escolas livres, e algumas de grande importância. E conversei com gente que traça planos, gente que já ensinou e gente que sabe agora, o que deveria ter aprendido e de que maneira. Só mais tarde, bem mais tarde, poderei fazer um resumo da situação e das vantagens e desvantagens, quando tiver visto tudo. Agora passo a dizer o que eu posso em relação ao que você contou na sua carta. 85


Agora passo a dizer o que eu posso em relação ao que você contou na sua carta. Em primeiro lugar não estou certo se eles estão interessados na nossa Escola. É muito mais necessário que nós estejamos interessados. Já mandei há mais de um mês todo o material que eu pude colecionar a respeito das universidades, para o Dr. Anhaia. Com algumas anotações e sem procurar forçar. Ele recebeu já por certo. 2o) Não preste a mínima atenção no programa estabelecido pelo pessoal do Rio. É simplesmente ridículo e superficial. Tremendamente. Quanto mais longe daquilo, nós ficarmos, melhor. 3o) E muito importante. Quando eu estava no Brasil, o Neves me contou que eles estavam procurando levar para a escola de arquitetura os velhos professores que saíram da Politécnica por ocasião da lei de desacumulação. Você sabe: - o Machadão, o Belezinha (Lisandro), etc. Isso não tem importância, eles poderiam até servir. Mas o Neves me disse que eles achavam que, para a escola de arquitetura, qualquer professor serviria – para as cadeiras tipicamente técnicas porque arquiteto não precisa conhecer muito isso. É errado. Exatamente o contrário deve ser o nosso ponto de vista. Para a nova Faculdade, o melhor. Insisto nisso, Oswaldo, porque do tipo de ensino dessas cadeiras básicas, vai depender todo o curso. Mantenha silêncio sobre isso e veja se o nosso pessoal apóia. Mas não critique o pessoal da escola por isso, senão eu vou passar mal depois. Mas o nosso slogan deve ser: para a Escola, o melhor. 4o) Eu não posso contar ou influir por carta o Anhaia por agora. A realidade é que eles não sabem bem o que fazer. Eu mesmo só vou saber depois que eu completar os estudos que eu estou fazendo. Nós poderíamos copiar a organização da Harvard ou MIT (foram as informações que eu mandei pro Anhaia). Mas eu tenho visto que mesmo elas são bastante criticadas aqui. E além do mais é preciso considerar as condições brasileiras. Uma escola de arquitetura deve estar intimamente ligada com a indústria e o povo e tudo o mais, do país a que serve. Evidentemente ainda é cedo para eu chegar a uma conclusão sobre a relação entre o meio aqui e as escolas. E o que é mais importante, como organizar uma escola para nós de maneira que se adapte às nossas possibilidades, ao nosso meio. E para concluir: eu não quero, nem posso ter o privilégio da verdade sobre o assunto, vamos discutir e brigar sobre isso mais tarde. É o caminho mais democrático e o mais sábio. De antemão posso dizer-lhe que o nosso atraso não tem medida com as unidades do tempo que eu conheço. Às vezes, tenho vergonha de responder perguntas por aqui. Mas tenho dito a verdade, muito embora o sangue pretenda escapar pelos cabelos. 5o) Não tenhamos ilusões sobre o apoio que os reacionários brasileiros nos poderão prestar. Eles vão reagir, eu sei. E não será em três meses que a escola começará a funcionar direito. A culpa também não cai sobre os responsáveis imediatos da Escola. O principal responsável pela precariedade do ensino universitário entre nós é o espírito que o criou. As nossas escolas superiores não têm vitalidade, elas não se transformam nunca; não são autônomas, dependem da politicagem e muito. E depois a coisa bárbara de os professores serem catedráticos e vitalícios. Eles envelhecem e morrem na cátedra; suam velhice nas barbas da gente. Já aqui, uma organização universitária pode mudar a rota da noite para o dia. É só despedir meia dúzia de professores e contratar novos que no mês seguinte a escola exibe os mais tentadores programas. E isso não é conversa fiada não. Eu venho de presenciar isso no MIT.


