Revista conceitos ed 23 2

Page 1



Campus da UFPB

ISSN 1519-7204 N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015) 104 páginas Ricardo de Figueiredo Lucena e Ricardo da Silva Araújo (Orgs.)

João Pessoa - Paraíba - Brasil Dezembro de 2015


A revista Conceitos é uma publicação para divulgação de artigos científicos-pedagógicos, produzidos por docentes da Universidade Federal da Paraíba e colaboradores, promovida pela ADUFPB Seção Sindical do ANDES-SN, com distribuição gratuita e dirigida aos filiados da Entidade.

Ficha catalográfica elaborada na Biblioteca Central da Universidade Federal da Paraíba.

C744

Conceitos / Ricardo de Figueiredo Lucena e Ricardo da Silva Araújo (Orgs.). – Vol. 2, n. 23 (Dez. 2015) - João Pessoa: ADUFPB-Seção Sindical do ANDES-SN, 2015.

Semestral ISSN 1519-7204 1. Ensino superior - periódicos. 2. Política da educação periódicos. 3. Ensino público - periódicos. I. Lucena, Ricardo de Figueiredo. II. Araújo, Ricardo da Silva. III. ADUFPB. CDU: 378


É UMA PUBLICAÇÃO DA ADUFPB/SSIND. DO ANDES-SN Centro de Vivência da UFPB - Campus I - Cx. Postal 5001 CEP 58051-970 - João Pessoa/Paraíba - Fones: (83) 3133-4300 / (83) 3216-7388 - Fone/Fax: (83) 3224-8375 Homepage: www.adufpb.org.br - E-mail: adufpb@terra.com.br João Pessoa - Paraíba - Dezembro de 2015 - Edição número 23 - Volume 2


CONSELHO EDITORIAL: Albergio Claudino Diniz Soares (UFPB) Albino Canelas Rubin (UFBA) Beatriz Couto (UFMG) Galdino Toscano de Brito Filho (UFPB) Ivone Pessoa Nogueira (UFPB) Ivone Tavares de Lucena (UFPB) Jaldes Reis de Meneses (UFPB) Lourdes Maria Bandeira (UnB) Luiz Pereira de Lima Júnior (UFPB) Maria Otília Telles Storni (UFPB) Maria Regina Baracuhy Leite (UFPB) Mário Toscano (UFPB) Martin Christorffersen (UFPB) Mirian Alves da Silva (UFPB) Ricardo de Figueredo Lucena (UFPB) Vanessa Barros (UFMG) Virgínia Maria Magliano de Morais (UFPB) Waldemir Lopes de Andrade (UFPB)

ORGANIZAÇÃO

Ricardo de Figueiredo Lucena Ricardo da Silva Araújo EDIÇÃO, PROJETO GRÁFICO

E DIAGRAMAÇÃO: Ricardo Araújo  FOTOS/ILUSTRAÇÕES/GRÁFICOS:

Originais digitais fornecidos pelos autores.  REVISÃO DOS ARTIGOS

Rejane Araújo (professorarejane@gmail.com)  REVISÃO (ABSTRACTS):

Gloria Obermark (familiaobermark@hotmail.com) FICHA CATALOGRÁFICA: Edna Maria Lima da Fonseca

(Bibliotecária da Biblioteca Central da UFPB).  IMPRENSA E DIVULGAÇÃO: ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DA ADUFPB (ASCOM/ADUFPB)

JORNALISTAS RESPONSÁVEIS: Renata Ferreira (DRT/PB 3235) e Ricardo Araújo (DRT/PB 631).  COLABORAÇÃO E LOGÍSTICA:

Célia, Da Guia, José Balbino, Lu, Nana e Valdete. GESTOR DE CONVÊNIOS/ADUFPB

Marcelo Barbosa   DISTRIBUIÇÃO E CIRCULAÇÃO:

Gratuita e dirigida aos filiados do sindicato.

Os textos assinados são de responsabilidade integral do autor e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. É permitida a reprodução total ou parcial de textos, fotos e ilustrações, desde que seja citada a fonte e o autor da obra.

 CONTATOS: E-mails: adufpb@terra.com.br (Célia Lopes) revistaconceitos.adufpb@gmail.com (Ricardo Araújo)  NÚMEROS ANTERIORES: A ADUFPB disponibiliza no site do sindicato (www.adufpb.org.br), na seção Revistas, todos as edições da Revista Conceitos em formato digital (PDF), que podem ser adquiridas gratuitamente (downloads) para consulta.


DIRETORIA EXECUTIVA DA ADUFPB - GESTÃO 2013/2015 Presidente JALDES REIS DE MENESES (CCHLA)

Diretora para Assuntos de Aposentadoria AUTA DE SOUSA COSTA (CE)

Vice-Presidente ROMILDO RAPOSO FERNANDES (CE)

Diretor da Secretaria-Adjunta do Campus de Areia ABRAÃO RIBEIRO BARBOSA (CCA)

Secretária Geral TEREZINHA DINIZ (CE)

Suplente da Secretaria-Adjunta do Campus de Areia PAULO CÉSAR GEGLIO (CCA)

Tesoureiro MARCELO SITCOVSKY SANTOS PEREIRA (CCHLA)

Diretor da Secretaria-Adjunta do Campus de Bananeiras MARINO EUGÊNIO DE ALMEIDA NETO (CCHSA)

Diretor de Política Educacional e Científica FERNANDO JOSÉ DE PAULA CUNHA (CCS)

Suplente da Secretaria-Adjunta do Campus de Bananeiras NILVÂNIA DOS SANTOS SILVA (CCHSA)

Diretora de Política Social MARIA DAS GRAÇAS A. TOSCANO (CCS)

Diretor da Secretaria-Adjunta do Campus do Litoral Norte CRISTIANO BONNEAU (CCAE)

Diretor Cultural CARLOS JOSÉ CARTAXO (CCTA)

Suplente da Secretaria-Adjunta do Campus do Litoral Norte BALTAZAR MACAÍBA DE SOUSA (CCAE)

Diretor de Divulgação e Comunicação RICARDO DE FIGUEIREDO LUCENA (CE)

Suplente da Secretaria WLADIMIR NUNES PINHEIRO (CCM)

Diretor de Política Sindical CLODOALDO DA SILVEIRA COSTA (CCM)

Suplente da Tesouraria MARIA APARECIDA BEZERRA (CCS)


NORMAS PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA CONCEITOS (Atualizadas em Janeiro 2015 - Também disponível no site: www.adufpb.org.br) A Revista Conceitos é uma publicação para divulgação da produção acadêmica dos docentes da UFPB, filiados à ADUFPB – Seção Sindical do ANDES-SN -, e que privilegia artigos e ensaios para divulgação científica. Os docentes interessados em publicar artigos na Revista Conceitos, deverão seguir rigorosamente as normas estabelecidas pelo Conselho Editorial da revista: 1. Serão aceitos textos em língua portuguesa com no máximo 15 (quinze) laudas e no mínimo 10 (dez) laudas, incluindo RESUMO, palavras-chave, ABSTRACT, referências bibliográficas, notas, ilustrações gráficas ou fotografias (no corpo do texto). Textos em língua estrangeira deverão submetidos à consulta prévia com a ConselhoEditorial. 2. Os textos devem estar devidamente atualizados e revisados com o Novo Acordo Ortográfico da Academia Brasileira de Letras (ABL). Após a inscrição e aprovação pelos Conselhos de Pareceristas e Editorial, o autor não poderá solicitar o artigo para modificações ou atualizações, salvo autorização dos referidos conselhos.

gem esquerda e colocada ao final do artigo, citando as fontes utilizadas. Para a melhor compreensão e visualização, no final deste regulamento são transcritos exemplos de referências de diversos tipos de materiais. 7) Ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos, etc.). As imagens publicadas na Revista Conceitos são impressas em preto e branco. Devem estar inseridas no corpo do texto para indicar sua localização para a diagramação do artigo, acompanhadas de legendas caso seja necessário, e com a indicação: Figura 1, Figura 2, Figura 3... Os arquivos de fotografias digitais, ilustrações ou gráficos devem ser enviados separadamente no corpo do e-mail do autor. Devem ter boa resolução e legibilidade, nomeadas conforme as legendas no artigo (Figura 1, Figura 2, Figura 3). As ilustrações devem permitir uma perfeita reprodução. É importante indicar a fonte ou crédito de autoria da imagem, seja ela ilustração, gráfico ou fotografia. A ADUFPB não se responsabiliza por reprodução de imagens não autorizadas pelos autores.

3. Não serão aceitos trabalhos que não apresentem RESUMO E ABSTRACT. 9) Notas de rodapé 4. O(s) autor(es) deve(m) ser sindicalizado(s) na ADUFPB ou colaborador(es) formalmente convidado(s) pelo Conselho Editorial da Revista. 5. A primeira página do artigo deverá conter, além do RESUMO e do ABSTRACT, informações como nome completo do autor(es), função, departamento ou Centro onde leciona(m), bem como a instituição (Campi João Pessoa, Bananeiras, Areia, Litoral Norte, Santa Rita ou outros), titulação e e-mail para contato. 6. Cada docente colaborador poderá publicar 01 (um) artigo por edição da revista como autor-titular do texto. As co-autorias serão avaliadas pelo Conselho Editorial, dando prioridade aos autores titulares dos artigos para contemplar maior número de docentes sindicalizados na ADUFPB por edição da revista. Só será aceita 01 (uma) co-autoria por artigo. 7. Em parcerias com discentes da UFPB ou de outras instituições, o primeiro nome assinado deverá ser o nome do professor filiado à ADUFPB como autor-titular do artigo.

As notas de rodapé deverão ser citadas de acordo com as normas da ABNT. http://www.trabalhosabnt.com/regras-normas-da-abnt-formatacao/nbr-6023 10) Observações: a) Nos artigos inscritos, utilizar itálico somente para palavras estrangeiras. b) Os trabalhos que não atenderem a estrutura proposta pelo Conselho Editorial poderão ser devolvidos aos autores a critério do Conselho de Pareceristas, sem avaliação de mérito. 11) AVALIAÇÃO DOS ARTIGOS Os artigos encaminhados à Revista Conceitos serão avaliados, individualmente, por três pareceristas ad-doc, reconhecidos por seu notório saber acerca dos temas inscritos. Para esta tarefa, será utilizado o sistema triplo cego e, com base nos pareceres obtidos, a Comissão Editorial emitirá um dos seguintes conceitos:

ESTRUTURA DOS TRABALHOS Os artigos deverão ser redigidos em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 e não devem exceder 15 páginas ou ser menor que 10 páginas, incluindo os títulos, resumos, palavras-chave, ilustrações, fotos e referências bibliográficas. Deve constar na estrutura dos trabalhos, a partir da primeira página:

a) aprovado para publicação; b) aprovado com correções; c) rejeitado para publicação.

(*) Esses dados podem ser incluídos no documento como nota de rodapé, sem numeração.

Quanto aos trabalhos não aceitos o autor será comunicado da decisão. Os editores não assumem a responsabilidade por opiniões/conceitos emitidos em artigos assinados e matéria transcrita. Os editores se reservam o direito de selecionar os artigos para publicação; ouvir parecer de especialista para averiguar a qualidade do trabalho; proceder à revisão gramatical dos textos e fazer correções desde que não alterem o conteúdo.

2) Título do artigo

FORMA DE ENCAMINHAMENTO

3) Resumo e palavras chaves - Com até 100 palavras

Os artigos devem ser enviados em formato digital exclusivamente para o e-mail da Comissão Editorial: revistaconceitos.adufpb@gmail.com. Sugerimos incluir na mensagem de e-mail um telefone (fixo ou celular) para uso do Conselho Editorial em caso de problemas no recebimento digital do arquivo.

1) Nome do(s) autor(es): Nome completo do(s) autor(es), seguidos de titulação*, local de atividade, e-mail para contato.

4) Abstract e palavras chaves - Em língua estrangeira (inglês) 5) Texto propriamente dito 6) Referências A lista de referências deve ser ordenada alfabeticamente, alinhada à mar-

IMPORTANTE: Os editores não se responsabilizam por extravio de artigos enviados para outros e-mails de contato do sindicato. Qualquer dúvida, entrar em contato através do e-mail: revistaconceitos.adufpb@gmail.com ou adufpb@ terra.com.br.


Sumário

Revista Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015) PÁG. 9

PÁG. 67

APRESENTAÇÃO

O território como espaço do diálogo

2016: um ano que promete

na práxis em saúde Lindemberg Medeiros de Araújo

PÁG. 10 Diversidade cultural: uma possível multiculturalidade compartilhada

PÁG. 75

Stella Maria Lima Gaspar de Oliveira

A mulher encarcerada e o sistema penitenciário na perspectiva dos direitos humanos: breves considerações Rita de Cássia Alves Ramalho da Silva

PÁG. 20 Tadeu Lira: a arte como história de vida Robson Xavier da Costa

PÁG. 84 Banda de música: uma tradição sociocultural

PÁG. 28

Gláucio Xavier da Fonseca

Teoria para um teatro na Paraíba José Flávio Silva

PÁG. 90 Perfil epidemiológico dos pacientes com hanseníase

PÁG. 36 Democracia no Brasil e a nova direita Maria de Fátima Marreiro de Sousa

menores de 15 anos no município de João Pessoa - Paraíba Stênio Melo Lins da Costa

RESENHA PÁG. 45 A ética no discurso na prática socrática Cristiano Bonneau

PÁG. 51 Fausto I: notas sobre o clássico de Goethe Jamerson Murillo Anunciação de Souza PÁG. 58 Histórico Sociocultural da língua galega Marinalva Freire da Silva

PÁG. 96 A Aurora turva da vida de meu tio na cidade moderna: Uma leitura transversal dos filmes Mon Oncle e Sunrise: a song of two humans Rossana Honorato



APRESENTAÇÃO

2016: um ano que promete Findando o ano de 2015 e nossas inquietações políticas, sociais e individuais, ao invés de acomodarem-se após um ano de muito trabalho e luta, vem crescendo em volume e forma. O país passa por um momento de instabilidade econômica, política e social. Temos um dos Congressos mais conservadores da nossa história e os ataques à educação pública, gratuita e de qualidade vêm crescendo a passos largos e não apontam para um horizonte favorável aos nossos desejos. Nesse sentido, é preciso estar vigilante sempre. Nunca arredar pé dos nossos sonhos, nossas esperanças e de nossa luta! Ciente de seu papel nesse momento, a ADUFPB e a sua revista Conceitos, que agora chega ao número 23, conclama os docentes para uma atenção redobrada para o ano de 2016. As conquistas até aqui efetivadas não podem ser revogadas e, pelo contrário, esperamos ampliá-las com uma maior participação popular na universidades públicas, com recursos públicos efetivamente empregados nas escolas públicas e com professores bem remunerados. O ano promete, mas há de nos encontrar aqui com coragem e determinação. A Educação Pública merece a nossa luta e a nossa defesa e nossos desejos pedem que não recuemos ante os ataques que se avizinham. Os organizadores.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

9


Stella Maria Lima Gaspar de Oliveira *

Diversidade cultural: uma possível multiculturalidade compartilhada RESUMO Este artigo dirige-se para a busca e recriações de elementos que constituem o perfil do ser professor de uma classe de educação infantil multicultural. Escrevemos os encontros e encantamentos, com o trabalho desenvolvido no cotidiano pedagógico infantil, de uma educadora espanhola, que se lança, diante do desafio em trabalhar com crianças de diferentes culturas. Para isto, interessou-nos tecer fios mestres com a realidade observada, reconhecendo a Educação Infantil Multicultural, como uma prática profissional criativa e que encante tanto o professor quanto o aprendente criança. Pelo estudo investigativo aqui apresentado, confirma-se que adquirimos saberes no contexto de uma história de vida e de uma carreira profissional que está sempre ligada a diferentes situações de trabalho, na complexa e desafiadora atividade de ensinar, resultando na descoberta de potencialidades inatas, que geram bem-estar na atuação docente, favorecendo a Multiculturalidade Compartilhada. Palavras-chave: Classe multicultural; prática pedagógica; educação infantil; afetividade; a condição humana.

ABSTRACT This article aims to search and recreate what constitutes a teacher’s profile in a multicultural kindergarten class. We wrote about a Spanish teacher’s meetings and enchantments with her work in child pedagogical daily life, and who decides to face the challenges of working with children from different cultures. With this view, we were interested in developing guidelines from this reality, thus recognizing Multicultural Childhood Education as a creative professional practice that enchants both the teacher and the child learner. By means of the investigative study presented here, it is confirmed that we acquire knowledge in the context of a life story, as well as a career linked to different work situations, in the complex and challenging teaching activity; this results in the discovery of innate potentialities that generate well-being conditions in teaching practice, thus favoring Shared Multiculturalism. Keywords: Pedagogical supervision; historical course; state of Paraíba.

(*) Professora doutora em Educação, pós-doutorada em Educação, do Departamento de Fundamentação da Educação/Centro de Educação/UFPB - Campus I João Pessoa stellagasparoliveira@gmail.com 10

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


I. A SUPERVISÃO PEDAGÓGICA NO BRASIL

1. INTRODUÇÃO

Neste artigo, apresentamos parte de nosso Curso de Pós-doutorado, o qual tentamos reflexionar com a tutoria do Profº Dr. Bernardino Salinas Fernández, da Universitat de Valencia-Faculdad de Magisterio, os desafios multiculturais, em uma classe de educação infantil multicultural, com a colaboração da professora, Rosana Sanchis Bartual, em Torrent - València - Espanha. As observações, conversa informal, análises de documentos junto a professora espanhola, compuseram a tessitura de nossos olhares como pesquisadores surgindo daí, a questão problematizadora: “é possível vivenciar os processos da complexa condição humana de ser professora de uma classe multicultural, integrando os aspectos intelectual, sociais e afetivos?» O percurso metodológico, seguiu os pressupostos do método qualitativo utilizando: observações, fotografias, depoimentos, buscando compreender e analisar situações reais, para a compreensão do nosso foco de investigação. Utilizamos como instrumentos de análise: fotografias, produções escritas da professora em evidência. Tais recursos metodológicos nos permitiram com a utilização da técnica da análise de conteúdo, construir a “Cartografia de pensamentos da professora”, protagonista dessa investigação.

2 - DESENVOLVIMENTO

O multiculturalismo pode ser entendido como prática social que contesta preconceitos, discriminações e exclusões de indivíduos, silenciando e reprimindo a sua condição de pertencimento , seja no espaço escolar ou no contexto social mais amplo. Pensar e viver no mundo atual, passa pelo reconhecimento da pluralidade e diversidade de sujeitos com diferenças culturais. Compreender a multiculturalidade no mundo globalizado se torna uma tarefa de ampla construção e reflexão, tanto do meio sócio-histórico, Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

quanto de nossas próprias ações e atitudes diante da sociedade a qual fazemos parte. Moreira (2001), evidencia uma educação que se pretenda capaz de acelerar transformações sociais, deixando claro: Não há, (...), maior contradição do que a busca por certeza em um mundo incerto, o que me leva a concluir que os problemas teóricos e práticos nos afligem, ainda que devam ser enfrentados, não podem nos imobilizar e nos eximir do engajamento com os outros em uma luta, em uma história comum. (p.93)

Nesse sentido, o multiculturalismo pode ter várias interpretações e seu entendimento não se esgota completamente, dependendo do seu uso pode ter um significado amplo. Observamos que o significado mais utilizado referese as mudanças de povos e culturas, abarca as diferenças relativas entre a raça, a etnia, gênero, sexualidade, cultura, religião, classe social, idade, necessidades especiais, entre outras. Na educação envolve a luta contra a opressão, a discriminação, estudos, pesquisas e ações politicamente comprometidas (MOREIRA & CANDAU, 2008). Salientamos que no universo pesquisado, as famílias das crianças sob a responsabilidade da Profª Rosana Sanchis, apresentam pouco interesse para as atividades culturais, teatro, museus... Basicamente se dedicam a ver televisão, alugam filmes e os assistem em suas casas. Em relação a leitura, reconhecem ler pouco. O idioma adotado na escola e em toda a comunidade é o castelhano, tanto a nível oral, quanto escrito. Existe um grande percentual de famílias com origens heterogêneas (árabes, romenos, ucranianos). Também culturalmente, economicamente e etnicamente. Muitas dessas famílias, habitam uma zona de periferia em uma área marginal de Torrent-Espanha. É observável comportamentos tanto dos pais como das crianças, como sendo agressivos. As reuniões promovidas pela escola, tem pouca participação das famílias, uma realidade próxima á brasileira. Nessa diversidade educativa e cultural, a pro11


fessora colaboradora de nossa investigação, com sua forma de conduzir o processo de aprendizagem, intercalando doçuras, olhares e disciplina junto ás crianças, não se intimidou diante dos desafios, nos três anos na mesma classe. Foi capaz de manter transformações individuais e coletivas. Seu trabalho, como nos diria Boff (2000), proporcionou ao final do processo, a humanização das crianças vistas como seres humanos. A prática observada, coaduna-se com as ideias de Moraes (2010), quando ela afirma que precisamos buscar novos referenciais teóricos e novas teorias que nos ajudem a ir além dos limites impostos pelo pensamento do paradigma tradicional. Neste sentido, as crianças trabalhadas pela professora protagonista do nosso estudo, não trabalhava com uma metodologia linear e sim eclética. A teoria implícita para o desenvolvimento das atividades apresentava um diálogo amoroso, criativo e competente, sem ser prepotente. Em um universo multicultural, o diálogo e o olhar sensível ajudam a estabelecer conexões e os vínculos possibilitando uma melhor dinâmica das diversidades de vida entre as crianças. Um diálogo cheio de significados e sabedorias, que liga, religa e sustenta os vínculos do indivíduo com o triângulo da vida. A realidade da professora Rosana Sanchis, em sua classe multicultural com vários desafios linguísticos e comportamentais, buscava na sua concepção de educar, construir novos sentidos nas vivencias da sala de aula. Era evidente sua luta pela transcendência da realidade presente, vivendo sua inteireza de forma segura e firme, gerando crescimentos nas dimensões do ser pessoa tanto em si, como nos alunos, que ao final do processo de três anos vivenciados com a mesma, conquistaram o idioma espanhol e o processo de leitura e escrita. Diante dessa perspectiva, a Instituição escolar precisa ir além da função de ensinar, devendo estar cada vez mais próxima da realidade multicultural das famílias e alunos. Verificamos na nossa experiência, que o processo formativo requer muita ousadia e criatividade. Implica recuperar a unidade entre teoria e prática, buscando a construção da autonomia e desenvolvimento da criticidade, como uma forma de pensar a ação educativa no trabalho pedagógico. Compreender como a professora em evi12

dência nesse estudo, expressava seu jeito de aprender e de ensinar. Além disso, os significados produzidos nas atividades propostas, foram compreendidos por nós, como uma dinâmica dialógica e dialética, capazes de transformar a relação criança-criança com suas diversidades socioculturais em descobertas e respeitos pelas individualidades de cada um. Nesse sentido, a professora Rosana Sanchis, foi capaz de ensinar em favor da dignidade humana, das crianças. Essa constatação, nos faz ressaltar que precisamos promover as relações ecossistêmicas nos âmbitos familiar, social, cultural, histórica, abertas às interações psicológicas e etnológicas, entre outras. Freire (2007), nos lembra da importância em percebermos que somos indivíduos cognitivos com matrizes próprias, e que estas se constituem em oportunidades para o reconhecimento de nossa incompletude. O reconhecimento das nossas legitimidades e também a do outro. Significando aceitar a igualdade entre nós com nossas diferenças, lembrando aqui o conceito de alteridade. Em nossa pesquisa, com o olhar na docência de uma classe multicultural, percebemos e observamos a capacidade da profª Rosana Sanchis, em produzir seus próprios saberes, conforme constatamos no seu pensamento quando disse: “Encontrarmos muitos obstáculos em nosso trabalho, mas tentamos contorná-los, criando estratégias para facilitar nosso desempenho como responsável por essas crianças.” (Profa. Rozana Sanchis Bartual, 2014)

3. CARTOGRAFIA DO CAMINHO METODOLÓGICO

3.1. Breve introdução metodológica

Apresentamos nesse texto, recortes dos relatos da prática, registrados nos instrumentos de análise: registros escritos, fotos, falas da professora protagonista dessa pesquisa. A problemática, surge com os desafios da referida professora, em integrar crianças com diversidades culturais no processo de aprendizagem. Destaca-se a Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


questão : O saber da condição humana favorece o encantamento e a persistência para a prática pedagógica significativa em uma sala de educação infantil, multicultural? Neste prenúncio, começamos a desenhar nossa metodologia. Priorizamos, a abordagem qualitativa por termos como foco, conteúdos e produções de autorias partindo de uma análise etnográfica.

3.3. Análise dos dados Buscamos, nos instrumentos, as unidades de significado dos conteúdos em relação ao fenômeno investigado, sua pertinência com as categorias priorizadas, estando estas adaptadas ao material de análise. As categorias de sentido subjetivo e de configuração subjetiva representaram o quadro teórico definido na pesquisa, no sentido de nos permitirem uma representação da realidade estudada.

QUADRO 1 - ATIVIDADES SIGNIFICATIVAS

Fonte: Fotos cedidas pela professora Rosana Sanchis- 2014 Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

13


Análise interpretativa

Para analisar e refletir sobre o conteúdo escrito pela professora acerca das atividades com as crianças é necessário pensar não só com a razão, mas com o olhar sensível, buscando compreender o contexto da realidade de uma classe multicultural. Suas palavras mostram o prazer, na busca do compartilhar com a classe momentos afetuosos nas relações interpessoais entre ela e as crianças. Nessas escritas observamos seus pensamentos cheios de emoções e sentimentos positivas. A professora aponta para uma prática pedagógica que valorize mais o saber ‘ser’. Podemos interpretar como o aprender a condição humana. Trata-se de, considerar as ligações, as articulações ressaltando aquilo que é tecido em conjun-

to, enfatizando ao mesmo tempo, a complexidade da organização dos espaços individuais e sociais, principalmente em se tratando de uma classe multicultural. Os registros escritos integram a vontade de produzir, fazer, envolver, ampliar histórias. Tais aspectos traduzem, para nós, o sentido das autorias pedagógicas, motivadas por essas atividades de reencantamentos, a partir da corporeidade viva, com necessidades e desejos. “La cara de felicidad de mis alumnos al ver como cambiaba el agua de color ( lo inocentes que son los niños porque sólo era un sobre de colorante y ellos estaban asombrados, se pensaban que era magia-Profº Rosana Sanchis)” Esse destaque são os movimentos autopoiéticos, que a professora cria na sua atuação pessoal e profissional.

QUADRO 2 - DESAFIOS DA PROFISSÃO

Fonte: Fotos cedidas pela professora Rosana Sanchis- 2014

Análise interpretativa Observamos que os obstáculos com o idioma e a cultura das crianças e suas famílias, não implicaram na não aprendizagem. Com determinação, organização e equilíbrio, a Profª Rosana Sanchis, conseguiu alcançar seus objetivos. 14

“Hoy puedo decir que me siento muy orgullosa, puesto que se han graduado y han pasado cumpliendo los objetivos marcados, leyendo, sumando, restando..... superando mis espectativas establecidas. Percebemos na escrita da proConceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


fessora, um comportamento de resiliência e persistência para alcançar o possível e o impossível. “Mi principal objetivo: Aprender mucho y ser felices” Profº Rosana Sanchis . Podemos perceber, que existe uma saudável relação entre a aprendizagem e a felicidade. Sabemos que o aprender é viver de forma prazerosa e

participativa. Nessa escrita, a autonomia profissional integrada à autoria pedagógica, está definindo a ação educativa como aquela que transcende o sentido puramente técnico da formação docente. Refletir a prática pedagógica não é pensá-la somente na sala de aula.

QUADRO 3 - PENSANDO A METODOLOGIA

Fonte: registro da Profº Rosana Sanchis. Foto do mural na classe, com um dos Projetos trabalhados. 2014

Análise interpretativa

Observamos uma prática pedagógica em construção, na busca dos objetivos das atividades desenvolvidas. Não existindo uma preocupação com um método ou uma determinada teoria. A professora consegue controlar sem autoritarismo a atenção das crianças. Notamos que o espaço na classe é socializado, existindo interações entre professora e crianças. Sempre esteve presente uma dinâmica metodológica diversificada, uma vez que não existe uma linha metodológica única. Por ser uma classe de múltiplas culturas, a ação docente utilizada é adequada, de acordo com as aprendizagens satisfatórias do grupo. Conforme a fala da professora “yo no utilizo una concreta; cada grupo, cada niño es diferente, así que cojo muchas para llegar a los

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

objetivos que me propongo.” Profº Rosana Sanchis (2014).. A disciplina era necessária, devido á diversidade das realidades familiares. Uma autoridade sem intimidações, o que era surpreendente e encantador. Ressaltamos nessa análise o pensamento da mesma quando escreve. “Desde la lectura tradicional a los proyectos más innovadores, siempre estoy renovando, e introduciendo cambios”. Profº rosana Sanchis.(2014). Compreendemos que seu pensar é dinâmico, com a analise suas palavras percebemos que a mesma valoriza muito sua criatividade, como era visível em nossas observações. O espaço respirava confiança e segurança.

15


QUADRO 4 - CONCEPÇÃO DE ENSINO

Fonte: Registro da Profº Rosana Sanchis-2014

Análise interpretativa

“Difícil, en la enseñanza es todo. Cada alumno es un pequeño mundo al que debes dedicar tiempo, como a su familia.” Nessa unidade de significado percebe-se o entendimento da professora, sobre o que é ensinar. Podemos refletir que para ela é como um ‘mapa do tesouro’ a ser explorado, no qual poderá ser encontrado ideias, imaginações, observações, descobertas, usando novas lentes para ver e interpretar a realidade, trabalhando de forma integrada com a família. Ressaltamos que as famílias, participavam sempre das atividades festivas. Sendo confirmado pela professora, a existência de um precário acompanhamento em casa, com relação as atividades extra-classe. Diante do que foi observado urge portanto, saber conectar desejos e saberes para que a aprendizagem das crianças se constituam de sig-

16

nificados coloridos ou seja, dinâmicos com alegrias e vida. Seus escritos manifestam um clima de afetividade e de parceria em sua postura de ‘ser’ professora de uma classe com múltiplos desafios. Percebemos, sua capacidade de auto- aperfeiçoamento, de não ter medo de propor e de errar, para a busca da conquista de novos saberes. O reencantar a educação implicava numa formação humanitária, numa dinâmica de contentamento na dimensão emocional, das experiências de aprendizagens. Sendo assim, a atividade de ensino, não pode ser vista apenas como um processo de acumulação de conhecimentos de forma estática mas sim, com a contínua reconstrução da prática pedagógica.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


QUADRO 5 - CARTOGRAFANDO SUBJETIVIDADES

Fonte: Oficina Cartografando subjetividades com a Profº RosanaSanchis-2014

Análise interpretativa

1 - Se eu fosse um conto Podemos observar pela escolha e relato da professora, que a fantasia e os sonhos podem sustentar os desejos de uma realidade almejada, mas é o concreto que movimenta o cotidiano. Ela mostra que não adianta fugir dos problemas e que é importante termos a consciência da existência deles. Palavras da professora “y cuando se rompe el cántaro de leche, vuelves a la realidad educativa..... “ Profª Rosana Sanchis.( 2014). Nossa interpretação, diante do conteúdo analisado, detém-se na percepção de que esse conto, representa as dificuldades pedagógicas, e que não devem ser motivos para os desencantos, mas sim, fortalecedor de coragem para vencer os desafios. Pelas suas colocações a prática pedagógica é determinada pelo otimismo de possíveis mudanças. Para ela os sonhos existem e isso é um aspecto relevante. “Sueñas con una educación mejor” Profª Rosana Sanchis (2014). Podemos constatar que a mesma, busca conhecimentos que possam tornar os sonhos reais para um crescimento social e econômico, contemplando o bem coletivo das crianças e suas famílias. O Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

trabalho da Prof.ª Rosana Sanchis, sempre esteve voltado para essa integração família -escolacomunidade. 2 - Se eu fosse uma fada O prazer em criar ambientes promotores para o desenvolvimento da identidade pessoal, promoção de segurança e confiança, se faz presente no pensamento da protagonista desse estudo. Para ela, a questão do material e dos espaços educativos são muito importantes. Nessa escrita, vemos vínculos propiciados pelos sentimentos (dedicação, atenção, desejos de acertar, fazer o melhor), instaurando relações de aproximação entre o ser e o fazer para si e para o outro. 3 - O meu maior desejo Conceder todos los deseos que los niños/as quisieran. (Profª Rosana Sanchis, 2014). Analisando o desejo da professora, recordamos as palavras de Freire (1996) nos lembrando, que a prática pedagógica não é uma experiência 17


fria, sem alma. Sob essa ótica, não somos professores vazios, no processo de ensino e aprendizagem. Ao adotarmos uma prática pedagógica humanizada, precisamos voltar à nossa percepção em relação ao aprendente, em sua totalidade, buscando dessa forma, trabalhar para o seu êxito e felicidade de seres humanos que estão sob nossa responsabilidade. 4 - Uma recordação No escrito observado, encontramos manifestações acerca de um clima afetuoso da pro-

fessora, mostrando-se parceira das crianças, suas famílias e sua cultura. Ficando evidente para nós, sua sensibilidade. Suas palavras mostram segurança e equilíbrio. Existiu á principio a incerteza do novo. Mas também, um sonho possível para ela, conforme podemos observar quando escreve; “Cada día ha sido para mí una experiencia maravillosa, me han cambiado mi forma de ver la cultura árabe he intentado integrar a las familias.” Assim, com o amor pela profissão tão bem demonstrado segue seu trabalho e no nosso entendimento, colorindo a sua profissão docente.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS… ABRINDO CAMINHOS!

Entendemos que ser professor de uma classe multicultural, é estar em processo de buscas para a superação de seus limites. Nesse sentido, na análise dos achados desta pesquisa foi possível também identificar a necessidade que temos, na nossa condição humana de articular o pensamento com o diálogo, a partir de uma escuta sensível em movimentos subjetivos e transformadores. Daí, pensarmos que os professores ao aproximarem-se de suas criatividades, persistências e autorias de seus pensares pedagógicos, possam resgatar a importância da construção de uma prática educativa em que assumam um jeito diferente e próprio de ensinar, desvelando e desenvolvendo suas capacidades e seus saberes. Nessa direção, a autonomia é um eixo de grande relevância para a ação de uma prática inovadora e diferenciada. Portanto, está se faz no contexto de relações, de contradições, de crítica sobre nós mesmos, como docentes e com as relações que estabelecemos com nossas atuações, educativas. Esses destaques, têm relevância no contexto das classes multiculturais, pois tratam de aspectos possíveis para o desenvolvimento da autonomia, tanto do professor como do aluno, através das criações e resignificações, na teia do encontro de ser autor pensando em suas próprias teorias. A professora Rosama Sanchis, é concebida por nós, como uma profissional com autonomia, sendo pesquisadora da própria prática, criando com sua dinâmica de trabalho edu18

cativo, uma teia de fios que se entrelaçavam com os aspectos: afetivo, criativo, cognitivo, social e cultural dos alunos. Olhando, sentindo e lendo o caminho percorrido, constatamos que os fios teóricos criaram vínculos para tecer a rede necessária, ao revisitar e construir novos conhecimentos. Destacamos ser necessário estimular condições para a autonomia do pensamento, podendo ser uma possibilidade para o professor, ampliar suas ideias teóricas e pedagógicas. Acreditamos também, ser possível propiciar nos espaços de classes multiculturais ambientes estimuladores para o desenvolvimento da autopoiese, como demonstra a “Teoria da Autopoiese” pensada por (Maturana & Varela, 1995) no ser professor. Sob o nosso ponto de vista, isto pressupõe concebê-lo como construtor e reconstrutor de conhecimentos e autor de sua prática pedagógica. Diante do exposto, fica evidente, que no espaço de uma sala de aula de educação infantil multicultural compartilhada, possua o que Freire (2007), fala acerca da educabilidade. Está se refere à capacidade do ser humano em aprender sempre, crescer, desenvolver-se no contato com o outro. A educabilidade, no pensar Freireano, diz respeito não só a adaptação de uma nova realidade, mas para nela intervir, recriando-a e transformando-a. Faz-se necessário, criar espaços para instigar elaborações que levem os alunos ao seu crescimento pessoal. Acreditamos, ser impresConceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


cindível abrir portas e caminhos para uma ação pedagógica, que não comporte apenas matrizes técnicas e teóricas, mas o despertar para a questão de que o que está sendo ensinado pode ser referência para a construção de novas histórias educativas e profissionais, diferentes das vividas até então. As atividades e comportamentos tanto nas crianças como na professora, produziram encantamentos entrelaçados com suas singularidades e particularidades. Por isso, a autonomia e o saber da condição humana, torna-se autoral quando percebemos o docente sendo o próprio pensador de sua ação pedagógica na transformação dessa. Mas o que é ser professora de uma classe multicultural? A pesquisa comprovou que viver feliz com o que se faz, é estar num processo dinâmico e interativo de reencantamentos. Encontramos na realidade estudada uma professora que busca, no saber de sua condição humana o conhecer-se e ao mesmo tempo, se doa para as possibilidades de vivenciar experiências desejadas e compartilhadas. Ou seja, uma realidade que favoreça a prática de uma aprendizagem na educação infantil com realidade multicultural que seja global, integrada, contextualizada, sistêmica, capaz de enfrentar as questões e os problemas da realidade educacional, cultural e familiar. Nessa direção, pensamos que os professores de realidades similares precisam se constituir como uma pessoa de corpo, mente e emoções . O estar na profissão docente é também ter uma prática humanizada, tornando-nos partícipes da construção de uma sociedade mais hu-

mana e justa, que respeite e aceite as diversidades humanas e contextuais. Nosso pressuposto básico é o de que, para tornar-se um professor com satisfatórios resultados na aprendizagem de nossos alunos, implica estarmos em contínuo movimento em torno da compreensão das ações desempenhadas no cotidiano educativo, sendo esse considerado por nós, como um espaço que tenha por objetivo a concretização das intenções pedagógicas. Talvez, este seja o aprendizado mais difícil, que é o de manter o movimento permanente na renovação constante de vida vivida e mudança, aprendendo a conhecer, ser, fazer, conviver e amar o que fazemos. O que se revelou foi que o saber da condição humana, pode se revestir de sonhos, imaginários, alegrias, subjetividades, objetividades, no desvelar de professoras com desafios multiculturais a serem superados, como a exitosa experiência observada. Isso significa, que temos a necessidade urgente de nos distanciarmos de práticas lineares, que nos impõe uma postura inflexível, não permitindo que o cognitivo se imbrique numa nova forma de construção do conhecimento. Trata-se, pois de tornar o professor em um profissional bem sucedido, com domínio de conhecimentos para atuar com resignificações na prática pedagógica, de modo criativo e adequado. Cada realidade docente, apresenta desafios particulares a serem transpostos, práticas pedagógicas a serem redefinidas, autorias a serem desveladas. Deixamos a partir de nossos olhares, na vivência apresentada nesse artigo e pesquisa, provocações para aqueles que fazem da profissão docente, a alegria de ser professor.

Referências BERNARDINO, S. F. Introdução a la investigación cualitativa em enseñanza. Artigo. Universitat de Vaència-Faculdad de Magistério. 2014

______. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

BOOFF, L. O despertar da águia: o diabólico e o simbólico na construção de realidade. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2000

MORAES C. Educar na biologia do amor e da solidariedade. Petrópolis: Vozes, 2003.

_____. Pedagogia da esperança. Um reencontro com a pedagogia do oprimido. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.

OLIVEIRA, S.M.L.G. Tecendo reencantamentos no desvelar de professoras tecelãs de autorias. Tese de Doutorado. Universidade Federal da Paraíba-UFPB, João Pessoa-PB: 2010, 212 p.

MATURANA, H. & VARELA, F. A árvore do conhecimento. São Paulo: Psy II, 1995. Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

19


Robson Xavier da Costa (*)

Tadeu Lira: a arte como história de vida RESUMO Este artigo objetiva descrever um recorte da investigação desenvolvida no ano de 2006/2007, durante minha pesquisa para a dissertação de mestrado, sobre a obra do artista naïf paraibano Tadeu Lira, representante da geração 1980. O trabalho foi baseado na “história cultural” utilizando o conceito de “circularidade”, oriundo da concepção teórica de Ginzburg (1987, 1989, 1997) e Bakhtin (2002), e de “representação” de Chartier (1999). A investigação apontou a importância do trabalho de registro e documentação da obra do artista naïf paraibano, identificando as temáticas abordadas ao longo da sua trajetória. Palavras-chave: Tadeu Lira; pintura naïf paraibana; circularidade cultural; representação.

ABSTRACT This article aims to describe an investigation cut carried out in 2006/2007, during my research for my master’s dissertation on the work of Paraiban naïf artist Tadeu Lira, a representative of the 1980 generation . The work was based on “cultural history” by using the concept of “circularity”, derived from the theoretical concept of Ginzburg (1987, 1989, 1997), of Bakhtin (2002), and the “representation” concept of Chartier (1999). The research pointed out the importance of recording and documenting the Paraiban naïf artist’s work and thus, identifying the thematic component addressed throughout his career. Key words: Tadeu Lira; Painting naïf paraibana; Cultural circularity; Representation.

(*) Artista visual, arte-educador, arteterapeuta e curador; Doutor em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU UFRN), Mestre em História (PPGH UFPB); professor e coordenador do PPGAV UFPB/UFPE e da Pinacoteca da UFPB. Email: robsonxavierufpb@gmail.com 20

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


INTRODUÇÃO

A temática desta pesquisa nos remete a alguns conceitos básicos, presentes nos estudos da “história cultural”, tais como “circularidade cultural”, um termo oriundo da concepção teórica de Ginzburg (1987, 1989, 1997) e de Bakhtin (2002), e “representação”, de Chartier (1999). Situamos esta pesquisa no universo da “história visual”, lidando com duas categorias centrais e distintas, que são “imagem” e “oralidade”, ambas portadoras de discursos, signos e complexidades específicas. Para entender esse universo, estudamos a obra do artista paraibano Tadeu Lira. Trabalhamos com imagens da arte naïf , a partir de uma amostragem da produção artística paraibana. Para trabalhar com as categorias de análise das imagens e da oralidade, recorreremos à prática da “história oral”, por meio de entrevistas de história de vida com o artista naïf e da seleção de imagens de obras (cópias e/ou originais). Durante a digitalização das imagens, deparamo-nos com algumas dificuldades, porque as reproduções de algumas obras (slides, fotografias ou cópias coloridas e/ou impressas), com mais de uma década de arquivo, foram contaminadas por fungos e umidade. As imagens da década de 1980 não apresentavam a mesma qualidade técnica das fotografias digitais dos últimos trabalhos. Alguns dos slides, de onde as imagens foram escaneadas, apresentavam fungos e manchas que, em alguns casos, mesmo depois de limpos, continuaram apresentando falhas gráficas, o que comprometeu a qualidade final de algumas imagens que seriam estudadas. As entrevistas, cuja média de tempo de cada uma variou entre duas e quatro horas, foram realizadas no turno da tarde, por ser o horário em que os entrevistados estariam mais disponíveis, no período de 21 de março a 28 de dezembro de 2006. Foram realizados contatos e visitas que antecederam as entrevistas, a fim de acompanhar a produção artística e estabelecer a proximidade necessária ao longo do desenvolvimento da pesquisa requerida pela metodologia de história de vida (ALBERTI, 2004, p. 37-38). Depois de transcritas, foram impressas e entregues aos entrevistados para possíveis correções Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

e/ou modificações nos textos, que foram devolvidos ao pesquisador com algumas modificações, juntamente com o documento de autorização para publicação. Para proceder às entrevistas, partimos de um roteiro básico, tendo como foco as experiências de vida dos entrevistados no período da infância, da adolescência e da idade adulta: sua vida na família, suas relações sociais, o início do seu trabalho, a profissionalização como artista, o desenvolvimento da técnica, a maturidade da obra, a trajetória no mercado de arte, entre outras variáveis. Como trabalhamos com a técnica de história de vida, o roteiro serviu apenas de guia para o desenvolvimento das entrevistas, porque, numa entrevista de história de vida, diversamente, a preocupação maior não é o tema e sim a trajetória do entrevistado. Escolher esse tipo de entrevista pressupõe que a narração da vida do depoente ao longo da história tenha relevância para os objetivos do trabalho. Assim, por exemplo, se no estudo de determinado tema for considerado importante conhecer e comparar as trajetórias de vida dos que nele se envolveram, será aconselhado realizarem-se entrevistas de história de vida (ALBERTI, 2004, p. 38).

