Revista Conceitos - Edição 15

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chamas da fogueira e, por último, os jogos fúnebres (agones epitáfioi). Trata-se, sem dúvida do relato das exéquias de um príncipe. Mas, tudo ocorre como se Pátroclo estivesse presente, como se sua alma não estivesse longe do lugar dos sacrifícios. Nada nos faz pensar que são cumpridos aqui apenas deveres piedosos relativos ao morto, testemunhando unicamente a dor dos sobreviventes, como seria o caso numa sociedade para quem não existe vida pós-morte e que, portanto, não teme castigos nem espera benefícios do Além. Na XXIIIª rapsódia os sacrifícios humanos e dos animais não são oblações, mas sacrifícios expiatórios. Se as vítimas eram reduzidas a cinzas o objetivo das imolações não era o ágape destinado aos daímona12 , mas a dádiva de suas próprias vidas, como exigiam os ritos expiatórios. Do início ao fim, todo o cerimonial se presta a apaziguar a alma e aplacar a cólera do morto, para que este não ameace o mundo dos vivos. Eis, portanto, o primeiro argumento de Rohde para fundamentar sua tese: o cerimonial das exéquias de Pátroclo é regido por um ethos que não faz parte da escatologia homérica. Passemos ao segundo argumento. Em Homero o destino final dado aos mortos é a cremação, quer se tratem de reis, príncipes ou guerreiros menos ilustres. O que muda é o estilo e a dimensão da cerimônia. Mas, qual era o sentido de tal prática para esses helenos? Ninguém duvida que a inumação é mais simples e mais barata. Em todos os tempos, povos primitivos, por razões específicas, praticaram as duas técnicas. Os nômades, por exemplo, por não disporem de residência fixa em cujas cercanias ergueriam túmulos, incineravam seus mortos e transportavam as cinzas em urnas funerárias. Porém, já estava longínquo o passado nômade dos gregos de Homero13. Por volta da metade do terceiro milênio a.C. a civilização cretense, por exemplo, já se notabilizara entre as ilhas do mar Egeu na arquitetura, na engenharia naval, no artesanato e na arte do comércio. Por conseguinte, estamos diante de uma forte cultura sedentária. Quanto aos povos continentais, os primeiros períodos em que assimilaram grande afluência de invasores, a saber, os jônios e aqueus, situam-se entre 2000 e 1700 a.C.. De modo que, os ciclos migratórios subseqüentes que ocorrem naquela região, são protagonizados por populações que conhecem há bastante tempo a vida se-

dentária. O primeiro destes parte de Creta nas direções do continente e costa da Ásia Menor. Isso ocorre em torno de 1700 a.C. quando a ilha é abalada por sucessivos terremotos e erupções vulcânicas. Mas, é preciso não esquecer, ainda por volta de 1100 a.C. todo o Egeu sucumbiu sob a invasão dos dórios, povos bárbaros, e mergulhou no obscurantismo. As populações locais extenuadas com a Guerra de Tróia, que ocorreu mais ou menos nesse período, ou seja, início do séc. XXII a.C., não conseguiram defender seus territórios, nem impedir que a Grécia perdesse a hegemonia marítima para os fenícios. Depois, entre a metade do VIIIº séc.a.C. até a metade VIº registram-se grandes deslocamentos populacionais, expandindo a Grécia também na direção do sul da Itália e do mar Negro. E mais uma vez, esse movimento é cometido por segmentos populacionais que praticam a vida sedentária há longa data. O fato é que Homero refere-se à cremação, seguida do sepultamento da urna com as cinzas, como sendo o único hábito reinante entre gregos e troianos. E não sendo as cinzas transportadas para as pátrias de origem, qual seria, nesse caso, o motivo da incineração? Garantir que a psiqué do morto entrasse no reino de Hades e aí permanecesse definitivamente, sem perturbar o mundo dos vivos. Portanto, temem sua interferência e querem evitá-la, uma vez que em relação às almas, diz Rohde, os gregos nutriam mais medo do que devoção. Mas se até aqui a plausibilidade da tese de Rohde dependia exclusivamente de sua argúcia interpretativa em relação à Ilíada e Odisséia, doravante ele arrolará provas materiais. Trata-se de explorações arqueológicas realizadas no final do séc. XIX, que revelaram traços de uma cultura anterior às invasões dóricas, por conseguinte anterior a Homero14. Em vários pontos do Peloponeso até a Thessália as escavações descobrem uma série de conjuntos de construções funerárias. E esse é o testemunho material que Rohde necessitava, pois tais túmulos fornecem evidências de rituais mortuários15, nos quais o defunto não era destruído pelo fogo, mas confiado à terra juntamente com seus bens prediletos. Aliás, esse é mais um indício da crença dos gregos pré-homéricos na imortalidade da alma: disponibilizar utensílios, jóias e objetos de arte ao falecido, implica na convicção que este os exige e faz uso dos mesmos. Como explicar de outro modo o fato dos vivos abrirem

12 - Plural de daímon. Em Homero significa deus, deuses, divindades em geral. Após Homero, roi daímones assumirá, sobretudo, a acepção de deuses inferiores, intermediários entre os homens e os outros deuses. Cf. A. Bailly, Dictionnaire Grec Français. 13 - Cf. Bertrand RUSSEL, História do Pensamento Ocidental, pp 14/15. 14 - A poesia homérica narra no séc. IX a.C. acontecimentos situados no séc. XII a.C. Trata-se, portanto, de um relato pós dórico sobre um contexto pré dórico.

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CONCEITOS

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Março de 2009


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