Os nomes publicados no catálogo do ano passado já não representam nada hoje. E eram uns nomes pesados, pesadíssimos. Quando eu vi o catálogo em N. York, por ocasião da chegada, estremeci. Mas lá, a revolução estava se processando. A sala de desenho a mão livre e aquarela a cargo de um “Ranzini” americano qualquer, estava sendo arrasada. E o termo é esse mesmo: arrasada. Eles acabaram de contratar um rapaz de Chicago, que por sinal é o melhor, e quase o único bom elemento no MIT. E não se perde tempo, nem precisa de aquarela. A sala se transformou num laboratório fotográfico (não é bem isso, mas é o melhor termo que eu encontro em português para definir o laboratório) onde se começa agora a estudar cor, “visual design”, composição com elementos abstratos e uma porção de outras coisas. É quase um laboratório de pesquisa sobre cor, forma e espaço. Um outro ponto em que eu queria tocar, com referência a escolas, é sobre a importância que elas podem ter na vida profissional. Aqui, começa agora, uma espécie de revolução nesse sentido. Bem visível para mim. Em resumo, todo mundo colabora. Por intermédio de conferências para os alunos, feitas por arquitetos de fora, eles ficam ao par, até dos defeitos das suas próprias escolas. E as conferências são objetivas e têm a intenção de ajudar. Não como no Brasil que o sujeito lê um pedaço de papel onde ele arranjou umas frases bonitas. Ninguém lê as conferências. Todo mundo diz o que realmente sabe , sem citar trechos de grandes autores e nomes que ninguém sabe se existem. As conferências em suma, não são os chatíssimos trabalhos de compilação que nós conhecemos no Brasil. Aqui o cidadão sobe no estrado e diz o que sabe, brutalmente às vezes, tal é a sinceridade de alguns; e todo mundo se interessa, e as opiniões são diversas, e o país progride. Mas escapei um pouco. Eu queria dizer que, no fundo, as Escolas não são os lugares onde o cidadão tira um diploma; mas são um laboratório de pesquisa sobre o assunto. Sendo assim elas despertam o interesse não só dos alunos, mas também dos profissionais. E o interesse é mútuo. Não quero dizer que todas as escolas sejam assim e que a coisa esteja se realizando como eu digo acima: pretendo só definir o espírito que está revolucionando as escolas aqui neste momento. E mostrar a vantagem de elas serem laboratórios que acidentalmente ensinam o assunto a que se dedicam .Por exemplo: o MIT tem uma série de arquitetos que estão estudando pré-fabricação. Eles não ensinam, não são professores: estão numa espécie de laboratório estudando e organizando a experiência que os outros precisam. Quando alguém precisa uma informação, vai à escola para ver se encontra lá. E quando eles podem, publicam o que descobriram também. Que contraste com a nossa universidade, não? O reitor para construir a cidade, veio para os EUA acompanhado de um filho menor de idade e um engenheiro eletricista, ao mesmo tempo em que mandava um fotógrafo de uma escola de dentistas para ver o que se poderia copiar do Chile. E a nossa escola de arquitetura na Politécnica não foi consultada muito justamente porque não tinha autoridade para nada. Absolutamente nada. Vamos trabalhar meu amigo. É a única solução. Vamos aprender a saber. Quem sabe berra alto e se faz ouvir. Eu estou orgulhoso porque vejo confirmadas aqui uma porção de cousas que andei defendendo aí. Mas ainda precisamos trabalhar muito. Abraços a todos A. 87



ENSINO DE ARQUITETURA NA FAUUSP - PROPOSTA DE 1957

Relatório da comissão composta pelos professores João Vilanova Artigas, Rino Levi, Abelardo de Souza, Helio Duarte: O ensino da arquitetura constitui um problema de certa complexidade no mundo contemporâneo. Um exame superficial dos debates em curso nas principais organizações universitárias em torno dos critérios dentro dos quais formar arquitetos evidencia nitidamente que há um sério desajuste entre os “curricula” universitários e a vida profissional do arquiteto. As causas fundamentais desse desajuste, em nossa opinião, não repousam inteiramente no processo de instruir os profissionais. Elas terão suas raízes mais além, dentro da própria organização da sociedade e dos conflitos entre a técnica e a arte contemporâneas. Entretanto é inegável que na procura da integração do arquiteto à sua missão social, um papel preponderante cabe às organizações de ensino e preparação de profissionais. No Brasil temos pouca experiência de ensino da arquitetura; pouco temos feito para a criação de métodos mais consentâneos com o nosso desenvolvimento. Agora, com a necessidade de enfrentarmos um progresso emancipador, aparece o arquiteto brasileiro como fator indispensável no conjunto social que se modifica rapidamente. Os sucessos da arquitetura brasileira, de outro lado, despertaram a atenção do mundo civilizado para o nosso país, o que implica em maior responsabilidade no sentido de manter o prestígio que desfrutamos. Se temos pouca experiência e pouca tradição no ensino da arquitetura, em compensação estamos menos comprometidos com métodos hoje mundialmente considerados antiquados e contraproducentes. Convém frisar que temos todas as condições para iniciar um novo ciclo de experiências em torno do ensino dentro de um espírito mais evoluído, longe das limitações características de um tradicionalismo que só à primeira vista é difícil de romper. É chegado o momento de fazer desaparecer a confusão que ainda existe entre as carreiras do engenheiro e do arquiteto. Este vício de origem tem raízes profundas. Para não irmos muito longe, basta uma vista de olhos no decreto 23 569 que regulamenta o exercício das duas profissões. No ensino da arquitetura esse espírito se reflete no vezo de adaptar os curricula das escolas de engenharia ao invés de criarmos métodos próprios e originais explorando o rico repositório de informações que a experiência universal nos oferece. Para a formação do arquiteto as disciplinas de caráter técnico servem para informação tanto quanto as disciplinas históricofilosóficas. A missão do arquiteto, no entanto, é mais complexa. Dele se exige algo mais, isto é, uma síntese, uma visão unitária do mundo contemporâneo e da sociedade em que vive, que envolva e dê expressão às estruturas de toda a sorte. 89


