As flores de ruanda Capítulo 1

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ADELSON COSTA

As Flores de Ruanda

ADELSON COSTA

(Primeiro capítulo)

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Copyright © 2012 Adelson Costa All rights reserved.

ISBN-13: 978-1535294027 ISBN-10: 1535294027


DEDICATÓRIA Este livro foi escrito em memória de Antônio e Izete, meus pais, e de meu irmão Ailson.


CAPÍTULOS

1

2004 — Ruanda lembra os seus mortos

Pg. 1

2

Cerca de dez anos antes — Kigali

Pg. 10

3

Os twas

Pg. 31

4

O poder hutu

Pg. 53

5

A visão

Pg. 71

6

O barro

Pg. 91

7

A intimidação

Pg. 114

8

O general hutu

Pg. 131

9

Mukono e Dancilla

Pg. 146

10

O destino de Rose Kabaguyoi

Pg. 180

11

A Frente Patriótica Ruandesa

Pg. 202

12

Um tutsi em apuros

Pg. 216

13

A frente de batalha

Pg. 228

14

Os confrontos militares

Pg. 243

15

A tutsi branca

Pg. 287

16

O genocídio

Pg. 313

17

O encontro

Pg. 339



APRESENTAÇÃO Este livro é uma obra de ficção no qual todas as falas e tramas são frutos da minha imaginação. A narrativa se desenrola por sobre um fundo verídico: o genocídio de 1994 ocorrido em um pequeno país africano chamado Ruanda e, por isso, há um paralelo cronológico e factual com a realidade. Algumas autoridades da época foram inseridas ou citadas tão somente pelo valor histórico que possuem e estão em contexto ficcional. A história é narrada em primeira e terceira pessoa e preferi manter alguns termos africanos na sua escrita original, quase sempre, por não haver correspondentes apropriados em português.


1 – 2004 — RUANDA LEMBRA OS SEUS MORTOS No dia 6 de abril de 2004, eu estava novamente em Ruanda, uma pequena república soberana da África Central que faz fronteira ao norte com Uganda, ao sul com Burundi, ao oeste com o Congo (antigo Zaire) e ao leste com a Tanzânia. Era a segunda vez que visitava o país e, desta feita, com o objetivo de superar alguns traumas decorrentes da minha primeira estada dez anos antes. Aquela seria uma experiência redentora e confesso que precisei de coragem para voltar, já que iria reviver uma época do meu passado repleta de memórias desagradáveis que me marcaram profundamente. Quando saí do país africano pela primeira vez, em 1994, meu pai me encaminhou para fazer análise com um terapeuta que era amigo da nossa família há muito tempo e foi este profissional quem me aconselhou a realizar uma segunda visita a Kigali, a capital ruandesa. Apesar de sentir que não necessitava de ajuda de terceiros para alcançar o bem-estar, decidi seguir a terapia, para atender ao desejo dele, pois o amo e aprecio quando aprova algo que faço. O governo do Presidente Paul Kagame fez uma programação de 7 a 13 de abril de 2004 para relembrar os dez anos do terrível genocídio ruandês ocorrido de 6 de abril a 10 de julho de 1994. Este evento histórico foi uma catástrofe decorrente do massacre, corpo a corpo, de indivíduos da etnia tutsi perpetrado pelos da etnia hutu com os quais convive no país. Aproximadamente oitocentas mil pessoas foram mortas em um período de cem dias, quantidade parelha à mortandade nos cerca de 4 anos da Guerra Civil Americana, que dizimou algo em torno de 3% da população dos EUA. Segundo o meu analista, aquela seria a oportunidade certa para eu acabar de uma vez por todas com as más influências do passado. A princípio, resisti, porém ele me convenceu com o argumento de que muitos dias haviam transcorrido desde o episódio e que nós trabalhávamos o meu lado emocional já há bastante tempo. Por conta disto, eu estaria pronta para um reencontro com antigos demônios. Para que reviver o passado se já o havia superado? Será que elas incomodavam o meu presente de forma tão pungente? Eu pensava que não. — Isabelle, se você comparecer ao evento em Kigali e retornar bem, eu falo para seu pai que você não mais precisa de mim e podemos pôr um termo às nossas seções de análise. — Sério? Quem me dera! Poder me livrar do meu incômodo profissional apresentou-se como um presente de grande valor e, assim, coloquei nos dois pratos da balança, de um lado o ruim e do outro a falta de uma opção melhor, e aceitei retornar à África Central. Em Ruanda, vivem três grupos étnicos: os hutus (rutus), que formam a maioria com cerca de oitenta e cinco por cento da população; os twas (tuás) com menos de um por cento e os tutsis (tútsis) com mais ou menos quatorze por cento. Os twas foram os primeiros habitantes a chegarem à região montanhosa do atual Ruanda, por volta do século VI a.C. Em sequência, vieram, em meados do século VI d.C. os hutus e, aproximadamente, cem anos depois, os primeiros tutsis. Os twas se 8