Ao devolver as imagens das entrevistas gravadas em DVD, juntamente com as transcrições escritas e as fotos digitalizadas das obras para os entrevistados, percebemos que o registro lhes pareceu uma nova dimensão, que desencadeou um entusiasmo com o resultado da participação no registro de sua trajetória de vida e obra. Durante as entrevistas, na medida do possível, procuramos evitar a presença de outras pessoas, além do entrevistado, do pesquisador e do técnico de audiovisual, para garantir que o caráter confessional da história de vida fosse mantido. Apesar disso, os discursos denotaram uma forte presença do peso do julgamento familiar. Nem sempre foi possível garantir esse isolamento. Algumas vezes, fomos interrompidos por solicitação expressa do entrevistado; outras, por interferências externas - como telefonemas ou visitas inesperadas à residência, ao ateliê ou à galeria, onde as entrevistas eram realizadas. Gravamos as entrevistas em vídeo e fitas de áudio analógicas e, posteriormente, transferimos as mídias citadas para DVD e papel, respectiva21


mente. Ao longo do trabalho, anotamos dados relevantes para a pesquisa e outras informações que, porventura, não foram gravadas. Depois de as entrevistas serem realizadas, revisamos o material transposto para DVD, caso fosse necessá-

rio acrescentar qualquer informação adicional, suprindo lacunas que se apresentassem nas entrevistas. Para nortear os caminhos da leitura visual empregados neste trabalho, partimos da perspectiva teórica de Panofsky (1991).

1. TADEU LIRA: A ARTE COMO OFÍCIO

Tadeu Lira nasceu em João Pessoa, no ano de 1954. É filho do pintor acadêmico, Hugo Lira. O contato com o trabalho do pai despertou-lhe, desde criança, o desejo pela pintura. Tornou-se artista gráfico, trabalhando com ilustrações de livros e confecção de cartazes, periódicos, ilustração de poemas etc. Sua formação ao lado do pai, pintor acadêmico, transparece em sua obra no olhar atento aos acontecimentos em seu entorno. Para Manguel (2001, p. 20), “estamos todos refletidos, de algum modo, nas numerosas e distintas imagens que nos rodeiam, uma vez que elas já são partes daquilo que somos: imagens que criamos e imagens que emolduramos”. Sendo assim, Tadeu é um retratista. Assim como o pai foi um retratista do século passado, ele representa outro momento, um novo olhar. Marcado pela “estética naïf ”, suas obras refletem uma concepção peculiar do mundo contemporâneo, onde o lazer e o ornamental têm lugar de destaque. O decorativismo de suas telas é reforçado pelo excesso de detalhes, ora pela profusão de linhas de contorno escuras, ora pelo exagero dos inúmeros pontos de cor espalhados na superfície pictórica, utilizados, segundo o artista, para clarear a pintura (LIRA, 2006). Sua obra, devedora de sua formação como artista gráfico, permeia a ilustração decorativa. No entanto, mantém o frescor da pintura naïf - o excesso é diluído em uma composição segura e precisa, fruto do domínio do desenho e da observação do trabalho acadêmico do pai, como o próprio artista descreve: “sempre estava envolvido, ele [o seu pai – Hugo Lira] estava pintando e eu estava participando” (LIRA, 2006). A carreira como artista começou no fim da década de 1970, trabalhando, principalmente, com pinturas que representam temas populares, como a vida no interior, os tipos humanos populares, as festas, os eventos sociais e religiosos 22

e os índios. As imagens representadas em suas obras apresentam uma conotação essencialmente gráfica e demonstram uma forte influência do desenho a grafite e bico de pena. Suas pinturas mostram figuras humanas bem definidas, com mãos enormes, lembrando os traços da fase antropofágica da artista Tarsila do Amaral, contornadas por uma linha preta grossa. O tema mais comum de que trata tem sido a representação da cultura indígena. A representação do índio e da sua cultura aparece, em sua obra, associada a um discurso de proteção à natureza, com uma preocupação ecológica, embora o artista não tenha nenhuma experiência direta com as populações indígenas. Os índios surgem em suas telas portando exuberantes cocares preenchidos de pontos multicoloridos (LIRA, 2006). O excesso de detalhes é uma marca registrada do seu trabalho. Sua técnica pontilhista é única na produção naïf do estado da Paraíba. Tadeu transita entre a pintura, o desenho e a escultura, respeitando os diversos suportes e explorando suas possibilidades, sem perder sua identidade visual como artista. Foi premiado várias vezes, no Salão Municipal de Artes Plásticas (menção honrosa), no Salão do Desenho (2º lugar), no I Concurso para Escolha da Imagem do Cartaz para a Bienal do Livro Infantil, promovida pelo SESC – Rio de Janeiro, em 1987 (1º lugar), e premiado no Concurso para Escolha da Capa do Catálogo Telefônico (Telpa/Listel) durante quatro anos seguidos (1989 a 1992). No período em que a pesquisa estava sendo desenvolvida, continuava aliando seu trabalho como artista gráfico no Setor de Artes do jornal A União à sua produção como artista visual, experimentando novas técnicas, como é o caso das máscaras e das esculturas produzidas com material de sucata selecionadas para a Bienal Naïf s do Brasil: Entre Culturas, realizada em 2006, pelo Serviço Social do Comércio (SESC) de Piracicaba - São Paulo. Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


Ao longo de sua atuação como artista, realizou cinco exposições individuais e participou de várias coletivas em todo o país, com mais de oito participações no Salão Municipal de Artes Plásticas. Seus trabalhos fazem parte de coleções particulares em todo o mundo. Para entender como é a pintura, para Tadeu, é necessário compreender a estruturação

do seu pensamento sobre o ato de pintar, adentrar seu universo imaginário, conviver com seus diversos personagens, com seu bestiário domesticado pelos pincéis, com seus índios, que parecem fazer poses para fotos de família. Apreciar o conjunto de sua obra é, na verdade, pôr os olhos em um extenso álbum, um portfólio de recordações imaginárias.

2. NAÏF: TEMAS REVISITADOS

A representação infantil é um tema constante na maioria das obras naïfs. A técnica e as imagens figurativas estão presentes como um forte elemento imaginário, que remetem a paisagens ensolaradas e bucólicas e retratam as manifestações populares, em que surgem animais de estimação, cenas campesinas, brincadeiras de roda, brinquedos populares, histórias e lendas. Os artistas entrevistados parecem ter uma forte ligação com os contos infantis, pois expressam, por meio da fala, um saudosismo involuntário em relação ao mundo da criança. A maioria das imagens naïfs expressa cenas da vida no meio rural ou a estilização do mundo urbano presentes na história de vida desses artistas. Durante a entrevista, Tadeu Lira retrata sua infância como um período em que esteve acompanhando as atividades do pai, como expressou na entrevista: “A minha infância (...) foi mais ligada ao que pai fazia, pai pintava (...) quando ele tava pintando, eu estava sempre do lado dele” (LIRA, 2006). A pintura aparece, na fala de Tadeu Lira, durante a sua infância, como um caminho para o mundo do trabalho. Associada à profissão do pai, o pintor Hugo Lira, a pintura é vista por Tadeu, quando criança, como um ofício, uma possibilidade de trabalho, e não, como uma diversão ou passatempo, como é comum à maioria das crianças. Em suas pinturas, Tadeu retrata as crianças como adultos em miniaturas. Na série dos índios ou em outras séries em que aparecem crianças, todas elas são elaboradas com traços anatômicos que se repetem nas figuras dos adultos. Observando a figura 01, identificamos três mulheres índias, pintadas lado a lado, em uma cena urbana. Duas delas portam nas mãos os animais em extinção - a tartaruga e o tucano - que são Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

elementos da sua cultura, como também produtos do comércio ilegal de animais silvestres. No centro, há uma criança no colo, sob os cuidados e a proteção da mãe: suas características físicas são de um adulto em miniatura. A obra apresenta uma conotação de denúncia da situação atual dos índios no país e uma visão idealizada deles. Em seu depoimento, a infância e a adolescência estão sempre associadas ao trabalho; as crianças, em suas telas, acompanham os adultos nas tarefas do cotidiano. Com seu desenho de linhas firmes e precisas, Tadeu compõe cenários gráficos em suas telas, fruto da experiência no setor gráfico de jornal. Suas figuras são múltiplas formas que se repetem, com pequenas mudanças de detalhes das roupas e dos cabelos, e as imagens infantis seguem o mesmo caminho, apresentando uma conotação social. A repetição parece ser uma constante em suas composições, e sequências de casas, de pessoas, de objetos e de pontos estão sempre presentes, o que se torna uma marca de sua obra (figura 02, na página 24.). Para o artista entrevistado, a juventude foi uma fase de dedicação ao trabalho, qualquer que fosse, incluindo a formação inicial para a Arte. As descobertas profissionais ocorreram de forma diversa. Tadeu Lira almejava tornarse artista e, desde jovem, procurava formação adequada e ingressou no mercado de trabalho na área de Publicidade. No ambiente doméstico, foi incentivado e teve as condições necessárias para se tornar artista. Em relação ao pai, declarou em seu depoimento: “(...) ele sempre incentivou (...) nunca dava opinião não, deixava à vontade” (LIRA, 2006). Apesar de ter recebido o incentivo do pai para seguir em frente com o seu trabalho como 23


Tadeu Lira - Areia Vermelha, década de 1980,

Tadeu Lira - Índio crucificado. Acrílica

acrílica s/tela - Coleção particular

s/tela. Década de 1990 - Coleção particular

Fonte: Foto - acervo do autor, 2006.

Fonte: Foto - acervo do autor, 2006.

artista, Tadeu Lira procurou, desde o início, afastar-se da influência direta do trabalho dele e optou pela pintura naïf como uma maneira de se diferenciar do estigma de filho de artista. Para ele, “família sempre (risos) (...) é do lado do artista, nunca vai ser contra.” Quando fala dos próprios filhos, afirma: “Todos tinham um grande interesse [pela arte], eu vi que não tinha futuro (...) (risos) como eu já estou dentro mesmo, não tem mais jeito” (LIRA, 2006). Mesmo reconhecendo as habilidades dos filhos para a arte, preferiu afastá-los desse caminho e direcioná-los para os estudos, até que eles se esquecessem do assunto. Para Tadeu Lira, a Arte sempre foi pensada como uma profissão, e ele tentou manter o mesmo padrão financeiro da família ou, quando possível, melhorá-lo. Como isso não foi possível, devido aos altos e baixos do mercado de Arte, passou a demonstrar desencantamento com o trabalho. Apesar disso, tem tentado produzir quadros temáticos para concursos que possam garantir reconhecimento e algum retorno econômico. Segundo o artista, os demais familiares só começaram a valorizar sua produção depois que o trabalho passou a ser elogiado nos jornais ou indicado por outros artistas famosos. Outro elemento presente na fala do entrevistado foi a mi-

gração para outros estados do país que, para ele, não foi uma tentativa de melhorar a qualidade de vida da família, mas o início da profissionalização como artista. Desde criança, Tadeu Lira recebeu o apoio do pai. Mesmo assim, trabalhou muitos anos como artista gráfico. Iniciou a carreira em São Paulo e continuou em João Pessoa, como descreve em sua fala:

24

(...) Quando eu fui para São Paulo, comecei a visitar muitas galerias, (...) eu era mais ligado às artes gráficas, a parte da propaganda e publicidade (...) lá eu não tinha tempo para pintar. Aí comecei a visitar aquelas feiras, feira de Embu, exposição também, quando agente tinha convite eu ia, aí comecei a me interessar. (...) Lá eu não tive chance de me envolver com artes plásticas (...) Eu trabalhava mais com (...) publicidade na agência de propaganda. Não tinha curso nenhum... trabalhava em gráfica (...). (LIRA, 2006).

Na década de 1980, quando já residia em João Pessoa, Tadeu começou a pintar nas horas vagas, principalmente à noite, já que trabalhava dois expedientes na gráfica do jornal A União. Logo depois, começou a expor sua produção artística. Sua obra retrata sua história de vida, crenças, alegrias e desventuras. Ao longo da Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


carreira, esse artista construiu um simbolismo característico, que o diferencia dos demais naïf s paraibanos. Para Jung (2000), o entendimento da imagem assenta-se no modelo da busca do autoconhecimento, por meio do estudo dos sonhos ou das imagens espontâneas em busca do equilíbrio do ser, representado pelo simbolismo. O simbólico está presente na estrutura das organizações sociais como elemento diferenciador da diversidade cultural, presente em todas as culturas ao longo da construção do domínio da civilização humana no planeta. As manifestações ligadas aos sistemas simbólicos são expressas pela humanidade, desde tempos imemoriais, por meio de diversas formas de manifestação na religião, na mitologia e na Arte. O simbólico é um elemento da estrutura da concepção artística que perpassa as formas de pensamento, os elementos sensoriais, as maneiras de se expressar, a construção dos elementos da linguagem visual e as formas de se ler a imagem. Evoca os sentimentos e cria as ferramentas necessárias para construir o imaginário simbólico universal. Entendemos que as Ciências Humanas, englobando a História, não devem desconsiderar o potencial latente de conhecimentos oriundos dos símbolos, como diz Duran: “[...] a precisão científica não pode abrir mão de uma “realidade velada” (...), onde os símbolos, estes objetos do imaginário humano, servem como modelo...” (DURAN, 2001, p. 71). Abordamos as “imagens como evidências”, como propõe Burke, ao afirmar que “[...] os testemunhos sobre o passado oferecidos pelas imagens são de valor real, suplementando, bem como apoiando as evidências dos documentos escritos” (BURKE, 2004, p. 233). Buscamos, por meio da polissemia das interpretações e de seu testemunho sobre a história de vida dos artistas/ produtores, suprir as lacunas que eventualmente os textos sobre as imagens estudadas não apontem. Algumas características utilizadas para identificar a pintura naïf, em nível global, e presentes na pintura dos artistas estudados, como o uso de cores chapadas e planas, a forte incidência de signos regionais, as imagens essencialmente figurativas, a ausência de perspectiva,

as composições multicoloridas, a representação idealizada do cotidiano e a supressão do volume, da luz e da sombra foram levadas em conta durante a análise das imagens nesta pesquisa. No conjunto da obra de Tadeu Lira, o lúdico aparece como manifestação de atividades de lazer em espaços coletivos, como praias e pontos turísticos e jogos populares, como o futebol, por exemplo; festas locais, como o carnaval, as vaquejadas, etc. Seu trabalho é menos intimista e mais ilustrativo do mundo ao seu redor, e seu foco é o registro de imagens da cidade de João Pessoa ou de fatos do cotidiano do país, que chamam a atenção do artista. Encarada dessa forma, a arte é uma ilustração do mundo, um registro iconográfico do mundo da imagem. Em 1985, juntamente com seu pai, Hugo Lira, Tadeu criou uma série de imagens sobre a cidade de João Pessoa, que resultou em uma exposição coletiva apresentada na Galeria Artenossa1. A imagem que vemos na página 26 fez parte da exposição citada e retrata, como outras telas do artista, o universo lúdico na grande João Pessoa. O espaço retratado é a ilha de Areia Vermelha (figura 03, na página 26), no município de Cabedelo, conhecido ponto de encontro de barcos turísticos durante as marés baixas. Com um temperamento recluso, de pouca conversa, Tadeu retratou uma cena cotidiana nesse espaço público, com muitas figuras humanas, barcos, vendedores etc. Na multiplicidade de figuras humanas e de objetos representados nessa imagem, pode-se perceber o cuidado do artista em manter alguns dos elementos técnicos constantes em sua produção para garantir a identificação estilística da obra. Os pontos são apresentados na água do mar, no amontoado de pessoas; o movimento visual é reforçado pela direção descontínua das figuras e dos barcos, e a aparente confusão, no espaço pictórico, reflete a intensa movimentação da cena retratada. Tadeu é um alquimista da matéria visual do mundo, um homem preocupado com os acontecimentos ao seu redor. Informado pela TV e pelos jornais, está sempre atento às últimas notícias. Como trabalha no parque gráfico do jornal A União, há mais de vinte anos, está sempre a par do que acontece na cidade e no mundo. Tadeu

1. A Galeria Artenossa funcionou em João Pessoa até a década de 1990.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

25


Figura 03 - Tadeu Lira, s/título, acrílica sobre

Figura 04 - Tadeu Lira, sem título, acrílica sobre

tela, década de 1980 - Coleção particular

tela, década de 1980 - Coleção particular

Fonte: Foto - acervo do autor, 2006.

é um homem que encara os fatos como acontecimentos, registra-os por meio da pintura e descreve, visualmente, momentos vividos ou imaginados. As imagens criadas por esse artista podem ser consideradas um registro visual, um factoide jornalístico, minuciosamente descrito por meio do desenho. Tadeu pinta a vida como uma grande festa. Em inúmeros trabalhos, deixa suas impressões sobre as manifestações culturais e momentos especiais para a população, representando o lúdico coletivo. Suas figuras aparentam sempre imobilidade e uma estrutura corporal rija, o que é mais acentuado nos grandes formatos. Muitas vezes, as imagens dos rostos das figuras parecem se repetir em uma multiplicidade de faces, onde os detalhes denotam os traços da personalidade do retratado. Seu tema mais corriqueiro é o do índio (Figura 04), um elemento que está representado desde o início de sua obra e que aparece de formas diversas. Em alguns casos, é a imagem do índio em sua cultura nativa; em outros, lembra o índio estilizado, presente nas agremiações carnavalescas e nas grandes escolas de samba do carnaval. Para o jornalista Ricardo Anísio, “os cocares dos índios [pintados por Tadeu Lira] surgem nas telas como caldas de pavão” (ANÍSIO, 1988). Em algumas obras de Tadeu Lira, observa26

Fonte: Foto - acervo do autor, 2006.

se esse apego ao decorativo: a figura do indígena aparece como um símbolo adornado por uma extensa moldura de pontos, linhas e cores que formam um imenso cocar. As imagens de grandes cocares, com plumas variadas, foram popularizadas no Brasil, com a estilização das agremiações carnavalescas, e divulgadas na mídia televisiva. Na obra de Tadeu, os elementos simbólicos da cultura indígena são apropriados em novos símbolos apresentados como elementos decorativos, montados em cenas religiosas, com representações bíblicas e católicas, apresentando o índio como o Cristo, e emolduram uma compreensão singular dessa questão. Os índios pintados por Tadeu são personificações do olhar do homem urbano sobre uma cultura silvícola, permeada pelo imaginário do colonizador, que achava deslumbrante o farfalhar de penas coloridas em corpos nus, adornados por penachos e pinturas corporais. Sua visão não é maniqueísta, mas de um olhar puramente gráfico; cores, linhas e formas interessam pela possibilidade de compor, pelo prazer visual, pelo êxtase decorativo. Seus índios são representações estilizadas próximas dos personagens da dança folclórica do caboclinho de Pernambuco ou dos destaques carnavalescos presentes no carnaval tradição de João Pessoa. Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo sobre a estética naïf permite considerar a trajetória pessoal singular dos artistas, diante da estrutura das formas de dominação cultural, em contato com possibilidades de interação entre os diferentes níveis sociais. A abordagem multicultural, a cultura visual e o imaginário são concepções teóricas por meio das quais é possível compreender por que o fenômeno naïf vem se mantendo no turbilhão da arte contemporânea. A arte naïf , geralmente descrita pela História da Arte como uma tendência à parte das principais abordagens estéticas, mantém-se como possibilidade de expressão para uma parcela significativa da comunidade de artistas. Como pesquisador, encontrei, na história oral e na história visual, possibilidades para o estudo dessa forma de expressão, que, por seu turno, enseja potencialidades para um trabalho a propósito do cotidiano popular, uma vez que, nessa iconografia, predominam as imagens do dia a dia, numa dimensão que a aproxima de um documento da

vida cotidiana, em especial, das comunidades rurais e das pequenas cidades interioranas. As obras naïf s convivem com a produção contemporânea na arte, possibilitando o questionamento dos códigos hegemônicos e etnocêntricos em vigor. Esse convívio foi derivado da abertura que deu origem à valorização da arte das “crianças”, dos “esquizofrênicos”, dos “selvagens” e dos “povos primitivos”, produzidas em todo o mundo ocidental, com estruturas culturais diversas da instituída pelos códigos dominantes na arte. Tadeu Lira é um típico representante da pintura naïf f paraibana das décadas de 1980 e 1990, que, infelizmente, devido a problemas de saúde, diminuiu gradativamente sua produção nos anos 2000. O registro, a documentação e a divulgação de sua produção são centrais para garantir a presença na memória da história da arte paraibana da obra de um dos mais diferenciados artistas naïfs de sua geração.

Referências ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa – Portugal: Difel, 1997.

ANÍSIO, Ricardo. A vida dos índios: exposição hoje na Galeria Gamela. João Pessoa: Jornal A União, segundo caderno, 15 de setembro de 1988.

_____. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 5ª Ed. São Paulo: Annablume, 2002. BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Trad. Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru - SP: Edusc, 2004. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1999. DA COSTA, Robson Xavier. Trajetórias do olhar: pintura naïf e história na arte paraibana. Dissertação de Mestrado em História. Orientadora Drª. Regina Maria Rodrigues Behar, PPGH UFPB, 2007. DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. 2ª ed.Trad. René Eve Levié. Rio de Janeiro: Difel, 2001. Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

_____. Mitos, emblemas e sinais. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. JUNG, Carl-Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Trad. Maria Luíza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. LIRA, Tadeu. Entrevista concedida a Robson Xavier da Costa. João Pessoa. 30 de junho de 2006. MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. Trad. Rubens Figueiredo, Rosaura Eichemberg e Cláudia Strauch. São Paulo: Cia das Letras, 2001. PANOFSKY, Erwin. Iconografia e iconologia: uma introdução ao estudo da arte da Renascença. In: PANOFSKY, Erwin. Significado das artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991.

27


José Flávio Silva (*)

Teoria para um teatro na Paraíba

RESUMO Neste artigo procurou-se desenvolver uma investigação sobre folguedos populares, principalmente o Boi de Reis, ou Bumba-meu-boi. Nesse sentido, Mateus, o personagem principal, serve de modelo para expressão corporal do folguedo. Realizou-se também uma reflexão sobre os primórdios da ditadura da censura. Para tanto, tomamos por base o teórico Grotowski, a fim de fundamentar a essência da expressão corporal nordestina. Como resultado, foram montadas algumas peças teatrais populares, baseadas nas teorias de Grotowski: Chico Rei (pelo grupo Formação) e O Asilo (pelo grupo Moca). Palavras-chave: Expressão corporal; teatro popular; teoria folclórica; nordeste; censura; resistência.

ABSTRACT In this article, we searched to develop an investigation related to Northeastern folk plays and dances, particularly the “Boi de Reis”, a sort of folk dramatic show having a fake, dressed-up “ox” as its central character. “Mateus” is the role model in such sort of bodily art expression. We also reflected on the censorship dictatorship’s early times in Brazil. We resorted to the theoretician Grotowski, in order to support the Northeastern idea of the bodily expression essence . Thus, a few shows based on his theories were staged: Chico Rei (by the group Formation) and the Asylum (by the group Moca). Key words: Body language; folk theater; folk theory; Northeast; censorship; resistance.

(*) Professor aposentado do Departamento de Filosofia da UFPB. Teatrólogo, membro da ONG Padre-Mestre João do Rego Moura, escritor e pesquisador e autor da peça Panthera dos Olhos Dormentes (2014). E-mail:joseflavio12@yahoo.com.br 28

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

O artigo exposto foi escrito em 1982, quando grupos amadores de teatro procuravam saída para suportar a censura da Polícia Federal. Vivendo no meio teatral, encontrei nos folguedos populares, principalmente no boi de reis, a base teórica para desempenhar a expressão corporal, fundamento para o teatro na Paraíba. Para não ficar sozinho, vasculhei, na história do teatro, teóricos que fundamentassem o meu propósito. Incursionei por Stranvslaski e Bertold Brecht. Depois, encontrei em Jerzei Grotowski, dramaturgo polonês, elementos que coin-

cidiam com meu propósito a respeito da teoria sobre a expressão corporal nordestina. Era momento apático, e o mundo adolescente começava a vislumbrar outros horizontes com a ingestão de drogas, como o LSD, e a disseminação de hippys. Contemplando essas bases teóricas, parti, com alguns colegas, para tornar concreto o que, até então, era teórico e montamos uma peça baseados em teorias sobre aquela expressão corporal. Chico Rei, de Walmyr Ayala, foi o texto escolhido. O grupo MOCA também encenou a peça “O asilo”.

INTRODUÇÃO

Depois de mais de uma década de militância no teatro amador, escrevi, em 1982, o artigo “Teoria para um teatro na Paraíba”. Até esse ano, não havia encontrado qualquer teoria sobre expressão corporal nos folguedos populares. Contava apenas com o livro “História do teatro na Paraíba”, o único de autoria de Walfredo Rodriguez. Rondavam em torno de mim elementos que serviram de fundamentos para a elaboração do artigo. Em primeiro lugar, na infância vivida na cidade Caiçara, geograficamente localizada no brejo paraibano, tive contato com as manifestações populares, principalmente com o boi de rei, o babau, o ventríloquo e seus bonecos falantes, sentados sobre suas coxas, e as estórias de reis medievais e da carochinha, narradas, dramaticamente, por minha avó Calu, além dos dramas apresentados nos circos mambembes que percorriam o interior das cidades paraibanas. Essas expressões artísticas ficaram incrustadas em minha memória. Senti a necessidade de colocar o praticado naqueles folguedos populares em teoria substanciada na estética. Na época, outros autores pesquisavam o que haviam vivido na infância, principalmente em Recife, Pernambuco, com Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna no Teatro Popular do Nordeste. Na Paraíba, dedicavam-se ao estudo dos folguedos José Nilton da Silva e Altimar Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

Pimentel. Deste último, várias peças teatrais foram escritas, e algumas foram montadas, entre elas, “Cemitério das juremas”, “O auto de Maria Mestra” e “Viva a nau catarineta”. Preocupado com essa posição, resolvi procurar algo que fundamentasse a representação teatral. Comecei a querer saber quem eram Sófocles e Aristófanes e quais eram suas bases para que compusessem peças escritas que ficassem em evidência até o Século XXI. Aliado a esses dramaturgos, procurei outros autores contemporâneos e esbarrei em Grotoswiski. Foi assim que surgiram as reflexões embutidas no artigo abaixo. Nosso espírito amadorista não enxergava utopias adiante do nariz. Era ensaiar, ensaiar e apresentar sem qualquer preocupação em teorizar sobre a arte de representar. Assim eram os atores dos folguedos populares, que também se comportavam semelhantemente aos atores amadores. Os diretores de peças acompanhavam o amadorismo, formavam um grupo coeso, visando, um dia, tornarem-se profissionais. Enquanto isso, a renovação constante no entra e sai de pessoas nos grupos indicava a insistência de conservar e eternizar o teatro. A rigidez da censura instalada na Polícia Federal não era motivo de desânimo dos abnegados militantes do teatro amador. O teatro continua. 29


Por isso revirei meu baú e, para contribuir com a História do Teatro na Paraíba, estou mostrando que, na década de 80 do Século XX, refletia-se, teoricamente, sobre o interior do teatro em sua essência. É o que está exposto no texto abaixo.

MATEUS DO BOI DE REIS “Entre todas as danças e folguedos brasileiros, o mais conhecido é o bumba meu boi, encontrado na Paraíba, em vários municípios, e também em vários países do mundo, apresentando uma história interessante e lúdica. Assim se diz no Brasil: ´Quando a Mãe Catirina fica grávida, ela só tem um desejo: comer a língua e o coração de um boi, e seu marido sai procurando um. O que encontra ele mata. Só que, antes que Mãe Catirina realize seu desejo, aparece o dono do boi, fala que ele era de estimação, fica fulo da vida e quer seu boi vivo outra vez, cus-

30

te o custar. Então, sai todo mundo à procura de um médico ou curandeiro para ressuscitar o boi. E assim que é ressuscitado, começam as brincadeiras em torno dele. Todos cantam, dançam, e o boi faz investidas contra pessoas que estão por perto e que, por um motivo ou outro, não são de sua simpatia. O bumba meu boi também é conhecido como: boi-bumbá, boi-jardineira, boi-jacá, boi de reis, boi de mariquinha, boi de mamão, boi, boizinho, boicalemba, reis de boi.´(in Janete Lins Rodriguez (coordenação): Atlas escolar Paraíba, p. 173)

O teatro paraibano não se distancia muito do resto do país. Cada lugar tem seus problemas internos, que conduzirão a uma concepção geral do teatro e seus problemas. É ingenuamente amador. É nesse sentido que podemos formar uma teoria sobre a expressão corporal no teatro. Como atividade humana, é inegável sua necessidade social e contribui para que o homem tenha

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


espaço para construir sua vivência e sua capacidade de se desenvolver intelectualmente. Nesse prisma, o teatro não tem obrigação de estar presente nas atividades individuais do homem, mas na convivência social. O teatro, com todo o seu aparato, da iluminação à maquiagem, é uma forma de se apresentar a necessidade do homem - necessidade social. Com toda a indumentária que lhe reveste, é necessidade do homem – desde os primitivos até o momento atual -devido às manifestações que tem apresentado no passar dos séculos. Os fatos que os séculos têm demonstrado no tocante a esse ponto têm sido uma contribuição das nuanças sociais sofridas nas diversas sociedades por onde o teatro tem passado. Farei uma demonstração teórica de uma expressão corporal para um tipo de teatro dirigido à cultura nordestina. Como expressão de um povo, o nordestino tem uma cultura que dispõe de elementos suficientes para desenvolver uma típica expressão corporal. Até agora, não me recordo de alguém que tenha falado sobre isso. Muito se tem falado sobre a cultura nordestina, mas sobre a expressão corporal com que ela tem contribuindo não tenho qualquer que seja o conhecimento. É sobre essa expressão que procurarei teorizar e, possivelmente, pô-la em prática. Nas alegorias de palhaços, nas interpretações do Mateus e do Berico do Bumba meu boi ou, comumente conhecido como Boi de reis, do qual assisti a muitas encenações, há o universo encantador do povo nordestino. Suas expressões corporais têm algo de contente, alegre, descontraído e melancólico. As cantigas e as danças também fazem parte dessas personagens de acesso a minha infância. Muito se tem falado na semelhança de sua apresentação com a Comedie D`Arte italiana. No entanto, não se falou ainda de sua expressão corporal. Deixando em suspense o bumba meu boi, entro em outro campo, que também deve conferir o que estou querendo defender como expressão cultural e, em meu particular, como expressão corporal típica de um desenvolvimento regional. A barca, como é conhecida por nós, também tem muito a contribuir com a expressão corporal. Assim, poderemos penetrar em outros campos de expressões artísticas de cunho nitidamente folclórico e popular. Nossa experiência sobre o teatro na vida do homem individual e social fundamentará miConceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

nha teoria sobre o estudo da expressão corporal nas pesquisas dos trabalhos nordestinos na parte folclórica onde o popular é responsável por transmitir e transpor o folclórico. Os povos têm demonstrado uma modificação na maneira expressiva de cultura e nisso está a expressão corporal no tocante ao teatro e seus fundamentos necessários - os atores. São eles que se expressam através do corpo. E o corpo fala comunicando-se com uma linguagem adequada e suficiente para a transmissão do que pretende isso realizar. Como o corpo é fundamento da linguagem, consequentemente, o teatro deve trabalhar sobre o corpo e o corpo. Com essas características, o teatro, na Paraíba, precisa da linguagem corporal, e só encontramos afirmativas para isso na expressão corporal. Os cursos realizados no Teatro Santa Rosa sempre foram montados em autores e pesquisadores estrangeiros, como Stranvslaski, Bertold Brecht e, ultimamente, Grotoswiski. Cada um com suas características. Não contra esses pensamentos que desenvolveram temáticas e praticaram um teatro para suas épocas que quero me insurgir, mas, com suas contribuições, encontrar o universal na expressão do corpo. Isso quer dizer que se devem estudar todos e ver as concordâncias e as discordâncias existentes entre eles e os nossos folclóricos homens populares de apresentação em suas expressões corporais. O teatro, como arte de expressão humana (digo isso porque outros animais também utilizam o teatro como manifestação de expressão artística, como o cachorro domado, por exemplo), tem característica própria de se expressar. Expressar é tornar mais precisa uma linguagem, e a linguagem aproxima os homens. Essa aproximação tem seu vínculo de comunicação. No teatro, encontramos diversos veículos. Aqui, estou tentando me confinar em apenas um, que é a expressão pelo veículo, o que também se encontra na dança. Devido à necessidade humana desse veículo, onde há um encontro de muitas pessoas, é que considero necessário o seu estudo. Quando Mateus e Birico estão no palco de Arena, não utilizam apenas o veículo de comunicação oral, porquanto seus corpos se movimentam para completar a oralidade e expressar sentimentos chistosos e melancólicos de que é composto seu espetáculo. Só com a oralidade não teríamos um 31


público para a arena dos atores Mateus e Birico. E a Catilina, juntamente com esses dois, completa todo um aparato de espetáculo cômico? Nessa perspectiva, poder-se-ia caminhar com segurança com um tipo de teatro popular que já se foi e que está deixando rastros para pesquisadores e estudos sobre um espetáculo popular. Sem levar em consideração sua agonizante morte pela sociedade de consumo, o que nos resta poderá nos dar uma visão de que ainda se pode ter uma visão de sua expressão corporal. Pelo menos isso está em minha mente ou nas imagens de assistente na minha infância, na cidade de Caiçara, no interior da Paraíba. O Mateus foi a figura que mais me chamou à atenção, por causa dos seus ornamentos característicos, como uma máscara, que encobria toda uma vivência de sofrimento secular, o rosto, chamuscado de carvão, partes de seu corpo, que eram vis-

32

tas pelos olhares populares, além de um chapéu esculhambado de couro, na cabeça, e uma chibata de couro cru de boi, acomodada no ombro e que, vez por outra, era retirada e arremessada no chão, dando um estalido para chamar à atenção do público ou para chicotear Birico, que também tinha características semelhantes. Juntamente com essas imagens, estão as do seu movimento e de sua expressão corporal. Mateus encarna toda uma ternura de sofrimentos subjugada pelos potentados senhores de engenhos. Sua pintura no corpo, feita de carvão imiscui-se com a própria e procura dela não se separar. Ser o produto de um povo que está torturado pelos poderosos. Seus movimentos são singularidades de desabafo para se libertar. Seu suor, que, durante a apresentação, vai escorrendo e escorrendo para a terra, vai mudando seu rosto porque retira parte do carvão que lhe cobre

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


o rosto e as partes dele. É o suor forte de quem trabalha e luta bravamente para se tornar pessoa, o que bem demonstra o rosto como quem quer fazer aparecer o seu interior, mas fica apenas nas nuanças e não apresenta fielmente sua figura interior, tão nítida e cristalina como a verdade é, ou como gostaria que assim fosse. É nesse tipo de espetáculo em que podemos nos orientar. Um espetáculo de liberdade, de suor e, principalmente, de luta. Há algo que nos une em torno de um tipo de espetáculo. Essa é uma constante e irreversível luta para libertar os potentados, os senhores feudais e os senhores não intelectuais, que sufocam as mentes dos que deles usam. É um teatro da libertação. Mateus mostra que o interior não corresponde ao exterior e que as ligações sociais demonstram essa luta por dias melhores e mentes mais abertas. É pesquisando sobre a expressão corporal

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

de Mateus que encontraremos uma luta para a liberdade da nossa expressão corporal. Nesse sentido, a seta não pode ser nem à direita nem à esquerda, mas em frente, sem retorno, podendo receber enxerto aqui e ali, mas nunca deixar sua diretiva para um futuro de liberdade e otimismo na luta de que se tenha uma vitória vitoriosa. O dominador não vê além dos dominados, os quais vão além dos dominadores. Parece-nos que os dominadores só se preocupam com os dominados e, neles, plantam seus impérios, seus domínios. Assim foi com os senhores donos de escravos. Porém eles viram longe a luz da liberdade e lutaram por ela. O resultado é de conhecimento de todos. É uma perspectiva pessimista, para quem quer a coisa já, e otimista, para quem quer a coisa lá. A expressão corporal do Mateus não é uma expressão íntima, na qual possa interiorizar seus sentimentos, mas social, em que as

33


pessoas que o assistem não têm o máximo de esforço para entendê-lo. Seus momentos chistosos e alegres demonstram a tristeza e a melancolia de seu povo subjugado. No entanto, tem que demonstrar aos poderosos sua alegria, sua pres-

teza, sua prontidão. Tudo isso para que possa retirar da terra, do suor que com ela se mistura e forma aquela argamassa unida de liberdade, o sustento e o fruto dessa liberdade que por ele e por ela tem amor e domínio.

MOCA E CHICO REI: EXPERIÊNCIAS TEATRAIS

Stanislavski, nos primeiros capítulos do livro, “A formação do ator”, indica esse intimismo do ator, a elevação do seu íntimo para se comunicar com os seus semelhantes. Essa é uma maneira de ver brotar do seu interior sua expressão de comunicação. É nesse caminho que se tem dado uma contribuição para a nossa formação de atores tanto no Brasil quanto nos EEUU, na França, na Europa etc. Por outro lado, Grotowski propõe também esse intimismo, só que o ator tem que se flagelar para atingir sua santidade, isto é, passar por uma fase intensa de autocontrole de seu corpo, de sua mente e explodir os dois em íntima conexão. É um teatro sumamente necessário também para libertar o indivíduo e a sociedade, só que em contexto próprio da sociedade. É um teatro de penetração íntima, de uma curtição e elevação do próprio ator a um estágio de sublimação das condições comuns do homem, mas de um aprofundamento de levitação oriental que pode muito bem servir de catarse, proposta encontrada em Aristóteles. As experiências tentadas em João Pessoa passaram por um processo de “quem quer querendo”, mas não se chegando a grandes coisas, inclusive estiveram no Teatro Santa Rosa professores para ministrar sobre Grotowski, a convite, salvo engano, do grupo teatral MOCA, com o qual montaram uma peça com essa intenção, chamada de “O asilo”. Antes mesmo que o MOCA realizasse tal feito, fui um estudioso de Grotowski. Seu livro era normal e indispensável. Em busca de um teatro pobre e ali surgiram algumas ideias que confundiram minha mente. Dirigia um grupo teatral chamado FORMAÇÃO. Chegara da cidade Mossoró Carlos Alberto, um jovem aspirante a ator. A cidade riograndense do norte era conhecida pelos festivais de arte. Carlos Alberto mantinha características descritas por Grotowski. Afirmamo-nos em torno do dramaturgo 34

polonês e começamos a estudá-lo com vistas à montagem de texto. Decidimos por montar uma peça de Walmyr Ayala, chamada de Chico Rei, um texto que eu conhecia. Em 1975, quando era professor do Colégio Estadual do Bairro dos Estados (CEBE), havia encenado com alunos do próprio colégio. Carlos Alberto – o ator – assumiu, de logo, o papel-título e tocamos os ensaios para frente. Montamos na perspectiva de um teatro pobre e despojado de qualquer luxúria de cenários. Rico na expressão, no interior do ator, em sua linguagem comunicativa do seu íntimo para o íntimo dos outros. Seu corpo era a expressão e a linguagem, como lembra Mateus. O texto dava condições para o teatro pobre. Naturalmente, não chegamos a Grotowski, mas tocamos suas ideias e procuramos desenvolvê-las no teatro de libertação. Não tínhamos cenário, mas tínhamos, além do ator, rico em suas manifestações de expressão corporal, o cenário natural da Igreja São Francisco, lugar ideal para a montagem. E “não deu zebra”, só deu o que esperávamos - a satisfação da montagem. A pobreza do teatro, despojado de todo e qualquer adereço de uma montagem, nos moldes de Stranislavski, ainda está em moda. Essa é, portanto, a proposta de nossa montagem - e quem quiser comprovar é só pesquisar no jornal O Norte da época e ler o crítico Jurandyr Moura sobre o espetáculo. Ainda sobre Grotowski, suas propostas continuam válidas, não no seu todo, mas considero Mateus dentro desse tipo de expressão corporal. Ele é o natural. Não por qualquer laboratório, exigência teórica de Grotowski. Na parte que toca à santidade do ator, até agora, só um chegou lá. Enquanto o ator de Grotowski procura fazer de sua face uma máscara, o Mateus pinta-se de carvão. A intenção é a mesma, só que as máscaras servem para mostrar ao seu patrão o que ele não é. Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


A Polônia, atualmente (1982), procura a liberdade. Grotowski já antecedeu a esses acontecimentos muito tempo antes. E o Mateus? Esse si, também vem dando sua contribuição para libertar seu povo subjugado pela chibata que ironicamente a conduz sobre seu ombro. O Mateus é, então, o símbolo de um povo oprimido e, ao mesmo tempo, opressor. Usa a máscara e a chibata para mostrar o oprimido (a máscara) e o opressor dominante (chibata). Essa cul-

tura busca abrir caminhos que o libertem dos domínios culturais que estamos recebendo do exterior, inclusive de Grotowski. Cada vez mais, há poderosos oprimindo de diversas maneiras como um polvo com seus tentáculos. A simpatia por Mateus estende-se a outros tipos de expressão corporal que devemos encontrar nas manifestações folclóricas, tais como a Barca, o Pastoril, o cavalo -marinho etc.