Do arquiteto se exige uma soma de conhecimentos que tanto quanto possível possa lhe fornecer os meios para desempenhar com segurança sua missão exprimindo o grau de desenvolvimento cultural da sociedade em que vive. Não é por outra razão que se encontra nas programações das escolas estrangeiras mais progressistas uma insistência sobre a expressão “arquiteto integral”, particularizando para ele uma visão universal e única do mundo que o envolve. Walter Gropius, que dos grandes arquitetos contemporâneos é talvez o que maior contribuição tem dado para o esclarecimento desses conceitos assim se exprime: “o arquiteto é um coordenador cuja missão é unificar os numerosos problemas sociais, técnicos, econômicos e plásticos inerentes à construção”. E sobre o ensino em particular: “o campo de ação do aluno deve ser universal e não fragmentário, compreendendo todos os conhecimentos e a experiência real”. A nossa escola tem todas as condições para aproximar-se dessas aspirações conservando mesmo o conjunto de disciplinas que constam do curso atual, sem maiores mudanças que se afastem da atual estrutura federal de ensino. O próprio quadro de professores da escola, a nosso ver, não precisa de modificações, a não ser em número, que os que temos são poucos, principalmente no atelier de composição, para atender as suas variadas exigências. O quadro de professores que dispomos é composto de elementos experimentados, habilitados técnica e culturalmente para o desempenho do ensino da arquitetura. O que mais nos falta, talvez é uma maior integração de todos os valores em uma equipe harmônica e convicta das possibilidades que realmente temos de dar um passo à frente na solução da missão que assumimos. O espírito de colaboração existe em alto grau. Esta é uma convicção que se firmou em anos de convívio e que se reforçou nos frequentes contatos que tivemos com a totalidade dos professores que conosco discutiram o programa de ensino que hora apresentamos. Este programa, portanto, não representa opiniões individuais ou de um pequeno grupo, mas o produto de laborioso estudo para o qual todos contribuíram. O programa proposto define a orientação que se pretende dar ao ensino da arquitetura na nossa escola. Achamos oportuno dar à Composição a importância que a mesma tem no exercício da profissão. Assim, nos parece acertado colocar o atelier em posição de destaque e fazer convergir para ele todas as disciplinas do currículo. Algumas disciplinas que figuram no atual programa da escola e que não foram incluídas do programa proposto seriam enquadradas no atelier. A organização e o funcionamento do atelier, em nossa opinião, deverão apresentar estrutura flexível, adaptando-se cada vez mais às necessidades dos trabalhos programados pelos professores.


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Em agradecimento à família Artigas: Marco, Laura e Rosa, que disponibilizaram seu tempo e memória. Sem eles este trabalho não teria sido possível.

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bibliografia Artigas, João Batista Vilanova. Caderno dos riscos originais: projeto do edifício da FAU-USP na Cidade Universitária. Coord. Roberto Portugal Albuquerque. São Paulo: FAU-USP, 1998. Artigas, João Batista Vilanova. Caminhos da arquitetura. Organização José Tavares Correia de Lira, Rosa Artigas, inclui A função social do arquiteto. São Paulo: Cosac Naify, 2004. Guimarães, Maria da Conceição Alves. Parecer de tombamento do edifício sede do Instituto de Arquitetos do Brasil, departamento de São Paulo, nº 1732-T-15. Instituto do Patrimônio Histórico e artístico Nacional – IPHAN. Rio de Janeiro, 2015. Millan, Carlos Barjas (Coord.). O ateliê na formação do arquiteto. São Paulo: FAU-USP, 1962. Naruto, Minoru. Repensar a formação do arquiteto. Tese de doutorado. São Paulo: FAU-USP, 2006. Sinopses Memória. Revista. São Paulo: FAU-USP, 1993. Edição Especial. Vilanova Artigas e a FAU/USP. Editor: Fernando Serapião. Revista Monolito, nº 27. São Paulo, 2015. Vilanova Artigas: arquitetos brasileiros. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi: Fundação Vilanova Artigas, 1997. Filme: Vilanova Artigas : Espaço e programa da FAU, 1978. Dir. Eduardo Jesus Rodrigues e Fernando Frank Cabral. Filme: Vilanova Artigas : O arquiteto e a luz, 2015. Dir. Laura Artigas e Pedro Gorski. + vilanovaartigas.com dearquiteturas.com 95



por ursula

troncoso

atelienavio.com

[AES] ARQUITETURA, EDUCAÇÃO E SOCIEDADE Curso de pós graduaçao da Escola da Cidade São Paulo, 2016.



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