CONCLUSÃO A conclusão está no próprio texto. A busca de motivo para se ter um teatro ligado ao povo nordestino, em particular, ao paraibano, deve ser essa busca constante pela expressão corporal exigida para identificar naturalmente o desenvolvimento do teatro, cujos teóricos esbarram na teoria estética. Mateus, Birico, Catirina, mestres das naus catarinetas e outros personagens dos folguedos populares não têm essa dimensão estética. A estética apresentada por eles mostra, nos sentidos, a exuberância de belo intrínseco neles. Mateus

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

sempre se apresentava mascarado, uma máscara simples de carvão, como destaque para os olhos que eram circulados por algo vermelho. Tudo isso era empático a Mateus e aos assistentes e demonstrava aspectos culturais de uma postura estética. Nessa posição, seu tempo distancia-se e só ficam as lembranças de atores fazedores de risos e gargalhadas. Resgatar essa vivência está impossível, porque o desgaste não recupera o tempo passado. Resta-nos teorizar sobre esses momentos alegres deixados nos rastros impressos no tempo.

35


Maria de Fátima Marreiro de Sousa (*)

Democracia no Brasil e a nova direita RESUMO Com o fim do golpe civil militar de 1964, o Brasil vem construindo, gradualmente, a sua democracia. Novos eventos econômicos, políticos e sociais foram emergindo e, com eles, uma nova feição dos grupos conservadores, quer dizer, da nova direita, e também das esquerdas ou forças progressistas. Sem discutir o conceito entre direita e esquerda, bastante polemizado após o chamado “fim do socialismo”, o presente trabalho procurou mostrar a nova mentalidade conservadora, através das lutas travadas na Câmara dos Deputados. Por meio desse recorte, procurou-se encontrar um perfil da elite conservadora , num espaço institucionalizado de lutas, onde as idéias e posições ali são defendidas, revelando o complexo jogo de interesses e acordos. Palavras-chave: Democracia; Câmara dos Deputados; Conservadorismo no Brasil.

ABSTRACT With the end of the 1964 civil-military coup, Brazil has been gradually constructing its democracy. New economic, political and social events were emerging and, with them, a new picture of conservative groups, that is, the new “right”, and also progressive or leftist forces. Without discussing the concepts of “right” or “left”, much criticized after the so-called “end of socialism”, this article searched to show the new conservative mentality by means of discussions in the House of Representatives. Through this research cut, we tried to find the conservative elite profile, in an institutionalized space of struggles, where ideas and positions are discussed and defended, thus revealing a complex game of interests and agreements. Keywords: Democracy; House of Representatives; Conservatism in Brazil.

(*) Professora do Departamento de Ciências Sociais, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Doutora em Ciências Sociais (área de concentração: Sociedade, Desenvolvimento e Agricultura) pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. E-mail: fatimamarreiro@hotmail.com 36

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


INTRODUÇÃO

O fim do regime de exceção de 1964, no Brasil, deu lugar às chamadas liberdades democráticas e, com elas, a possibilidade concreta de dar curso a novos caminhos em busca de uma sociedade valorizadora dos direitos humanos. Esta seria uma aspiração, claro, das chamadas forças progressistas e de esquerda do país. O calendário eleitoral voltou à regularidade, os perseguidos da ditadura anistiados e, enfim, uma Carta Constitucional, sancionada em 1988, que daria lastro à governabilidade democrática. Porém, esses acontecimentos fariam parte de um mundo que, mesmo com os avanços das democracias, continuaria dominado pelo capitalismo, através das idéias do chamado neoliberalismo. Vieram as eleições diretas e, por meio delas, a sucessão de governos. Mais de vinte anos depois o povo brasileiro voltaria a escolher o chefe do Executivo central. Após o governo Sarney, escolhido pelo Congresso Nacional, foi eleito, por via direta, Fernando Afonso Collor de Melo (de 1990 a 1992), dois anos depois afastado do poder. A conclusão do seu mandato ficou a cargo de seu vice Itamar Franco. Depois vieram os oito anos de Fernando Henrique Cardoso , de 1995 a 2002. Em seguida, o comando da nação foi entregue ao primeiro presidente nascido das classes populares, o ex-operário Luiz Inácio Lula da Silva, mandatário por duas gestões iniciadas em 2003. A partir de 2010, a democracia possibilitou a eleição de uma mulher – Dilma Vana Rousseff – à chefia do Poder Executivo, tendo cumprido um mandato de quatro anos (2011 a 2014) e iniciado o segundo, a partir de janeiro de 2015. No entanto, a redemocratização brasileira Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

traria consigo a herança do poder das velhas elites burguesas e seus cooptados, a partir mesmo da elaboração da própria Constituição Federal que tem mantido, até o presente, uma série de disposições específicas que reiteram esse poder. A Lei de Anistia de 1979 pode servir de exemplo. Caracterizar a elite burguesa conservadora - ou a nova direita - em tempos de democracia carece, portanto, de recuperar a memória de que essa mesma democracia emergiu do embate entre forças progressistas e conservadoras, num espaço dominado por relações econômicas e sociais capitalistas e, como tal, estruturada em valores predominantemente burgueses. Tal condição, tornaria o novo regime neoliberal brasileiro um verdadeiro caldeirão de interesses conflitantes, onde o segmento conservador, já identificado como de direita, vem exercendo controle sistemático sobre os novos protagonistas no poder e deles tirando o proveito desejado, geralmente à base de negociações. A luta pela chamada governabilidade que está presente em todos os mandatos dos diferentes gestores públicos dessa era neoliberal no Brasil, configura-se como um complexo jogo político e de competição desigual. A opção de reconhecer a nova direita brasileira através de seus representantes e algumas de suas principais posições , se constitui numa das diferentes vias de investigação que podem expô-las e melhor caracterizá-las. Um olhar sobre o Poder Legislativo pode ajudar a captar um certo perfil dessa classe social de poder sempre renovado. A direita se nutre de um arcabouço ideológico de raízes antigas, embora com discurso aparentemente novo, visando a valorização do capital e os benefícios que pode trazer à classe que da riqueza se apropria. Nesse sentido, vale lembrar que o jogo político nunca foi simples e nele pesam as correlações de forças. 37


1. UM NOVO ESTÁGIO DA POLÍTICA BRASILEIRA

No início da década de 1990 o capitalismo consolidou seu novo estágio de desenvolvimento – a globalização - e, com ele, a concentração maior de conglomerados empresariais. Nessa fase, o Brasil passaria a ser governado por Fernando Collor de Melo que, entre outras medidas, promoveu um dos itens mais importantes da pauta neoliberal: privatizações de estatais. Buscava tornar o Estado “enxuto”, significando a idéia de Estado mínimo. Após o grande fracasso de sua gestão , foi substituído pelo seu vice, Itamar Franco, concluindo o mandato até dezembro de 1994. Em janeiro de 1995, sobe ao poder central, eleito por via direta e em um único turno, Fernando Henrique Cardoso – FHC - , cuja propaganda eleitoral anunciava o combate férreo à inflação – com o “Plano Real”. Sob esse argumento, promoveu um dos mais espetaculares processos de privatização de estatais da história do país, dentro de uma lógica que claramente beneficiaria o capital estrangeiro. Defendendo a idéia de captar recursos para superar as dificuldades do Brasil e desenvolve-lo, privatizou a Companhia Vale do Rio Doce (uma das maiores mineradoras do mundo), a Telecomunicações Brasileiras S/A – Telebrás, o Banco do Estado de São Paulo - Banespa etc. Posteriormente, ficou comprovado que essas estatais, estratégicas para o país, foram vendidas a preço muito abaixo de seu valor de mercado. O presidente da República se revelaria não mais um intelectual defensor dos interesses do país e das causas democráticas, mas um aliado das conveniências do mercado, em detrimento dos interesses nacionais. Promoveu, também, uma política de juros elevados para captação de maior volume de investimentos estrangeiros, favorecendo diretamente o sistema financeiro. A política adotada não resultou em vantagens para o conjunto da população, sobretudo porque, em sua gestão, parte substancial dos recursos eram carreados para honrar os compromissos com o pagamento dos juros da dívida externa , deixando para segundo plano as demandas de grandes contingentes populacionais mais humildes. Uma particularidade muito importante do seu primeiro governo e que serve de referência fundamental para o presente debate: em 1997 38

foi aprovada a Lei eleitoral de nº 9.504/97 , na qual passou a ser legalizado o financiamento privado das campanhas eleitorais, chancelando, portanto, o direito das empresas de investirem na eleição dos seus próprios candidatos. FHC foi sucedido por Luís Inácio Lula da Silva, Presidente da República em dois mandatos consecutivos (2003 a 2006 e 2007-2010 ), tal como ocorrera com o seu antecessor. Pessoa de origem humilde, nordestino, metalúrgico e líder sindical experiente, passaria a ser uma renovada esperança para as classes populares do país. Em torno de sua figura e de sua luta, através do Partido dos Trabalhadores - PT , as forças progressistas e de esquerda convergiram para realizar, na prática, as propostas mais relevantes da pauta de oposição ao neoliberalismo imperante no país, e assegurar os direitos dos trabalhadores, em franca decadência, haja vista o fracionamento das lutas sindicais e seu enfraquecimento. No entanto, para governar, o presidente Lula precisaria encaminhar uma reforma política que permitisse administrar com certa independência e efetivar o seu programa de governo. Na correlação de forças, sobretudo relativamente ao apoio no Congresso Nacional, não promoveu a esperada reforma política, um dos importantes motivos que levaram seu governo à adoção de medidas conservadoras. Basicamente, por essa razão, renovou acordos com o Fundo Monetário Internacional – FMI, mantendo, ainda, relativo laço de dependência às forças capitalistas internacionais. Porém, o governo Lula investiria no avanço do acordo econômico Mercado Comum do Sul – Mercosul, que vem se tornando uma via para minorar a secular dependência brasileira. Outra questão não resolvida, ainda herdada do governo FHC, foi a questão da “Lei de Anistia”. Grupos dos Direitos Humanos, partidos de esquerda e outras organizações simpatizantes da causa, esperavam que o governo Lula realmente fosse capaz de promover significativos avanços na direção da luta pela judicialização dos crimes praticados pelos ditadores de 1964. Mas o resultado de oito anos de mandato indicou apenas tímidos avanços. O governo Lula criou uma Comissão Nacional da Verdade para aproConceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


fundar as investigações a respeito dos crimes da ditadura no Brasil. Criou também a Comissão Interministerial para investigar os desaparecidos do Araguaia (Decreto 4.850/03). Não houve, no entanto, qualquer resultado concreto que indicasse uma punição dos militares, como houve na Argentina. No governo de Néstor Kirchner (2003-2007), o Congresso argentino votou pela anulação das chamadas “Leis da Impunidade” que protegiam os militares golpistas. Com esse resultado, foi possível a condenação dos ex-presidentes argentinos Rafael Videla, Reynaldo Bignone e Leopoldo Galtieri. Videla e Bignone foram condenados à prisão perpétua. “ Estima-se que mais de 2.000 pessoas, entre militares, policiais e civis estejam envolvidos em casos sobre terrorismo de estado na Argentina. Pouco mais de 400 já receberam sua sentença, mais de 300 foram condenados. ( BATISTA, 2013) Mesmo assim, com tantos limites à consecução, na prática, da carta-programa que deu lastro à candidatura de Lula, analistas do país e também estrangeiros, comungavam com a idéia de que o Brasil tornara-se, de fato, uma verdadeira democracia, com a garantia do pleno exercício de duas gestões sucessivas de um ex-operário na Presidência da República. Uma democracia liberal, mas, acima de tudo, uma democracia. Pelo menos, na aparência, no dizer de BUENO: Embora Lula fosse logo desagradar milhares (se não milhões) de seus partidários de esquerda, ao emitir sinais cada vez mais claros de que pretendia dar continuidade à política econômica “neoliberal” de FHC – chegando ao ponto de convidar para a Presidência do Banco Central o banqueiro Henrique Meirelles (ex-presidente do norte-americano Bank Boston) – a verdade é que a nação ingressava no 114º ano de sua vida republicana (...) consideravelmente modificada. Pelo menos na aparência. (...) Henrique Meirelles, Filiado ao PSDB (...) era, na aparência, no discurso e, acima de tudo, na prática – um leitor atento e aplicado cultor da cartilha “neoliberal”. (BUENO, 2010: 440)

Uma notável vitória política do governo Lula foi conseguir efetivar o pagamento da dívida externa brasileira (em torno de U$ 15,5 bilhões) ligada ao Fundo Monetário Internacional – FMI, uma das bandeiras de luta da esquerda. Isso foi possível, através da emissão de títulos da Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

dívida interna. Assim, o país liquidou a dívida com o Fundo e passou a dever aos detentores da dívida interna, geralmente setores financeiros nacional e internacional (em 2011, já havia acumulado a dívida de R$ 2,5 trilhões). O impacto da negociação deu razoável suporte político para que o presidente Lula iniciasse uma série de ações inscritas na agenda do governo, entre elas, a tentativa de implementar um plano de transferência de renda para beneficiar milhares de famílias carentes. Dados obtidos em BUENO (op. cit, 442) revelam que: “a cada ano do governo petista, mais de 11 milhões de famílias de todo o país (ou cerca de 45 milhões de pessoas) receberam cerca de oito bilhões de reais, equivalentes a 0,4% do PIB. Graças a isso, os índices de miséria no Brasil caíram 27,7% entre 2002 e 2007”.

Apesar dos limites para desencadear uma significativa mudança no país, o governo Lula alcançou conquistas relevantes para vários segmentos da classe trabalhadora e da classe média, o que permitiu a vitória de mais um dos quadros do PT à sucessão presidencial, em 2011: Dilma Vana Rousseff. A sucessão presidencial levou a senhora Rousseff à chefia do governo, depois de ter derrotado o seu concorrente José Serra, candidato do Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB. Ela tornou-se uma expressão política nacional e internacional em virtude de ter sido não apenas a primeira mulher a alcançar o mais alto cargo público republicano brasileiro, mas também por ter sido uma das perseguidas políticas do regime de 1964. Dilma passou a ser uma esperança renovada de milhões dos que nela votaram, na expectativa dos avanços no campo das questões sociais. Em torno do nome de Dilma, mais uma vez, uniram-se as forças progressistas e de esquerda, aspirando aprofundar algumas conquistas importantes deixadas pelo seu antecessor. Governou o país entre 2011 a 2014 e foi reeleita, para uma nova gestão, no período que compreende 2015 a 2018 , numa disputa bastante acirrada contra seu opositor, Aécio Neves, do PSDB . Dilma venceu as eleições por meio de uma coalizão de partidos com diferentes orien39


tações ideológicas, tendo como principal aliado o Partido do Movimento Democrático Brasileiro - PMDB, de onde saiu o acordo que resultou na escolha do vice-presidente Michel Temer. Desse modo, haveria a expectativa de que ponderasse entre a execução de programas sociais, típicos das propostas do seu partido – o PT - e a flexibilização com os interesses conservadores. Afinal, o PMDB demonstrou ser um partido capaz de reunir, de um lado, figuras como o deputado Eduardo Cunha (neoliberal e conservador evangélico, eleito Presidente da Câmara dos Deputados), acusado por colegas parlamentares de crime de corrupção na chamada “operação Lava-Jato” e do outro lado, lideranças de destaque como o senador Roberto Requião – PMDB-PR, que tem se notabilizado na defesa da soberania nacional e das causas populares. O governo Dilma incrementou importantes programas sociais , como o “Bolsa Família” (Lei 10.836), “Minha Casa, Minha Vida” ( lei 11.977), o “Mais Médicos” (Lei nº 12.871, de outubro de 2013), o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego Pronatec (Lei nº 12.513, de outubro de 2011), entre outras ações de interesse popular. A popularidade da presidente alcançou níveis importantes por um certo tempo. Logo no início do governo, ficaria patente a magnitude das dificuldades de governar, dado os interesses conflitantes, envolvendo a própria base do governo e os partidos de oposição, contando, ainda, com as demandas de outros segmentos organizados da sociedade. Acusada pela oposição de governar através de decretos, editou medidas provisórias que, só em 2011, somaram 36 e , no ano seguinte, mais 45 medidas, algo que antes fora bastante criticado pelo PT, quando ainda não tinha alcançado o Poder Executivo Central. Mas a presidente procurava equilibrar o peso das decisões que tomava para manter o apoio das forças populares e de esquerda que nela, e no seu partido, acreditaram. Por isso, cumpriu várias agendas específicas do seu programa de governo. Pode-se destacar, no campo da educação, o fato de ter sancionado a Lei nº 12677/2012, abrindo vaga para mais de setenta mil cargos efetivos para as instituições federais de ensino A sanção da lei fortalece as políticas de expansão e democratização do acesso à educação 40

profissionalizante e à educação superior públicas. Também atende demanda histórica dos quadros das instituições federais, pelo fortalecimento das carreiras e do corpo funcional das unidades. As vagas anuais de ingresso na graduação passaram de 110 mil, aproximadamente, em 2003, para mais de 230 mil em 2011. O número total de matrículas em instituições federais subiu de 638 mil para mais de 1 milhão. Com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), foram criados 2.046 novos cursos. (REQUIÃO, 2012)

O segundo mandato de Dilma – a partir de janeiro de 2015 - tem sido fortemente marcado por uma crise política de grandes proporções. O início de sua gestão, mostra um quadro de perturbações que vão desde o descontentamento de setores progressistas e de esquerda que lhe deram apoio em passado recente, até os insistentes ataques da oposição. As sucessivas derrotas das propostas do governo no Congresso Nacional, fragilizam a sua capacidade de governar. Uma onda inflacionária incontida, somada à despesas com uma dívida pública que , no tempo presente, já passa dos três trilhões de reais , aumentam a tensão , agravada pela grande mídia que lhe faz cerrada oposição. Nas palavras de Maria Lucia Fattorelli (2015), ex-auditora da Receita Federal, “Quando o Plano Real começou, nossa dívida estava em quase 80 bilhões de reais. Hoje ela está em mais de três trilhões de reais. Mais de 90% da divida é de juros sobre juros”. No seu segundo mandato, a presidente nomeou ministro da fazenda o doutor em Economia Joaquim Vieira Ferreira Levy, ex- diretor superintendente do Bradesco e ex-integrante dos quadros do Fundo Monetário Internacional (FMI), entre 1992 e 1999. Tal decisão, desagradou uma parte importante da ala da esquerda. A justificativa dada estaria na necessidade de adotar um ajuste fiscal para equilibrar as contas do governo e garantir a retomada do desenvolvimento do país, combatendo a inflação. O que se pode depreender disso é a certeza de que ser de esquerda é um coisa, mas governar, em coalizão com outros partidos, é outra . Assim, a busca por uma precisa conceituação entre direita e esquerda é um esforço intelectual complexo e deve levar em consideração certas contradições importantes e os resultados delas decorrentes. Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


2. A FACE DA NOVA DIREITA NO CONGRESSO NACIONAL Em 2015, o Congresso Nacional brasileiro, apresentou um cenário das duas casas legislativas bem mais conservador do que outrora. Ampliaramse as eleições de representantes de fortes grupos ruralistas, evangélicos fundamentalistas e do alto

empresariado. O quadro abaixo, encontrado em FELIPPE (2014: 24), dá uma idéia básica da situação das Bancadas da Câmara dos Deputados, com o número de parlamentares em cada bancada e os temas priorizados por cada uma delas.

BANCADAS NA CÂMARA DOS DEPUTADOS BANCADA

COMPOSIÇÃO

Empresarial

217

Ruralista

153

TEMAS PRIORIZADOS Reforma dos Direitos trabalhistas, terceirização, competitividade, redução de encargos para o setor , custo Brasil, reforma tributária, renúncias e incentivos fiscais, creditícios e monetários. Flexibilização da proteção do meio ambiente; regulamentação da Emenda Constitucional 81/14 do Trabalho Escravo; regulamentar a aquisição de terras por estrangeiros; desmontar a legislação que regula a reforma agrária; brecar a demarcação de terras indígenas, quilombolas; viabilizar e renegociação das dívidas de produtores rurais.

Evangélica

75

Segurança

23

Oposição à união homoafetiva e às células-tronco; defesa da família e combate à discriminalização do aborto. Redução da Maioridade Penal; flexibilização do porte de arma; acabar com penas alternativas; modificar o estatuto do desarmamento; e da criança e do adolescente.

Sindical

51

Defesa dos direitos trabalhistas, sindical e previdenciário; manutenção da política nacional de salário mínimo; redução da jornada de trabalho.

Feminina

23

Igualdade de gênero; ampliação da licença maternidade, representação das mulheres em instâncias decisórias; combate à violência contra as mulheres; reforma política com igualdade de gênero.

Fonte: DIAP, outubro 2013

O citado quadro da Bancada dos Deputados demonstra que, pelos temas priorizados, a Câmara conta com pelo menos 468 deputados ligados, no geral, à ala conservadora. Ao longo do ano de 2015, o presidente da Câmara Federal desenvolveu esforços para aprovar Projetos de Lei considerados da mais alta relevância para o alto empresariado, onde um deles se destacou: trata-se do Projeto de Lei (PL) 4330, que permite a adoção dos métodos de trabalho baseados na chamada terceirização para todas as atividades de uma empresa (atividades-fim) e já aprovado na Câmara dos Deputados em 2015. Numa direção oposta, os Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

parlamentares progressistas e de esquerda, buscaram impedir a aprovação dessa proposta e lutam, simultaneamente, para aprovar o Projeto de Lei que proíbe o financiamento privado de campanhas eleitorais. Há uma relação estreita entre as duas propostas, embora sejam de teor diferente. O trabalho terceirizado já vigora no país, porém há forças políticas conservadoras que vêm atuando para sua completa e ampla legalização. A proposta tem por base a idéia de flexibilização do trabalho, não apenas relativas às atividades complementares, mas para a atividade principal. A chamada nova direita tenta 41


quebrar a proibição jurídica que limita a sua aplicação. Aparentemente, a terceirização significaria a radicalização da divisão do trabalho, tornando-o mais eficiente. Para seus defensores, modernizaria ainda mais a produção, ampliando a produtividade, dando-lhe mais qualidade, além de expandir a riqueza, com vantagens para o empregador e o empregado. No calor dos debates e nas articulações para aprová-la, a bancada conservadora da Câmara tem se esmerado em evitar que a população compreenda a essência da terceirização, para esconder seus interesses subjacentes. Uma observação mais atenta mostrará que o fetiche da terceirização reside na flexibilização da contratação de trabalhadores e não numa mera atividade de trabalho realizado à base da cooperação. Filgueiras e Cavalcante (2015) apontam a essência da questão: a terceirização não significa externalização de fato de atividades da produção. O que se efetiva é uma contratação diferenciada da força de trabalho por parte da empresa tomadora de serviços. Com isso, procura-se redução de custos e/ou externalização de conflitos trabalhistas, aumento de produtividade espúria, recrudescimento da subsunção do trabalho, flexibilidade e externalização de diversos riscos aos trabalhadores. Em suma, com maior ou menor intencionalidade, as empresas buscam diminuir as resistências da força de trabalho e as limitações exógenas ao processo de acumulação (... ) Na verdade, querem fazer com a atividade-fim o que já fazem com as atividades-meio: gerir sua força de trabalho, com o uso de um ente interposto, obtendo todos os benefícios que essa forma de contratação lhes propicia”

O trabalho terceirizado é uma nova via para ampliar a acumulação do capital, uma vez que reduz os salários dos trabalhadores, tanto quanto também reduz a proteção da lei que, de certo modo, ainda os ampara. Em sendo sancionada, a sociedade brasileira assistirá a mais uma tragédia anunciada que condenará o trabalhador à mais dura precarização. O moralismo, que é parte inerente da mentalidade conservadora, dificilmente é acionado para repudiar a exploração predatória do trabalho e seus desdobramentos cruéis. O trabalho terceirizado desemprega, fragiliza as poucas 42

defesas do trabalhador - especialmente no que tange à organização sindical - intensifica as jornadas de trabalho, tornando-o extenuante. Seus defensores ignoram uma contradição que está na própria proposta da PL 4330: por que razão terceirizar as atividades-fim (ou a produção principal da empresa), se a idéia de terceirização foi criada exatamente para permitir a elas a possibilidade de especializar-se numa atividade principal, deixando atividades secundárias para as demais empresas auxiliares? O financiamento privado de campanha tem relações estreitas com avanço e aprovação de propostas, como a terceirização, que correm ao arrepio dos interesses e das necessidades do povo. A lei eleitoral n. 9.504/97, anteriormente citada, permitiu às empresas financiarem campanhas eleitorais e, portanto, eleger seus próprios candidatos, inclusive os gestores públicos. Esse é um instrumento valioso para dar mais musculatura à força do capital, num espaço político que lhe permite eleger bancadas completas para atuar em função dos seus interesses. A esse respeito, Caccia Bava (2015) apresenta dados interessantes: Se nas eleições de 2002 os gastos totais foram de cerca de R$ 800 milhões, em 2014 eles chegaram a R$ 5,1 bilhões, quase em sua totalidade contribuições feitas por empresas. Além das doações privadas, os partidos políticos receberam R$ 308 milhões de recursos públicos provenientes do Fundo Partidário, e as TVs receberam R$ 840 milhões de isenções fiscais pelo tempo “gratuito” de veiculação de campanhas eleitorais. Em média, nas últimas eleições, um deputado federal eleito gastou R$ 1,4 milhão para se eleger; um senador, R$ 4,9 milhões; os candidatos eleitos gastaram onze vezes mais que os não eleitos. Os que não contaram com esse aporte financeiro em suas campanhas, por melhores candidatos que fossem, salvo raríssimas exceções, não se elegeram.

O interesse privado, nas eleições brasileiras de 2014, conseguiu eleger mais da metade dos representantes na Câmara Federal, algo em torno de 70%. A nova direita, no Brasil, avançou a passos largos por uma série de razões. Uma delas foi como uma reação à determinadas conquistas sociais significativas, a partir de 2003, que ameaçam afetar, pouco a pouco, interesses Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


dos grupos econômicos e seus representantes políticos. Não tem sido por acaso que, a partir dessa época e após uma década de governo petista - mesmo administrando e legislando através de coalizões muito complicadas – a reação da direita tenha recrudescido para impedir o avanço de novas conquistas. Assim, mesmo com um cenário desfavorável às demandas progressistas e populares, as articulações entre os congressistas têm resultado em certos avanços nos últimos dez anos . A título de exemplo , pode-se apontar conquistas sociais relativas ao movimento negro e das mulheres. A pressão dos movimentos sociais organizados tem sido fundamental para a obtenção desses pequenos – mas substanciais – êxitos. Para os negros, a implantação de cotas nas universidades ampliou a possibilidade desse segmento atuar e se qualificar mais no mundo acadêmico, particularmente no seleto campo da pesquisa científica. Com relação às mulheres, também houve importantes progressos em suas demandas principais. Em função de lhes proporcionar maior autonomia, o Programa de Habitação Popular, do governo Dilma, permite a aquisição de moradia sem a intermediação do cônjuge. A mulher passa a ter prioridade na titularidade do cartão “Bolsa Família” e no Programa “Minha Casa Minha Vida”, onde elas têm prioridade no registro de imóvel. Dados do governo revelam que 1,5 milhão de casas foram entregues até janeiro de 2015 pelo Programa e que, desse total, 52% estão no nome das mulheres” (Estadão, 2015) . A primeira metade do segundo governo de Dilma Rousseff tem sido marcada por forte crise econômico-política que abala seriamente a popularidade da presidente. Em tempos de globalização, a crise se divide entre problemas

de ordem interna e influências de natureza externa. Tal situação, facilita injunções das forças conservadoras no seu secular combate a qualquer tipo de gestão pública que tenha espaço para conquistas populares. Analistas, de orientação progressista, criticam o governo de Dilma, alegando que tem errado por adotar um certo “reformismo moderado”, tentando garantir a governabilidade sem se confrontar com os interesses do capital. Para eles, é fundamental uma mudança no financiamento público, denunciando que o que vigora continua, ainda, penalizando os trabalhadores e isentando os ricos. Caccia Bava (2014:3) é um desses críticos e assim denuncia: O que quer a oposição conservadora? O rentismo quer continuar recebendo algo como 5% do PIB para o pagamento do serviço da dívida pública interna (cerca de R$ 230 bilhões em 2013) e quer continuar impondo juros extorsivos aos consumidores e empresas. O agronegócio quer continuar abrindo novas fronteiras para o gado e as plantações, degradando o meio ambiente, destruindo florestas (...) expulsando a agricultura familiar (...) As grandes empreiteras querem mega obras de bilhões de reais, que depois serão sobrefaturadas para auferir maiores lucros e azeitar as relações com os dirigentes dos órgãos contratantes. E os empresários exportadores, principalmente de commodities, querem ferrovias, portos, energia, melhores condições que alavanquem seus negócios, tudo isso financiado pelo dinheiro público. Querem a chamada “liberdade de mercado” para a atuação dos cartéis que oligopolizam a economia brasileira, querem novas isenções, não querem pagar impostos. Querem também a redução do “custo Brasil” com a precarização do trabalho, da seguridade social, e o rebaixamento dos salários reais.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No tempo presente, alguns analistas admitem que os governos do PT – representados por Lula e depois por Dilma – são progressistas e de esquerda, tentando explicar a forte crise econômica e política que eclodiu em 2015 e as estratégias para o governo solucioná-las, sem abrir mão Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

dos seus princípios. Porém, outros estudiosos não consideram os governos de Lula, nem o de Dilma, como governos de esquerda. É o que diz Armando Boito Jr. , professor de Ciência Política da Unicamp. Numa análise sobre as manifestações de junho de 2013, que levaram multidões às ruas das 43


principais capitais do país - em protesto, exigindo melhorias no transporte e outras demandas correlatas - Boito refere-se ao programa de governo do PT como “burguês neodesenvolvimentista” e do PSDB como “neoliberal ortodoxo” (Boito Jr, 2013). Em opinião contrária, outros analistas concordam que o governo atuará em favor das demandas populares, na medida em que haja maior pressão das forças organizadas, deixando transparecer claramente de que lado realmente o governo está. Por isso, Frei Beto (2014: 23) , um dos reconhecidos líderes históricos das esquerdas no Brasil, chama a atenção para um dado novo no mundo contemporâneo, que é a idéia de superar o capitalismo por etapas. Para ele, “é importante ter claro a necessidade de evitar que os processos populares sejam revertidos pelo grande capital e por seus representantes políticos de direita”. Por isso mesmo, adverte que

essa tarefa não pode apenas ser do governo, mas acima de tudo, dos partidos progressistas e dos movimentos sociais. Com base nesse entendimento, Frei Beto propõe socializar o debate no meio do povo para que este possa compreender as contradições e as causas estruturais das dificuldades do país. Com esta exposição, a presente reflexão buscou caracterizar a chamada nova direita, por meio de um recurso metodológico que ressaltou algumas idéias e posições que a caracterizam, defendidas , particularmente, no espaço do poder legislativo. Além disso, também tentou demonstrar como , na prática , essas forças conservadoras e de direita limitam poderosamente governos progressistas, revelando que o jogo político é muito complexo e, por vezes contraditório, movimentando-se pelas correlações de forças.

Referências BATISTA, Liz. Argentina: sem anistia, três presidentes condenados. Há 10 anos o país iniciava o processo de revogação das Leis da Anistia. Disponível em: acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,argentina. (21/08/2013) Acesso: 13/01/2015 BUENO, Eduardo. Brasil: uma história: cinco séculos de um país em construção. São Paulo: Leya, 2010, p. 440

de-corrupcao-institucionalizado201d-9552.html Acesso: 20/08/2015 FELIPPE, Igor. Conservadorismo faz peso, cresce no Congresso e ameaça Brasil progressista. Revista Caros Amigos. São Paulo: ano XVIII, nº212/2014: p. 24

__________ Brasil: uma história: cinco séculos de um país em construção. São Paulo: Leya, 2010, p. 442

FILGUEIRAS, Vitor e CAVALCANTE, Sávio Machado. Golpes Contra o Trabalho.Terceirização: um problema conceitual e político. Le Monde Diplomatique Brasil. 06/01/2015 Disponível em: http://www. diplomatique.org.br/artigo.php?id=1799 . Acesso: 18/08/2015

BOITO JR, Armando. O impacto das manifestações de junho na política nacional. Brasil de Fato, 02/08/2013. Disponível em : http://www. brasildefato.com.br/node/15386 Acesso em : 6/8/2015

FILGUEIRAS, Vitor Araújo. Terceirização, PL 4330 e o golpe cínico. Brasil de Fato, 16/04/2015. Disponível em: http://www.brasildefato. com.br/node/31837. Acesso: 02/08/2015

CACCIA BAVA, Silvio. A captura do sistema político. Le Monde Diplomatique Brasil, Edição 94, maio de 2015. Disponível em: http://www. diplomatique.org.br/editorial.php?edicao=94 .Acesso: 10/06/2015

FREI BETO. O desafio dos Governos Progressistas. Caros Amigos, São Paulo: Editora Caros Amigos Ltda, nº 212, 2014.

________ O Modelo não para em pé. Le Monde Diplomatique Brasil, nº 89, dezembro de 2014, p. 3

REQUIÃO, Roberto. Dilma sanciona criação de mais de 70 mil cargos para ensino superior. @REQUIÃOPMDB. Postado em 27 de junho de 2012

ESTADÃO. Política. http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,no -radio-dilma-antecipa-comemoracao-do-dia-da-mulher,1136880 . Em 03/03/2014. Acesso: 02/08/2015

Disponível em: http://www.robertorequiao.com.br/dilma-sancionacriacao-de-mais-de-70-mil-cargos-para-ensino-superior-2/ Acesso 20/08/2015

FATTORELLI, Maria Lucia: A dívida pública é um mega esquema de corrupção institucionalizado. Carta Capital em 09/06/2015 04h34, última modificação 09/06/2015. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/economia/201ca-divida-publica-e-um-mega-esquema-

REVISTA EDUCAÇÃO. A pressa de Dilma na educação. Postado em 6 de novembro de 2011. Disponível em: http://revistaeducacao.com. br/textos/blog-daniel/a-pressa-de-dilma-na-educacao-241067-1.asp. Acesso em 28/08/2015

44

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


Cristiano Bonneau *

A ética do discurso na prática socrática

RESUMO Este texto trata de descrever o percurso de Sócrates na sua apologia, registrada por Platão. A obra platônica nos apresenta três fases bem distintas: primeiro a acusação, em seguida a defesa e finalmente a condenação do filósofo de Atenas. Em cada um destes momentos, confirma-se a postura que referendou a ética socrática, à partir da máxima ‘eu só sei que nada sei’. Este texto não é apenas uma aula de argumentação e destruição dos detratores da conduta de Sócrates, mas reitera sua postura edificante, bem como, as dificuldades de defender uma ética do discurso. Palavras-chave: Sócrates; Ética; Verdade.

ABSTRACT This text aims to describe Socrates’ journey in his apology, as recorded by Plato. The Platonic works present three distinct phases: first the prosecution, then the defense and finally the conviction of the philosopher from Athens. In each of these moments, the posture that endorsed the Socratic ethics is confirmed, from the precept ‘One thing I know, that I know nothing’. This text is not just an argumentation of class and destruction of the detractors of Socrates’ conduct, but it reiterates his edifying attitude, as well as the difficulties in defending an ethics of speech. Key words: Socrates; Ethics; Truth.

(*) Professor Departamento de Ciências Sociais do CCAE/UFPB - Campus IV Litoral Norte/UFPB. E-mail: crbonneau1@gmail.com

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

45


Pode soar estranho aos dias atuais e mesmo diante da esmagadora pressão do tempo produtivo em nossas vidas cotidianas, mas a questão relativa à justiça apesar de esquecida é ainda muito pertinente. Para pensarmos nesta problemática, fundamentalmente inseparável dos dilemas éticos, convocamos Platão que escreve o diálogo intitulado ‘Apologia de Sócrates’. Neste texto clássico, o pensador grego relata como fora o julgamento do filósofo grego Sócrates, mestre de toda a sua geração e ícone da tradição filosófica. Nesta obra, nos interessa exatamente a posição de Sócrates mediante acusações que, poderiam acarretar em uma condenação, esta sem dúvida, com destino para a morte. Mesmo na eminência de ter sua vida ceifada mediante um tribunal cujos acusadores não conseguem se sustentar às palavras de Sócrates, o texto revela de forma clara a inseparabilidade do discurso e da prática. O filósofo, condenado e levado para a morte que ocorrerá em mais ou menos trinta dias, encarna de fato o cidadão e o homem, demonstrando que, qualquer tentativa de separar um e outro, é o mesmo que condenar o homem à decadência e sua decrepitude moral. Esta discussão que aponta para estas duas possibilidades da formação humana, é deveras importante e vai acompanhar ser tema de tratados fundamentais para o ocidente. Basta acompanhar, por exemplo, Rousseau e Kant, nos ‘Discurso sobre as Ciências e as Artes’ e a ‘Resposta à pergunta o que é esclarecimento?” O homem e o cidadão são tematizados de tal forma à refletir sobre as relações entre um e outro e a necessidade e compreender a sua natureza humana para o alcance de um padrão de civilização e respeito pela humanidade. Acompanharemos neste texto o julgamento de Sócrates e para além de sua notável argumentação, a postura de um homem que vivia conforme a kalokagathia1 e buscava na vida pública conservar a Arete2 sem separar jamais a produção do conhecimento de sua finalidade, a política da moral e a beleza da justiça. Neste sentido, a Paidéia grega tem por objetivo a formação do homem integral, capaz de sustentar sua eudaimonia sem perder de vista a pólis. Acompanharemos o diálogo em três partes: 1) a acusação e seu conteúdo; 2) a defesa de Sócrates; 3) e, finalmente, a sua condenação e como esta se deu.

A proposta deste texto é extrair passagens consideradas importantes, para seguir o itinerário do pensamento socrático e corroborar com uma ética do discurso a partir deste registro. 1) AS ACUSAÇÕES Três são as acusações à conduta e pensamento de Sócrates. No texto abaixo, estas acusações vão sendo esclarecidas na medida em que ele expõe a sua defesa. “Sócrates erra por investigar indevidamente o que se passa embaixo da terra e do céu, por deixar bons os argumentos ruins e também por induzirem os outros à fazerem a mesma coisa.”3 “Sócrates - diz a acusação - é culpado de corromper os moços e não acreditar nos deuses que a cidade admite, além de aceitar divindades nova. Eis a acusação” 4

Neste ponto gostaríamos de destacar uma questão: em que medida as crenças nos deuses da cidade tem alguma relação com a corrupção dos jovens e a deturpação de seus valores? Neste sentido, podemos vislumbrar que o culto religioso grego, no caso de Sócrates como devoto do templo de Apolo, detinha uma influência importante sobre a educação dos jovens. A filosofia já aparece aqui como uma luz que advém do deus do sol e ilumina o mundo sombrio da ignorância. A confirmação desta relação está na República, em especial na alegoria da caverna, onde o sol, após ferir os olhos daquele que subiu da escuridão, agora ilumina os objetos ao seu redor, reestabelecendo a sua realidade. Por isso, esta acusação não possui somente um status religioso, mas paira em camadas mais profundas do pensamento platônico, e que propõem no fundo, a condenação do modo pelo qual Sócrates reflete, ou seja, o filosófico.

2) A DEFESA DE SÓCRATES Vimos na primeira parte todas as acusações feitas por Meleto e Ânito, poderosos legisladores de

1. Segundo Morando, a kalogatathia corresponde “(...)a bondade indissoluvelmente ligada à beleza, bondade resultante de um firme e equilibrado domínio de si e beleza que representa exteriormente a serena ordem interior da alma.” p. 40. 2. Segundo Châtelet, “a ‘virtude política’ - que é a virtude por excelência – e desta forma definida como o saber de um homem que é ‘capaz de as relações da cidade e, fazendo isso, assegurar o bem de seus amigos, o mal de seus inimigos, e se guardando a si mesmo de todo mal.’ Ao serem professores da ‘virtude política’, os sofistas pensando que eles prestam inestimáveis serviços tanto ao indivíduo quanto à cidade.” p. 62. 3. Platão, Apologia de Sócrates, 19 b. 4. Platão, Apologia de Sócrates, 24 B. 46

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


Atenas. A posição de Sócrates nos revela que o homem justo não se conforma ante a menor das injustiças. Neste caso a fama e a calúnia moldam para os cidadãos a conduta do patrício Sócrates. Para com esta aparência no qual permanecia envolta a figura de Sócrates, ele mesmo a refuta procurando demonstrar como a atual política está descompromissada com a própria verdade e procura sustentar-se em aparências e mentiras de ocasião. A primeira calúnia refere-se ao fato de Sócrates se beneficiar financeiramente de sua sabedoria. Nesta perspectiva, seria possível atrelar certo valor monetário a determinado saber, tendo em vista que a educação não estaria mais em volta com o conhecimento e este com a verdade, mas simplesmente sujeita a acordos financeiros entre o mestre e o discípulo. Sócrates manifesta-se em relação a esta questão: Tudo isso carece de base, como se dá, também, com a afirmação, que por certo já vos chegou aos ouvidos, de que eu procuro ensinar os outros e recebo dinheiro em pagamento, o que também não é verdadeiro. Aliás, considero verdadeira maravilha ser alguém capaz de ensinar outras pessoas, como se dá com Górgias, o Leontino, e Pródico, de Céus, e também Hípias, de Élide. Todos eles, senhores, nas cidades a que chegam têm o dom de persuadir os moços, que, aliás, desfrutam do privilégio de gozar gratuitamente da companhia de qualquer de seus concidadãos, e os convencem a abandonar estes e passar a frequentá-los mediante pagamento, acrescido dos agradecimentos de que são merecedores.5

Vejamos como Sócrates ainda argumenta acerca da questão da relação entre dinheiro e verdade. Tendo estes dois valores em jogo, quais destas duas forças determinariam o movimento da verdade? Nosso filósofo ironiza impiedosamente a forma como os políticos encaram o processo de formação do homem. Ataca aqueles que se propõem ao ensino e também, aqueles que permitem que as crianças inocentes sejam submetidas à um processo de construção do saber no mínimo sob suspeita. “Visitei casualmente um indivíduo que, sozinho, já gastou mais dinheiro com os sofistas do que todos nossos concidadãos tomados em conjunto: Cálias, filho de Hipônico. A esse, como disse, interroguei. É pais de dois filhos. Cálias, lhe dis-

se, se teus dois filhos fossem potros ou bezerros, saberíamos arranjar quem cuidasse deles, mediante pagamento, para deixá-los perfeitos nas respectivas virtudes: evidentemente, algum tratador de cavalos ou lavrador. Mas, uma vez que são homens, a quem pretendes confiá-los? Quem possui o conhecimento peculiar ao homem e ao cidadão? Imagino que já refletiste a tal respeito, visto teres dois filhos. Há alguém nessas condições, lhe perguntei, ou não? – Sem dúvida, respondeu.- Quem é? Voltei a perguntar; de onde veio e quanto cobra? É eveno, de Paros, respondeu; e cobra cinco minas. Então, comigo mesmo considerei Eveno um homem feliz, no caso, bem entendido, de possuir semelhante arte e de ensiná-la por preço tão módico. Eu também, se a conhecesse, faria alarde disso e me mostraria envaidecido; mas a verdade, atenienses, é que não conheço.6

Ora, o problema de um ‘mercenarismo’ na educação é um alerta de perigo para toda a cidade. Quais os benefícios que o dinheiro traz e que tipo de valor este é capaz de engendrar? As riquezas e honrarias são o suficiente para a formação adequada do caráter de um cidadão? Sócrates chama a atenção da comunidade para uma cultura de corsários que pouco a pouco contamina todos os setores da sociedade e míngua severamente a visão de mundo dos concidadãos. Com o conhecimento atingindo uma condição monetária, teríamos em breve uma verdade que se venderia para aquele que pudesse pagar mais e saberes fundamentais condicionados àqueles que teriam condições financeiras adequadas. A virtude, a aptidão, os dons e o Eros pela função e meio de vida nas cidades ficariam agora em segundo plano. Para Sócrates, esse contexto seria a própria essência de uma sociedade que não tem condições mínimas de alcançar a justiça. Ainda, não haveria mais nenhum comprometimento com a verdade e a ignorância faria parte de todos os currículos de formação seja de professores, médicos, políticos, advogados, engenheiros e toda sorte de ciências que dependem de disciplinas específicas e se limitariam a instruir os homens e não mais formá-los integralmente. Se os concidadãos acusam Sócrates de corromper os jovens da cidade, tendo em vista a crítica do filósofo grego para os caminhos da educação em voga, este, por sua vez, questiona que, se ele não tem condições de ser um educador, quem seria então? A irritação de seus pares advém da notícia de que Sócrates é nada

5. Platão, Apologia de Sócrates, 19 e. 6. Platão, apologia de Sócrates, 20 a-b-c.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

47


mais nada menos que o homem mais sábio que existe. Ele mesmo se explica: “Porque eu, cidadãos atenienses, se conquistei esse nome, foi por alguma sabedoria. Que sabedoria é essa? Aquela que é, talvez propriamente, a sabedoria humana. É, em realidade, arriscado ser sábio nela: mas aqueles de quem falávamos ainda há pouco seriam sábios de uma sabedoria mais que humana, ou não sei que dizer, porque certo não a conheço.”7

O fundamento para os dizeres de Sócrates e mais ainda, para a ira dos políticos de Atenas estava no pronunciamento do Oráculo de Delfos. O Oráculo avalizava qualquer opinião dos homens mortais: “Para atestar minha sabedoria- se é que possuo alguma e de que natureza ela seja- vou trazervos o testemunho do deus de Delfos. Decerto conhecestes Querofonte. Foi meu amigo de infância e também vosso, amigo do povo ateniense; ...estando em Delfos, se atreveu a consultar o Oráculo. (...) Perguntou de fato se havia alguém mais sábio do que eu. Ora, a Pítia respondeu que ninguém era mais sábio. 8

Três foram as classes manifestadas pelo Oráculo: os políticos, os poetas e os artesãos. Segundo a entidade mística, não havia ninguém nestas classes sociais, ou em qualquer outra que fosse capaz de superar a sabedoria de Sócrates. Investido de poder pelo Oráculo de Delfos e uma força dialética ímpar, não fora difícil de compreender a ameaça eminente a que seria correspondente este cidadão. Desta forma, para quem o condena julgando saber as causas e que as mesmas podem ter um fundamento verossímil, Sócrates ataca com sua filosofia: (...) no decurso de nossa conversação, quis parecer-me que ele passava por sábio para muita gente, mas principalmente para ele mesmo, quando, em verdade, estava longe de sê-lo. De seguida, procurei demonstrar-lhe que ele considerava sábio sem o ser, do que resultou atiçar contra mim o seu ódio dele e de muitas das pessoas presentes. Depois, ao retirar-me, falava a sós comigo: mais sábio do que este homem terei de ser, realmente. Pode bem dar-se que, em verdade, nenhum de nós conheça nada de

belo e bom; mas este indivíduo sem saber nada, imagina que sabe, ao passo que eu, sem saber, de fato, coisa alguma, não presumo saber algo. Parece, portanto, que esse pouquinho eu o ultrapasso em sabedoria, pois embora nada saiba, não imagino saber alguma coisa.9

A ética socrática aparece em toda sua coragem e mostra seu método, onde sem temor demonstra que os cidadãos o condenam porque acabaram descobrindo em si mesmo “a presunção de seu saber, quando não sabem nada.” Como afirmar alguma coisa acerca da conduta de Sócrates se nem mesmo os acusadores sabem do que estão falando? O que fazer mediante a crise instaurada pela defesa do filósofo ateniense que aponta para uma vida consagrada à ignorância e a injustiça levada pelos cidadãos mais respeitosos da cidade? A ignorância pode seguir dois caminhos: o primeiro, que leva ao seu reconhecimento e sua superação, eis a filosofia; o segundo, que promove a força, a arbitrariedade e a opulência. Neste caso, os cidadãos de Atenas optaram pela segunda via e por ela destinaram a vida de Sócrates. Outra questão fundamental levantada por Sócrates paira em torno do problema da virtude, e se esta é capaz de tornar os homens melhores. Diretamente para Meleto, o argumento socrático impele sobre as leis e se estas teriam a capacidade de melhorar um homem. No diálogo, o político é constrangido: Vamos amigo: quem os deixa melhores? – As leis? – Não foi isso que te perguntei, meu caro, porém o homem, que terá, naturalmente, para começar, de conhecer as leis. Estes aqui, Sócrates, os juízes. – Que me dizes , Meleto? Estes senhores são capazes de instruir os moços e deixa-los melhores? -Sem dúvida - Todos eles, porventura, ou apenas uns, outros não? - Todos. – Pela deusa Hera, isso que é falar bem! Que número de benfeitores! E agora me responde: as pessoas que nos escutam, também os deixa melhores ou não? - Essas também. -E os outros membros do conselho? -Também. – Porém, Meleto. Quem sabe se os cidadãos reunidos em Assembléia, os eclesiastas, não corrompem os moços? - Ou todos eles os deixam melhores? Esses também.- Ao que parece, todos os atenienses os deixam bons e nobres, menos eu. É isso que afirmas? Exatamente. Quanta falta de sorte me atribuis! Então, responde-me o seguinte: És

7. Platão, apologia de Sócrates, 20 d. 8. Platão, apologia de Sócrates, 21 a. 9. Idem, 21 d. 48

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


de parecer que o mesmo se passa com relação aos cavalos? Todos os homens os deixam melhores, e um apenas os estraga? Ou será o contrário disso que acontece: um, apenas, será capaz de deixá-los melhores, alguns poucos: os tratadores de cavalos, enquanto a maioria dos homens os estraga, sempre que com eles se ocupam ou deles se utilizam? 10

Vejamos que, nem todos estão aptos a fazer qualquer coisa, onde, cada qual deveria cumprir sua função de acordo com sua sabedoria. Neste caso, o próprio processo educativo está em jogo, exatamente seguindo esta lógica que determina a condição de atribuir a qualquer um a função de educador, o início do processo de decadência da sociedade. Se nem todos podem domar um cavalo, muitos menos ainda têm condições de educar adequadamente um homem: nesta situação, as crianças e jovens. A relação de Sócrates com os jovens se dá em condições de puro voluntarismo destes com relação àquele. Não há cobranças, compromissos, certificados ou qualquer outra coisa que comprove uma institucionalização desta relação, portanto, se é que Sócrates educa, este o faz involuntariamente por manter uma relação de philia com os jovens que, porventura, o procuram. Nesta altura do julgamento, Sócrates aproveita a acusação de negar os deuses da cidade apara falar um pouco de sua idéia acerca da morte, tendo em vista que esta não o afugenta. Relembrando o seu tempo como soldado nos campos de guerra ele discursa: (...) só de medo da morte ou do quer que seja viesse a desertar. Isto, sim, fora gravíssimo, e com todo o direito qualquer pessoa poderia processar-me por eu não acreditar nos deuses, uma vez que desobedecera ao oráculo. Revelei medo da morte e me considerara sábio sem que o fosse. Porque ter medo da morte, senhores, outra coisa não é senão considerar-se sábio; equivale a imaginar alguém que sabe o que ignora. Ninguém sabe o que seja a morte, e, ignorando até mesmo se porventura não será para os homens o maior dos bens, temem-na como se soubessem com certeza o que é o maior dos males. E como poderá deixar de ser censurável semelhante ignorância, isto é, imaginar alguém que sabe o que não sabe? Neste particular, senhores, é possível que eu seja diferente da maioria dos homens, e se tivesse de considerar-me excepcional

em alguma coisa, seria justamente nisto: como não conheço suficientemente o que se passa no Hades, também não tenho a ilusão de conhecer. Porém, cometer qualquer injustiça e desobedecer à um superior- deus ou homem- isto sim, sei bem que é mal e vergonhoso. Fugindo assim dos males que reconheço como tal, nunca me temerei nem fugirei dos que não sei se talvez não sejam bens. Por isso no caso de me absolverdes, sem acompanhardes Ânito, quando vos disse que eu não deveria ter vindo ao tribunal, mas que, uma vez aqui presente, não poderíeis deixar de condenar-me, pois, conforme vos asseverou, na hipótese de me absolverdes, vossos filhos se interessarão pelos ensinamentos de Sócrates, do que resultará todos eles ficarem inteiramente corrompidos; ainda mesmo que me dissésseis: Sócrates, não daremos atenção à Ânito; vamos absolver-te, com o condição de parares com esta investigação e não te dedicares de hoje em diante à filosofia; porém, se fores mais uma vez apanhado nessas práticas, morrerás por isso; se, me absolvêsseis, como vos disse, sob essa condição eu vos falaria nos seguintes termos: Estimo-vos atenienses, e a todos prezo, porém, sou mais obediente aos deuses do que a vós, e enquanto tiver alento e capacidade, não deixarei de filosofar e de exortar a qualquer de vós que eu venha à encontrar, falando-lhe sempre na minha maneira habitual: Como se dá caro amigo, que, na qualidade de cidadão de Atenas, a maior e mais famosa cidade, por seu poder e sabedoria, não te envergonhes de só te preocupares com o dinheiro e de como ganhar o mais possível, e quanto à honra e à fama, á prudência e â verdade, e à maneira de aperfeiçoar a alma, disso não cuidas nem cogitas? 11

3) A CONDENAÇÃO DE SÓCRATES PELO COLEGIADO

Percebe-se à partir daqui que o caminho de Sócrates não tem volta. O cidadão se manifesta e revela sua serenidade perante o momento difícil. Não se abstêm de suas idéias um só instante, nem teme a morte ou qualquer outra pena porque até aquela oportunidade levara uma vida justa que, segundo ele, é a única que valeria a pena ser vivida. Ele comenta aos seus pares que “se me condenardes a morte, sendo eu como vos disse, não me prejudicareis tanto como a

10. Platão, Apologia de Sócrates, 25 a. 11. Platão, Apologia de Sócrates, 29 a-b-c-d.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

49


vós mesmos”12, pois não faz parte da ordem das coisas “ser de algum modo lesado o indivíduo superior por que lhe é inferior”13 Logo em seguida, o conselho se reune e determina sua pena, previsível: a morte. No montante de votos temos 280 a favor e 220 contra. Como de costume o condenado tem direito a propor outra pena para si mesmo. Sócrates então arremata sua proposta: Não há nada tão indicado, atenienses, para um indivíduo nessas condições, do que ser alimentado no Pritaneu, muito mais do que qualquer um de vós que tivesse sido vencedor em olímpia, com cavalo de corrida ou em corrida de carro com dois ou quatro cavalos. Semelhante vencedor só vos proporciona aparência de felicidade, ao passo que eu vos deixo realmente felizes, sem contar que ele não carece de alimentos, o que se dá comigo. Se houverdes, portanto, de castigar-me com justiça e de acordo com meu mérito, eis a penalidade que me imponho: ser alimentado no Pritaneu.14

É claro como o dia que o conselho refutaria a proposta de Sócrates, que ainda tentou revidar oferecendo-se a pagar uma multa conforme ele tivesse disposição de pagar. Como Sócrates nunca tivera dinheiro algum, sequer poderia pagar o que lhe propusessem. Sua oferta era demais para quem queria livrar-se dele: ser sustentado pelo estado e ainda com glórias de um herói olímpico. Um ultraje para os acusadores que se propunham antes mesmo de qualquer julgamento e avaliação condená-lo. (...) tanto no tribunal como na guerra, nem eu nem ninguém tem o direito de lançar mão de todos os recursos para escapar da morte. Mui-

tas vezes, nos combates torna-se manifesto que poderia deixar de morrer que se resolvesse a jogar longe as armas e, súplice, se voltasse para seu perseguidor, e em todos os perigos há muitas maneiras de evitar a morte para quem não se corra de fazer ou dizer seja o que for. Porém o difícil, senhores, não é fugir da morte; muito mais difícil é fugir da maldade, porque esta corre mais do que a morte. Agora também, por tardo e velho, fui apanhado pelo mais lerdo, enquanto meus acusadores, por arrebatados e ágeis, o foram pelo mais rápido, a maldade. Vou sair daqui julgado por vós como merecedor da pena de morte, enquanto aqueles que foram julgados pela Verdade como culpados e maldade e de injustiça.15

Como cidadão, independente de concordar ou não com os seus, Sócrates acata de olhos fechados o que a maioria decidir. Podemos pensar na questão como um assassinato, de natureza política e premeditado. As raízes do pensamento socrático já estavam profundas nos jovens atenienses, e a necessidade pelo saber acerca da natureza do justo e do injusto configurara uma necessidade. Sócrates enquanto membro da polis a respeita como a si mesmo, levando em conta o desejo da comunidade em relação às inclinações individuais. Sua morte- podemos entender no seu próprio pensamento- é mais um momento para o amadurecimento da cidade. Se esta agora foi injusta e reconhecer seu erro, não cometerá mais enganos com relação aos seus cidadãos. Em vida, a posição de Sócrates em relação à sua condenação fora seu último ensinamento para os cidadãos atenienses. Em morte, nos legou a necessidade de pensar uma ética capaz de não cometer atrocidades como essa.

Referências PLATÃO. A República. Coleção Os Pensadores, SP: Abril Cultural, 1999.

JAEGER, W.W. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 4ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2001.

_______. Apologia de Sócrates. Belém: Ed. UFPA, 1974 (Ed. C. A. Nunes)

MORANDO, D. Pedagogía - Historia crítica del problema educativo, 2ª ed., Barcelona, Editorial Luís Miracle, 1961.

CHÂTELET, F. Platon. Éditions Gallimard, Paris, 2008.

12. Idem, 30 d.. 13. Idem, Ibidem. 14. Platão, “Apologia de Sócrates”, 36 e. 15. Idem, 39 a. 50

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


Jamerson Murillo Anunciação de Souza *

FAUSTO I: notas sobre o clássico de Goethe

RESUMO O texto oferece notas de leitura sobre a obra clássica Fausto: uma tragédia – primeira parte, de Johann Wolfgang von Goethe. A primeira seção discute, de maneira sucinta, a trajetória que leva das lendas alemãs sobre um famigerado doutor que teria feito um pacto demoníaco, até a síntese operada por Goethe, que eleva as lendas à condição de clássico da literatura universal. A segunda seção debate o enredo e o desenvolvimento das personagens, recuperando passagens de primorosa elevação poética. Encerra o artigo um convite à leitura dessa famosa tragédia, no sentido de perceber sua atualidade e potência para iluminar dilemas contemporâneos. Palavras-chave: Literatura universal; Doutor Fausto; Tragédia.

ABSTRACT The text offers reading notes on the classic work Faust – a tragedy - first part, by Johann Wolfgang von Goethe. The first section succinctly discusses the path leading from the German legends of an infamous doctor, who would have made a demonic pact, to the synthesis operated by Goethe, which elevates the legends to the condition of world literature classics. The second section discusses the plot and characters’ development, by retrieving passages of exquisite poetic elevation. To conclude, an invitation is made to read this famous tragedy, in order to realize its relevance and power to illuminate contemporary dilemmas. Key words: Universal literature; Doctor Faustus; Tragedy.

(*) Professor Assistente do Departamento de Serviço Social da UFPB, Campus I. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE. E-mail: jamersonsouza@ymail.com

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

51


1. DAS LENDAS AO FAUSTO GOETHIANO A leitura do Fausto I, de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), proporciona uma fruição estética única. A recente edição que utilizamos nesse artigo recupera a tradução, do alemão para o português, feita por Jenny Klabin Segall. Concluída em 1967 (após ter sido iniciada 29 anos antes), tal tradução é apontada por intérpretes e especialistas como a mais bem sucedida versão da tragédia para a língua portuguesa, uma vez que conserva a rima, a métrica e o sentido profundo do texto original. Além disso, o rigor na condução dos trabalhos, por parte de Jenny, permitiram superar equívocos (de naturezas variadas, tanto estruturais quanto estéticos) identificados nos resultados finais dos esforços de outros tradutores (MAZZARI, 2011). O leitor latino americano do século XXI, a despeito das distância temporal e cultural, consegue entrever o rico universo de influências que são reunidos pelo dramaturgo alemão. O Fausto de Goethe sintetiza e eleva as lendas que atravessaram aproximadamente 3 séculos de tradição oral e literária, em torno de um famoso e erudito Doutor que teria feito um pacto demoníaco. Os relatos sobre o Fausto histórico, um estudioso chamado, provavelmente, Johann Faustus (“o afortunado”), informam sobre sua existência real, estimada entre os século XV e XVI (MAZZARI, 2014). O Fausto histórico teria ensinado em universidades europeias, porém, o desfecho de sua vida o teria aproximado da charlatanice e aos rumores sobre um suposto pacto com o diabo, ensejado pela sua obsessão por conhecimento e constante insatisfação com o que já havia acumulado. As lendas em torno dessa figura incomum deram forma e conteúdo a algumas versões literárias que antecederam o Fausto goethiano. Essas versões estiveram presentes no imaginário, na literatura e no teatro da sociedade alemã, fornecendo forma e conteúdo às inspirações do poeta alemão, desde sua mais tenra idade (MAZZARI, 2014). Tais versões receberam sistematizações diversas, das quais caberia destacar a versão anônima, em livro, de 1587. Esta surge em uma feira de livros em Frankfurt e recebe um prefácio do editor protestante Johann Spiess. A adaptação de Georg Rudolf Widmann de 1599, e ainda outra versão publicada sem autoria, em 1725. Na Inglaterra, a tragédia recebe outras influências, das quais caberia enfatizar a peça elaborada por Marlowe, que incide sobre a encenação da tragédia em teatros de marionetes de companhias alemãs, cujo impacto e encantamento são decisivos para o jovem Goethe (MAZZARI, 2014). 52

O poeta alemão inicia sua versão em 1772, mas a obra definitiva demorou 60 anos para ser completada. Ao longo dessas décadas, Goethe, estudioso de muitas ciências de seu tempo, adquire um conjunto expressivo de conhecimentos, cujos ecos são sentidos através da erudição do Doutor Fausto. O Urfaust (Fausto Zero), designação dada por Erich Schmidt à primeira elaboração goethiana, servirá de base para a versão final do Fausto I e II. O curioso é que Goethe destruiu, posteriormente, esses manuscritos, que só puderam ser recuperados porque Luise von Göchhausen, ouvinte e admiradora do poeta, havia copiado integralmente o texto, depois de tê-lo tomado de empréstimo ao autor (MAZZARI, 2014). Goethe, fascinado pela história do sábio doutor desde a infância, afirmou: “O mais feliz dos homens é aquele que consegue ligar o fim de sua vida ao início”. Podemos supor que, nesses termos, Goethe tenha obtido êxito na busca da felicidade. Isso porque, ao cabo de sua longa vida, sua obra máxima alçou a história que lhe recobria de fascínio juvenil à condição de clássico da literatura mundial (MAZZARI, 2014). As contradições do Iluminismo, da Revolução Francesa, da ciência, das artes, bem como as transformações sociais mais significativas do período moderno, aparecem com expressão e força poética mais elevadas no Fausto II. No Fausto I, contudo, é possível identificá -las nas ideias e angústias do erudito estudioso, assim como nos sarcasmos e ardis de Mefistófeles (ou, na forma diminutiva, apenas Mefisto). As contradições da fé e da religião, em um mundo em ebulição, comparecem nas relações da ingênua Margarida (ou, segundo a designação derivada do diminutivo em alemão, apenas Gretchen) com sua mãe, com Fausto e na sua ojeriza à presença constante de Mefisto junto ao amado.

2. ANOTAÇÕES SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA TRAGÉDIA

O Fausto I, em termos de arquitetura literária, é precedido por uma dedicatória, um prólogo no teatro e um prólogo no céu, elementos heterodoxos inseridos por Goethe antes da primeira cena da obra: Noite. A primeira aposta na obra é firmada entre Deus e Mefistófeles. Como se sabe, o tema da aposta, ou pacto, é central na obra e subjaz a todas as aventuras da dupla Fausto e Mefistófeles. A aposta que abre o livro, como se nota, é celestial e versa sobre os destinos da alma de Fausto que, nesse contexto, é o representante de toda a humaConceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


nidade – daí as proporções épicas da trama. Mefistófeles, antigo observador e conhecedor das contradições humanas, afirma ser capaz de conduzir o sábio doutor pelas veredas demoníacas, ao passo que Deus, do alto de sua soberania, consente com a aposta e permite que Mefisto parta em busca de seus objetivos. Encerrando o prólogo no céu, Mefisto, sozinho, murmura: Vejo, uma ou outra vez, o Velho com prazer, Romper com Ele é que seria errôneo. É, de um grande Senhor, louvável proceder Mostrar-se tão humano até pra um demônio (GOETHE, 2014, p. 54).

Esses versos expressam bem a natureza ardilosa e sagaz da figura de Mefistófeles, que não é nem o senhor do inferno, caracterizado como Lúcifer, nem um demônio inferior. Trata-se de um espírito ancestral com poderes consideráveis. A tragédia é aberta com o sábio doutor proferindo impropérios e maledicências. Acompanhado de seu jovem assistente, Wagner (que não ocupa papel de destaque no Fausto I, mas se revelará um importante cientista no Fausto II), Fausto encontra-se sufocado pelas montanhas de livros que circundam as paredes de seu quarto de trabalho. Os livros foram, em parte, herdados de seu pai. Além do expressivo leque de conhecimentos científicos que o doutor domina, ele também é versado em feitiços e encantamentos de conjuração de espíritos. Entediado, invoca o gênio (ou espírito) da Terra na tentativa de que este lhe conceda saberes mais profundos sobre a natureza, que não se encontram nos livros. O espírito da Terra, porém, desdenha o doutor e desaparece. Constantemente angustiado com o fato de que seu enorme saber não representa uma ínfima parte do que ainda há por conhecer, o velho estudioso tenta colocar fim à sua vida por meio da ingestão de veneno. No limiar da concretização do ato, soam cânticos e sinos provenientes da catedral próxima de sua casa. Esses sons lhe rememoram boas lembranças de um tempo que passou e arrefecem o ímpeto suicida, impedindo o desfecho fatal. O próximo evento significativo se passa ao ar livre, com Fausto e Wagner caminhando pela cidade (Leipzig). Ambos identificam que estão sendo rodeados por um cão de cor preta e comportamento inusitado: rondando sempre à espreita. Fausto, a quem não se deixa intimidar facilmente, convoca o inusitado cão à sua companhia. A cena seguinte acontece novamente Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

no gabinete de trabalho do doutor, onde tenta dar continuidade ao seu trabalho de tradução da Bíblia (um ofício a mais, dentre as tantas habilidades de Fausto). Todavia, o cão, que havia sido convidado à companhia do sábio e seu assistente na cena anterior, encontra-se presente no quarto de trabalho. O “animal” aparenta incômodo com o ambiente, cercado por símbolos e objetos de poder sobrenatural. Fausto percebe que o perro está aflito e barulhento, o que passa a incomodar seu trabalho de tradução. O doutor, então, intimida-o: ou se aquieta ou será expulso do recinto. À admoestação, segue-se que o cão se desfaz em fumaça atrás do fogão. O doutor, acostumado a conjurar espíritos que sempre circundavam seu local de trabalho, geralmente para conseguir informações privilegiadas, comunica-se com eles com a intenção de entender o que se passou com o cão. Os espíritos lhe informam que, sob aquele véu de fumaça, encontra-se algo em busca de libertação. Fausto está confuso e não tem certeza da natureza daquela entidade. Para conjurá-la, declama feitiços de revelação, acreditando se tratar de alguma entidade elementar, ou seja, espírito do fogo, da água, do ar ou da terra. Salamandra se abrase, Ondina se retorça, Silfo se encase, Gnomo use força (GOETHE, 2014, p. 115).

Tentativa frustrada, pois não se trata de gênio elementar, Fausto declama um feitiço mais potente: És, ser maligno, Do inferno amostra, Vê este signo! Ao qual se prostra A horda das trevas Com pelo hirsuto já te inchas e elevas. Ente maldito! Não lês o escrito? O Incriado, Sublime, Pelos Céus Derramado, Que não se exprime, Pelos maus Lacerado? (GOETHE, 2014, p. 115).

Surge Mefistófeles e diz sua primeira frase na obra: “Por que o barulho? Estou às ordens do senhor!” (GOETHE, 2014, p. 117). Tem início aqui a trágica relação do doutor com o demônio. Fausto tem interesse em saber o nome da entidade que tem diante de si, ou 53


sua natureza. Porém, tem apenas de Mefisto a seguinte definição: “Sou parte da Energia/ Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.” (GOETHE, 2014, p. 118). E, na sequência, o demônio profere a clássica afirmação: O espírito sou que sempre nega! E com razão; tudo o que vem a ser É digno só de perecer; Seria, pois, melhor, nada vir a ser mais. Por isso, tudo a que chamais De destruição, pecado, o mal, Meu elemento é, integral (GOETHE, 2014, p. 119).

O velho doutor, entediado com as aparições sobrenaturais, percebe, após a troca de algumas palavras, que o espírito não pode ir embora. Está preso no recinto por conta do pentagrama que enfeita o umbral da porta. Em função disto, Fausto percebe que há determinadas leis intransponíveis, que regem os eventos entre o mundo dos vivos e dos demônios. É o sábio doutor que antecipa a proposta do pacto. Mefisto aceita e sela com um contrato assinado com o sangue do estudioso. A aposta consiste nos seguintes termos: se Mefisto conseguir fazer com que Fausto sinta prazer na vida a tal ponto de querer eternizar um momento, de tão belo, o demônio terá vencido. Percebe-se nesse momento quão angustiada e tediosa parece ser a existência do doutor. Essa angústia fica clara com a nova saraivada de maledicências proferidas no quarto de trabalho, desta feita, o objeto das maldições é a própria vida e seu conteúdo. O doutor externa sua preferência e ânsia por deixar o mundo dos vivos. “E da existência, assim o fardo me contrista / A morte almejo, a vida me é malquista” (GOETHE, 2014, p. 134), afirma o velho sábio. Como espírito sorrateiro, Mefistófeles observa Fausto há muito tempo, antes mesmo de sua aproximação materializada. No momento do pacto - que Mefisto havia cuidadosamente projetado para acontecer nesse segundo momento de aguda angústia do velho sábio, ou seja, depois da tentativa de suicídio - o demônio coloca as seguintes condições: Obrigo-me, eu te sirvo, eu te secundo, Aqui, em tudo, sem descanso ou paz; No encontro nosso, no outro mundo, O mesmo para mim farás (GOETHE, 2014, p. 139).

Fausto responde com acentuado desdém: “Que importam do outro mundo os embaraços?” (GOETHE, 2014, p. 139). Mefistófeles detalha o que tem a oferecer: 54

Em tal sentido podes arriscar-te. Obriga-te, e hás de nesses dias ver Com gosto o cimo de minha arte, Dou-te o que nunca viu humano ser (GOETHE, 2014, p. 140).

Precisamente aquilo que o estudioso anseia: adquirir conhecimentos e experiências sensórias além dos limites humanos, de modo a cessar, ainda que apenas por um instante, a inquietação do doutor. Ou seja, Fausto desafia Mefisto a proporcionar-lhe um único momento de felicidade e fruição. Fausto faz a exigência específica: E sem dó nem mora! Se vier um dia em que ao momento Disser: Oh, para! És tão formoso! Então algema-me a contento, Então pereço venturoso! Repique o sino derradeiro, A teu serviço ponhas fim, Pare a hora então, caia o ponteiro, O Tempo acabe para mim! (GOETHE, 2014, p. 142).

Ao que Mefisto responde: “Medita-o bem, que em minha mente o gravo.” (GOETHE, 2014, p. 142). A condição de Mefisto consiste apenas na assinatura no contrato. E afirma: “[...] Serve qualquer folheto ou nota. / Com sangue assinas, uma gota!” (GOETHE, 2014, p. 144). Sela-se o pacto mais decisivo da história da literatura. Após Fausto manifestar seus desejos de, a partir daquele momento, tudo conhecer e tudo sentir, Mefisto profere palavras premonitórias, que poderiam passar desapercebidas, não tivessem sido ditas por um espírito tão astuto: No fim sereis sempre o que sois. Por mais que os pés sobre altas solas coloqueis, E useis perucas de milhões de anéis, Haveis de ser sempre o que sois (GOETHE, 2014, p. 148).

Partem às aventuras no chamado “pequeno mundo”, ou seja, naquele primeiro universo de experiências, vividas em circuito relativamente limitado de relações: a cidade de Leipzig, mas nem por isso menos intenso. O “pequeno mundo” é o ambiente da obra Fausto I, em contraste com o cenário épico e histórico mais amplo que se abre com o Fausto II. Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


É no “pequeno mundo”, porém, em que se desenvolve um dos acontecimentos mais intensos da vida do doutor: a paixão por Margarida. Após andanças pela cidade e diálogos fugidios com ébrios em tabernas, a cena na cozinha da bruxa é o próximo momento fundamental da tragédia. É lá onde Fausto ingere a poção rejuvenescedora. Mas a bebida mágica parece exceder o simples rejuvenescimento. Isso poderia ser inferido do último verso de Mefistófeles nessa cena, proferido de soslaio e um dos mais belos da obra: “Com esse licor na carne abstêmia, / Verás Helena em cada fêmea” (GOETHE, 2014, p. 214). Reforça essa dedução o estado demasiadamente ansioso sob o qual Fausto vai se apresentar após avistar Margarida pela primeira vez, dissonante com suas características, no geral, soturnas. A aproximação de Fausto a Margarida, bem como o desfecho trágico da jovem moça, ocupam as páginas restantes do Fausto I. Avistando a jovem (que possui entre 14 e 15 anos, faixa etária considerada como maioridade na época) ao sair da igreja, Fausto é arrebatado por uma paixão aguda. Imediatamente solicita que Mefisto medeie a aproximação. Mefisto, observando que Margarida é devota fiel e sem máculas, informa ao doutor sua impotência para realizar o pedido. Mefisto diz: Aquela, ora! do padre vinha Que de pecados a achou inocente; Passei ao confessionário rente: É jovem muito ingênua e boa, Que foi à confissão à toa Sobre essa eu não tenho poder! (GOETHE, 2014, p. 217).

Fausto, arrebatado, exige que Mefisto enseje, imediatamente, um encontro amoroso. Observando o estado de agonia repentina que se apoderou do velho doutor, agora rejuvenescido pelo efeito da poção da bruxa, Mefisto exorta Fausto que este terá muito mais prazer na relação com Gretchen se conseguir conquistar a moça com artifícios engenhosos, que pareçam espontâneos. Fausto troca breves palavras com Gretchen ao abordá-la à saída da igreja, oferecendo sua companhia na caminhada até a residência da jovem. Nesse momento, ele aproveita para lançar elogios à beleza e jovialidade de Margarida, que nega tanto a companhia quanto a correspondência dos elogios à realidade. Após esse breve instante, Mefisto dá início a um processo ardiloso de aproximação. Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

Usando suas capacidades sobrenaturais, insere uma bela caixinha com joias no móvel onde a jovem guarda suas roupas. As joias não eram compatíveis com a posição pouco privilegiada de Gretchen na sociedade da época, de modo que sequer poderia usá-las em público. A mãe de Margarida toma conhecimento da caixa e, talvez devido à sua fé e devoção cristã, pressente no íntimo que não se trata de bom presságio. Confisca a caixa e a entrega ao padre, que se desfaz do objeto rapidamente. Mefisto fica sabendo do destino do “presente” e profere raivosos impropérios. Consegue uma maneira de se aproximar da vizinha de Margarida, Marta, uma mulher cujo marido a tinha abandonado. Mefisto simula ser o mensageiro da morte do marido de Marta, desaparecido há muitas semanas. Nesse ínterim, sob os pedidos insistentes de Fausto, o demônio havia plantado outra caixa com joias, de valor superior à anterior, na cômoda de Gretchen. Margarida, sabendo que a mãe não aprovaria o novo presente, experimenta os objetos, secretamente, na casa e na companhia de Marta. Por isso, quando Mefisto aparece como mensageiro e inicia o diálogo com Marta, Gretchen está presente no recinto. A notícia falsa é dada por Mefisto a Marta, que entra em desespero pela suposta perda do Marido e pela difícil situação econômica em que se encontra. A viúva solicita do mensageiro o documento oficial que comprova a morte de seu companheiro. Mefisto afirma não ter o documento, mas vai consegui-lo com o juiz local mediante testemunho. Na época, para atestar o óbito, bastavam duas pessoas testemunharem ao juiz. Esse é o ensejo para inserir Fausto na relação. Mefisto afirma que irá, em companhia de um amigo de confiança, conseguir o documento mediante os testemunhos. O falso testemunho faz o doutor hesitar, posto o crime que representava. Com as insistências de Mefisto, porém, aquiesce ao ato. Com o documento em mãos, Mefisto e Fausto tem acesso à casa de Marta. Tem início aí a aproximação mais íntima entre o doutor e a jovem donzela. São tardes de conversas que ensaiavam mútua admiração. Margarida, apesar da ingenuidade, não deixava de notar a disparidade de saberes entre Fausto e ela própria, ao que Fausto procurava disfarçar, afirmando que todo o conhecimento do mundo não era mais valioso que o frescor e a beleza da jovem. Mefisto, nesses momentos, distrai Marta com conversas paralelas e tenta manter-se à distância das investidas da recém viúva em contrair novo matrimônio. A paixão entre Fausto e Margarida floresce ao 55


ponto de planejarem o ato sexual. Devido às dificuldades para oportunizar um encontro dessa natureza, por conta da vigilância da mãe de Margarida, Fausto oferece um frasquinho com líquido sonífero, intentando induzir a mãe de Gretchen a um estado de sono profundo. Margarida ministra a dose, o casal concretiza a relação na residência dela, sob os auspícios do sono induzido da mãe da jovem. Posteriormente, tem-se a notícia da morte, por envenenamento, da mãe de Gretchen. O suposto sonífero era, na verdade, veneno mortal. Não se sabe ao certo se foi Mefisto que forneceu o veneno a Fausto, enganando-o, ou se foi o doutor que ministrou intencionalmente a dose. Valentim, soldado e irmão de Margarida, toma conhecimento das aventuras da irmã e põe-se à defesa da honra de sua família. Duela com Mefisto e com Fausto, mas é morto por esse último, que foge em seguida. Antes de morrer, porém, Valentim amaldiçoa Margarida publicamente, condenando-a por seu ato pecaminoso. Mefisto leva Fausto em uma aventura sobrenatural, em uma cena dantesca chamada Noite de Valpúrgis. Trata-se de uma espécie de culto satânico, para onde afluem bruxas, semibruxas, feiticeiros, demônios. Lá ocorrem orgias e rituais. Fausto tem visões e em uma delas avista Margarida. Enquanto isso, Margarida, sozinha, mata o fruto da união carnal com Fausto: seu filho, logo após o nascimento. É presa e condenada à morte por decapitação pela acusação de infanticídio. Tenta escapar, mas é recapturada. Fausto toma ciência tardia desses eventos e amaldiçoa Mefisto por não ter lhe relatado sobre o que ocorria com sua amada. Mefisto, desdenhoso, diz: “Não é ela a primeira” (GOETHE, 2014, p. 380), fala que intensifica a ira de Fausto. O assassinato cometido por Margarida e sua primeira captura são processos que Goethe deixou implícitos, não são narrados diretamente. São revelados apenas com o retorno desesperado de Fausto da experiência sobrenatural na montanha de Brocken, na Noite de Valpúrgis, para tentar resgatar Gretchen, que já está no cárcere. A jovem, execrada na sociedade em que vive, passa a ter delírios na prisão. Tem reações inesperadas ao avistar seu amado se aproximando para resgatá -la. Mefisto havia providenciado os meios para Fausto acessar o cárcere e tentar o resgate da seguinte maneira: entorpeceu o guarda e o doutor subtraiu as chaves. Os espíritos malignos, segundo a crença da época, não tinham poder sobre as instituições da justiça terrena, daí a impotência de Mefisto em dar fuga à Gretchen de outra maneira. 56

Margarida, delirante - tomada de angústia pela morte da mãe, pelo assassinato de seu filho, pela morte de Valentim, pelas humilhações públicas e por sua condenação à morte - nega-se a fugir com Fausto. O doutor esteve desaparecido da cidade desde a fuga após o assassinato do irmão de Margarida. Gretchen não tomou conhecimento do rumo que Fausto seguiu após o homicídio e este fato provoca na jovem a sensação de ter sido abandonada por seu amor. A bela, perturbada, tem diálogos confusos com seu amado, misturando delírios e lampejos de realidade. A guarda do cárcere se aproxima, Mefisto intima Fausto a tomar Margarida nos braços, à força. Margarida é veemente em sua negativa e não permite o uso da força contra si. Mefisto convoca Fausto à fuga imediata, em função da aproximação da guarda. Partem ambos em disparada, selando o destino da jovem. Por último, a voz do altíssimo registra que Margarida foi absolvida de seus crimes e é aceita aos céus.

3. UM CONVITE À LEITURA

A força literária do Fausto de Goethe dificilmente pode ser contestada. Escrita durante décadas, seu desfecho acompanha os desenvolvimentos da Revolução Francesa, que implicaram profundas mudanças sociais, institucionais, econômicas e políticas na sociedade europeia da época. Mudanças que estiveram na base da constituição dos Estados modernos ocidentais. A arte literária do poeta alemão foi capaz de retratar as tensões humanas características desse tempo histórico. Por meio de suas personagens, somos conduzidos em um ambiente cultural em ebulição, no qual ocorrem a desagregação da sociedade feudal e o alvorecer do capitalismo como modo de produção predominante. A trama do Fausto I, condensada no “pequeno mundo”, expressa: de um lado, o avanço do mundo das ciências, das artes e da técnica, representado na constante inquietação intelectual do doutor; e, de outro, os dilemas e contradições para concretização do amor romântico em uma sociedade ainda muito influenciada por dogmas religiosos (expressando uma contradição em relação ao avanço do processo de laicização das instituições). A tragédia de Margarida é representativa das estruturas morais e valorativas dessa sociedade em transição. Ao insatisfeito doutor, porém, Goethe reservou um enredo titânico, que é desenvolvido no Fausto II ao lado do astuto demônio Mefistófeles. O Fausto II amplia enormemente as proporções Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


da tragédia e o velho sábio é conduzido ao “grande mundo” dos negócios de Estado, da política e da economia. Fausto se torna colonizador e as contradições

decorrentes dessa posição conduzem ao ponto alto do significado dramático da aposta selada com Mefisto. Mas essa, é uma outra história...

Referências GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia – primeira parte. 2.ed. Tradução Jenny Klabin Segall. São Paulo: Editora 34, 2014. MAZZARI, Marcus Vinicius. A segunda parte do Fausto: “esses gracejos muitos sérios” do velho Goethe. In: GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia – segunda parte. Tradução Jenny Klabin Segall.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

São Paulo: Editora 34, 2011. MAZZARI, Marcus Vinicius. Goethe e a história do Doutor Fausto: do teatro de marionetes à literatura universal. In: GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia – primeira parte. 2.ed. Tradução Jenny Klabin Segall. São Paulo: Editora 34, 2014.

57


Marinalva Freire da Silva *

Histórico sociocultural da língua galega

RESUMO Este artigo trata da língua galega, que é falada na Galícia. Pertence ao mesmo tronco linguístico de Portugal. Está dividida em três etapas com três enfoques distintos: Idade Média; Séculos XIX-XX (1927) e 1950 (Pós-franquista). Trata-se de uma língua que não é espanhola, mas é a língua de um grande grupo, mais portuguesa do que castelhana. Conhecê-la é muito importante para nós luso-falantes, porque vai abrir-nos uma nova cultura, uma cultura que não é espanhola, mas hispânica, ibero-americana. Palavras-chave: Abordagem; Sociolinguística; Língua galega; Cultura hispânica e ibero-americana.

ABSTRACT This article deals with the Galician language, spoken in Galicia. It belongs to the same linguistic branch of the Portuguese language. It is divided into three stages, with three distinct approaches: the Middle Ages; XIX-XX Centuries (1927) and 1950 (post-Franco). The Galician language is not Spanish, but it is the language of a large group, more similar to Portuguese than to Castilian. Learning this language is very important to us, Luso-speakers, because it will disclose a new culture to us, which is not Spanish, but Hispanic, Ibero-American. Keywords: Approach; Sociolinguistics; Galician Language; Hispanic and Ibero -American culture.

(*) Pós-doutoranda em Letras pela UFPB. Doutorado em Filologia Românica pela Universidad Complutense de Madrid. Professora titular aposentada pela UFPB/UEPB. Professora convidada da FADIMAB- Faculdade de Formação de Professores Prof,. Dirson Maciel de Barros - Goiana-PE 58

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


1. INTRODUÇÃO AO ASPECTO HISTÓRICO DA GALÍCIA

A Galícia é uma região de constantes surpresas, uma região destinada a superar obstáculos e olhar sempre adiante na expectativa de um futuro alvissareiro. Um dos elementos marcantes da belíssima paisagem litorânea são as rias1. Além de um extraordinário instrumento de comunicação, a língua é um dos mais importantes marcos de identidade individual e coletiva dos seres humanos, pois seu alto valor simbólico contribui para reforçar a solidariedade entre as pessoas. Este mesmo valor explica que a mobilidade social ascendente vai normalmente acompanhada da mudança linguística correspondente, tendo em vista que a aquisição e uso de uma língua socialmente prestigiada constituem-se em uma das mais ostensivas amostras do progresso obtido ou talvez idealizado. Assim, a história de uma língua é a manifestação da história de um povo que a fala, pois as ideais e teorias sobre as línguas são resultado de ideias e teorias sobre os países, comunidades, classes ou grupos sociais que as têm como próprias. (PAZ, 1998: 13).

1.1 Um pouco da história da Galicia, língua e área de domínio

A Galícia situa-se na região noroeste da Península Ibérica. Foi invadida pelos romanos no século I a. C, e com estes vieram os povos bárbaros. Sendo a Galícia uma região alvissareira, despertou a cobiça dos invasores. No século III d.C., o imperador Dioclesiano batizou todo o território de Gallaecia. O curioso é que os romanos respeitavam as etnias, embora impusessem sua língua. Na Galícia nem sempre se falou o galego. Assim como a língua que o povo falava antes pouco ficou, o mesmo ocorre com os nativos de hoje que pouco escrevem em galego. A partir da invasão dos romanos cujo interesse era político e econômico, a língua falada na Galícia foi substituída pelo latim (língua do povo

vencedor, ocorrendo, portanto, o fenômeno linguístico chamado substrato2) , e o território que nem nome tinha, passou a chamar-se, oficialmente, de Gallaecia, conforme já se fez referência. Mas o latim dos povos invasores não era o latim culto, falado e escrito por Cícero, Virgílio entre outros. Era o latim vulgar, muitas vezes mal falado, pois muitos romanos nem escrever sabiam. Ao território de Rosalía de Castro vieram romanos de várias classes, desde analfabetos a cultos, entre os quais também, havia bárbaros. (CARREIRO, 2010: 6-12) Como os galegos de então não sabiam escrever, é oportuno destacar que da língua falada restaram poucas palavras indicativas de lugares, transmitidas de geração a geração, conforme mostra Carreiro (2010:.6), a saber: Samil, Cambre, toxo, alpendre, burato, touciño entre poucas outras. Os galegos daquela época aprenderam a duras penas um latim grotesco. Foi esse latim vulgar que os galegos aprenderam com os romanos e, pouco a pouco, converteu-se em nova língua: o Galego. Não foi um fenômeno exclusivo da Galícia, posto que com o francês, o catalão, o Castelhano, o italiano e tantos outros romances, originariamente, tal fenômeno ocorreu de igual forma que o galego. Somente no século X, o galego distanciou-se do latim. Nessa altura da língua prerromânica que falaram os castrexos3, já nada se sabia e o latim culto era privilégio de poucos. No galego ficaram vestígios também dos suevos, um povo germânico que fundou um reino na Galícia, quando da queda do Império Romano, ainda que de pouca influência, por exemplo, pouta, espeto, roubar, albanel entre outras palavras. No século XIII surgiram as novelas escritas em galego. O caminho de Santiago da Compostela por onde transitavam os peregrinos de toda Europa se constituía em um excelente meio de comunicação e de aprendizagem entre as diferentes culturas, e por que não dizer um excelente canal de interculturalidade? É oportuno frisar que, na Idade Média, o galego era falado nas vilas e aldeias da Galícia, era considerada uma língua normal, como a de qualquer outro país. Entretanto, como não havia a preocupação com a normatização do idioma pelos falantes tendo em vista que

1. Ria, segundo o dicionário da língua galega de Isaac Alonso Estravís, (1) Desembocadura navegábel dun rio no mar. (2) Brazo de mar que se interna em terra a xeito de rio. (3) Ruta, camiño, desfiladeiro. (4) Consello ou meio ara sair dun apuro. (5) Fila, fileira: puxo unha ria de pedras na estrema’. Rias altas: acostuma designar-se así a costa galega desde Asturias a Fisterra. Rias baixas: zona costeira desde Fisterra à entrada de Vigo [deriv. de rio]. 2. Substrato (3) Ling. Língua que, a consecuéncia de calquer tipo de invasión, fica submerxida, substituída por outra, sobre a que vai exercer influéncias .[lat. Substratu] (ESTRAVÌS, Dicionário da língua galega, 1983, vol.3). 3. Castrexo (Castrtejol), adx. Referente a castro. Castro, s.m (1) Lugar fortificado das épocas pré-romana e romana, NA Península Ibérica que era um povoado Permanente ou apenas refuxio das populozóns circunviciñas em caso de ataque Citánia. (2) Castelo antigo. (3) Colina na que hai restos de fortificacións e defensas.[lat. Castru] (ESTRAVÍS. Dicionário da Língua Galega,1983, vol. 1)

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

59


estes empregavam suas energias em outras atividades, por exemplo, os trovadores gastavam-nas escrevendo belíssimas cantigas, cheias de escárnio e maldizer, que eram seguidas de entusiasmos pelos compositores da época. Rei Afonso X, o Sábio de Castela, escreveu em Galego suas composições poéticas. Mas o século XV foi de obscuridade para a língua galega, os que sabiam escrever, iam deixando de fazê-lo, pois “desapareceu o esplendor da Idade Média, aquela riqueza artística, aquela economia poderosa, aquela língua segura de si mesma”. (CARREIRO, 2006: 20). Nesse século, os Reis Católicos ampliaram seus domínios até as Novas Índias, houve o descobrimento da América por Cristóvão Colombo. A língua do império – o Castelhano- foi sendo implantada, penetrou na Galícia e o galego desapareceu dos documentos oficiais, pois toda a documentação oficial deveria ser escrita em Castelhano. Os escrivães galegos tiveram de ir a Toledo prestarem exames para creditarem o domínio da nova língua com vistas a poderem permanecer no exercício da profissão. O Castelhano seguia avançando e ocupando espaço nas escolas. “ O castelán foi logo declarada língua oficial e exclusiva em todo o território “(CARREIRO, 2010: 38). Mas o povo seguiu falando o galego porque esta era a única maneira deles compreenderem o mundo, se comunicarem. Dessa maneira, as classes altas falavam o Castelhano, e a gente humilde chegou à conclusão de que o galego só servia para se falar nas feiras, com os colegas e as bestas. Não passava pela cabeça de alguém dirigirse em galego a um bispo ou a outra autoridade, tendo em vista que seria uma estupidez. Daí, o povo decidiu falar entre si a língua galega e com as autoridades, o Castelhano. Este fenômeno foi chamado de diglossia4 pelos linguistas. Trata-se de uma situação de conflito entre duas línguas, e uma delas, como ocorre com o galego, língua falada entre si, com as autoridades, falavam o Castelhano. Era tão acentuada a discriminação que até as crianças não queriam mais falar sua língua pátria. Eis a fala de uma criança: “Mamá! Quero un huevo, os ovos non me gustan” (CARREIRO, 2006: 26) Eis aí um pouco do léxico galego que foi substituído pelo Castelhano:

CASTELHANO

POR

GALEGO

Carretera Cohete Cuchilo Ginmasio Hepatitis Huevo Lunes Mueble

“ “ “ “ “ “ “ “

Estrada Foguete Cortelo Ximnasio Hepatite Ovo Lunes Moble

Essa obscuridade durou mais ou menos até o século XVII, mas non hai mal que cen anos dure No século XVI, houve um retrocesso na vida social da Galícia; feneceu todo o resplendor da Idade Média, aquela riqueza artística, aquela economia poderosa, aquela língua segura de si mesma, e, consequentemente, o ritmo das cantigas, afinal, toda a literatura. Dessa forma, os que sabiam escrever em galego, foram deixando; apenas a fala permaneceu porque era a língua oficial; expressão como estou farto, o povo preferia dizer morro de fame. Há um refrão em galego sob a forma de pergunta: Quen apagou a luz? Así non hai quen escriba (citado por CARREIRO, 2006:.21) Aos poucos, o povo foi deixando de falar o galego no meio social, falavam em casa. Esse século ficou registrado na História da Galícia como “o século obscuro”, pois perdurou por muito tempo, e ainda hoje o povo galego é discriminado pelo idioma. Porém, essa obscuridade durou mais ou menos até o século XVII, mas non hai mal que cen anos dure. E o sol volta a resplandece no século XVIII, quando Galícia supera a crise econômica. No século XIX, a língua galega volta a figurar nos livros, graças aos poetas Rosalía de Castro, Pondal e Curros Enríquez, que a ergueram à altura artística que teve a Idade Média. Nesse período surgiu o galeguismo, um movimento intelectual e político que defendia Galícia e seu idioma, foi um tempo conhecido por Rexurdimento. Outra vez a língua galega é alvo de discriminação, pois no período da ditadura do General Franco, que durou aproximadamente, 40 anos, foi proibido se falar em público qualquer língua que não fosse o Castelhano, fato lamentável que fez com que a geração atual não saiba falar galego nem desperte tal interesse. Várias são as iniciativas de se resgatar a língua por meio

4. A palavra ‘diglossia’ originou-se da latinização do termo francês ‘diglossie’, do grego diglossos’; foi usado em inglês pela primeira vez por Charles Ferguson. É considerada como um tipo particular de bilinguismo, mas relacionado com a sociolinguística. O português e o crioulo cabo-verdiano, por exemplo, vivem em um estado de diglossia. É visível ainda hoje em países de língua oficial portuguesa ex-colônias. Como Moçambique e Timor, onde o português é a língua de prestígio (www.infopedia. pt/ $ diglossia. In Wikipédia) 60

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


de concursos literários patrocinados pela Comunidade Autônoma da Galícia. Aproveitando a decadência da Galícia, o reino de Castela domina a região e implanta a Castelhano. Isso se deu no século XV, quando os reis católicos Isabel de Castela e Fernando de Aragão estenderam seus domínios até as Novas Índias. Eles apoiaram as aventuras de Cristóvão Colombo que chegou à América pensando ter chegado às Índias e, por isso, batizou os primitivos de índios. Desse modo, o século XV ficou conhecido como o século iluminado para os reis católicos, com a conquista de terras distantes, em outro continente, expandindo a língua do império. E o Castelhano penetra na Galícia acompanhando uma centena de funcionários que ali se instalaram. Por conseguinte, o Castelhano tornou-se língua oficial da Galícia, o que levou o povo galego a deixar de lado seu idioma e adotar o idioma imperial sob pena de não poderem exercer funções administrativas, pois toda a classe passou a viver ali (bascos, funcionários, autodidatas). A respeito, há outro refrão: “Xa estou cheo de ovellas. Vou estudar castelán para ser ministro”. Desse modo, toda documentação deveria ser escrita em Castelhano, conforme referido anteriormente. Assim, a língua galega ficou bastante tempo sem dicionário nem gramática., grande barreira a ser superada pelos escritores, pois significava viajar mar a dentro sem uma carta náutica.. Os professores que falassem galego em classe seriam punidos (CARREIRO, 2010: 22-24). O galego passou a ser uma língua clandestina. Mas pouco a pouco foi sendo surgindo nos livros, pois os poucos galeguistas que permaneceram na Galícia fundaram o editorial Galáxia. Nos últimos anos da ditadura, o galego volta a ser falado sem censura nas ruas, passou a ser adotado nas escolas sem a obrigatoriedade nos currículos. Com a Constituição Espanhola de 1978, Galícia retomou o Estatuto de Autonomia, com muita luta. O artigo 5º diz: “A lingua propia de Galicia é o galego. Os idiomas galego e castelán son oficiais em Galícia e todos teñen o dereito de os coñocer e de os usar”. A respeito dos lusofalantes, principalmente os brasileiros, o galego é mais nosso que do Castelhano. É uma peculiaridade e uma dificuldade (que deixa de sê-lo porque se trata de uma língua muito semelhante ao Castelhano). 1.1.1 Documentos pré-literários da Língua Galega O documento literário mais antigo dos quais se

conhecem é a cantiga satírica Senhor de Navarro, de Joan Soares de Paiva, (fins do século XII e começos do..XIII), são os primeiros documentos não literários; há notícias de Torto e Testamento, de Afonso III de Portugal. Como se pode perceber, entre os séculos XII e XIV, segundo Silva (2011), o galego se converte em língua por excelência de toda lírica da Península Ibérica, aliás, devemos falar de lírica galego-portuguesa. Há registro nessa época de composições, como Cantigas de Santa Maria, I, Milagres de Santiago, Cantigas de Martín Codax. Conforme foi referido, os trovadores dedicavamse a escrever suas belas cantigas, repletas de escárnio e maldizer, que receberam adesão dos compositores da época e graças a essa iniciativa, hoje, a literatura galega e/ou a portuguesa pode oferecer a quem interessarse por tais estudos, o legado cultural que são as cantigas. Viu-se, ainda, que Afonso X, o Sábio, escreveu em galego suas extraordinárias composições poéticas. Carreiro (2010) apresenta como obras bestseller em galego: O Lembro de Merlin, A Demanda de Santo Graal, A Crónica Troiana entre outras novelas; eram a narrativa da moda em toda a Europa medieval. Estavam escritas em bretão e francês por serem as línguas de seus autores; o êxito foi tamanho a ponto destas obras serem traduzidas ao inglês entre outras línguas. Em virtude da inexistência dos atuais meios de comunicação, como rádio, televisão e redes sociais (por exemplo, a internet), somente no século XIII apareceram narrativas em galego através da transmissão oral, graças ao caminho de Santiago da Compostela por onde transitavam peregrinos de toda a Europa, constituiu-se em um extraordinário meio de comunicação e de aprendizagem entre as diferentes culturas.

1.1.2 Rexurdimento5 da língua Galega

No século XIX, a língua galega volta a figurar nos livros, graças aos poetas Rosalía de Castro, Pondal e Curros Enríquez, que a ergueram à altura artística que teve a Idade Média. Nesse período surgiu o galeguismo, um movimento intelectual e político que defendia Galícia e seu idioma, foi um tempo conhecido por Rexurdimento. Entretanto, o Castelhano seguia avançando e ocupando espaço nas escolas. “ O castelán foi logo declarada língua oficial e exclusiva em todo o território “(CARREIRO, 2010: 38).

5. Rexurdimento –acto de xurdir de novo; rexurdir - xurdir con forza; resurgir; volver a sair para acima; resucitar (ESTRAVÍS, Dicionário da língua Galega, 1986, vol.3).

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

61


Uma decisão importante tomada pelo governo de Madrid, em 1833, uma vez que a Junta de Galícia ainda não existia, foi dividir Galícia em quatro províncias - A Coruña, Lugo, Ourense e Pontevedra-, rachando, assim, a unidade do velho reino. Por conseguinte, o século XIX significa para o mundo galego um ressurgir cultural e literário, pois se trata do renascimento da literatura galega que ocorre em condições sociais e políticas muito específicas, apresentando umas peculiaridades próprias. Observem algumas publicações mais significativas da época, segundo Gil (1981: 31): - Pastor Díaz, A Alborada (1828); A Camino, Naicho rosa (1845); F. Amon, Recordos dainfancia (1849); X. M. Pintos, A gaita gallega (1953); Rosalía, Album de la Caridad (1862) e Cantares gallegos (1863); V. Lamas Carvajal, Espiñas, follas (1875); Rosalía, Follas novas; M. Curros, Aires de miña terra; V. Lamas C.,Saudades gallegas (1880); E. Pondal, Queixumes do pinos (1886); M. Curros, O Divino sainete (1888); V. Lamas, A musa das aldeãs (1890)

As citadas obras destacam-se porque respondem pelo momento de apogeu do Rexurdimento literário galego, 1863-1890, em especial a década de 1880, por ser a do renascimento na Literatura hispânica da novela realista e naturalista, bem como do pré-modernismo e modernismo poético (Rubén Darío, Azul, 1888) e com Bécquer, 1968. (GIL, 1981). É oportuno destacar que o termo ‘Rexurdimento’ na história da literatura galega traduz toda trajetória da recuperação desta literatura , como também da cultura, da política , enfim, da história da Galícia, que estava tentando ressurgir da obscuridade. A invasão francesa e os enfrentamentos entre absolutistas e liberais surgem nos primeiros textos escritos em galego, impressos em folhas soltas e em periódicos, com finalidade publicitária. Uns galegos consideram os camponeses a defesa do país; outros, defendem as ideias liberais. No citado século, os escritores do Renascimento recuperam o idioma galego para a literatura. Em primeiro lugar, em composições poéticas; em segundo, em obras de prosa narrativa ou jornalística. O galego parece ainda na oratória por ocasião dos Xogos Florais, de 1891, celebrados na vila Pontevedra de Tui. Entretanto, não se trata de uma recuperação plena. Esta ocorreu em 1936, embora também não plena, mas nessa época o galego fez-se presente em todos os 62

âmbitos da cultura e da vida do país, se bem que em competência desigual com o idioma oficial da Espanha. Colaboraram para tal recuperação várias publicações periódicas vinculadas ao movimento regionalista e, posteriormente, nacionalistas. Cite-se o exemplo brilhante de A Nosa Terra. Paz, escritor galego, autor do artigo Os Caminos da Recuperación do Galego através do Xornal “A Nosa Terra” (1907-1936), afirma que este foi um dos órgãos de informação da organização agrária, Solidaridad gallega, que, na sua primeira atuação pública, em 06 de outubro de 1907, um de seus dirigentes, o escritor presidente da Academia Galega, Manuel Lugris Freire, inaugurou a utilização do galego em um ato público. O referido escritor prossegue informando: [...] entre Novembro de 1916 e Xullo de 1936, foi órgão de expresión das Irmandades da Fala e do Partido Galeguista, chegando a tirar catrocentos vintedouros números com periodicidade variada (semanal, decenal, quincenal e mensual). Cómpre lembrar que por meiod do concelial d Goruna Luis Pena Novo o galego penetrou nas institucións em ullo de 1920 e que os deputados nas Cortes republicanas do Partido Galeguista conseguiron o recoñecimento – se ben en réxime de co-oficialidade do galego como idioma próprio da Galiza.

No entanto, é com Rosalía de Castro e os poetas do Renascimento que ocorre a superação do Romantismo, pois eles escrevem em uma época marcada literariamente pelo realismo e pelas formas “modernas” da poesia. O romantismo deixa marcas na literatura galega. A consciência do ser Galícia, de sue problema social e político, de seu abandono cultural, olhado sob a ótica de alguns poetas, muito angustiados ante a realidade e preocupados por esta, deixaram marcas inapagáveis na literatura, resultando, por conseguinte, o abandono da pomposa retórica romântica e a manifestação de seus estados anímicos, por uma poesia intimista, com sentimento, de profunda melancolia. É a representante maior da língua, literatura e cultura galegas. A poesia lírica galega frente a outros gêneros literários, não tinha prestígio, só aparecia em teatros, narrativas entre outros. Desse modo, más de cuatrocentos años tuvieron de transcorConceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


rir ata que Galicia, da man de Rosalía de Castro, recuperou a súa voz. Antes desta data pouca cousa había: poemas espallados en revistas e xornais, algunhas follas soltas... non esquecémo -las páxinas afervoadas e reveladoras de Xoán Manuel Pintos, (A gaita gallega, 1853). Pero Pintos, servíndose do molde da poesia, tenta facer un manual de aprendizaxe do galego que nin chega ser didáctica nin chega ser poesia. (SILVA in SILVA, 2010)

Rosalía de Castro é, pois, a primeira que, como entidade estética, recria a língua galega, convertendo -a em instrumento artístico. Atrás ficam, também, as tímidas intenções dos seus predecessores. No século XIX foram publicadas as primeiras gramáticas de galego, cujas autores são: Francisco Miras, Saco Arce, Cuveiro Piñol e Valladares, de origem galego-catalães. A literatura galega em uma língua que não é a espanhola, mas e a língua de um grande grupo. Dessa forma, com o Rexurdimento , o galego voltou a ser uma língua escrita, embora limitada à poesia. No século XX, houve a expansão deste idioma, pois Castelao, Pedrayo, Risco e Cuevillas, pertencentes à nova geração de galeguistas, escreveram em galego teatro, novela e ensaio. Reuniram-se e fundaram o Seminário de Estudos Galegos para tratar de tos os eixos do conhecimento na língua mater (CARREIRO, 2010). Nem tudo são flores. No dia 14 de abril de 1931, é proclamada a Segunda República na Espanha e Alfonso XIII renuncia à Coroa Espanhola. Nesse mesmo ano os galeguistas fundam o Partido Galeguista cujo objetivo é a Estatuto de Galícia, estabelecendo como idiomas oficiais o Castelhano e o galego. O Estatuto foi referendado somente em 1936. No dia 18 de julho do referido ano, o General Franco, chefe do golpe contra a República, apoiado por outro galego, o militar Millán Astray tornaram sem efeito o Estatuto de Galícia. Esse ataque durou quarenta anos, sendo denominado pelo poeta Celso Emilio Ferreiro de “longa noite de pedra”, bem semelhante aos séculos de escuridão. Dessa forma, [...] non desapareceu só o galego dos libros, moitos dos seus defensores desapareceron tamén. Os galeguistas ou foron fusilados, ou, fuxiron ou tiveron que calar. Pasoulles aos galeguistas e a todos os que querían unha sociedade libre: comunistas, anarquistas, socialistas ou mesmo centristas. Bos Aires, México e ouConceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

tras cidades americanas acolleron os galegos desterrados. E foi ali onde a nosa língua volveu aos libros. Os exilados fundaron editoriais e mesmo enviaron clandestinamente libros a Galicia. (CARREIRO, 2010:. 54)

O galego passou a ser uma língua clandestina. Mas pouco a pouco foi sendo surgindo nos libros, pois os poucos galeguistas que permaneceram na Galícia fundaram o editorial Galáxia. Nos últimos anos da ditadura o galego voltou a ser falado sem censura nas ruas, passou a ser adotado nas escolas sem a obrigatoriedade nos currículos A respeito dos brasileiros, o galego é mais nosso que do castelhano. É uma peculiaridade e uma dificuldade (quem deixa de sê-lo porque se trata de uma língua muito semelhante ao castelhano). Com a Constituição Espanhola de 1978, Galícia retomou o Estatuto de Autonomia, com muita luta. O artigo 5º diz: “A lingua propia de Galicia é o galego. Os idiomas galego e castelán son oficiais em Galícia e todos teñen o dereito de os coñocer e de os usar”. Mas conhecer a língua e a literatura galegas é muito importante para nós, lusofalantes, porque vai abrir-nos uma nova cultura, uma cultura que não é espanhola, mas hispânica, ibero-americana. Neste conceito de ‘ibero-América’ (as palavras são acéticas, muitas vezes não têm explicação linguística). O conceito de iberismo foi recuperado nos finais do século XIX pelos portugueses. No sentido mais concreto, uma aproximação a uma realidade social, sociopolítico-histórico de uma sociedade (ou seja, ver a complexidade político-social em uma manifestação cultural que é a Literatura). 2. GALICIA SOB OS DOMINIOS ROMANO E ÁRABE 2.1 A latinização da Galícia O processo de romanização também se deu em outros lugares, o que explica que a língua utilizada na época era o latim vulgar e, com a queda do Império Romano, houve a fragmentação deste língua derivando as chamadas línguas românicas. ,A partir do século V chegam à Galícia povos de raça e língua germânicas que desconheciam completamente o galego, povos romanos e celtas da Bretanha, antes dos árabes. Desses contatos, a língua galega recebe um infinito número de empréstimos linguísticos, cite-se, por exemplo, alguns germanismos: laberca, espeto, roupa etc. Mas o galego é a língua própria da Galícia graças aos milhões de falantes que, ao longo de muitas 63


gerações souberam preservar este idioma como sinal de identidade coletiva. Os primeiros habitantes da Galícia eram de origem pré-indoeuropeu.

2.1.1 O Latim galaico e seus substratos

O processo de transformação do latim em galego correu de modo progressivo e imperceptível, pois é impossível se estabelecer com precisão a data em que a língua dos romanos transformou-se em galego. Sabe-se que no século VIII o latim adotado estava tão distante do falado que há dois sistemas linguísticos diferentes; o latim e o galego.

2.2 Os árabes na Península Ibérica (SILVA, 2011)

Em 711 os árabes invadem e conquistam a Península Ibérica. A comunidade cristã (chamada moçárabe) em país muçulmanos se lhe respeitava sua organização municipal com os chefes eleitos por eles. A lei vigente seguia sendo a Lex Gothorum, o Liber Judicum. Respeitou-se inclusive a hierarquia eclesiástica: el matran “metropolitano”, el al-urquf “obispo”; el al-quiss “presbítero”; el ar-rahib “monge” etc. (LOPES, apud SILVA NETO, 1979). Durante a dominação sarracena mantiveram-se muitas das velhas cidades romano-godas. Contra ela conspiravam hábitos antigos, e um número escasso de conquistadores que acabavam contraindo matrimônio com as mulheres romano-godas conforme foi dito anteriormente. Dessa maneira, segundo (apud SILVA NETO, 1979), os moçárabes possuíam governadores ou condes; tinham seus próprios juízes que julgavam pela lei visigótica; tinham um fiscal de costumes, que se chamou zalmedina, de nome árabe; um cobrador de impostos próprios que se chamou almoxarife; um fiscal de pesos e medidas, que se chamou almotacé etc. Frente às dissensões entre árabes e beriberes, os moçárabes se apresentavam como un grupo compacto, que tinha os olhos voltados ao mesmo tempo ao passado hispano-godo ou até o futuro que surgia nas montanhas de Astúrias. Ainda que houvesse possíveis divergências, e separação político-geográfica, havia entre os cristãos subjugados do sul e os cristãos inconformados do nor64

te, a consciência do passado moçárabes formavam uma poderosa e densa minoria cultural e social na Espanha muçulmana. Eram bem nítidas e marcadas as diferenças entre uns e outros, isto é, nas tradições, língua e religião. Ao lado desses godo-romanos que assim mantinham sua fala primitiva estavam as populações árabes nas quais, naturalmente, distinguiam-se várias camadas sociais. Outra população muito arabizada era Silva. A população tanto da cidade como das aldeias vizinhas se compunham de árabes do Yemén, Arabia Felix e de outros, “que falavam um dialeto arábigo muito puro”, segundo Leite de Vasconcelos (apud SILVA NETO, 1979). Os moçárabes constituem evidentemente o laço de união entre as duas culturas. O romance peninsular e o árabe são, um em relação ao outro, adstratos que durante séculos encontram-se em contato íntimo. O moçárabe é um povo marginalizado, participa de ambas as culturas. Custa-nos acreditar que de um lado recebera as influências do Islã, e de outro, exercera por sua vez, influências nos costumes, na arte de sarraceno (SILVA NETO, 1979). Dessa forma, para o referido estudioso, a arte mozárabe corresponde à arte mudéjar. É necessário não confundi-las. Moreno (apud Silva Neto, 1979) estabelece, em termos claros, a diferença entre o moçarabismo e o mudejarismo na arte: a arte moçárabe é substancial; dentro de uma flexibilidade enorme para adotar formas e processos diferentes, flutua nela um princípio de originalidade que dá forma a todo o grupo, não se confunde com o muçulmano, não segue a marcha progressiva, unilateral da arte europeia; tem uma frescura de invenções, um individualismo na arte que parece, ocorreu anteriormente na arte visigótica e que não encontramos mais a não ser no Oriente; e sempre que na Península se perde o respeito pelas regras transpirenaicas é porque ela ressurge e inspira; a arte mudéjar é algumas vezes puramente moura; outras, nada conserva de mahometano a não ser o exterior; a técnica ou o ritmo inseridos em um órgão setentrional e cristão lhe faz falta a alma e poesia, e como o contato na arte gótica não a fez fecunda, manteve-se durante séculos como arte escrava, que não se adorna por prazer ou necessidade estética, mas só para satisfazer a gentes estranhas luxuosas. Uma das características mais destacadas das populações marginalizadas, no caso dos moçárabes é seu respeito à tradição, seu acentuado espírito de conservadorismo nos costumes dos antepassados é, para eles, um dos meios de subsistir devido a uma cultura estranha que ameaçava absorvê-los (SILVA NETO, 1979). Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


É necessário deter-se no aspecto linguístico, objeto desta pesquisa, pois nada mais eloquente que o idioma. Sabe-se que milhares de vocábulos árabes encontram-se no espanhol e português como um reflexo de iniludíveis necessidades, o mesmo que o latim teve de aceitar também milhares de palavras gregas (CASTRO, 1983). Muitos arabismos permanecem na língua literária e dialetal. É curioso como a estrutura gramatical de ambos os idiomas em estudo não foi afetada pelo árabe vez que a tradição escrita latino-românica nunca se perdeu completamente, e afirmou-se à medida que os cristãos foram intensificando sua consciência nacional. Se toda Espanha tivesse sucumbido pela dominação muçulmana a estrutura da língua teria sido alterado profundamente; mas o românico espanhol tomou as palavras árabes desde dentro de sua própria vida, como algo imposto pelas circunstâncias e não pela autoridade dos dominadores. Dessa forma, o elemento árabe no romance ibérico foi devido a uma imprescindível importação de coisas, resultado de capacidades produtivas que atraíam por sua superioridade. Estas importações de léxico se referem a várias áreas da vida: agricultura, construção de edifícios, artes e ofícios, comércio, administração pública, ciências, guerra. (CASTRO, 1983). A arabização da Hispânia romano-gótica e a ulterior romanização de Al-Analus foram processos culturais complexos, pródigos em situações linguísticas de interesse extraordinário. Segundo ele, o impulso inicial no estudo do árabe andalusí e dos arabismos em espanhol e português se deveu a R. Dozy em pleno século XIX. (CATALÁN ,1975) Entretanto, o prestígio do saber muçulmano não foi passageiro, nem se extinguiu com a desaparição do califato cordobés. No século XIII Alfonso o Sábio serviase dos comentários árabes da Bíblia; “en los escriptos de arávigos se dan detalles sobre la salida de Adán y Eva del Paraíso”; e mais adiante se fala “del hogar e del tiempo del nascimiento de Abraam Segund los arávigos”. (CASTRO, 1982) Assim, os árabes continuavam sendo altamente respeitados no século XIV, segundo escrita don Juan Manuel (tío do rei Alfonso X): “tan buenos homes de armas son, ete tanto saben de guerra, et tan bien lo facen, que si non porque deben haber et han a Dios contra sí, por la falsa secta en que viven […]” (CASTRO, 1982). É curioso o processo linguístico que ocorreu na Península Ibérica com a conquista dos árabes. Embora estivessem impregnados por uma extraordinária cultura, os árabes que seguiram sendo o povo dominador ou vencedor, não conseguiram impor seu idioma aos Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

povos romanos, neste caso os vencidos. Não houve língua vencida nem vencedora. Ambas as línguas, latim e árabe eram faladas. Assim, se pode observar a influencia de dos idiomas vizinhos e que convivem em um só território, o que resultou o fenômeno linguístico chamado adstrato. Foram os moçárabes os primeiros povos na Península em sentir o influxo da cultura muçulmana. Sabe-se que, a partir da Reconquista, Toledo e Zaragoza caem em poder dos cristãos. Porém, uma vez que os moçárabes que as habitam estão fortemente arabizados, o contingente mouro que permanece que os mudéjares e moriscos das regiões que se vão ocupando conservam suas crenças, instituições, ambas as línguas em estudo há presença de moçarabismos, isto é, do árabe hispânico, que constitui outro fenômeno linguístico chamado substrato. Este fenômeno também ocorre com relação ao povo morisco.

2.2.1. O Superstrato árabe

A maioria das palavras de origem árabe foi introduzida nas línguas Castelhana e portuguesa através de fatores extralinguísticos. Isso se justifica porque as novas realidades da vida material necessitavam de novos termos que as dominassem. Assim, têm-se os arabismos que arraigam nos idiomas e uma série de derivados, e aqueles que somente se documentam uma só vez. Naturalmente, isto depende do grau de penetração de um arabismo no léxico geral, que é muito variável, devido a que em todo o idioma há palavras mais favorecidas pelo uso que outras (MAILLO SALGADO, 1983).

3. O GALAICO-PORTUGUÊS NA IDADE MÉDIA

O galego era a língua falada em toda Gallaecia, território que compreende o que atualmente é Galícia, Portugal até Coimbra, e parte de Astúrias e León, razão pela qual ainda hoje se ouve falar o galego em alguns lugares destes dois territórios. No século XII nasce o reino de Portugal e a Gallaecia fica dividida pelo Minho, passando-se a falar desde aquele tempo duas modalidades de galego: o do Minho do norte e o do Minho do Sul. Essa divisão foi responsável pela evolução, entretanto, o galego e o português ainda não deixaram de ser a mesma língua (CARREIRO 2010). 65


O termo ‘galaico-português’ tem um aspecto histórico, medieval. As circunstâncias políticas e sociais conduziram o país chamado Portugal ao mesmo tronco linguístico. Esta língua criou uma lírica galego -portuguesa. No século XIII surgiram as novelas escritas em galego. O caminho de Santiago da Compostela por onde transitavam os peregrinos de toda Europa se constituía em um excelente meio de comunicação e de aprendizagem entre as diferentes culturas, e por que não dizer um excelente canal de interculturalidade? O galego esteve depois sujeito à influência do castelhano não somente léxico (incluindo arabismos, léxico ameríndia, e empréstimos linguísticos modernos), mas também certos traços fonéticos, assim como a ortografia oficial actual. Os portugueses levaram o galego-português até Lisboa e Algarves, terras que conquistaram dos mouros. Mas não ficaram só aí. Chegaram ao Brasil, rumaram à África e à China. Graças à ousadia dos portugueses, ao seu poder imperialista, atualmente, mais de 200.000.00 de pessoas falam o galego-português. Lamenta-se que no Brasil os estudos de galego não mereçam lugar de destaque nas licenciaturas em letras vernáculas. O galego-português (importante produção literá-

ria) em 1139, constituição do reino de Portugal, bifurcação em dois ramos atuais: o galego, região da Galícia, o português, língua do novo reino, seguiu até o sul e estendeu-se pela África, Ásia e América; o asturiano-leonês: língua da primeira monarquia da Reconquista, cuja capital de início foi Oviedo; em seguida, León. A Literatura galaico-portuguesa tem um código com absoluto rigor. Esta é a literatura medieval do século XVI. Esta enfrentou um silêncio absoluto por longo tempo.

4. CONSIDERAÇÃO FINAL

É oportuno registrar que o estabelecimento da autonomia da Galícia, em 1981, marcou o oficialização do galego, anteriormente banido da vida pública, e a implementação de políticas para promover o seu uso, conhecimento e prestígio, embora a língua galega enfrenta o grave problema: a modernização socioeconômica da Galícia propicia a expansão do castelhano como língua falada, enquanto a institucionalização da autonomia incentiva a expansão do galego como língua escrita e publicada.

Referências CARREIRO, Pepe. História da língua galega. Do latín ao acento de Burgos. Vigo: Edicións A Nosa Terra, 2010.

MAILLO SALGADO, Felipe. Los arabismos del Castellano en la Baja Edad Media. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1983.

CASTRO, Américo. España en su historia. Cristianos, Moros y Judíos. Barcelona,: 1983.

PAZ, Ramón Mariño. Historia da língua galega. Santiago da Compostela: Sotelo Blanco Edicións, 1998.

______. La Realidad Histórica de España. México: Porrúa, 1982.

SILVA, Marinalva Freire da. Estudos filológicos. Literatura-cultura. Campina Grande: EDUEP, 2007.

CASTRO, Rosalía de. Antologia. Navarra: Salvat Editores, 1985. CATALÁN, Diego. Linguístíca. Crítica retrospectiva. Madrid: Grados, [s/d] (Biblioteca Românica dirigida por Damaso Alonso III. Manuales, 34). COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1968. GIL, Manuel Justo. La literatura en lengua galega. In Cuadernos de estudios 30. Madrid: Editorial Cinzel, 1981 (Serie: literatura). LAPESA, Rafael. Historia de la Lengua Española. Novena edición. Madrid: Gredos, 1986. 66

SILVA, Marinalva Freire da e SILVA, Widmark de Farias. Em torno da língua e da literatura galegas. In:SILVA, Marinalva Freire da. A interculturalidade em ação: Aportações literário-culturais e Lingüístico-Metodológicas. João Pessoa: Idéia, 2010: 403-409. SILVA, Marinalva Freire da. Los árabes en la Península Ibérica: Presencia de los arabismos en las lenguas castellana y portuguesa. Aportación lingüística cultural. João Pessoa: Sal da Terra, 2011. SILVA NETO, Serafim da. História da língua portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Presença, 1979.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


Lindemberg Medeiros de Araújo *

O território como espaço do diálogo na práxis em saúde

RESUMO Analisam-se as possibilidades de acumulação da práxis em saúde, enquanto atividade educativa, quando o território é utilizado como espaço para construção do diálogo e da própria práxis. Reconhece-se que vivemos numa sociedade globalizada, antidialogal e autoritária. Assevera-se que o diálogo pressupõe a comunicação e a informação, mas, antes de tudo, pressupõe entrega, troca, confiança, fraternidade e honestidade de propósitos humanos. Admite-se que avançamos na democracia, nas conquistas sociais e na cidadania, em vários setores, entre os quais se podem incluir o setor saúde; mas ainda não o suficiente para que se deixe de reconhecer que vivemos numa sociedade injusta e desumana. Afirma-se que isso pode ser constatado nos serviços e nas ações de saúde, bem como nos demais serviços e ações ligados às políticas sociais, quando resistem à partilha, à participação, à discussão e ao controle social. Palavras-chave: Educação; Diálogo; Território; Práxis; Saúde.

ABSTRACT The possibilities of congeries in health praxis, as an educational activity, are analyzed when a territory is used as a place for the construction of dialogue and praxis itself. We recognize we live in a globalized, anti-dialogical and authoritarian society. We assure that dialog presupposes communication and information, but, above all, it presupposes delivery, reciprocation, trust, fraternity and honesty in human purposes. We admit we have progressed in democracy, in social achievements and citizenship, in various sectors, among them the health sector can be included; but still not enough to ignore that we live in an inhuman, unfair society. We recognize that those contradictions can be observed both in actions and health services, as well as in other services and actions related to social policies, as they resist sharing, participation, discussion and social control. Key words: Education; Dialogue; Territory; Praxis; Health.

(*) Doutor em Educação. Professor Adjunto do Departamento de Nutrição, Centro de Ciências da Saúde (UFPB), Campus I. E-mail: lindembergara@globo .com

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

67


INTRODUÇÃO

As possibilidades de acumulação1 das práticas em saúde, na perspectiva da práxis – vale dizer enquanto atividade educativa, dialógica – dão-se num contexto contraditório, mormente quando são considerados os registros relativos aos modelos de sociedade, de escola e de política social vigentes no país; modelos que condicionam as práticas sociais, em geral, e as práticas em saúde, em particular, como expressão da atenção à saúde. Nesse sentido, é importante reconhecer que se vive numa sociedade globalizada, antidialogal e autoritária, conforme já criticava Freire (1987) em Pedagogia do Oprimido. E, nesse caso, é preciso que não se confunda diálogo com comunicação e com informação pura e simples, mesmo que esses dois elementos sejam fundamentais para que ele aconteça. O diálogo pressupõe a comunicação e a informação, mas, antes de tudo, pressupõe entrega, troca, confiança, fraternidade e honestidade de propósitos humanos. O fato de se ter avançado sob o ponto de vista da democracia e da afirmação de conquistas sociais no terreno da cidadania, em vários setores, entre os quais se podem incluir as conquistas do setor saúde2, não é suficiente para que se deixe de reconhecer que se vive, ainda, numa sociedade autoritária. Isso pode ser constatado nos serviços e nas ações de saúde, mas, também, nos demais serviços e ações ligados às políticas sociais, inclusive os de educação, quando resistem à partilha, à participação, à discussão e ao controle social (controle externo). O autoritarismo é avesso ao diálogo. O homem traz da sua ontologia (LUCÁKS, 1979) e ontogenia (MATURANA; VARELA, 2001) traços de individualidade3 e competição que, a depender das condições histórico-sociais, econômicas e culturais, poderão levá-lo a uma ética da retração, da evita-

ção e da escusa ao diálogo4. Isso aparecerá de forma mais enfática, no capitalismo, como filosofia e como prática econômica que, resultando desses traços dos seres humanos, aprofundou neles uma ética fundada no individualismo; uma ética que os transforma, antes de tudo, em seres da competição ao invés de seres do diálogo. Essa competição é, muitas vezes, predatória, astuta, manhosa, planejada, para que cada um dos competidores se esmere no alijamento do outro, no sentido de tirá-lo do seu caminho com o fito de alcançar seus objetivos5. A ética capitalista é, na sua essência, antidialógica. O que se vive no dia-a-dia das relações familiares, das relações em saúde, das relações sociais, em geral, produtoras da vida cotidiana, envolvendo pessoas das diversas classes sociais, povos, nações e etnias, pode dar essa medida. Há uma aura de aparthaid em diversas dessas relações. Há beligerância explícita, declarada e recusa ao diálogo e à paz. E isso tem feito prosperar sentimentos e atitudes que denotam, cada vez mais, o ceticismo de que os homens possam construir ou transformar as suas estruturas e as suas relações. É uma das idéias mobilizadoras deste ensaio a busca da possibilidade de contração de relações sociais, interpessoais, interprofissionais e comunitárias, com força para criar prospectivas para uma pedagogia capaz de formular elementos para a construção coletiva de estratégias educacionais, com potencial para responder socialmente às insuficiências da capacitação formal dos profissionais de saúde. Essas possibilidades estariam no exercício de uma práxis social educativa, dialógica e popular capaz de reforçar a população e os profissionais como sujeitos das ações e dos serviços de saúde. Quando se está falando de uma práxis em saúde com esses qualificativos, não se está pensando apenas da equipe de saúde, mas da relação que se constrói a partir da prática dessa equipe. Isso dá sentido a uma discussão que se quer fazer na linha da quebra da dis-

1. O conceito de acumulação, aqui, é emprestado do Planejamento Estratégico Situacional (PES) e do Método ALTADIR de Planificação Popular (MAPP), no sentido de salto de qualidade, de ganho individual e coletivo, auferido a partir da construção coletiva de atores sociais que discutem, planejam, avaliam e redefinem, de forma pactuada, a sua prática. Para maiores detalhes, ver: MATUS, C. Planificacion, Política y Gobierno. OPS, Washington D.C. 1987. 2. O fim da ditadura militar, o processo de redemocratização do país e o ascenso dos movimentos sociais, populares e sindicais resultaram na chamada Nova República e num processo constituinte que introduziu na Constituição Federal um sem-número de direitos de cidadania, a ponto de essa carta constitucional ter sido apelidada de Constituição Cidadã. Foi exatamente nesse processo constituinte que se conseguiu a criação do Sistema Único de Saúde. 3. Lembrar que “A individualidade é uma categoria social e, por isso, sua explicação não se contrapõe antinomicamente à sociabilidade, antes exige uma interação cada vez mais intensa entre a totalidade social e o indivíduo singular [...] Essa exigência no seu patamar mais elevado é a ética; é esta que ata os fios entre o gênero humano e o indivíduo que supera sua própria particularidade” (LUKÁCS, 1981, v. II, p. 328). 4. No sentido de Lukács (1979), a distinção entre o gênero humano em-si e o gênero humano para-si explica a qualidade das ações dos indivíduos. Há aquelas ações que asseguram a conservação do status quo social (gênero humano em-si), em que o peso da heteronomia é particularmente forte; e aquelas ações que têm como objetivo uma autoafirmação humana, ou o desenvolvimento de uma personalidade autêntica e livre (gênero humano para-si). Nessa distinção, a ação ética foi considerada por Lukács como momento privilegiado da práxis social, locus onde se realiza a autodeterminação do gênero humano para-si, livre e autônomo. 5. A se tirar pelas guerras e pelas intervenções militares ou políticas, parece haver em frações muito bem definidas da sociedade mundial uma necessidade, quase que doentia, de dominar o outro, de subjugar determinados grupos, povos ou nações para lhes impor idéias, ideologias ou interesses, sejam eles quais forem. Por isso essas frações são cada vez mais arrogantes e narcisistas, fundamentalistas mesmo. E como a vida transcorre sob um grande processo de globalização, também constituído historicamente, essas atitudes vão, aos poucos, reproduzindo-se para outros campos e povos, o que representa uma ameaça à humanidade e, conseqüentemente, às relações dialógicas, as quais dão sentido ao nosso caráter de humanos. As relações sociais na saúde não fogem a esse comportamento e constituem o exemplo mais importante em se tratando deste trabalho. 68

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


tância na relação do profissional com os seus outros, sejam eles os usuários do seu ato, os seus parceiros de trabalho na equipe de saúde, sejam os gestores das estruturas de saúde.

O TERRITÓRIO COMO ESPAÇO DO DIÁLOGO NA PRÁXIS EM SAÚDE

Para ser educativa, dialógica e popular, a práxis em saúde precisa avançar no sentido da criação e da transformação. Nesse sentido, pode-se dizer que a noção de território, fundamental para a organização das atividades de saúde, revela-se pedagógica para as práticas em saúde e para a inserção dos profissionais nas equipes de saúde. É a partir da operacionalização desse conceito que a organização do trabalho sanitário pode experimentar um salto de qualidade, notadamente no âmbito das equipes de saúde da família (ESF). O sentido de território aqui é o definido como [...] cenário estabelecido por atores sociais no desenrolar de um processo em que os problemas de saúde se confrontam com serviços prestados e onde necessidades cobram ações. Representa muito mais que uma superfície geográfica, tendo um perfil demográfico, epidemiológico, administrativo, tecnológico, político e social que o caracteriza e se expressa num território em permanente construção. (UNGLERT6, 1999, p. 222)

O território é algo dinâmico e está sempre se transformando ao sabor das ações que lhe são endereçadas ou mesmo dos seus movimentos intrínsecos. Do ponto de vista das unidades de saúde, ele é um espelho permanente para a atuação das equipes nele inseridas. Da mesma forma, reflete, ininterruptamente, a imagem das necessidades de ação ou reivindicação dos diversos atores que o constituem. Do ponto de vista dos médicos e demais profissionais, pode ser o princípio crítico norteador e educador da prática, mostrando os limites a serem superados e as possibilidades a serem assumidas. O território é, pois, um dos conceitoschave para a organização das ações de saúde e para a transformação da prática profissional num processo democrático, dialógico, educativo e popular.

Unglert (1999) sustenta que o processo de territorialização é um passo importante para a caracterização da população e de seus problemas de saúde. É através dele que as equipes de saúde podem acessar, de forma mais abrangente e contundente, a população sob sua responsabilidade e, assim, dimensionar o impacto da sua ação no sistema, alimentando o processo de trabalho de cada equipe de saúde e de cada profissional. A aplicação prática desse conceito aproxima realidade (sujeitos e estruturas) e teoria e estimula o protagonismo do profissional de saúde e seus outros (demais profissionais médicos, enfermeiros, dentistas, técnicos e auxiliares da área da saúde, outros profissionais e comunidade em geral). O processo de territorialização estabelece um vínculo de responsabilidade entre a população e os profissionais das equipes. É progressivo, em termos do seu detalhamento e de sua penetração, passando por todos os equipamentos sociais componentes do espaço-território social, chegando até o domicílio, um lugar a partir do qual as famílias são nucleadas e onde é realizado o processo de adscrição da clientela às Unidades Básicas de Saúde (UBS). [...] a territorialização se apresenta como a grande contradição entre a proposta de reforma democrática e a do projeto neoliberal. Para este último, o direito a usufruir do sistema está vinculado à capacidade de pagamento, já que a sua lógica é a do retorno econômico, priorizando a atenção à demanda individual. No caso da reforma democrática, a base territorial é fundamental, constituindo-se num dos princípios organizativo-assistenciais do sistema de saúde. (UNGLERT, 1999, p. 222)

Ao assumir como uma de suas diretrizes a vinculação com uma população, o PSF assume, na prática, o princípio da universalização da ação de saúde. E mais do que isso, abre espaço para que o profissional de saúde desenvolva um vínculo efetivo com a sua população, o qual só se faz através do diálogo da troca de informações e de saberes, próprios dos sujeitos em relação, consignados no território, no contexto mesmo onde essa relação se dá: na comunidade, no domicílio, na Unidade Básica de Saúde da Família (UBSF). O PSF se preocupa com a garantia da integralidade na atenção à saúde. E, nisso, estabelece um

6. Mais detalhes, ver: UNGLERT, C.V.S. – TERRITORIALIZAÇÃO EM SISTEMAS DE SAÚDE. In: MENDES, E.V. (Org.) Distrito Sanitário – o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. HUCITEC-ABRASCO, 4ª Edição. São Paulo/Rio de Janeiro, 1999.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

69


diferencial filosófico e prático em relação ao modelo da prática médica tradicional, vez que está preocupado com a integralidade física e moral do ser humano no seu contexto mesmo de vida. Está preocupado com o acesso e o provimento de assistência ao usuário, mormente num instante em que se acusa um custo financeiro progressivo que tende a barrar o acesso da atenção à saúde para os segmentos populares. Outra característica demarcatória do princípio pedagógico desse modelo em relação ao modelo tradicional é que ele nasce com o trabalho em equipe, com enfoque interdisciplinar. Isso provoca uma diferença de qualidade fundamental na atenção à saúde, com um rebatimento positivo para a educação da prática em saúde. O profissional é chamado a discutir a sua ação dentro de um processo que pode horizontalizar a sua relação com os seus outros, revelando positividade para as relações interprofissionais e para a ação junto à comunidade adscrita. Assim, a integralidade vê-se reforçada. A cultura e a política, insumos para a conformação das relações de poder, quando tratadas numa pedagogia para a autonomia, poderão estar a serviço da produção da saúde, tarefas do profissional de saúde e do seu outro na relação profissional/usuário. Mas, ao mesmo tempo, num contexto da sociedade, como um todo, é tarefa de ambos como cidadãos, transcendendo o simples tratamento de doenças, num movimento que tende a vencer os processos de conservação do status quo ou de retardamento ou mesmo obstaculização da mudança ou da transformação da realidade. Ao assumir uma atitude dialógica na sua relação com o seu outro, quebrando a atitude antidialogal assumida pelo profissional tradicional, essa nova atitude pode propiciar a abertura de outro tipo de encontro entre as culturas de ambos. Ao compreender melhor os termos do outro e ao explicar melhor os seus termos, ambos expandirão o seu conhecimento sobre o mundo e compreenderão melhor a situação criada a partir do encontro que promovem. Ao entender melhor o seu outro e ao se fazer entender, profissional e usuário estarão transformando a si próprios e, ao mesmo tempo, criando possibilidades de transformação do universo social em que estão inseridos. Nesse sentido, vale a pena lembrar Maturana e

Varela, quando afirmam: [...] vivemos com os outros seres vivos [pensemos nos seres humanos] e, portanto, compartilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo em que vivemos durante as nossas vidas. Por sua vez, ele também nos constrói ao longo dessa viagem comum. Assim, se vivemos e nos comportamos de um modo que torna insatisfatória a nossa qualidade de vida, a responsabilidade cabe a nós [...] se a vida é um processo de conhecimento, os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma atitude passiva e sim pela interação [pode-se dizer pelo diálogo]. Essa posição é estranha a quase tudo o que nos chega por meio da educação formal. (MATURANA; VARELA 2001, p. 10-12)

A tradição da prática em saúde é aquela que distancia o profissional do seu outro. Uma distância que se dá pela falsa consciência desenvolvida na sociedade de que o conhecimento sobre o que ocorre no corpo do outro, num dado momento no papel de paciente7, é uma prerrogativa exclusiva do profissional. Na relação profissional/paciente tradicional, o profissional é aquele que detém o conhecimento; o paciente, não. Ou, pelo menos, o seu conhecimento não é absorvido senão como queixa, problema bruto, portanto, livre de qualquer abstração ou interpretação. O que ensina a escola dita moderna, cartesiana e representacionista é que o profissional de saúde não deve se envolver com o senso comum do paciente. Assim, ele apenas pergunta e anota, tentando fazer um cotejamento comparativo com a literatura científica. Devido a isso, muitas vezes, deixa de perscrutar, esquadrinhar, indagar com escrúpulo, perquirir o seu usuário. Não penetra no seu universo, aquele que vai muito além do biológico e onde, muitas vezes, tem início o seu adoecer. Aliás, essa postura é reflexo da escola tradicional, bancária – aquela que vê no outro, na condição de aluno, um recipiente vazio, que precisa ser preenchido pelo conhecimento emanado dos seus mestres e educadores. Nessa escola, o currículo é construído a priori e independe do universo do educando.

7. O termo paciente ficou consagrado na linguagem médica como pessoa doente, que está sob cuidados médicos ou que se submete ou espera o resultado de um exame. Entretanto, há outras palavras que, na área da saúde, designam a mesma condição, como é o caso do termo cliente, mais comum na linguagem da medicina privada ou liberal. Há ainda o termo usuário, cunhado mais recentemente para designar aquele que interage com uma ação ou serviço de uma política pública (a política de saúde, por exemplo). É o termo mais utilizado hoje, nos documentos oficiais da saúde e na linguagem dos movimentos sociais, até para tentar fugir de outros significados que o termo paciente adquiriu na língua portuguesa e que, no caso da afirmação dos direitos de cidadania, são tidos como pejorativos, por conotarem o seu não exercício. É que o termo paciente também é denotativo daquele que sofre ou é objeto de uma ação, ou daquele que recebe a ação praticada por um agente ou que é vítima de abuso ou de ilegalidade do poder. Define o padecente, o resignado, o conformado. 70

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


No campo da prática em saúde, isso equivale a tornar a anamnese8, construída a partir do problema trazido pelo paciente, em algo que passa, como que por passe de mágica, a pertencer ao médico. Este se transforma em senhor e protagonista da história que, na verdade, é do seu outro, nesse momento transformado em mero figurante. A realização da medicina parece ser algo que se realiza apenas para os profissionais dessa área do conhecimento. Talvez, aí resida o primeiro “nó” da relação antidialógica e desumanizadora que se exprime no encontro profissional-paciente tradicional. O desenvolvimento científico e tecnológico tem trazido uma série de benefícios para o cuidado em saúde, mas, por outro lado, tem provocado um conjunto de atitudes que distanciam os profissionais de saúde - o médico, particularmente - dos seus outros. E essa parece ser uma das chaves que promovem a desumanização da atenção. Talvez seja a hora de uma reflexão: A pretensa objetividade da ciência e a eliminação da condição humana da palavra, reduzida à mera informação no exame clínico, justificam-se, do ponto de vista ético? Quando o profissional preenche a ficha de exame clínico, está, muitas vezes, apenas recolhendo informações que fazem parte do seu ato técnico. Não necessariamente escutando, no sentido de uma escuta qualificada, a palavra do paciente que se encontra a sua frente. Nesse ponto, a relação verdadeiramente humana está presente? A resposta para essas questões pode ser encontrada nas palavras que estão a seguir: [...] O ato técnico, por definição, elimina a dignidade ética da palavra, pois esta é necessariamente pessoal, subjetiva, e precisa do reconhecimento na palavra do outro. A dimensão desumanizante da ciência e tecnologia se dá, portanto, na medida em que ficamos reduzidos a objetos de nossa própria técnica e objetos despersonalizados de uma investigação que se propõe fria e objetiva. (BETTS, 2003)

A medicina tradicional trata, geralmente, de

descartar, de não levar em conta, em nome da cientificidade, a história original do seu usuário. Não que se queira afirmar que tudo o que é dito por ele deva ser tomado ao pé da letra ou como algo relevante para o encadeamento do raciocínio clínico. Mas não há como deixar de considerar que ao colher a história clínica, o profissional deve estar atento para os sinais e mensagens diretas ou subliminares que podem estar vindo com a comunicação feita pelo usuário. Ela denota, antes de tudo, a sua cultura, o seu conhecimento, a sua maneira de ver e de fazer andar a sua vida, não devendo ser desprezada. Isso, no entanto, demandaria do profissional um conhecimento para além do saber da clínica, do saber científico que lhe é exigido. O exercício de qualquer profissão, especialmente aquelas de grande superfície de contato com pessoas, exige noções básicas de Antropologia, Sociologia, Psicologia, Economia e de História da Humanidade. O profissional de saúde precisa ser alguém com um conhecimento amplo da sociedade e do contexto onde estão inseridos os seus outros. Essa perspectiva pouco está presente na forma de disciplinas do currículo dos cursos da área da saúde. E quando isso acontece, aparece em disciplinas optativas, geralmente não inseridas ou pensadas na perspectiva da formação do profissional ou de uma reflexão/conexão específica. Às vezes, fato raro, isso acontece por obra de docentes que, detendo uma perspectiva dialógica, tentam complementar o conhecimento dos seus alunos chamando-os a uma reflexão mais aprofundada do sentido da prática em saúde. Certos projetos de extensão9, na área da saúde, são exemplos dessa raridade tão oportuna. Aqui reside um segundo problema: o conhecimento, nas suas diversas formas, tem sido visto pela ciência moderna como a representação fiel de uma realidade, geralmente fragmentada, que se desenvolve independente do conhecedor. Ao olhar o mundo, ao explicar o mundo e ao agir no mundo, o homem constrói representações, toma o mundo como um objeto e o explora para dele tirar benefícios. O representacionismo e a fragmentação são marcos epistemológicos prevalentes na cultura contemporânea. Aí repousa a

8. A anamnese é o primeiro momento de uma consulta. Geralmente parte de uma pergunta que quer revelar a queixa, o sintoma ou o problema trazido pelo paciente É a reminiscência, a informação acerca do princípio e da evolução daquilo que fez com que uma pessoa procurasse o médico ou um serviço de saúde. É quando o paciente, guiado pelo repertório de perguntas do profissional, recorda e conta a história da sua doença ou problema atual. Tradicionalmente, é também o momento em que o paciente pode, com tranqüilidade, falar do seu padecimento e ser perscrutado pacientemente pelo profissional, recebendo deste, ao final da consulta, as informações sobre o seu estado de saúde e os aconselhamentos sobre a melhor forma de agir diante do seu estado. Como se restringiu muito e quase se anulou o saudável diálogo profissional-paciente, a anamnese tem cumprido cada vez menos o seu papel. 9. O Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba tem tradição na organização de Projetos de Extensão Universitária. Há projetos curriculares, como é o caso do Estágio Rural Integrado, que estende serviços e ações à comunidade em dezenas de municípios paraibanos, no caso, interiorizando estudantes concluintes das graduações em saúde, assim como há projetos extracurriculares, devidamente reconhecidos pela Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários, em que professores e estudantes de diversas graduações da área da saúde, e mesmo de outras áreas do conhecimento que mantêm intersecção com a saúde, praticam a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Geralmente voltados para a atenção primária em saúde, desenvolvem uma metodologia de trabalho, cujo eixo principal é o da educação popular. Trabalham com um conceito ampliado de processo saúde/doença, fazem uma articulação orgânica com os movimentos sociais e populares e desenvolvem uma consciência crítica em relação à organização dos cuidados em saúde.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

71


base do nosso modelo científico de cunho extrativista (MATURANA; VARELA, 2001). Como seres da cultura – em cuja essência é construída a pretensa objetividade humana – os homens têm dificuldade de lidar com tudo aquilo que é subjetivo e qualitativo. Em outras palavras, porque produzem cultura são humanos e, em sendo seres da cultura, por vezes, esquecem que são humanos. O homem tem dificuldade de compreender que objetividade e subjetividade, quantitativo e qualitativo, geral e particular mantêm entre si uma relação complementar, dialética - qualidades indispensáveis ao conhecimento e, portanto, à ciência. Assim, o processo educativo desejado para a relação profissional-usuário é aquele em que os sujeitos dessa realidade se encontrem, em primeiro lugar, como seres humanos para, depois, reconhecerem-se como tal. Havendo esse reconhecimento humano, as diferenças que pode haver entre eles – sociais, econômicas, políticas, filosóficas, culturais – poderão ser o caminho que leva à descoberta de que, sendo diferentes uns dos outros, não precisam negar-se, mutuamente, como seres da convivência. Esse reconhecimento constitui o elemento, o qualificativo da sua identidade, sendo esta a base primordial sob a qual um se apresenta e se reconhece diante do outro. Estabelecido esse primeiro estágio, a relação educativa inaugura um segundo momento de reconhecimento, o da consciência de que o outro detém um conhecimento, uma experiência, um saber que, por distinto, pode ser trocado, ampliando o horizonte de conhecimento, de experiência e de saber de ambos. O desenvolvimento dessa consciência pode ser construído através do diálogo. O diálogo como abertura respeitosa ao outro e no outro. Outro que se funda e se reflete, ao mesmo tempo, no eu e no tu da consciência humana. Um só é no outro, na disponibilidade curiosa à vida, no ser mais. Nesse ponto, situa-se a base onde se firma o ato educativo verdadeiro, criativo, solidário, esperançoso, transformador, libertador. Essa é uma educação que conduz à autonomia e à liberdade dos sujeitos. Para realçar a categoria fundamental que muito poderá ajudar no processo de construção de uma práxis em saúde voltada para a educação popular, é importante a recorrência à Freire (1987), num trecho que reforça o poder indispensável do diálogo na construção de uma práxis com potencialidade para produzir soluções para os problemas humanos, aqui representados pelos que interferem na consecução do direito à saúde. Assim se expressa Freire: 72

[...] não há diálogo verdadeiro se não há nos sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade. [...] Se o diálogo é o encontro dos homens para ser mais, não pode fazer-se na desesperança. Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já não pode haver diálogo. O seu encontro é vazio e estéril. É burocrático e fastidioso (Freire, 1987, p. 82).

Ao se chegar à conclusão de que diálogo é tudo isso e exige tudo isso dos dialogantes, precisa-se mostrar capacidade para mantê-lo mesmo entre pensares diversos, entre sonhos opostos e, ainda assim, concorrer para o crescimento entre diferentes, para o acrescentamento de saberes. Um aspecto importante a ser aqui enfatizado é que a relação do profissional de saúde com os seus outros, além de educativa, também precisa ser popular. Isso requer uma breve abordagem acerca do conceito do vocábulo popular e em que sentido deve ser empregado em relação à prática em saúde, tendo em vista sua polissemia. O popular esteve presente em todos os momentos da história da humanidade, desde a antiga Grécia. Naquela sociedade, o popular apareceu de uma forma lírica na poesia de Hesíodo, quando este falava e decantava, em versos, a vida e as lutas dos camponeses. O popular estava ligado a terra, aos homens do campo e às suas lutas. Mas a poesia de Hesíodo, segundo Jaeger (1995), mantinha, para além da exaltação aos campesinos, uma forte ligação com o trabalho e com a justiça. Pelas suas características e oposição à cultura da nobreza, revelava outro lado da educação do homem grego: o popular como uma identidade do homem. Daí uma das heranças do conceito: o popular como identidade do homem rural frente ao homem grego aristocrático. Na poesia de Hesíodo, consuma-se diante dos nossos olhos a formação independente de uma classe popular (grifo nosso), excluída até então de qualquer formação consciente. Serve-se das vantagens oferecidas pela cultura das classes mais elevadas e das formas espirituais da poesia palaciana; mas cria a sua própria forma e o seu ethos (grifo nosso) exclusivamente a partir das profundezas da sua própria vida (JAEGER, 1995, p. 103).

Para Melo Neto (2004), a procura por justiça e Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


pela afirmação de um povo, de uma comunidade ou de uma maioria, ou mesmo de um tipo comunitário, através do processo educativo, tornou-se traço constitutivo dos movimentos de contestação, desde os povos antigos até os nossos dias. Servindo-se de diversos exemplos, afirma estar o popular presente, como uma marca dos movimentos sociais populares, um grande esforço no sentido da construção da identidade dos grupos sociais em movimento, como forma de definição de seu campo de ação política e educativa10. É esse mesmo autor quem afirma que, na contemporaneidade, o popular responde pelos processos de organização dos setores proletarizados da sociedade, através de várias experiências de grupos e partidos políticos que trazem o termo popular nos seus projetos ou nas suas formulações políticas. Nesse sentido, apresenta uma série de experiências atuais ou que já fazem parte da história recente da América Latina11 em que o popular assume diferentes concepções e conseqüências, embora todas elas sejam unânimes na questão de bandeiras de luta, cujo pano de fundo constitui a igualdade, a justiça, a cidadania, a democracia, a independência, a autonomia, a liberdade e a fraternidade entre os homens. Em síntese, seguindo as pistas de Melo Neto (2004), algo é popular quando traz consigo uma metodologia, um procedimento, um mecanismo que possibilite, incentive e amplie a participação das pessoas, ou seja, um meio de veiculação e promoção para a busca da cidadania. Popular, assim, torna-se sinônimo da própria prática ou de algo promotor de novas formas de intervenção das massas populares. Algo é popular se expressa um cristalino posicionamento político e filosófico diante do mundo, trazendo consigo uma dimensão propositivo-ativa voltada aos interesses das maiorias. Ser popular é tomar consciência e posicionar-se diante do mundo, assumindo uma posição promotora de mudanças. Na lauda do próprio autor, [...] Suas dimensões fundantes são: a origem e o direcionamento das questões que se apresentam; o componente político essencial e nor-

teador das ações; as metodologias apontando como estão sendo encaminhadas essas ações; os aspectos éticos e utópicos que, para os dias de hoje, se tornam uma exigência social. (MELO NETO, 2004, p. 157-158)

Essa perspectiva elege um elemento fundamental com força para embasar essa práxis humana: o diálogo, como imperativo ético, entendido como abertura respeitosa ao outro e no outro, como disponibilidade curiosa para a vida e o acrescentamento de saberes necessários ao enfrentamento dos seus desafios. Consoante a essas idéias, abre-se a tese de que a prática em saúde pode elevar-se à categoria de práxis em saúde, pelo princípio ético do diálogo. A inspiração de Paulo Freire12 é o elemento fundamental da problematização sobre diálogo. Diálogo como categoria fundamental para a construção de uma práxis em saúde comprometida com o seu quefazer; com a compreensão social do processo saúde-doença, com a educação da população usuária dos serviços e ações produzidos pelo SUS. Saúde e doença formam parte do processo social, constituem uma realidade historicamente determinada. Estão envolvidas numa contradição que não permite que sejam consideradas como um complexo de coisas acabadas. Exigem processos em que a realidade e os seus reflexos na consciência estejam no incessante movimento gerado pelas mudanças qualitativas decorrentes do aumento da quantidade de possibilidades, criadas por essa mesma realidade. Historicamente condicionado, o ser humano vive o processo saúde/doença dentro de um mundo cindido em classes sociais. Essas classes representam as distintas inserções desse homem na sociedade e, por sua vez, condicionam as distintas formas de adoecer e morrer dos integrantes dessas mesmas classes e o conjunto de todos os processos da vida social, política e cultural da humanidade (LAURELL, 1983; MARX, 1988). Destarte, saúde-doença e práticas em saúde estão envolvidas num fenômeno concreto que possui um lócus na vida e nas relações contraídas pelas pessoas nos diversos âmbitos das suas vidas e não apenas nas

10. Esse autor, citando vários outros pesquisadores, oferece exemplos da atividade de formação da identidade dos movimentos populares, enquanto afirmação e resistência contra os desmandos da Igreja Católica na Idade Média (CALADO, 1999; HOONAERT, 1986). Na Modernidade, ressalta os freqüentes movimentos que marcaram as lutas pela superação da situação política dominante. Contudo, fixa-se no Marx de “O manifesto comunista”, quando este aponta o encaminhamento à classe proletária (classes trabalhadoras, classes humildes, classes populares): a necessidade de luta e de criação de uma alternativa popular ao apresentar como necessária “a conquista do poder político pelo proletariado” (Marx, 1999, p. 30), fecundando os movimentos de libertação em todo o século XX com a sua célebre conclamação: Proletários de todos os países, uni-vos. 11. Para uma visão mais completa do que acaba de ser dito, sugerimos a leitura do texto no qual nos referenciamos assim como uma obra sugerida pelo próprio Melo Neto: LÖWY, M. O Marxismo na América Latina – uma antologia de 1909 aos dias atuais. Editora Fundação Perseu Abramo. São Paulo, 1999. 12. Apesar de praticamente toda a obra de Paulo Freire se encontrar perpassada pela discussão da categoria diálogo, as principais referências que serviram de guia a esta pesquisa foram: FREIRE, P. – Educação e mudança. Prefácio de Moacir Gadotti e Tradução de Lilian Lopes Martin. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. (16ª edição, 1990); FREIRE, P. – Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 14ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1996 – (Coleção Leitura); FREIRE, P. – Educação Como Prática da Liberdade. 7ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; FREIRE, P. – Pedagogia do Oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

73


unidades de saúde quando, em contato com profissionais da área, tornam-se sujeitos ou objetos de alguma intervenção. Um fenômeno detentor de propriedades específicas que, devido ao seu caráter social, reproduz-se continuamente no tempo e no espaço, gerando reflexos positivos ou negativos sobre a saúde da população e na própria prática em saúde, a depender da sua direcionalidade e qualidade. Refletir sobre essa problemática, considerando

os pressupostos expostos, parece conduzir para um pensar crítico e uma abertura constante ao diálogo. Esses são combustíveis fundamentais para uma relação solidária capaz de conduzir profissionais e população à conquista da sua tão desejada autonomia e emancipação. São elementos indispensáveis, que dão suporte a uma práxis transformadora de relações sociais capazes de construir e proporcionar uma vida saudável.

Referências BETTS, Jaime. Considerações sobre o que é o humano e o que é humanizar. Humaniza 2003 [Periódico on-line] [citado em 25 ago. 2003] Disponível em: URL: http://www.portalhumaniza.org.br/ph/texto.asp?id=37. CALADO, Alder Júlio Ferreira. Memória histórica e movimentos sociais: ecos libertários de heresias medievais na contemporaneidade. João Pessoa: Idéia, 1999.

LUKÁCS, György. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. LAURELL, Asa Cristina; MARQUEZ, Margarita. El Desgaste obrero em México. México, DF: ERA, 1983.

FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Prefácio de Moacir Gadotti e Tradução de Lilian Lopes Martin. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. (16ª edição, 1990).

LÖWY, Michael. O Marxismo na América Latina – uma antologia de 1909 aos dias atuais. Editora Fundação Perseu Abramo. São Paulo, 1999. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 14ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1996 – (Coleção Leitura).

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. In: IANNI, Otávio. (Org.) Marx – Sociologia. 6. ed., São Paulo: Ática, 1988.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001.

FREIRE, Paulo. Educação Como Prática da Liberdade. 7ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.

MATUS, Carlos. Planificacion, política y gobierno, Washington D.C.: OPS, 1987.

HOORNAERT, Eduardo. A memória do povo cristão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.

MELO NETO, José Francisco de. Extensão universitária, autogestão e educação popular. João Pessoa: Universitária/UFPB, 2004.

JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. 3. ed. Tradução Arthur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

UNGLERT, Carmen Vieira de Sousa. Territorialização em sistemas de saúde. In:

LUKÁCS, György. Per una ontogia dell´essere sociale. Roma: Riuniti, 1981. v. 1/2. 74

MENDES, Eugenio. Vilaça. (Org.) Distrito Sanitário o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. 4. ed. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1999. Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


Rita de Cássia Alves Ramalho da Silva *

A mulher encarcerada e o sistema penitenciário na perspectiva dos direitos humanos: breves considerações

RESUMO Este artigo aborda o contexto em que se insere a luta das mulheres por direitos iguais, entre elas, os direitos da mulher encarcerada, personagens de história de submissão que seguem, em busca de formas de políticas públicas, que venham prover o sistema penitenciário de condições necessárias para o cumprimento da lei e que procuram guarida para os seus direitos, que têm nascedouro no Direito Natural e que necessariamente subsidia o Direito Positivo. A questão de gênero requer amplos debates para que se avance no processo de consolidação do direito da Mulher. Palavras-chave: Cidadania; Mulher encarcerada; Direitos Humanos; Feminismo.

ABSTRACT This article discusses the context in which it appears the struggle of women for equal rights, including the rights of imprisoned women, submission history of characters that pursue public policy forms, to provide the prison system with the necessary conditions to comply with law; they also seek shelter for their rights, which stem from Natural Law, and that necessarily subsidizes Positive Law. The gender issue requires extensive discussions to move forward in the process of consolidating women´s rights. Key words: Citizenship; Imprisoned women; Human rights; Feminism.

(*) Professora Dra. em Ciências Jurídicas e Sociais do Departamento de Fundamentação da Educação da UFPB. Advogada e pedagogo. E-mail: rcassiabeltrame@hotmail.com

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

75


INTRODUÇÃO Parece contra-senso que se invoque os Direitos Humanos, que deveriam ser líquidos e certos e que por mais que se almeje reconhecimento destes no mundo, em qualquer sociedade, tem sido quase que inatingível, mesmo que organismos modernos e considerados como a ONU e a CORTE INTERAMERICANA de DIREITOS HUMANOS estimulem o debate visando à aplicação destes direitos que são fundamentais para a vida de qualquer sociedade, principalmente democrática. Nesse contexto se insere a luta das mulheres por direitos iguais, entre elas, os da mulher encarcerada, personagens de história de submissão que seguem, em busca de formas de políticas públicas, que venham prover o sistema penitenciário de condições necessárias para o cumprimento da lei e que procuram guarida para os seus direitos, que têm nascedouro no Direito Natural e que necessariamente subsidia o Direito Positivo.

HUMANISMO: A PEDRA DE TOQUE NA HISTÓRIA

Para se adentrar nas questões de Direitos Humanos, necessário se faz breves considerações sobre humanismo o que tornará este artigo mais pertinente. Desde Akhenaton, rei do Egito – 1.388 A.C - reformador revolucionário e ardoroso monoteísta, apareceram os primeiros lampejos de humanismo até então desconhecido. O historiador e exegeta Charles Potter diz: “Akhenaton ao desenvolver a sua doutrina de amor universal divino, honrará logicamente o corolário de tal credo, isto é, o da irmandade universal do gênero humano”. (POTER, 1978, p.36) Com Moisés, o decálogo amoldou mais a idéia de humanismo destinado a socorrer o homem sujeito às adversidades do mundo. Mas em Confúcio encontra-se mais praticidade na conceituação do ideal de humanismo. Já há 24 séculos, nos manuscritos confucianos estava escrito: “O que não quiser para si não faça a outrem”. Com a doutrina de Jesus de Nazareth e o trabalho apostolar, cristalizou-se o conceito de humanismo, que seria, como tem sido, a filosofia subjacente no cristianismo. Partindo do pressuposto de que o homem-anthropos – é um ser dual – hilético – pneumático, pretendem-se mostrar que o humanismo tão decantado durante o Renascimento, tem sido uma aspiração blo-

76

queada no decurso da história da humanidade, tornando-se apenas uma realidade ideal, com efeitos reais e episódicos sobre a condição do homem no mundo. É fato inequívoco da história da humanidade que o ideal humanístico só produziu a concórdia e o bem estar humano de forma parcial e episódica. Hoje no século XXI, busca-se o reconhecimento dos Direitos Humanos e sua plenitude na aplicação. Enfim, um novo subsídio legal, que se pretende incorporar ao tripudiado humanismo dos nossos dias: A Declaração dos Direitos Humanos.

PANORAMA SOBRE OS DIREITOS HUMANOS: uma breve abordagem sobre as Fragilidades das Instituições

A perspectiva de Direitos Humanos, não só do ponto de vista local ou regional, envolve primordialmente, uma situação global, com preocupações das instituições pela expansão de garantia dos direitos fundamentais, que se tornam imperativas as ações de proteção antecipada, isto é, preventiva para as pessoas. Por isto é que Penteado Filho assim se expressa: ...direitos humanos ou liberdades públicas são direitos subjetivos, oponíveis ao Estado, reconhecidos e protegidos pela legislação a todos os seres humanos (PENTEADO FILHO, 2009,p.17).

A Constituição da República Federativa do Brasil, expressa avanços alertadores na esteira das normas internacionais, mas a distância entre o que prevê e a efetiva operacionalização parece não se concretizar pela ausência sentida de políticas públicas para todos, principalmente a parte feminina, mormente, que não basta o reconhecimento dos seus direitos, mas a concretude do que se tem como direito. Desde meados do século XX, o direito positivo vem sendo desafiado por um neo-jusnaturalismo internacional expresso nos tratados e convenções de Direitos Humanos, que amplia e supera o sentido territorial de cidadania. Sobre os fenômenos na vida da mulher, entre eles, está o da liderança que incomoda, porque é também uma forma de poder que enseja auto-estima, mas, ao mesmo tempo para a mulher é complexo lidar com isto. Então Rita Sussmuth, assim se expressa: “a noção de que o poder é instrumento indispensável ainda precisa se firmar com mais vigor na cabeça da Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


mulher”, adiante, Paloma Gastón sintetiza isto quando diz “as mulheres diante de uma situação de poder se fazem uma pergunta que as paralisa: poder para que?, que responde ao próprio temor de que tal poder não se ligitima no serviço aos outros” (apud CARREIRA e outros, 2001, p. 22 e 23). Portanto, o reconhecimento do poder das mulheres sugere possibilidade e limite, advindos de avanços ou conflitos que a sociedade deverá enfrentar necessariamente. Esta também é uma luta dos movimentos feministas que lançam olhar para as mulheres privadas de liberdade e vão adiante na luta, mostrando a necessidade de demandas positivas de caráter afirmativo, já que em muitos casos, as demandas protetivas são necessárias, e as mulheres precisam ser protegidas e reconhecidas mesmo quando detém uma forma de poder constituído. Michele Perrot expressa: se as mulheres “não têm o poder, elas têm, diz-se, poderes. [...]. No Ocidente contemporâneo, elas investem no privado, no familiar e mesmo no social, na sociedade civil” (PERROT, 2006, p.167). O século XX foi marcado pelo reconhecimento da liderança feminina em todas as áreas. Não se faz aqui uma afirmação ingênua, apologética sobre a perfeição da mulher, ser humano passível de erros, mas se busca entrar no eixo das discussões sobre o gênero. No sistema Penitenciário os direitos humanos se constituem o caos embora, homens e mulheres que praticaram crimes, devam ser privados do direito fundamental: a liberdade de ir e vir. O sistema prisional em qualquer sociedade existe como forma de punição, embora pensadores rejeitem o termo, mas nenhum sistema concebeu outro conceito para designar essa repressão do Estado, mesmo que seja recorrente o conceitos de resocialização, reeducação, reinserção. Mas é inegável que o sistema penitenciário na maioria das sociedades mundiais parecem carecer em pleno século XXI de olhares outros, na perspectiva dos Direitos Humanos. Nesta direção, se expressa Yves Pedrazzini: A prisão é uma certeza confinada entre quatro muros, sem surpresa alguma. O entusiasmo das classes políticas pelo encarceramento das classes perigosas surge da necessidade de imobilizar o potencial de imprevisibilidade (PEDRAZZINI,2006, p.107).

O autor faz crítica contundente à falta de ações Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

consistentes para o alcance dos direitos humanos. A realidade tem demonstrado que a garantia dos direitos à pessoa dentro da sociedade conta com a fragilidade das instituições, principalmente do Estado, tutor de qualquer cidadão. Mesmo com as lutas dos diversos grupos de Direitos Humanos não governamentais como: ONGS, Pastorais Religiosas, O.A.B. para citar os mais visíveis, o sistema prisional brasileiro, ainda está longe de atender os direitos humanos como no que diz respeito à mulher encarcerada, cujas instalações físicas em todo o Brasil, não atendem as necessidades femininas, uma vez que continua em todos os sentidos o que foi planejado para o sexo masculino. Quando as primeiras prisões femininas foram criadas, nos anos 40, por exemplo, o presídio feminino Talavera Bruce, trouxe uma “nova feição”, a separação pela primeira vez de celas por sexo. Todavia, continuam até hoje as decisões discriminatórias em relação à recuperação da mulher. Para os homens presos, o objetivo era devolver um correto cidadão à sociedade, no público; a recuperação da mulher esteve e continua associada ao lar, à família. Assim, o Sistema Prisional utilizou-se da religião como instrumento de coibição de revolta, entregando às mulheres presas à Congregação Nossa Senhora do Bom Pastor, que em quase todo o Brasil tinha o objetivo de resgatar moralmente a mulher criminosa, pela via religiosa. Mas a mulher continua sendo vítima da dominação masculina, que no sistema prisional dita as regras do jogo, em cujas dependências ignora-se os direitos humanos. Sobre isto a historiadora Elça Mendonça Lima, em seu trabalho mostra as origens da prisão feminina no Rio de Janeiro e procura detectar a ideologia que presidiu a primeira administração da prisão feminina. Para o estudo, coletou discursos e os analisou, a luz de noções teóricas da obra de Michel Foucault. Igualmente baseou seus estudos na obra de Simone de Beauvoir. (LIMA, 1983, p.38). Autores no Brasil, em suas pesquisas, têm investigado períodos fortes sobre criminalidade tendo como base o Rio de Janeiro, depois São Paulo, centros importantes a partir do século XIX, que revelaram uma série de transformações no que concerne à supressão do escravismo paralelo à forte intensificação da migração rural e estrangeira, o crescimento industrial, o incremento das atividades urbanas que foram realçadas com o advento da República (SOIHET, 1989). O Grupo de Trabalho Interministerial criado para observar, relatar e propor ações à Secretaria Especial 77


de Políticas para as Mulheres contém várias propostas, entre elas, reformas adequadas e construção de presídios femininos, para evitar a superlotação carcerária. Até a ministra de então, reconhece o caos do sistema prisional feminino em que as mulheres são submetidas a maus tratos, torturas, além de freqüente violência sexual (GTI, 2008). O agravante maior é quando a mulher está grávida, em prisão que não conta com condições adequadas de assistência médica, onde são raras as adequações no Brasil, além do trauma de separação do filho após seis meses de vida, agravado pelo desmame, além de contar com a total ausência de berçários e creches o que seria solução, a criação de políticas públicas para garantir a assistência à saúde, principalmente em ginecologia e pediatria. Mesmo o otimismo do grupo de trabalho com toda a competência e dedicação com propostas viáveis que atendam aos direitos humanos está longe de alcançar tal objetivo. Uma das Instituições que mais tem se preocupado na defesa dos Direitos Humanos é a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB que, sempre atenta, colhe conseqüente visibilidade pela seriedade e lisura como enfrenta as denúncias dos problemas econômicos, políticos e sociais, como legitima representante da sociedade civil, também com um componente a mais, por seu acesso natural à área do judiciário cujas respostas se dão pelo exercício da advocacia. Outros grupos formados a exemplo de um na faculdade de Direito da Universidade Federal da Paraíba, centro de referência em Direitos Humanos, num relatório entre outros fatos, dão conta, de que o sistema prisional na Paraíba é um fato desumano por falta de políticas que garantam os direitos aos homens e mulheres, que entre outros, a negação à justiça, ponto crucial das pessoas sob a custódia do Estado e isto não é privilégio local ou regional, poder-se-ia , dizer, em maior parte do mundo. As instituições que têm compromisso com a transformação da sociedade como a Universidade Brasileira, tem instituído comissões de Direitos Humanos, mantendo os debates que dão força à sociedade civil e incomoda os poderes no campo da sociedade política. Para os presídios em geral, há propostas inovadoras, que só precisam ser testadas suas viabilidades, por quem tem obrigação de cuidar, principalmente da parte mais vulnerável em questão, a mulher. O Relatório do Grupo Interministerial propõe intervenções nas condições físicas das instalações como: construção, na área da saúde preventiva como: higiene, cuidados ginecológicos, gravidez, sexualidade em 78

geral, além da educação profissional, que propõe ocupação utilitária e terapêutica.

A MULHER NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE: breve comentário

Concretamente, na história da humanidade, em que pese os períodos de importância do matriarcado, a mulher sempre esteve como gênero, sob a égide do sexo masculino, que até em seus sonhos, como bem expressa a francesa Michele Perrot: “Reinam no imaginário dos homens, preenchem suas noites e ocupam seus sonhos” (PERROT, 2006, p.167) A mulher, divinizada, rainha do lar, principalmente a partir da classe média, porque nas classes populares elas não têm esse “status”, embora a problemática da existência se assemelhe de forma geral, a mulher, seja européia, americana do norte,do sul, do oriente reage de forma peculiar em suas sociedades, e particularmente, no Brasil. É interessante notar que até na ficção é lastimável o desprestígio ou o descaso que lhe impõe a justiça, principalmente concernente à violência doméstica, que é usual se comentar “foi ela que provocou”. Os filmes ou novelas vivem reforçando essa visão. É recorrente a constatação de que a mulher é excluída dentro da sociedade machista, e mesmo que trabalhe fora, sua missão é: “a assistência da família, a organização do lar, o apoio ao marido e o cuidado dos filhos” (DIAS, 2004, p. 20). Assim mesmo, a mulher em sua teimosia nos movimentos feministas, fenômeno mundial, mesmo onde o cerceamento do seu direito é patente encontra vozes ao seu favor. Então, os métodos contraceptivos e o ingresso da mulher no mercado de trabalho desencadearam uma verdadeira luta emancipatória. Muitas conseguiram ter acesso à educação, porém no exercício profissional, mesmo desempenhando atividade igual à parte masculina, recebe salário inferior. Á mulher, seja ela rainha, de classe popular, sempre, em qualquer sociedade lhe é reservado o papel “dona de casa”, que não recebe salário, não faz jus ao descanso semanal, entre outros. Por terem as mulheres o monopólio de função reprodutiva e de amamentação, a elas se atribuiu, com exclusividade, toda a responsabilidade pela criação dos filhos, sua educação com a obrigação de garantir à sociedade homens e mulheres sadios em todos os aspectos. Debates Político e Acadêmico Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


Frequentemente por ocasião das comemorações do Dia Internacional da Mulher – 8 de março – os holofotes políticos direcionam suas luzes para a questão da mulher, muitos projetos se geram, bem como mecanismos de cobranças por parte das instituições e movimentos que cuidam da mulher. Em que pese a importância de família, a mulher se inscreve além desta instituição. Entre outras, duas diretivas merecem atenção: Primeiro, historicamente, a mulher sempre foi vista no seio familiar e só recentemente detém poder de divisão na família. A mulher passa a ter poder de decisão, conjuntamente com o esposo; nas decisões do marido, ressalva-se a mulher o direito de recorrer; o domicílio é escolhido por ambos os cônjuges; pode a mulher, assim como o marido, ausentar-se do domicílio conjugal para atividades profissionais, ou interesses particulares relevantes. O exercício da responsabilidade da família se concretiza no “Poder familiar”, ambos os cônjuges o exercem; a mulher pode igualmente administrar os próprios bens. Claro está que a lei brasileira define papeis e responsabilidades iguais para os cônjuges. Assim, Donati se expressa: Aquela relação que nasce especificamente na base do casal homem/mulher para regular suas interações e trocas de modo não casual. Duas diversidades biopsíquicas se encontram, interagem, se compensam, entram em conflito, repartem tarefas, negociam espaços de liberdade (DONATI, 1998, p.123).

É importante lembrar que em seus direitos a mulher independe também do casamento, pois todas as mulheres do mundo não contraem necessariamente, o matrimônio ou outra forma de convivência marital. Outro ponto, a inserção da mulher no mercado de trabalho oferece espaço de realização, especialmente quando pode ser protagonista. O exercício do trabalho, além de muitas vezes servir para contribuir com remuneração para a família, enseja também à mulher uma relativa autonomia de consumo, orientado para os filhos, para a casa ou para interesse próprio. (PETRINI e CAVALCANTI, 2005, p.45) A mulher neste mundo machista tem muito que conquistar, com olhar no princípio primordial: “Todos são iguais perante a lei.” (Const. Brasil, 1988) Os movimentos populares brasileiros têm sido relevantes para a compreensão do grau de repressão – liberdade em alternâncias ao longo de sua história. Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

Esta compreensão fica mais evidente à luz do professor Paulo Freire (2000, p.15): “... uma sociedade que, sendo sujeito de si mesma, tivesse no homem e no povo sujeitos de sua História”. No século XIX, mulheres através de tímidos jornais quais artesanais, muitos por elas editados, denunciavam o cerceamento ao Direito para as mulheres e o buscavam através de denúncias para sair da opressão. Essas reivindicações ainda estão na ordem do dia no século XXI. Para tanto, os meios universitários têm feito brotar fluências no que diz respeito aos mais variados temas. Onde há problema, merece investigação e, em relação particular à mulher, surgem temas palpitantes no celeiro do mundo acadêmico. Perrot (2006), com sua preocupação sobre os excluídos é sensível à temática da mulher no campo de reflexão aberto por Michel Foucault. Ela chama a atenção para o jogo de palavra: poder, e diz que é um termo polissêmico, já se referindo a Marcel Bernes; adiante diz que, no singular, tem conotação política; no plural se fragmenta e é conduzido por influências periféricas onde se assenta a mulher. Afirma: “Se elas não têm o poder, as mulheres têm, diz-se, poderes” (PERROT, 2006, p.167). O poder, segundo Michel Foucault (1999), é exercido por diferentes camadas sociais em qualquer tempo ou espaço, articulando-se, transitando entre os sujeitos, sobretudo na produção discursiva. Então o poder será caracterizado como um conjunto de realizações que circulam toda parte do corpo social e não é privilégio deste ou daquele sujeito, ou grupo (PERROT, 2006, p. 169). Uma grande contribuição de Engels, diz Lyra (1989) É a interpretação histórica da família humana. Em sua revisão da literatura antropológica, ele presta tributo a pensadores anteriores, como Marx, e ao mesmo tempo sintetiza uma tese praticamente irrefutável: a família humana reflete a organização político-econômica da sociedade. (LYRA, 1989, p.36)

Nos meios acadêmicos e políticos encontram-se verdadeiras cronologias dos movimentos das mulheres no Brasil a partir do século XIX. No Nordeste, em 1932, a médica potiguar- Rio Grande do Norte- Nísia Floresta inaugurou o voto feminino no Brasil. Hoje, a Lei eleitoral estabelece 30% de candidatas mulheres, a partir das eleições de 2000 (PINTO, 2003, p.32) 79


O debate acadêmico atual dá sustentação a movimentos feministas acreditados e/ou embrionários que tem no tema mulher, a matéria prima para o arcabouço do tecido social contemporâneo, sobre essa personagem na sociedade moderna. Contudo, a exclusão velada das mulheres dos papéis que envolvem o poder é algo profundamente arraigado no estilo político brasileiro: é o reflexo político no espelho do machismo (PERLAMN, 1977, p.225).

OS DIREITOS DA MULHER

A Constituição de 1988, no Brasil, bem como em todo o mundo ocidental insiste que homens e mulheres são iguais. Longe está que essa igualdade seja plena, geral e irrestrita. O acúmulo de funções em dupla jornada fez do gênero um ser sobre-humano em que se coloca cada detalhe de atitudes em relação à família, mesmo quando a mulher é solteira e sem filhos. A história mundial conta que as herdeiras de tronos são treinadas, preparadas para serem rainhas antes do nascimento. Ocorre o mesmo com qualquer mulher, de qualquer classe ao redor do mundo, que se espera dela o desempenho dos mais variados papéis: “A rainha do lar”, dona de casa, boa mãe, e até nos tempos modernos, a virgindade genital em algumas sociedades, para algumas famílias é relevante. A Constituição Federal buscou regatar a Igualdade, cânone da democracia desde a Revolução Francesa e linha mestre de Declaração dos Direitos Humanos. A Carta Magna em duas oportunidades enfatiza no artigo 5º e 226, a igualdade de gênero, contudo não basta para alcançar a absoluta igualdade social e jurídica entre homens e mulheres. O simples estabelecimento de principio da Igualdade está longe de eliminar as diferenças existentes. A sociedade ocidental concedeu ao homem o espaço público e à mulher o espaço privado, nos limites da família, de gestão do lar, educação dos filhos. A “rainha” é preparada para exercer a santidade e desde criança lhe apresentam os presentes de boneca, de casinha, de reclusão e de discrição. “Essa multiplicidade de papéis, ensejou a formação de dois mundos: um de dominação, externo, produtor; outro de submissão, interno, reprodutor” (DIAS, 2004, p.32). Os sinais de cidadania da mulher no Brasil apareceram em 1932, quando lhe foi concedida a possibilidade de votar. Só em 1962, trinta anos depois, 80

por meio do Estatuto da Mulher Casada, teve ela sua capacidade parcialmente alcançável. As lutas emancipatórias, conferiram à mulher direito à liberdade, enquanto começaram a questionar a discriminação histórica de que eram sujeitos passivos. Com a entrada da mulher no competitivo mundo do trabalho, até então masculino, passou ela a manter também o lar com o fruto do seu trabalho, conferindo certa independência, todavia, assumiu dupla jornada de trabalho. Ao lado disto, ela também passou a cobrar mais a colaboração do homem no que diz respeito à educação dos filhos, bem como parceria nas atividades domésticas. Então, a mulher divinizada, mãe de família, rainha do lar, promotora de paz, isto é, nascida e criada para apaziguar, pode ser uma criminosa? Ela é também pecadora? A questão que se coloca é: A mulher é sempre vítima? Ou também é promotora de violência?

A MULHER ENCARCERADA E O SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO: enfoque no século XX

Pensar e conceber o sistema Prisional brasileiro requer que se remeta à legislação que regula tal sistema e contextualização deste instituto. A institucionalização de punição, desde sua organização na década de 30 do século passado, até os dias atuais, é decorrente das mudanças e dos olhares sobre o Brasil pós guerra, marco de transformações em todo o mundo, moderno e pós moderno. As críticas sobre o Brasil são contundentes uma vez que se alega que o mesmo absorveu posturas européias que marcaram as imperfeições de uma modernização com rosto brasileiro. Tomando por base Gilberto Freyre, o Brasil foi formado a partir de uma sociedade patriarcal, agrária e que teve no braço escravo o “desenvolvimento” considerado na missão da elite que enriquecia e aproveitava os benefícios da cidadania para alguns poucos privilegiados (FREYRE, 1992, p.75). O Brasil na visão de Freyre era um modelo de “extremo descentralismo político”, que perdurou até meados do século XX. A Revolução modernizadora percebida por ele abrange todos os setores do século XX, tempo de transformações significativas e não poderia ser diferente no campo normativo: entre os anos 1930 e 1945 – a Era Vargas foi palco de reformas legislativas, já com outro Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


pensamento de superar o atraso sócio-político, contudo demonstrou um poder centralizado, resultando na Revolução de 1932, surgindo daí a pressão por uma nova Constituição, a de 1934, para tender os interesses da Oligarquia paulista. A citada Constituição trouxe avanços significativos, principalmente trabalhistas, que perduram até hoje, além de garantir alguns direitos sociais, principalmente o direito de voto para a mulher. Houve reforma a partir daí, como a reforma da legislação penal – Código de 1940, Código de Processo Penal de 1941; Lei das Contravenções Penais de 1941 e a Lei de Introdução ao Código Penal, também de 1941. Tudo isso como instrumentos de Controle por parte do Estado. Tudo isto concorreu para consolidar o Estado Novo (LIMA, 1983, p.21). A partir de 1940 é que se pensou em criar prisões femininas, mas com todas as características e equívocos das masculinas, surgida em São Paulo o 1º Presídio de Mulheres, com todo o descaso para a questão do gênero. As atitudes discriminatórias foram e continuam sendo evidentes por atitudes históricas em que tudo é pensado e gerido por homens. Mesmo hoje quando há uma Instituição que cuida da parte feminina encarcerada, o relatório citado, evidencia, nas palavras da ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, Nilcéa Freire: “a violência contra a mulher é uma violação dos direitos humanos”. A Constituição Federal garante os direitos fundamentais além dos Tratados e Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos, dos quais o Brasil é signatário. Com efeito, a teoria da formação humana toma forma na indagação da contextualização deste no mundo, como acerca de sua natureza. Com precisão a autora Edith Stein assim se expressa: O ser humano [...] é livre, é chamado à perfeição (que chamam de “humanidade”), é um membro na totalidade da cadeia do gênero humano que se avizinha progressivamente do ideal de perfeição; cada sujeito e cada povo recebeu, na força da própria natureza, uma tarefa particular a desenvolver no processo civilizatório da humanidade. (STEIN, 2000, p.39)

O olhar sobre a mulher no final do século XIX era pouco lisonjeiro, era concebida como inferior e que tem Lombroso & Ferrero dois conceituados autores representantes desta corrente e de grande influência nos meios jurídicos e policiais, numa colocação altamente Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

contraditória, apontavam-lhe inúmeras deficiências, entre elas, a infantilização. Os autores em sua obra partindo das características das mulheres que consideravam normais buscam analisar outras mulheres como desviantes – prostitutas e criminosas que poderiam ser reconhecidas pelas modalidades: as criminosas natas que se constituíam no tipo mais perverso; as criminosas por ocasião, sempre tendentes ao delito e as criminosas por paixão que atuam a partir do seu caráter arrebatado, as passionais, além de ainda se referirem à menor sensibilidade sexual da mulher (LOMBROSO E FERRERO, 1896). Portanto é histórica a vaticinação de inferioridade da mulher que mesmo as consideradas normais sofrem referências pouco lisonjeiras. Um fenômeno é evidente, para o crescimento da criminalidade feminina: principalmente a violenta produção social e espacial da violência urbana. “As mídias do Benin, da Costa do Marfim, da Guiné, a influência belga, francesa, tunisiana, suíça, os canais de televisão canadenses, veiculam diariamente os casos de “violência urbana”. (PEDRAZZINI, 2006, p.13) Assim, o sistema prisional ou penitenciário (usualmente tidos como sinônimos, mas, são diferentes, um é gênero, o outro, espécie), feminino no mundo com raras exceções é banalizado no caos. Dados de 2008 da secretaria Nacional de Administração Penitenciária dão conta que há mais de 30.000 mulheres presas no Brasil e em todo território nacional não chegam a 60 as casas que restringem a liberdade. No Brasil não é diferente, até por conta da globalização e do avanço do tráfico que não está mais sendo privilégio urbano, chegando até a zona rural de forma galopante. O crescimento da criminalidade é evidente, pois, em 2005, havia no Brasil 10.000 mulheres presas e o salto para mais 30.000 em 2010 é assombroso (dados da Secretaria Nacional de Administração Penitenciária). A partir do Estado, nos três poderes, muitas Comissões de Direitos Humanos são instituídas, além de grupos, organizações não governamentais para interferir, denunciar e propor soluções quando violados os direitos do cidadão ou cidadã, contudo, muito se tem que caminhar também, quando se trata da mulher privada de liberdade. Então, as informações são importantes para se firmar a imagem do caos no sistema penitenciário com especialidade, o feminino, para evidenciar o real quadro. Outros problemas são pouco trabalhados como, o descuido com a prole da mulher, que muitas vezes 81


chega grávida à cadeia, a desconsideração por sua sexualidade, além da ausência do companheiro (quase sempre preso também), muitas vezes causador de sua prisão. Mesmo solto, raramente vai visitá-la. Em conversa com mulheres privadas de liberdade no Presídio Feminino em João Pessoa – Paraíba, verifica-se um dado recorrente: as mulheres não têm efetivamente garantidos acessos a visitas íntimas, como é permitido aos homens em igual situação, além de que por ser mulher de qualquer modo, quando permitido é submetida a constrangimentos constantes. Bastaria lembrar que se tem hoje a convicção de que todas as fases da administração da justiça interdependem-se, de tal modo que cada momento, só ganha sentido enquanto relacionado com os demais. Sob o aspecto organizacional, imenso campo está destinado à criminologia, na análise dos efeitos e eficácia de todo o sistema da Justiça criminal, fornecendo valiosos subsídios para o legislador, visando a uma política criminal humanista que leve em conta a questão de gênero no tratamento prisional (DONNICI, 1979, n. 29 p.7).

À GUISA DE CONCLUSÃO

Em que pese a obrigação do Estado em tutelar o cidadão, principalmente àquele que depende exclusivamente de suas decisões, mormente à reinserção na sociedade, da pessoa privada de liberdade, não tem ele conseguido exibir animadoras estatísticas. A questão dos Direitos Humanos no mundo, no

82

que diz respeito à sua eficácia, está longe de alcançar a aplicabilidade aceitável, principalmente na América Latina, onde o avanço da criminalidade por tráfico de drogas tem sido a principal causa da criminalidade e que esta tem crescido assustadoramente entre as mulheres. O sistema penitenciário feminino, precisa ser urgentemente humanizado, uma vez que as estatísticas mostram que a maioria comete delito, estimulada pelo companheiro, que, não raro está cumprindo pena. Ademais, os direitos de mulher são cerceados a partir das prisões pensadas e construídas para os homens, descaso no trato das mulheres grávidas, com raras exceções no Brasil, falta de ocupações terapêuticas com profissionais competentes para oferecer alternativas de recuperação e preparação para uma atividade produtiva. Evidentemente, tem-se ignorado as questões emocionais, afetivas e sexuais da mulher encarcerada. A Paraíba foi recentemente um dos últimos Estados do Brasil, ficando à frente de Sergipe, Santa Catarina e Rondônia, a instalar o Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar. Isto significa avanço, porque são as mulheres e crianças que sofrem mais violência no lar, e os movimentos feministas colhem alguns louros desses fenômenos como resposta às suas lutas. Que os direitos da mulher, mesmo privada de liberdade não sejam concessão dos homens e que a administração do sistema penitenciário seja adequada às exigências advindas de Órgãos como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. Portanto, não basta declarar o direito, mas, dar efetividade ao direito do cidadão ou cidadã em qualquer Estado, principalmente, democrático.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


Referências A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1995.

PEDRAZZINI, Yves. A violência nas cidades. Tradução de Giselle Unti. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao. htm>. Acesso em 13/05/2010.

PERLMAN, Janice E. O mito da marginalidade: favelas e política do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

CARREIRA, Denise, AJAMIL,Menchu, MOREIRA, Tereza. A liderança feminina no século 21. São Paulo:Cortez,2001.

PERROT, Michele. Os excluídos da História. 4ª Ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2006.

DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre a mulher e seus direitos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004.

PETRINI, João Carlos; CAVALCANTI, Vanessa Ribeiro Simon. Família, Sociedade e Subjetividade. Petrópolis, 2005.

DONNICI, Virgilio. Relatório do seminário sobre a crise da administração a justiça. Revista do Instituto dos advogados Brasileiros, 1979, ano VII, n.29, p.7.

PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 36.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

POTER, C. F. História das Religiões. São Paulo: Ed.Universitária, 1978.

FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record,1992. LIMA, E. M. Origens da prisão feminina no Rio de Janeiro: o período das freiras. Rio de Janeiro: OAB, 1983 LOMBROSO, Cesare; FERRERO, Guglielmo. La Femme Criminelle et la Prostituée. Traduction de l’italien, 1896. LYRA, Ricardo Pereira. Elementos críticos do Direito de Família: curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1989.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. Forense Universitária, 1989. STEIN, Edith. La strutura della persona humana. Roma, Città Nuova Editrice, 2000. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 2ª edição – São Paulo: Martins Fontes, 2008. DIREITO PROCESSUAL. Seminário ministrado pelo professor Dr. Jorge Augusto de Medeiros Pinheiro no curso de Doutorado na UMSA, Buenos Aires, Argentina.

83


Gláucio Xavier da Fonseca *

Banda de Música: uma tradição sociocultural

RESUMO Neste artigo são discutidos alguns aspectos e a importância da instituição chamada Banda de Música. Demonstra sua trajetória na história musical brasileira, ressaltando os seus valores para a cultura local e suas contribuições na formação musical dos jovens. Como resultado, é demonstrada a sua importância socioeducativa para a formação não formal dos jovens instrumentistas residentes nas cidades interioranas do Brasil. Palavras-chave: Banda de música; Educação não formal; Tradição sociocultural.

ABSTRACT This article discusses some aspects and the importance of Music Band institution. It shows its trajectory in Brazilian musical history, highlighting its values to local culture and its contributions to young people´s musical education. As a result, its socioeducational importance to non-formal training of young musicians living in Brazilian inner cities is proven. Keywords: Music band; Non-formal education; Social cultural tradition.

(*) Professor Dr. do Departamento de Música do Centro de Comunicação, Turismo e Artes. Campus João Pessoa. E-mail glaucioxf@gmail.com 84

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


1. INTRODUÇÃO A banda de música é um grupo instrumental que possibilita a aglomeração das massas, uma representação cultural vivida tanto no passado quanto nos dias hodiernos, e influente na musicalidade brasileira. Ela possui propósito social e é um legítimo centro aglutinador de cultura musical, através da formação de instrumentistas de todos os grupos socioculturais e de gênero, pois, mobilizando cidadãos jovens e amantes da cultura musical, participa da vida comunitária, apresentando-se em festas de padroeiro, cortejos religiosos, solenidades cívicas, etc. Sua finalidade é proporcionar música para o povo. Nesse sentido, Granja e Tacuchian (1984-85, p. 39) assinalam que a “semântica da banda é um tripé comunitário, cultural e educativo. Se ela está presente nos momentos de solenidades ou de lazer, ela também preserva o patrimônio musical do seu povo e é escola de portas abertas para sua comunidade”. Portanto, ela é, realmente, a escola de música de cada cidade. Desse modo, uma das constituições mais democráticas, a banda de música está inserida no seu meio social, contribuindo diretamente para o engrandecimento cultural da sociedade, promovendo a integração dos jovens na comunidade local, possibilitando, portanto, o desenvolvimento de suas tendências e aptidões musicais. Apoiada e dirigida pelo seu representante comunitário, a banda de música tem os mais autênticos grupos de músicos populares brasileiros, e está presente para expressar as manifestações artísticas dos jovens residentes nas cidades interioranas, como forma de incentivo à formação de futuros instrumentistas. É de imprescindível e fundamental importância. Apesar disso, lamentavelmente, evidencia-se, até hoje, a condição de sustentação precária das bandas, face às fontes de recursos financeiros existentes, quais sejam: Secretarias de Educação Municipais, injeções financeiras momentâneas em função das conveniências políticas ou de empresas, e ainda de indivíduos em busca de prestígio. Por essas e outras razões, de uma maneira geral, as Bandas de Música, nos últimos 30 anos, têm apresentado uma redução de sua importância musical junto à comunidade, principalmente pela carência de músicos, de instrumental, de atividades prestadoras de serviços, entre outras, que dificultam a sua estabilidade como instituição. Muito provavelmente a carência de visão empresarial dos dirigentes das Bandas de Música as tem levado a uma dependência direta dos órgãos governamentais e de outras instituições cujas prioridades não as incluem. Isso reflete as condições variáveis apresenConceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

tadas por elas, que, em certos casos, chegam a paralisar suas atividades por falta absoluta de condições estruturais e financeiras. 2. ASPECTOS HISTÓRICOS Desde o Período Colonial no Brasil, a música esteve presente, estabelecendo seus profundos valores autoritários e hierárquicos de uma sociedade da época. A herança musical nesse período veio de europeus, como portugueses e italianos, segundo assinala Granja (1987, ´p. 91), “tocando em conjuntos dirigidos por ‘mestres’ europeus e patrocinados por ricos proprietários rurais”. A música foi utilizada pelos europeus como meio de dominação e subordinação dos povos nativos. Posteriormente, a música foi interpretada pelos negros trazidos da África, que eram ensaiados pelos barbeiroscirurgiões (negros) da mesma localidade. Segundo Tacuchian, o escritor Couto de Magalhães faz referência à primeira banda de música civil brasileira, formada por portugueses e índios: Foi por ocasião da visita do padre Manuel Nunes, vindo de São Paulo para Santos, a seu colega de ordem religiosa, o Jesuíta Manuel de Paiva, em 1554. Maravilhado com a música realizada por um conjunto instrumental, o visitante perguntou se se tratava de brasileiros, os músicos. “Alguns, senhor – responde o padre Paiva – a maior parte, porém, são ainda lusitanos; esperamos ter em breve uma banda completa dos autóctones, pois é rara a aptidão que têm esses bárbaros.” (TACUCHIAN, 1982, p. 65, grifo do autor).

Inicialmente, no século XVI, a música era organizada por eclesiásticos, e tinha o caráter de catequização dos nativos (índios). Estes utilizavam a voz e alguns instrumentos, como flauta, gaita, tambores, viola e cravo, na interpretação da música com características ibérica e medieval. A parcela de contribuição dos nativos brasileiros à música, porém, foi bastante ínfima se a compararmos com a contribuição dos africanos. A esse respeito, registra ainda Tacuchian (ibid., p. 66) que, “se os índios brasileiros eram musicais, os negros não lhes ficavam atrás”. Os negros escravos desempenharam um importante papel na música colonial brasileira, principalmente após a abolição da escravatura. Mesmo com um alto contingente de negros escravos interpretando música, prevaleceu a influência musical europeia. Nesse sentido, Tinhorão afirma que “[...] a música que 85


produziam não tinha como traduzir a cultura original de seus componentes” (TINHORÃO, 1998, p. 155). Apesar disso, os negros escravos foram peças fundamentais nas primeiras bandas de música brasileiras. A esse respeito, comenta Mariz que o “francês Laval, que visitou a Bahia em 1610, conta de um ricaço que ‘possuía uma banda de música de trinta figuras, todos negros escravos, cujo regente era um francês provençal’” (MARIZ, 2000, p. 34-35, grifo do autor). Os conjuntos musicais antecessores das bandas de música brasileiras foram os charameleiros e as chamadas bandas de barbeiros. Estes últimos eram formados por escravos libertos, que tinham também em comum o fato de exercerem a profissão de barbeiro. Segundo Tacuchian (1982, p. 66), charameleiros “era a denominação genérica que se dava a grupos de instrumentistas de sopro e percussão”. Ainda a esse respeito, Granja afirma que esses “[...] pequenos grupos de negros charameleiros foram o núcleo embrionário das bandas de música brasileiras” (GRANJA, 1987, p. 91), cuja função era o fornecimento da música destinada ao entretenimento público. Salienta ainda Granja (ibid., p. 91) que “posteriormente em regiões como Bahia e Rio de Janeiro apareceram as chamadas ‘bandas de barbeiros’, grupos de músicos que podem ser considerados como o estágio intermediário entre as primeiras formações de charameleiros e as bandas de música propriamente ditas”. A partir da segunda metade do século XVIII, com a intensificação do comércio interno, em consequência da corrida do ouro e diamantes em Minas Gerais, ocorreu um crescimento populacional em Salvador e no Rio de Janeiro. A partir desse momento, surge uma necessidade de música que atendesse às diferentes camadas sociais existentes na sociedade da época. Até então, não se ouvia falar em música popular. Consoante Tinhorão (1998, p. 157), “[...] a necessidade de música própria para as festas públicas populares das cidades apareceu, fazendo surgir também o personagem mais indicado para satisfazê-la: o barbeiro músico”. Por essa razão, os barbeiros foram responsáveis pela produção e estilo da música mais espontânea e popular. É importante observar que esses músicos tocavam de ouvido e suas músicas eram indispensáveis nas festas populares. Por ser um profissional liberal e dispor de tempo livre, o barbeiro pôde desenvolver suas habilidades na atividade musical como forma de lazer. Ao contrário dos negros escravos, que interpretavam a música muitas vezes com ritmo que determinava suas cadências para o trabalho pesado, como carregar fardos, sacos e outros, o barbeiro tinha as mãos livres que lhe possi86

bilitavam aprender instrumentos, tais como rebeca e trombeta. No início do século XIX, os conjuntos de músicos urbanos (barbeiros) do Brasil tornaram-se mais frequentes, permanecendo ligados às tradições profanas e litúrgicas, conforme afirma Djalma De Vincenzi (apud TINHORÃO, 1998, p. 160): Embora numerosos, esses escuros filhos da Harmonia sempre encontram trabalho, não só da maneira que mencionamos, mas também à entrada das igrejas, ou na celebração de festas, onde se postam a tocar peças alegres, sem levar em consideração as solenidades que se desenrolam no seu interior.

Os grupos de instrumentistas negros durante o século XIX merecem destaque por serem os únicos a interpretarem a música como forma de entretenimento público. Os barbeiros das cidades, sempre conduzidos por seus mestres, produziram a música de forma mais espontânea e popular. Ao contrário, os músicos das bandas de fazendas que, na sua maioria, expressava a preocupação orquestral sob a direção de mestres europeus, eram usados para mostrar a ostentação e poder dos seus proprietários. A música de barbeiro tornou-se bastante imprescindível nas festas do período do século XIX. A seu respeito, assim se expressou o escritor Manuel Antônio de Almeida (1831-1861) (apud TINHORÃO, 1998, p. 164): [...] Não havia em que se passasse sem isso; era coisa reputada quase tão essencial como o sermão; o que valia, porém, é que nada havia mais fácil de arranjar-se; meia dúzia de aprendizes ou oficiais de barbeiros ordinariamente negros, armados, este com um pistão desafinado, aquele com uma trompa diabolicamente rouca, formavam uma orquestra desconcertada, porém estrondosa, que fazia a delícia dos que não cabiam ou queriam estar dentro da igreja.

3. AS BANDAS DE MÚSICA NO BRASIL DA ATUALIDADE O termo banda pode ser empregado para denominar “agrupamento músico de número de componentes e formação instrumental variada, que em geral executa música popular, ou marchas militares: banda de pífaros, banda de coreto, banda dos fuzileiros, banda Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


de rock.” (FERREIRA, 1999, p. 264, grifo do autor). No entanto, ao falarmos em banda de música, recordamos de um grupo instrumental, muito antigo e popular no Brasil, composto por instrumentos de sopro e percussão. A sua formação constitui-se de cidadãos de diferentes idades e das mais variadas classes sociais e grupos étnicos. Por essa razão, as bandas preservam na sua essência o poder de aglutinar, em prol da música, a comunidade em que está inserida. Segundo estudo realizado por Granja e Tacuchian (1984-85, p. 33), “a fonte de renda das bandas vem de cachês das apresentações, subvenções, doações, corpo de sócios, aluguel de casas e lojas pertencentes ao seu patrimônio”. Grande parte das bandas de música recebe “apadrinhamentos” de personagens políticos, e ainda há aquelas que possuem sede própria para realização de ensaios e atividades didáticas, além de contarem com instrumental e arquivo de partituras. É importante salientar que, mesmo as bandas que não recebem nenhum tipo de assistência por parte de secretarias governamentais, é comum apresentaremse com indumentária uniformizada. Conforme Granja e Tacuchian, algumas denominações, como “Sociedades de Euterpe, Sociedades Musicais, Filarmônicas e Liras são comuns para nomear as bandas de música” (GRANJA; TACUCHIAN, 1984-85). Ao contrário de grupos de câmara que geralmente possuem um número definido na sua constituição instrumental, a banda de música apresenta certa flexibilidade quanto ao número de sua composição instrumental (maior número de integrantes). De fato, elas operam de acordo com os recursos humanos e materiais disponíveis. As de formação mais humilde apresentam as famílias das paletas, dos metais e da percussão, assim classificadas: Palhetas pelas requintas, clarinetas e saxofones; Metais pelas trompas sax-horn (cachorrinho), trompetes, trombones e sousaphones (tubas) e Percussão pelo bombo, caixa clara, surdo e pratos. Além de flautas, algumas bandas incluem oboés e fagotes, sendo também chamadas de bandas sinfônicas. (HORTA, 1985, p. 33). Contudo, a banda de música perpassa os âmbitos socioculturais das tradições locais por atingir nas suas performances musicais, como festas populares e religiosas, um grande contingente populacional. 4. O ENSINO MUSICAL NÃO INSTITUCIONALIZADO NA BANDA DE MÚSICA A Lei n.º 11.769, de 18 de agosto de 2008, alterou a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica, determinando, no seu art. 26, § 6.º, que: “A música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricular de que trata o § 2.º deste artigo.” Esse § 2.º, por sua vez, sofreu alteração com a Lei n.o 12.287/2010, passando a ter a seguinte redação: “O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos.” Apesar da recente determinação da Lei, referente ao artigo supracitado, percebe-se que, nas escolas de ensino fundamental da maioria das cidades interioranas do Brasil, a qualidade do ensino musical se encontra ainda em estágio embrionário, pois a carência de material e de profissionais formados (professores licenciados em música) não atende a demanda necessária. Nesse sentido, Costa assevera: […] em muitas cidades brasileiras, em especial nas cidades do interior, a banda de música é a única opção para aqueles que desejam aprender música. Uma aprendizagem gratuita, sem distinção de raça, sexo ou idade (embora, atualmente, priorizando a faixa etária juvenil), e acessível a todos que desejam tocar um instrumento de banda e participar do grupo. (COSTA, 2008, p. 32).

Dessa maneira, percebendo a importância das bandas de música no início do século XX, Diniz (2003, p. 22) afirma: “para os músicos populares, essas agremiações tornaram-se a sua principal escola”. Entretanto, a falta do ensino dos fundamentos básicos da música (história, teoria e prática) tem impossibilitado um maior desenvolvimento musical dos alunos, uma vez que o acesso aos conceitos básicos necessários na infância e adolescência permitiria um melhor desempenho do estudo de música. Devido a essa realidade, por caminhos alternativos que estão cada vez mais enfatizados, os jovens que procuram a Banda de Música buscam soluções que minimizem a carência do ensino teórico e prático específico de cada instrumento nas escolas fundamentais. Dentro dessa perspectiva, é praxe os estudantes procurarem cada vez mais os centros culturais que mantêm a cultura das “Bandas de Música” ou “Sociedades de Euterpe”. Nesses centros, em que o acesso à música é mais democrático, encontra-se a verdadeira possibi87


lidade de formação de vários músicos instrumentistas de sopro e percussão. No estado da Paraíba, os estudantes têm encontrado estímulos em pequenos conjuntos instrumentais e Bandas de Música, que em geral interpretam gêneros populares. Entretanto, a formação musical dos instrumentistas paraibanos é, inicialmente, proveniente de bandas marciais e/ou de igrejas evangélicas, o que difere da educação musical de instrumentistas de outras áreas, tais como piano, canto, etc., que seguem orientações de bacharéis em música. Os conservatórios de música nas grandes cidades do Brasil priorizavam, em geral, a formação nas áreas de voz, violino e piano, e raramente beneficiavam a área dos sopros (metais). Embora nesses últimos trinta anos essa prática tenha sofrido uma significativa mudança, através dos conservatórios que passaram a contemplar os cursos de música de um modo geral, ainda assim, para os instrumentistas, a banda de música continua sendo responsável pela sua formação musical. Nessas bandas, não é exigido conhecimento mais aprofundado do aspecto teórico da música, mas, sim, a música transcorre naturalmente com a prática. Muitos músicos do passado consideram-se autodidatas em razão da forma de aprendizado utilizada na banda de música. Nesse sentido, Ribeiro atesta que a Banda de Música é, evidentemente, como instituição, a mais densa e legítima representação musical da nossa nacionalidade. Através de seus “Mestres”, que então conduziram e ora orientam suas próprias estruturas, polariza uma gama de representatividades muita nítida: o teor da espontaneidade, a ausência de técnica academizada e o poder de intuição aliado à pureza de expressão e da sensibilidade. (RIBEIRO, 1985, p. 87, grifo do autor).

A iniciação musical ocorre de várias formas, porém o fator principal para o sucesso profissional está associado à “sorte”, já que uma grande parte das instituições públicas de ensino no Brasil não oferece cursos de instrumentos musicais. Portanto, o talento musical de cada indivíduo torna-se o principal responsável pelo seu desenvolvimento técnico. Diante dessa realidade, os estudantes, na maioria das vezes, continuam os estudos musicais em instituições como Escolas de Música Estaduais, Conservatórios de Música e cursos livres em festivais de música.

Nessas instituições, no decorrer dos estudos, à medida que o estudante atinge a idade adulta, constata-se que, devido à falta de estímulo, em razão da pouca infraestrutura de mercado, tem havido, de forma progressiva, um desinteresse do estudante pelo estudo da música. Podemos comprovar essa realidade seguindo a trajetória de um estudante de trompete. Geralmente, a média da faixa etária de estudantes iniciantes que efetuam o primeiro contato com o instrumento nas bandas de escolas do Ensino Fundamental e Médio é de 12 a 16 anos de idade. Nessa fase, em virtude do desenvolvimento físico do adolescente, o qual se torna critério fundamental para um melhor condicionamento da técnica de execução no trompete, o desenvolvimento físico, ou seja, da caixa torácica, é de extrema importância, pois contribuirá para que haja uma melhor desenvoltura da coluna de ar e da produção do som. Na maioria das vezes, os alunos obedecem aos critérios dos mestres1 de banda. No entanto, nas atividades cívicas da escola, nem sempre é levada em consideração a emissão de uma boa sonoridade musical, afinação ou qualquer forma de referencial histórico ou teórico dos fundamentos musicais. O interesse dos estudantes de trompete por profissionais mais experientes é muito importante para que esses jovens desenvolvam sua musicalidade. A partir dos primeiros contatos com esses profissionais, os estudantes são estimulados a compartilhar diferentes grupos musicais. Muitas vezes, esses grupos preservam fortes influências dos seus primeiros orientadores, mestres de banda. Essa etapa de formação básica musical leva em média quatro anos para um trompetista iniciante desenvolver uma técnica razoável. Alguns jovens que iniciaram os estudos cedo, quando se tornam adolescentes passam a questionar a continuidade ou não dos estudos. Para outros, devido à necessidade financeira, abandonam a carreira musical e buscam outras áreas profissionais como alternativa de trabalho imediato. Entretanto, muitos desses jovens se tornam componentes de bandas populares, civis, militares ou orquestras, enquanto outros optam por ingressar numa instituição de ensino superior, dando continuidade aos estudos, tornando-se, assim, profissionais na área de música. Contudo, nos últimos 30 anos, uma maior demanda de cursos superiores na área de música voltados para a interpretação musical no instrumento possibilitou aos estudantes de música uma maior reflexão e motiva-

1. Geralmente, é detentor do título de Mestre de Banda o cidadão músico que rege, ensaia e ensina solfejo aos aprendizes (termo usado para classificar os estudantes principiantes). Parcela significativa da formação dos músicos brasileiros está sob a responsabilidade dos Mestres de Banda. A razão maior do ensino ministrado por esses Mestres é o desenvolvimento da prática no instrumento musical. 88

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


ção para continuação dos estudos em nível profissional. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebemos que, desde o Período Colonial no Brasil, a banda de música esteve presente, contribuindo com a formação musical, com a divulgação da música e com a socialização de indivíduos nas diferentes classes e épocas. Dessa forma, as bandas de música, além de promoverem não só a educação musical não formal dos jovens, possibilitam a construção de projetos de vida por meio do fazer musical; elas, também, tornam-se responsáveis pelo entretenimento do povo. Percebemos que, apesar da ausência de investimentos e incentivos que abranjam as bandas de música interioranas no Brasil, elas desenvolvem um papel tradicional de início na formação de instrumentistas profissionais, especificamente em instrumentos de sopro e percussão. Sua função educativa transcorreu épocas e limitações socioculturais. Elas podem ser considera-

das mobilizadoras de comunidades. A banda de música exerce nas pessoas o poder mágico e encantador, e, como ressalta Dom Marcos Barbosa (1915-1997), cada pessoa fica um instante suspensa à música que passa, mas logo o canto se desfaz, pois a banda dobra uma esquina e a música se perde ao longe [...]. Mas é bom que a banda passe. Por mais bela que fosse a sua música, ela perderia o seu encanto ouvida por mais tempo. É bom que a banda passe, e não seja monotonia e repetição, mas o milagre de um instante. (BARBOSA apud IRMÃO, 1970, p. 25)

Portanto, a tradição como contribuição da Banda de Música representa não apenas um papel sociocultural, mas verdadeiros celeiros pedagógicos não oficializados para a formação musical de jovens brasileiros na prática instrumental e, principalmente, na desenvoltura pela atuação em grupo.

Referências COSTA, Luiz Fernando Navarro. Transmissão de saberes musicais na Banda 12 de Dezembro. 2008. 137 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Federal da Paraíba, 2008, João Pessoa . DINIZ, André. Almanaque do choro: a história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: O Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1999. GRANJA, Maria de Fátima Duarte. A banda de música como produção simbólica de uma cultura. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, 2., 1985, Belo Horizonte: Anais... Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1986, p. 89-94. GRANJA, Maria de Fátima Duarte; TACUCHIAN, Ricardo. Organização, significado e funções da banda de música civil. Pesquisa e Música – Revista do Centro de Pós-Graduação, Pesquisa e Especialização do Conservatório Brasileiro de Música, Rio de Janeiro, n. 1/1, 1984-85, p. 27-40. HORTA, Luiz Paulo. Dicionário de música Zahar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

IRMÃO, José Pedro Damião. Tradicionais Bandas de Música. Recife: Companhia Editora de Pernambuco (CEPE), 1970. LDB: Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. – 9. ed. – Brasília: Câ- mara dos Deputados, Edições Câmara, 2014. 45 p. Série legislação; n. 118. Atualizada em 20/5/2014. ISBN 978-85-4020217-7. Disponível em: <http://bibliodigital.unijui.edu.br:8080/xmlui/bitstream/handle/123456789/2335/LDB%209.ed..pdf?sequence=1>. Acesso em: 10 mar. 2015. MARIZ, Vasco. História da Música no Brasil. 5. ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 550 p. ISBN 85-209-1050-5. RIBEIRO, Domingos de Azevedo. José Lima Siqueira: O Artista e o Líder (III). O NORTE – João Pessoa, 18 de maio de 1985. TACUCHIAN, Ricardo. Bandas: anacrônicas ou atuais? Art: Revista da Escola de Música e Artes Cênicas da UFBA, Salvador, n. 004, 1982, p. 59-77. TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: 34 ed., 1998. 368 f. ISBN 85-7326-094-7. 89


Stênio Melo Lins da Costa * Pamella Kalazans Farias Lins de Andrade **

Perfil epidemiológico dos pacientes com hanseníase menores de 15 anos no município de João Pessoa - PB

RESUMO Detectar a hanseníase em menores de 15 anos tem importante significado epidemiológico, pois aponta a gravidade da endemia e da exposição precoce da população ao bacilo. Com esse intuito, este estudo pretende analisar a situação epidemiológica da hanseníase em menores de 15 anos, no município de João Pessoa, no período de 2008 a 2012. Para tanto, foram utilizadas as informações oficiais relativas à patologia e disponíveis no Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN). Foram identificados 43 casos novos de hanseníase em menores de 15 anos, o que representa 8,09% do total de casos nos cinco anos. Predominaram o sexo masculino e o grupo paucibacilar. Palavras-chave: Hanseníase; Menores de quinze anos; João Pessoa-PB.

ABSTRACT Leprosy detection in children under 15 years old has an important epidemiological significance , because it indicates the severity of the disease, as well as the early exposure of the population to the bacillus. The aim of this study is to examine the epidemiological situation of leprosy in such a group of children in the João Pessoa municipality, during the period 2008-2012. We used official information on the disease available at SINAN. We identified 43 new cases of leprosy in the group studied, thus representing 8,09% of all cases during the five years, predominantly in male and paucibacillary groups. Key words: Leprosy; Children under 15; João Pessoa-Pb.

(*) Professor Associado I do Departamento de Fisioterapia do Centro de Ciências da Saúde, UFPB. E-mail: steniom@yahoo.com.br (**) Fisioterapeuta graduada pela UFPB. E-mail: pamellakalazans@hotmail.com 90

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


INTRODUÇÃO A hanseníase é uma doença infecto-contagiosa de caráter crônico, que se manifesta, principalmente, através de sinais e sintomas dermatoneurológicos: lesões na pele e nos nervos periféricos, sobretudo nos olhos, nas mãos e nos pés (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002). Essa patologia é desencadeada pela interação do ser humano com o mycobacterium leprae. Sua principal característica é o comprometimento dos nervos periféricos, que causa distúrbios motores que podem provocar diminuição ou perda da força muscular, além de distúrbios sensitivos, responsáveis pela diminuição da sensibilidade tátil, térmica e dolorosa. Essas disfunções podem causar diferentes graus de incapacidade física e evoluir para deformidades. No Brasil, a classificação clínica da hanseníae mais utilizada é a que foi definida em Madri, no ano de 1953, durante um congresso internacional, a saber: a hanseníase indeterminada (HI), a tuberculóide, a virchowiana e a dimorfa (HD). Nessa classificação, consideram-se dois polos estáveis e opostos (virchowiano e tuberculoide) e dois grupos instáveis (indeterminado e dimorfo), que caminhariam para um dos polos na evolução natural da doença. Na hanseníase indeterminada (HI), o período de incubação varia, em média, de dois a cinco anos. Depois desse período, surgem lesões, originadas de manchas hipocrômicas, com alteração de sensibilidade, ou simplesmente por áreas de hipoestesia na pele. Essas lesões são em pequeno número e podem se localizar em qualquer área da pele. Uma delas é a hipoestesia térmica, uma alteração sensitiva geralmente presente. Os troncos nervosos não são comprometidos nessa forma clínica da doença. A HI é considerada a primeira manifestação clínica da hanseníase e, depois de certo tempo, varia de poucos meses até anos, ocorre evolução para cura ou para outra forma clínica (LANA et al.,2007). Já a hanseníase tuberculoide (HT) apresenta lesões bem delimitadas, em número reduzido, anestésicas e de distribuição assimétrica. As lesões são em placas ou anulares com bordas papulosas e áreas da pele eritematosas ou hipocrômicas. Seu crescimento centrífugo atrofia o interior da lesão, que pode, ainda, assumir aspecto tricofitoide, com descamação das bordas. Adicionalmente, podem-se encontrar a variedade infantil e a forma neural. A variedade infantil afeta comunicantes infantis em convivência com pacientes infectados com as formas bacilíferas da doença, a localização mais comum é a pele, em que aparecem Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

nódulos, placas, lesões tricofitoides ou sarcoídicas. As lesões cutâneas estão ausentes na forma neural pura. Os achados clínicos são o espessamento do tronco nervoso, acompanhado de dano neural precoce e grave, em especial, quando atinge nervos sensitivo-motores. A hanseníase tuberculoide e a indeterminada são formas paucibacilares da hanseníase, por isso apresentam baciloscopia negativa (LANA et al.,2007). Quanto à hanseníase virchowiana (HV), atinge indivíduos com baixa resistência ao bacilo de hansen. Trata-se de uma forma multibacilar que pode evoluir a partir da forma indeterminada ou se apresentar como tal desde o início. Apresenta baciloscopia fortemente positiva e, nos casos de pacientes que não recebem tratamento, apresenta importante foco infeccioso ou reservatório da doença. Clinicamente, é identificada por apresentar uma evolução crônica caracterizada pela infiltração progressiva e difusa da pele, mucosas das vias aéreas superiores, dos olhos, dos testículos e dos nervos. Também pode afetar os linfonodos, o fígado e o baço. Nas fases iniciais, o indivíduo afetado apresenta obstrução nasal, rinorreia serossanguinolenta e edema de membros inferiores. Na pele, surgem pápulas, nódulos e máculas. A infiltração é difusa e mais acentuada na face e nos membros. A pele torna-se luzidia, xerótica, com aspecto apergaminhado e tonalidade semelhante ao cobre. A madarose - queda de pelos das regiões afetadas - é um dos achados da doença, o que causa rarefação dos pelos nos membros, nos cílios e nos supercílios. O quadro conhecido como fácies leonina é o resultado da infiltração da face, incluindo os pavilhões auriculares, com madarose e manutenção da cabeleira. O comprometimento nervoso ocorre nos ramúsculos da pele, na inervação vascular e nos troncos nervosos. Estes últimos vão apresentar deficiências funcionais e sequelas tardias. A hanseníase dimorfa (HD) é caracterizada por sua instabilidade imunológica e pela grande variação de manifestações clínicas, seja na pele ou nos nervos com comprometimento sistêmico. Os principais achados clínicos sugestivos desse tipo são: a infiltração assimétrica da face e dos pavilhões auriculares e a presença de lesões no pescoço e na nuca. As incapacidades físicas que afetam pacientes portadores desse tipo da doença são o resultado de lesões neurais precoces e assimétricas. A pele apresenta numerosas lesões, que exibem carcterísticas semelhantes às encontradas na forma virchowiana e na tuberculoide, placas eritematosas, manchas hipocrômicas com bordas ferruginosas, manchas eritematosas ou acastanhadas, com limite interno 91


nítido e limites externos imprecisos, placas eritematoferruginosas ou violáceas, com bordas internas nítidas e limites externos difusos (lesões foveolares). Dependendo da carga bacilar, a doença pode ser classificada também como paucibacilar ou multibacilar. A transmissão ocorre de pessoa para pessoa, através do convívio com os doentes do tipo multibacilares não tratados. Esses indivíduos têm carga bacilar alta, suficiente para favorecer a transmissão, apresentam múltiplas (mais de cinco) lesões de pele, nódulos, placas, espessamento da derme ou infiltração cutânea e, em alguns casos, envolvimento da mucosa nasal, que causa congestão nasal e epistaxe, além do acometimento de certos nervos periféricos, que, algumas vezes, resulta em padrões característicos de incapacidades (FOSS, 1999). Grande parte dos doentes apresenta resistência ao bacilo. Eles pertencem ao grupo paucibacilar cuja carga bacilar é baixa e insuficiente para infectar outras pessoas. Caracterizam-se por poucas (até cinco) lesões de pele hipocrômicas (pálidas ou avermelhadas), com perda de sensibilidade. Às vezes, chegam à cura espontaneamente. As principais fontes de disseminação das bactérias são, provavelmente, as mucosas das vias aéreas superiores¹. O bacilo de Hansen tem a capacidade de infectar grande número de indivíduos, no entanto, poucos adoecem. Essa propriedade não é função apenas das características intrínsecas da bactéria, mas depende, sobretudo, de sua relação com o hospedeiro e do grau de endemicidade do meio (SANTOS et. al, 2008). O surgimento dos sintomas na pessoa infectada pelo bacilo, entre outros fatores, dependerá da potencialidade da resposta imune do hospedeiro e de um longo período de incubação, geralmente, de dois a sete anos. Os primeiros sinais da hanseníase são manchas esbranquiçadas ou avermelhadas na pele, associadas à hipoestesia térmica e dolorosa; sensações de dormência, formigamento e, eventualmente, queda de pelos sobre as manchas. Os déficits de força muscular são a principal causa da incapacidade física desses pacientes. São acometidos, especialmente, os músculos distais dos membros superiores e inferiores. Essa doença pode ser tratada através de quimioterapia, e as primeiras doses já matam os bacilos, fazendo com que o paciente deixe de ser transmissor da doença (SANTOS et. al, 2008). Pretendeu-se, com este estudo, analisar a situação epidemiológica da hanseníase em menores de 15 anos, no município de João Pessoa, no período de 2008 a 2012, com o intuito de aprofundar o conheci92

mento sobre o comportamento da endemia na região, de forma a balizar ações mais efetivas para o controle e a eliminação da doença como um problema de saúde pública. Para isso, foram definidos os seguintes objetivos específicos: avaliar a variação percentual dos casos novos detectados em menores de 15 anos; monitorar a proporção de casos de hanseníase multibacilar entre os novos casos diagnosticados em menores de 15 anos; analisar a taxa de incidência da patologia e avaliar a evolução dos casos novos paucibacilares. METODOLOGIA Trata-se de um estudo epidemiológico descritivo-quantitativo. Quanto ao delineamento empregado, é uma pesquisa retrospectiva. Concernente ao método de coleta de dados, a pesquisa se caracteriza como uma investigação documental através da coleta de dados de fontes secundárias. O método de seleção de amostragem adotado nesta pesquisa foi o da especificidade – acessibilidade. A amostra foi composta pelos casos novos de hanseníase detectados no município de João Pessoa, entre os anos de 2008 e 2012, com faixa etária de até 15 anos. As variáveis utilizadas na investigação foram o ano de diagnóstico da patologia; o modo de detecção; o gênero dos pacientes e a classificação operacional da doença. Para a coleta dos dados, recorreu-se às informações oficiais relativas à patologia e disponíveis no Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN). Os dados foram extraídos dos indicadores de morbidade, IDB Brasil 2012, da rede integrada de informação para a saúde - RIPSA. Os dados foram analisados através da distribuição de frequências, diferença de percentuais e diferença de médias. A investigação foi realizada em observância aos princípios éticos e bioéticos norteados pela Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, autorizada pelo Comitê de Bioética do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba. RESULTADOS No período de 2008 a 2012, no município de João Pessoa, foram notificados 531 casos novos de hanseníase, entre os quais, 43 em menores de quinze anos, 8,09% do total, com uma média de 8,6 casos novos por ano. A taxa de incidência observada no período foi de 5,25 casos por 100.000 habitantes e apresentou, no período estudado, uma curva descendente, com a maior taxa observada em 2008 - 10,80 Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


casos por 100.000 habitantes, e a menor, em 2010, de 1,25 casos por 100.000 habitantes. Durante o período em que a pesquisa foi realizada, o percentual de casos novos em menores de 15 anos reduziu, e o maior percentual detectado no município, no ano de 2008 foi de 41,8% do total de casos novos. A distribuição dos casos novos por gênero mostrou predomínio do sexo masculino, com 24 casos novos detectados, o que representa 55,81% do total. Os dados relativos à classificação operacional da doença mostraram um predomínio do grupo paucibacilar, que representou 81,39% dos casos em menores de quinze anos registrados nos cinco anos. A taxa de incidência do grupo paucibacilar, no período estudado, foi de 4,27 casos por 100.000 habitantes. A variável mostrou uma tendência de queda, de 8,40 casos por 100.000 habitantes, em 2008, a 3,04/100.000, em 2012. DISCUSSÃO A hanseníase é uma endemia relacionada a condições socioeconômicas desfavoráveis, principalmente dos países tropicais, bem como condições precárias de vida e de saúde e o convívio de um grande número de indivíduos em um mesmo ambiente. Acomete pessoas de ambos os sexos, predominantemente do sexo masculino, e de todas as idades, em menor número, as crianças menores de quinze anos, exceto quando há mais endemicidade da doença. A hanseníase é, portanto, considerada uma doença que acomete principalmente a população adulta e adulto-jovem. Porém, nos últimos anos, o aumento na cadeia de transmissão do bacilo, aliado à deficiência na vigilância e no controle da patologia, tem provocado o aumento do número de casos em crianças menores de quinze anos (FERREIRA e ALVAREZ, 2005). A detecção da hanseníase em menores de 15 anos tem importante significado epidemiológico, tendo em vista que demonstra a gravidade da endemia e indica a ocorrência de exposição precoce da população ao bacilo, por isso é um fator importante para avaliar a magnitude da doença (ALENCAR et al, 2008). Tendo como base o coeficiente de detecção da patologia em cada 10.000 habitantes, o Ministério da Saúde sugere os seguintes parâmetros de situação epidemiológica: baixo - menor que 0,2 casos por cada 10.000 habitantes; médio - de 0,2 a - 0,9/10.000 hab.; alto – de 1,0 a 1,9 /10.000 hab.; muito alto - 2,0 a 3.9 /10.000hab.; e hiperendêmico maior ou igual a 4,0/10.000 hab8 (LANA, 2002). Em 2005, o Brasil apresentou um coeficiente de detecção de 0,80 em cada 10.000 habitantes Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

da hanseníase em menores de 15 anos. Essa taxa é considerada média, segundo padrões do Ministério da Saúde (MS). Nesse mesmo ano, na Região Nordeste, o coeficiente de detecção foi de 1,24 casos/10.000 habitantes. No estado da Paraíba, a detecção foi de 0,80 casos/10.000 habitantes, e no município de João Pessoa, de 0,67 casos/10.000 habitantes. A população deste estudo foi composta por 8,09%, de um total de 531 casos novos de hanseníase, em todas as faixas etárias notificadas no setor de epidemiologia da Secretaria Estadual de Saúde da Paraíba. O resultado foi semelhante ao obtido por Ferreira e Alvarez (2005), que, ao analisar a hanseníase em menores de quinze anos, no município de Paracatu, encontraram um percentual de 9,0% de uma população total de 500 doentes. Esse resultado indica elevada circulação do bacilo e a grande dificuldade da rede básica de se organizar para diagnosticar precocemente os casos dessa complexa doença. No entanto, os resultados mostraram que houve aumento do número de notificação no ano de 2008, o que pode ser resultado do incremento de ações de busca ativa de pacientes em idade escolar portadores da doença. Isso leva a refletir sobre a prevalência oculta, que são os casos que ainda não foram identificados (LANA et al., 2007). Estudos sugerem, ainda, que o aumento de detecção de casos novos de hanseníase em menores de quinze anos pode ser devido ao diagnóstico incorreto, por erros na abordagem diferencial com outras patologias dermatológicas ou neurológicas (ALENCAR et al., 2008). Os resultados evidenciaram a predominância do gênero masculino na população notificada. Em estudo semelhante, Hinrichsen et al (2004) observaram que houve predomínio de acometimento ao sexo masculino na faixa etária estudada no presente artigo. Entretanto, alguns estudos mostraram resultado divergente, como o de Ferreira & Alvarez (2005), que não encontraram diferença significativa do acometimento nos sexos feminino e masculino. O mesmo ocorreu com o estudo realizado por Imbiriba et al (2008), que, ao analisar o fenômeno na cidade de Manaus, verificaram ligeiro predomínio do gênero masculino entre os infectados. Luna et.al. (2013), ao estudar o perfil clínico-epidemiológico da hanseníase em menores de 15 anos, no município de Juazeiro – BA - constataram que 55,86% dos pacientes infectados eram do gênero feminino. A predominância do gênero masculino entre os pacientes com hanseníase em todas as faixas etárias é relatada na maioria dos estudos. Isso se deve, em tese, à maior exposição a que estariam sujeitos os in93


divíduos adultos do sexo masculino que trabalham em ambientes com grande número de pessoas, situação que poderia acarretar mais risco. Entretanto essa análise não se aplica à população estudada nesta investigação, porque, nessa faixa etária, é mínima a diferença de atividades entre os dois gêneros. O grupo operacional predominante neste estudo difere do encontrado em alguns estudos que apontam o grupo multibacilar como o predominante, como o de Ferreira & Alvarez (2005), que, em um estudo sobre a hanseníase em menores de quinze anos, no município de Paracatu – MG - observaram que, no momento do diagnóstico, 56% dos casos apresentaram a forma multibacilar da doença. Lana et al (2007) encontraram resultado semelhante, com 75% dos acometidos. Nesta investigação, observou-se que predominou a forma paucibacilar, resultado corroborado por Imbiriba et al. (2008), que verificaram que 70,7% da população apresentaram essa mesma forma. Resultado semelhante foi encontrado por Luna et.al. (2013), que verificaram o predomínio paucibacilar na população investigada. As formas paucibacilares da hanseníase são frequentes em pacientes com resistência ao bacilo e podem ser curadas de forma espontânea (LUNA et al., 2013). O predomínio da classificação operacional paucibacilar, no momento da detecção da hanseníase, indica que, na maioria dos casos, o diagnóstico está ocorrendo precocemente. Isso significa que o tratamento começa a ser feito no início da doença e evita que

ela se polarize para as formas que apresentam potencial incapacitante (AQUINO et. al., 2003).

CONCLUSÕES

A literatura aponta a importância da taxa de detecção em menores de 15 anos porque funciona como indicador do nível de transmissão da doença, o que contribui para se compreender o comportamento endêmico da hanseníase em determinado local. Os resultados demonstram que o serviço de hanseníase do município de João Pessoa (PB) está realizando diagnóstico de forma precoce, já que grande parte dos doentes é diagnosticada ainda na classe paucibacilar. O incremento de ações de educação em saúde que são realizadas na rede pública de ensino, voltadas para indivíduos com idades de até 15 anos, abordando o tema e esclarecendo sobre os principais sinais e sintomas da patologia, poderia contribuir para se detectar precocemente a patologia nessa população. Ainda são poucas as pesquisas que investigam a hanseníase em indivíduos com menos de 15 anos de idade. Por essa razão, outros estudos sobre esse tema devem ser realizados para aprofundar as questões relativas à hanseníase em menores de quinze anos, em especial, a análise do comprometimento neurológico e do grau de incapacidades apresentadas por esses indivíduos no momento de detecção da doença.

Referências ALENCAR, C. H. M.; BARBOSA, J. C.; RAMOS JR, An; RAMOS JR. An; ALENCAR, M. J. F.; PONTES, R. J. S.; CASTRO, C. G. J.; HEUKELBACH, J. Hanseníase no município de Fortaleza, CE, Brasil: aspectos epidemiológicos e operacionais em menores de 15 anos no período de 1995 a 2006. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 61, p. 692-698, 2008. AQUINO, D. M. C.; SANTOS, J. S.; COSTA, J. M. L. Avaliação do Programa de Controle da Hanseníase em um Município Hiperendêmico do estado do Maranhão, Brasil, 1991-1995. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.1, n. 19, p. 119- 125, jan./fev., 2003.

-epidemiológico dos pacientes diagnosticados com hanseníase em um centro de referência na Região Nordeste do Brasil. Anais Brasileiros de Dermatologia, v. 80, p. 283-288, 2005. HINRICHSEN SL, PINHEIRO MRS, JUCÁ MB, ROLIM H, DANDA GJN, DANDA DMR. Aspectos epidemiológicos da hanseníase na cidade de Recife, PE em 2002. An Bras Dermatol. 2004; 79(4); 413-21. DOI: 10.1590/S036505962004000400003.

FOSS, N. T. Hanseníase: aspectos clínicos, imunológicos e terapêuticos. An Bras Dermatol, Rio de Janeiro, 1999; 74(2).

IMBIRIBA, E. ; HURTADO-GUERRERO, J. C.; GARNELO, L; Levino, A; CUNHA, M. G.; PEDROZA, V. Perfil epidemiológico da hanseníase em menores de 15 anos - Manaus (AM), 1998-2005. Revista de Saúde Pública, v. 42, p. 1021-1026, 2008. LANA C F et al. Detecção da hanseníase na faixa etária de 0 a 14 anos em Belo Horizonte, no período 92-99: implicações para o controle. UFMG - Belo Horizonte: [s.n]. 2002. 14p. Digitado.

GOMES C.C.D; PENNA, G.O.; PONTES, M.A; GONÇALVES, H. Perfil clínico

LANA FCf; Amaral Ep; LANZA Fm; Lima Pl; CARVALHO; Acn Diniz Lg. Han-

FERREIRA, I.N, ALVAREZ, R.R.A. Hanseníase em menores de quinze anos no município de Paracatu, MG. Ver Brás Epidemiologia, 2005.

94

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


seníase em menores de 15 anos no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Brasil. Rev Bras Enferm 2007 nov-dez; 60(6): 696-700. LUNA I C F.; MOURA, L T R.; VIEIRA, M C A. Perfil clínico-epidemiológico da hanseníase em menores de 15 anos no município de Juazeiro-BA. Rev Bras Promoc Saúde, Fortaleza, 26(2): 20-215, abr/jun., 2013. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia para o Controle da Hanseníase. Brasília, DF. 2002. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de Controle da Hanseníase. Relatório Executivo do PNCH - Período - maio de 2007 a junho de 2008, Brasília: Ministério da Saúde; 2008.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

SANTOS, A. S.; CASTRO, D. S; FALQUETO, A. Fatores de risco para transmissão da hanseníase. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 61, p. 738-743, 2008. SANCHES, L. A. T.; PITTNER, E.; SANCHES, H. F.; MONTEIRO, M. C. Detecção de casos novos de hanseníase no município de Prudentópolis/PR: uma análise de 1998 a 2005. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 40, p. 541-545, 2007. SOUZA, C.S. Hanseníase: formas clínicas e diagnóstico diferencial. Medicina, Ribeirão Preto, 30: 325-334, jul./set. 1997. Vieira CSCA, et al. Avaliação e controle de contatos faltosos de doentes com hanseníase. Rev Bras Enferm, Brasília 2008; 61(esp): 682-8.

95


RESENHA A Aurora turva da vida de meu tio na cidade moderna Uma leitura transversal dos filmes Mon Oncle e Sunrise: a song of two humans Rossana Honorato (*)

AURORA – Ficha técnica

MEU TIO - Ficha técnica

Título original: Sunrise: a song of two humans

Título original: Mon oncle

Ano: 1927

Ano: 1958 - Origem: França

Origem: EUA

Duração: 120 min.

Duração: 94 min.

Direção: Jacques Tati

Direção: F.W. Murnau

Roteiro: Jacques Lagrange, Jean L’Hote, Jacques Tati

Roteiro: Carl Mayer - baseado no romance Die Rei-

Trilha sonora: Barcellini Franck, Alain Romans,

se Nach Tilsit (“Viagem a Tilsit”), de Hermann Suder-

Norbert Glanzberg

mann

Elenco principal: Jacques Tati, Jean-Pierre Zola,

Trilha sonora: Hugo Riesenfeld, Willy Schmidt-Gentner

Adrienne Servantie, Alain Becourt

Elenco principal: George O’Brien (o marido); Janet Gaynor (a esposa); Margaret Livingston (a mulher da cidade)

A modernidade é urbana. Esse é o tema central dos filmes “Aurora”, de Friedrich Murnau (1927), e “Mon Oncle”, de Jacques Tati (1958), que aqui se busca relacionar. Aproximadamente trinta anos distanciam essas produções cinematográficas no Século XX. Ambos retratam o vigoroso impacto das transformações decorrentes da era moderna e sua projeção sobre a vida humana, polarizando estigmas que contrapõem calmaria e insegurança, encontro e dispersão, estranho e reconhecível, encantamento e alucinação, distância

e proximidade pessoal, através da mediação da cidade moderna, frenesi da diversidade de oportunidades que consagram o lugar da vida urbana pós-indústria, sede por essência da circulação do capital, ímã que a tudo magnetiza ao preço do vil metal em trocos de uma avassaladora desigualdade social. Mundos diferentes, ainda que não necessariamente desconectados territorialmente, integram a dicotomia cidade-campo que eles representam. (Figuras 1 e 2) Em Aurora, produção norte-americana do ale-

1. Exercício elaborado no Curso “Representações, imaginários e imagens da cidade”, ministrado pelo Professor Doutor Robert Moses Pechman, no Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano – IPPUR – da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (*) Arquiteta urbanista, mestre em Ciências Sociais (UFPB) e professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo – DAU - da Universidade Federal da Paraíba. É doutoranda do IPPUR – Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. 96

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


FIGURA 1

FIGURA 2

mão Friedrich Wilhelm Murnau (1888-1931), à vida urbana se alterna o modo de vida campesina de uma pequena família na pacata rotina doméstica em sua fazenda, longe do burburinho da distante Tilsit2, a grande cidade. O fazendeiro, pai da família, vê-se, repentinamente, motivado a uma inusitada circunstância de experienciar uma vida de fora da pasmaceira de seu cotidiano. A trama integra o conflito que ele viveu entre os limites e a segurança da vida no campo e um idealizado e incerto porvir da ofuscante cidade imaginária. A atração é fruto de sentimentos que afloram, ao conhecer uma estrangeira, a “mulher da cidade”. Contraponto ao reconhecível, a expectativa do surpreendente, de um ‘verdadeiro’ modo para viver a vida, faz da paixão súbita a medida de valor entre a permanência e a mudança. A aposta do encantamento dessa relação traduz-se no amor à cidade, ao desconhecido que é a nova cidade, a um modo de vida dinâmico. Um mundo de ofertas de realização humana. Hesitante entre a rotina e o imprevisível (sua condição de esposo e de pai é recente – o casal tem um filho bebê), o fazendeiro confunde-se com o desejo de deixar seu presente para o passado e prosseguir com a sedução da cidade, a mulher fagueira, ousada, empenhada em uma inovada moral citadina, determinada a eliminar barreiras no caminho que lhe propõem a simulação da morte acidental da esposa. Um idílico passeio de barco no rio que margeia a fazenda da família constitui o cenário do plano orquestrado. No filme Mon Oncle, a imagética reconstitui o modelo da cidade industrial, com o imperativo aporte

da tecnologia da automação, a intrínseca contribuição da arquitetura e do urbanismo modernos e as consequências inexoráveis à conformação da pirâmide social, envolto em relações sociais pautadas na instantaneidade, na fragmentação e na teatralidade, padrões de comportamentos da classe média urbana. Paradigmas constituintes das novas trocas humanas tanto no espaço público, a rua - “lugar em que certamente estranhos irão se encontrar”3 - quanto no espaço privado, a moradia. Nas franjas da zona urbana habitada pelas classes sociais abastadas, a vida vicinal em cortiços decadentes expõe as pungentes carências materiais, contudo é o calor humano que se exala candente no cotidiano provinciano. A proximidade posta pela contiguidade do adensamento demográfico e da mistura de usos, tão característicos do subúrbio, dá lugar à espontaneidade, no mais das vezes, ingênua e mesmo alienada da precariedade da condição de viver que lhe recai no dia a dia. No filme de Tati, a habitação moderna é o ícone falante, que impõe outra fruição da “intimidade” do lar. A ordem espacial implica um ajustamento corporal minuciosamente prescrito no projeto de sua arquitetura. E é esse rígido layout, curiosamente formulado pela fluidez de linhas sinuosas, mas limitado por ângulos retos, que determina a administração do lar para a dona da casa. (Figura 3) Internamente, o design arrojado em linhas e formas (despreocupado com a acomodação corporal) e a automatização dão um tom enxuto e clean - suficiente - ao mobiliário do habitar moderno.

2. O filme Aurora foi baseado no romance de Herrman Suderman, “Viagem a Tilsit” - (ver Olavo de Carvalho nas referências eletrônicas). 3. HARVEY, 1995. 4. Expressão cunhada a partir das edições dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAMs – evento concebido por um grupo de arquitetos expoentes internacionais do Século XX e liderado pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier (Charles-Edouard Jeanneret-Gris – 1887-1965), com o fim de discutir sobre os rumos dos vários domínios da Arquitetura e do Urbanismo.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

97


FIGURA 3

FIGURA 4

Deslumbrada com a prometida liberdade da “máquina de morar”4, a dona da casa convence-se de sua nova competência: assegurar tão somente que as atividades humanas, beneficiadas pela revolucionadora ordem espacial, sejam efetivadas. Cabia a ela apenas zelar por sua aparência, com o asseio e o polimento, refletores contínuos da última geração do novo, testemunha da vanguarda do tempo. Comandos manuais a distância prometem à Senhora Arpel disponibilidade de tempo em seu viver, que a livrará do trabalho doméstico e viabilizará uma vida voltada para as horas livres, em uma casa de prontidão, para receber visitas e realizar recepções sem sobrecargas, o que a levará a prescindir, inclusive, de uma auxiliar doméstica. A casa-máquina faz tudo. À empregada, um processo de adaptação ao novo modo de servir à família moderna é formulado: contratos especiais para fins extraordinários à rotina. (Figura 4) Sofisticação sem medida nem a renda familiar permitiria facultar. A aparência simula um possível no impossível orçamento doméstico. Uma fonte desenhada em forma de golfinho adorna o jardim, ornamento tradicionalmente próprio do espaço público em equipamentos de uso coletivo, como representação central do poder aquisitivo de uma classe média em ascensão de que Jacques Tati tira proveito. O agenciamento do jardim dos Arpel, de layout acurado, concebido sobre os recuos legais de construção, mas que se farta à frente da edificação, delimitam a ocupação do lote e têm o ponto focal na consumação do sonho familiar: a fonte para chamar de sua. Contudo, o uso do equipamento deixa entrever o custo de funcionamento diuturno - o consumo de água e de energia severamente controlado pela gerente da casa. O toque sonoro do recurso instalado no muro frontal, a campainha eletrônica, alerta o instante de

ligar o jorro d’água à exibição do visitante. A vizinhança curiosa sobre a mais moderna casa da rua não parava de querer conhecer sua fonte. Repetitivas e saltitantes corridas levam a dona da casa até o acionamento do controle que entreabre o portão, cuja visão permite que se cheque a distância o perfil de quem bate à porta. A identificação imediata enquadra ou não aqueles a quem a fonte deve deslumbrar. Em se tratando de um familiar ou um serviçal, é desligada sem vexame por medida de economia. A residência Arpel é, literalmente, coisa de cinema. Casa-referência, para ser fotografada por revistas de arquitetura. Para isso, deveria cumprir seu desígnio de se manter impecável, ofuscante, sem um alinhamento do layout desacatado. A mãe de família, ela mesma mais uma máquina, robotizada pelas novas exigências da morada encomendada para lhe poupar demandas exaustivas de arrumação ordinária daquela vivida na residência pré-moderna, repete, mecanicamente, o aparentemente pouco que lhe compete. Em roupas de dormir e com bobs enrolados nos cabelos, uma flanela à mão, está sempre apta a polir qualquer opacidade sobre as superfícies brilhantes dos materiais construtivos da última geração, como o vidro das esquadrias ou o aço polido ou pintado da maçaneta da porta à lanternagem do automóvel. O transtorno corporal inconsciente decerto anuncia a envergadura a que os tiques nervosos e as lesões corporais ascenderão no universo da medicina para tratar das sequelas dos esforços repetitivos, imperativos da contemporaneidade. Ressalte-se, todavia, que o mero artigo doméstico – o pano de polimento, usado e reutilizado – não é dotado de capacidade autolimpante, nem parece ser lavado, tampouco se trata já de item descartável. O hábito adquirido nem dá a notar à dona da mão frenética que precisa usá-lo diariamente. Em um momento,

98

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


transformado em lenço, adereço do vestuário próprio para saudações a distância, na cotidiana despedida do marido e do filho na saída para o trabalho e para a escola com o carro da família, abanado, exala pó em abundância, anunciando uma poluição urbana vigorosa de efluentes atmosféricos dos motores de combustão. A cena retrata, com simplicidade, o real lubrificante do brilho que ofusca a modernidade. Uma sátira sagaz que Jacques Tati emprega, como um fio que costura a sua trama, a própria casa Arpel, foi encomendada especialmente para o filme e executada em tamanho natural, dentro do estúdio de gravação, com a sobreposição intencional de todos os clichês da arquitetura moderna. (Figura 5) Esse é um conflito com que se deparam o filho único dos Arpel, Gérard, e seu tio, Ms. Hullot, cúmplices sentimentais de um mesmo estranhamento ante a teatralidade com que foi determinado o uso da nova morada. A criança sozinha, sem amigos com quem brincar na vizinhança nem espaços adequados para as estripulias próprias de uma infância saudável, conta para si, com o seu quarto, cela concomitante de dormir e de estudar, sob a permanente vigília da mãe, que lhe deseja e manifesta filho exemplar. Da criança Gérard, sempre vestida à maneira de um adulto, a mãe espera a tradução impecável da educação moderna, em que a obediência e a passividade, requisitos introduzidos na esfera doméstica para o proveito do capital, não devem demandar ocupação extraordinária que lhe tome o tempo de cuidar do cabelo, tampouco comprometa a prontidão da arquitetura de vanguarda de sua casa. Gérard mais parece um elemento de composição da habitação. Um filho não faltaria à família perfeita, próspera e da qual sairiam herdeiros. Mais do que um talvez comprometesse o sonhado projeto de consumo do casal Arpel e seu desempenho social. Bem-sucedido, seu pai é gerente da fábrica Plastac, uma pequena indústria automatizada de tubos para a construção civil, situada perto do bairro onde mora seu tio, à margem da cidade que cresce para longe da zona suburbana. Essa distância, aparentemente inexistente entre o subúrbio e a fábrica, é demonstrada pelo trajeto quase instantâneo, a pé ou de bicicleta, por que se desloca Ms. Hullot. E não à toa, a fábrica é especializada na produção de um segmento da indústria da construção civil. A cidade se moderniza, cresce sem parar, num rito sumário de limpeza da paisagem moderna de quaisquer traços do antigo. Passado esse representado pelas carcomidas edificações da zona central da cidade, periferia em que se situa o cortiço em que mora Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

FIGURA 5

Hullot. A seção industrial, por sua vez, relata o estágio do capitalismo que avançará para a era da acumulação flexível1. O grande tio proporciona a Gérard hiatos de salvaguarda de sua infância das limitações postas pelas regras da classe social em que se insere. O garoto transpassa a normativa domesticadora, através dos meios mais corriqueiros, a uma criança que ainda parece saudável: a traquinagem, o fingimento de dedicação aos estudos entediantes (artifício que é motivo de exibição da mãe orgulhosa), as fugas de casa, maquinadas com a ajuda do tio, esse companheiro predileto, em quem encontra afeto e proteção na mão com que o segura e o conduz a transitar pelo subúrbio, zona da cidade em que pulsa vitalidade, o seu verdadeiro parque de diversões, onde o reino das brincadeiras infantis se faz nas ruas, com as mais salientes e desassistidas crianças do bairro de residência do tio, em meio à feira aberta, à praça fronteiriça ao cortiço onde Ms. Hullot é conhecido de todos e com quem mantém laços vitais de vizinhança. Para a satisfação de Gérard, cabe ao tio (“um sem família e desocupado”) pegá-lo diariamente na escola e levá-lo para casa em seu próprio veículo, a velha bicicleta (Figuras 6 e 7, página 100). Dois seres ligados por laços parentais e deslocados dos novos tempo e espaço. Hullot, representado pelo próprio Tati, é o elo para Gérard ante o desligamento desses dois mundos opostos. Se, em Aurora, o modo de vida é narrado por essa oposição radical de espaço e tempo -as horas parecem não passar na calmaria da vida campesina - e é na cidade em que tudo acontece como que simultaneamente – em Mon Oncle, ao contrário, é a própria cidade que revela sua (de)composição social em diferentes zonas, distintamente expressas na moradia coletiva 99


FIGURA 6

FIGURA 7

degradante, e a falta de infraestrutura que a ladeia, e pelo modo de vida estigmatizado devido ao acesso ou à falta (sequer de noção) de benefícios promovidos pela desenvolvimento científico e tecnológico que geram o crescimento urbano desenfreado. Se, tanto no campo quanto no subúrbio, as horas e o cotidiano parecem não se alterar, na cidade, em Aurora, vigora uma sensação de simultaneidade entre instante e lugar, em que a rua - o estar público - é impregnada de um ritmo alucinante, que passa a idealizar o modo da vida humana. Em Mon Oncle, o mesmo espaço - a cidade - notabiliza a segregação espacial de suas diferentes zonas, em que a tecnologia de ponta e a degradação habitacional constituem a cidade que, cada vez, especializa-se mais na desigualdade social. Retrato mais adequado não há para amparar a sofisticação do velho modo de produção capitalista da era industrial em se habilitar para potencializar o futuro, que já se antevê voraz em selvageria. A distinção de classes sociais se faz pelo acesso ou não à inovação, ao desenvolvimento científico e tecnológico e aos benefícios emergentes da automação de bens de produção (na indústria), de circulação (o automóvel moderno) e de consumo (a casa moderna e os recursos e utensílios domésticos da “nova máquina de morar”). No estratagema de Jacques Tati, o sucesso do cunhado nem parece perceptível para Hullot, envolto em uma atmosfera que o distancia de qualquer deslumbramento diante da vida moderna. O que lhe é atribuído como insucesso tem notoriedade no ritmo com que vive sem pressa o próprio cotidiano modesto. As novidades da modernidade não lhe causam reação, senão pelo estranhamento com que se vê às voltas na casa de sua irmã, a Sra. Arpel, ao ser solicitado a ir à cozinha e atender-lhe um pedido. Nem carece ressaltar o que daí se desenrola, tendo em vista a completa falta

de intimidade do irmão com outra máquina que não seja uma bicicleta. Um quieto passageiro do tempo, o Senhor Hullot, sequer parece esforçar-se para se adaptar ao frigir dos novos tempos. Suas trapalhadas no trabalho na fábrica, emprego para ele batalhado pelo cunhado, relembram o genial operário descompensado de Charles Chaplin, em Tempos Modernos, e uma trajetória de instabilidade no trabalho. Sua inaptidão é satirizada por uma espécie de dislexia do tempo ou do tempo. Tudo que lhe vem às mãos se quebra. A modernidade sobre a qual pisa se desmancha, e tudo o que é próprio daquela produção veloz não oferece resistência ao tempo (uma estratégia cada vez mais aprimorada pelo capital). A bizarra cena do filme, em que a família Arpel recepciona convidados, e a pureza de uma curiosidade infante fazem Hullot estourar a tubulação de abastecimento da fonte de ornamento, quando, cautelosamente, titubeante, observa e tenta identificar sobre qual lajota de concreto pisar). Um instante que alinhava um fio à máxima do materialismo do velho Marx: Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Um vexame para a família Arpel se desenrola. Em Aurora, a magia da cidade explode: ruas comerciais, tráfego intenso e desordenado de veículos de quatro rodas, cenas decisivas, como a memória guardada por meio de fotografias, o usufruto do melhor restaurante, a diversão no parque de diversões, onde luzes e um clima de festa e de felicidade fazem o casal campesino rememorar a prova do mel da lua de seu casamento, depois que o remorso do marido o levou a se reparar diante do risco de perder o elo familiar. O fato de se preparar para a festa no salão de beleza por que passa o casal leva-o a vivenciar a cena de ciúme ao revés da recentemente vivida no campo... Dessa feita, é no marido que desperta o ciúme da es-

100

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


FIGURA 8

FIGURA 9

posa, ao vê-la ser abordada por um galanteador que, instantaneamente, oferece-lhe um buquê de flores, e o marido reage com vigor, antecipando-se ao cavaleiro que corteja a sua esposa demarcando o seu domínio. A cidade moderna deixa entrever que não há nela lugar para o conservadorismo, para a tradição. A cena idílica do casamento na igreja lhes remonta à cerimônia do próprio matrimônio e proporciona ao marido o enlevo do apaixonado laço sacramental. Um beijo teatral que, literalmente, para o trânsito finaliza a cena, sem que se faça por eles notar, ainda que em meio ao espaço público e sob o som das buzinas de motoristas estressados em seus veículos. (Figura 8) O fazendeiro se defronta com o desejo de recomeçar. As luzes da cidade, que o inebriaram de paixão, despertam-no do encantamento fugaz que quase o tomou da segurança do que arriscou deixar para trás, o tesouro que começou a construir no campo, sua propriedade, a rotina de uma vida sem sobressaltos, o bastante para uma vida de felicidade que pode ser revigorada com passeios ocasionais à cidade grande com a própria família. O filho deixado na fazenda é o farol que ilumina o aceno de que é lá que a vida se fará plena, sem o apelo de uma vida que corre, mas não se vive. (Figura 9) A opção dos cineastas Murnau (Aurora) e Tati (Mon Oncle) torna emblemáticas as cenas de abertura dos filmes. À calmaria de Aurora, sobrevém o impacto de uma demolição em Mon Oncle, no qual a câmera aberta fecha em close em que uma grua promove destroços. Surpreende a concepção cinematográfica por condensar na própria cena de abertura o anúncio da ficha técnica do filme. Uma costura de imagens sensacional. Ao passo que edifícios se encontram em demolição, dá a imaginar se ao autor não coube uma intenção sobreposta de aludir ao próprio modo de produção de

filmes que se transmuta na modernidade, ao agregar o novo equipamento, a grua, um dos principais maquinários da construção civil até os nossos dias, com seu arsenal de possibilidades aditadas ao vasto andaime da elevação (social) à altura celestial. Um limite imensurável para os novos tempos da produção artística, munida de um equipamento capaz de constituir o novo arsenal industrial da própria cinematografia. À cena ainda cabe aludir a impressão de que foi demolido um velho cinema da cidade, de arquitetura superada pelos novos templos ou a dar lugar a novos usos que substituem o lugar dos sonhos e da meditação pelos de premência material para a circulação da moeda. A demanda aponta a necessidade de vias, ruas e estradas por onde veículos precisam trafegar deslocando mercadorias e trabalhadores-mercadorias. O advento da indústria, a revolução imprimida pelo novo modo de produção capitalista está conceitualmente representada na imagem das cidades em oposição à sua gênese. A busca por mercados para a circulação de um mercado que hoje se visibiliza também se fará em tempo comprimido para além do espaço geográfico. O capital faz da rua o seu signo por excelência, e a nova base material que configura o território urbano moderno segmenta funcionalmente o território: habitação, trabalho, mercado e lazer do centro da cidade, lugar de trocas, e reloca progressivamente as moradias de classes média e alta para zonas periféricas longe do burburinho do centro de troca, o que configura o lócus da grande cidade entrecortada de vias e desenhada à maneira de um tabuleiro de xadrez, um grande jogo de disputa pelo sucesso privado que exige argúcia e institucionaliza, na modernidade, o velho método da trapaça para a exibição de méritos de indivíduos socialmente adaptados. As duas abordagens fustigam a reflexão de

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

101


quem assiste aos filmes com a previdência de tecer teias entre eles. Produzidos entre a grande crise econômica mundial do final dos anos 20, que desaguou na 1ª Grande Guerra, e a superação do modo de produção pós-fordista, que incrementa a vida moderna a partir da segunda metade do mesmo século, prenunciam o ‘grande olho’ visionário de George Orwell, em seu emblemático livro, “1984” (1948), que projetou uma conjuntura social 40 anos adiante, notoriamente vigorosa na sociedade contemporânea global. O imaginário que ambos os autores das tramas parecem dispostos a consolidar se assenta em referências da modernidade em um repertório de imagens que enquadram cada qual em uma “história visual”. Uma iconosfera, como tratou o estudioso Ulpiano Menezes (2005): “... a dimensão visual presente no todo social... (...) um quadro de referenciais, problemas e instrumentos conceituais e operacionais (inclusive para cruzamento de dados), relativos a três grandes feixes de questões”: um visual, um visível e uma visão do que se busca representar. “uma rede de imagens-guia de um grupo social ou de uma sociedade num dado momento e com o qual ela interage” (Op. cit.:35). Com base nessa concepção, é possível correlacionar narrativas constantes da “história visual” de cada filme. Fontes, paradigmas ou estigmas da modernidade que confrontam imagens como artefatos na consumação do que entre elas pode identificar o sentido de um rumo que esse pesquisador denomina de “dimensão sensorial da vida social” (ibid.), referendando uma visualidade que recusa a exclusividade da descrição linguística, resiste à subordinação de uma rubrica de discursividade e reivindica seu próprio método de análise, como a mediação de uma leitura capaz de reconhecer que a imagem, como uma narrativa da vida social, elege signos de uma nova organização social no

FIGURA 10

tempo e no espaço (ibid). O visível, como a esfera das visibilidades e invisibilidades, como sistema visual de práticas individuais ou coletivas, que identificam uma nova sociedade. Valores, status, crenças - a remodelação da interação social e uma espetacularização da convivência que alterna atores e plateia, sem os quais não há lugar para a teatralidade posta pelas novas práticas sociais dos tempos modernos – são critérios que passam a normatizar o imperativo da ostentação, ou do recolhimento daquele que nada tem para ostentar, de visibilidades ou invisibilidades da vida moderna (op. cit., 36). Como o dito famoso de Paul Klee, de que a arte não reproduz o visível, mas torna visível, Menezes remonta à assertiva de que “os objetos sociais nos inventam. As imagens, portanto, participam da nossa ‘instituição’ como pessoas sociais”. A imagética dos filmes, ao passo em que conforma meios, signos, modalidades da natureza do olhar que olha, segue abrindo janelas para narrativas...

Referências HARVEY, David. (1993), Condição pós-moderna. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e M. Estela Gonçalves. São Paulo, Loyola. MENEZES, Ulpiano T. B. (2005). Rumo a uma “história visual”, in MARTINS, José de S. et. alii. (Orgs.), O imaginário e o poético nas Ciências Sociais. Bauru: EDUSC. SENNET Richard. (1995). O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Tradução de Lygia Araújo Watanabe. São Paulo, Companhia das Letras. http://archtectureclub.blogspot.com.br/2010/09/mon-oncle.html - Sobre a ar102

quitetura da casa Arpel - consulta feita em 02/06/2014. http://carolfurtadop.blogspot.com.br/2010/09/villa-arpel.html - Imagens da vila Arpel e ficha técnica do filme – consulta feita em 02/06/2014. h t t p : / / 3 . b p . b l o g s p o t . c o m / - p L f H U -T 2 0 E w / T b G z W 0 U 3 s MI/AAAAAAAADVs/2xs4OPpFs6k/s1600/7941.jpg - Cena de abertura do filme “Mon Oncle”, em que o título está subscrito em uma velha parede – consulta feita em 02/06/2014. http://4.bp.blogspot.com/-NSI8DMI3NwE/T0WDsMknOEI/AAAAAAAABjc/ ZCa7EbqDx2Q/s1600/Aurora4jpeg.jpg - Imagem da esposa no trem na cidade Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN


– consulta feita em 02/06/2014. h t t p : / / 4 . b p . b l o g s p o t . c o m / - 6 r w h B B E 1 Y D s / U H x Ve m A 4 Vo I / AAAAAAAAARo/H3VF5UTb6s4/s1600/Aurora4.jpg imagem do beijo do casal em meio ao trânsito urbano em Aurora. http://www.gonemovies.com/WWW/Drama/Drama/SunriseStad1.jpg - Imagem do centro iluminado cidade em Aurora – consulta feita em 02/06/2014. http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/Aurora.htm - Resenha e ficha técnica do filme – consulta feita em 02/06/2014. http://spa.fotolog.com.br/photo/10/15/18/gil2003/1238672766684_f.jpg imagem da casa modernista – consulta feita em 02/06/2014.

Conceitos - N. 23, Vol. 2 (Dez. 2015)

-

ADUFPB - Seção Sindical do ANDES-SN

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f3/Villa_arpel.jpg – Sobre o estúdio de gravação em que foi instalada a casa Arpel - consulta feita em 02/06/2014. http://www.wikinoticia.com/images2//monkeyzen.hipertextual.netdna-cdn. com/files/2013/04/mon_oncle_tati_7.jpg - imagem da recepção da primeira visita feminina à casa Arpel, registro de postura corporal – consulta feita em 02/06/2014. Assistência monitorada do filme Aurora – anotações – 27 p. Assistência monitorada do filme Mon Oncle – anotações – 43 p. (Endnotes)

103


Acesse os nĂşmeros anteriores da revista Conceitos em nosso site:

www.adufpb.org.br




Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.