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comunicam entre si em rukiga, sua linguagem original, todavia utilizam o kinyarwanda (kinyaruandês, ruandês), inglês e francês presentes no país. Para melhor compreensão de alguns termos usados adiante é bom saber que no idioma rukiga, a flexão de número, singular ou plural, é feita pelos prefixos MA e BA, respectivamente. A palavra batwa (twas) é plural de matwa, assim como bahutu de mahutu e batutsi de matutsi respectivamente. Os termos twas (plural dado por tutsis, hutus e por nós mesmos) e batwa (plural no rukiga) são a mesma coisa, pois se referem a mais de um indivíduo, da mesma maneira como matwa e twa a apenas um. Os twas são um povo pigmeu indígena de altura e peso médios de um metro e meio e quarenta e cinco quilogramas que habitam a África Central e parte da Ásia. Existem relatos da sua presença na região desde os tempos dos egípcios. No início da formação histórica do país, os três grupos étnicos, os hutus agricultores, os tutsis pastores e os twas caçadores e extratores dos recursos das selvas coexistiram em harmonia até que a região foi colonizada pelos europeus. Ruanda, na conferência de Bruxelas, em 1890, foi dado à Alemanha. Os alemães controlaram a região até a derrota na Primeira Guerra Mundial, quando o protetorado de Ruanda foi entregue à Bélgica. Os belgas identificaram os indivíduos por meio de cartões raciais e dividiram formalmente a população por grupos étnicos. A ação de marcar com cédulas de identidade os grupos é tida como instigadora da cisão étnica. Eles se acercaram da minoria tutsi para governar o país e discriminaram os hutus, o que acelerou a exacerbação do ódio racial. Os hutus, entre os anos de 50 e 60 do século passado, tomaram o poder, expulsaram os belgas e massacraram os tutsis, que, aos milhares, fugiram para o exílio em países vizinhos, onde fundaram um movimento de resistência armada. Em face da morte de quase um milhão de tutsis, há um paralelo entre o genocídio ruandês e o holocausto judeu impetrado pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Durante o percurso do Aeroporto Kanombe ao Hotel Mil Colinas eu não vi sequer um rosto familiar, pois a grande maioria das pessoas que conheci em 1994 fora morta ou expulsa do país. Inicialmente, eu pretendia participar de toda a semana de eventos, contudo mudei de opinião e pedi ao gerente do hotel que conseguisse uma passagem para o dia 7 de abril, de modo que eu deixasse o país logo na primeira jornada do evento. Não vi sentido em permanecer mais tempo, já que, ao pôr o pé por lá, percebi que aquela sociedade nada mais tinha a ver comigo. Achei por bem considerar cumprido o trato com o meu analista, ficando apenas dois dias. Infelizmente, porém, não estava esperançosa de conseguir um voo, visto que a cidade estava repleta de pessoas de outros países que igualmente partiriam por via aérea. Andando pelas ruas da cidade, percebia que muita gente se sentia mais ou menos assim: Como uma garota que atira sua boneca na fogueira e nada pode fazer enquanto as chamas a consumem. Na manhã seguinte, ao remover as cinzas, constata que mais nada há do brinquedo predileto a não ser a lembrança. Então, assume uma culpa que carrega no peito a partir de então, por ter queimado uma boneca de maneira tão estúpida.

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Enquanto caminhava, eu via muita gente seguindo em direção ao estádio local de futebol onde aconteceria a principal solenidade do evento. No país, quem sobreviveu ao ano de 1994 carrega a morte como fardo na memória ou a vida como dádiva por ter escapado das garras do genocídio ruandês. Muitos creditavam o fato de estarem vivos à sorte, sentiam-se como que renascidos no fatídico ano relembrado e estavam, no momento, após uma década, brindando ao batismo de uma nova oportunidade ou lamentando o aniversário de alguma história triste. Eles se olhavam e não sabiam se sorriam por estarem vivos ou se choravam pelos entes queridos mortos. Eu me chamo Isabelle e sou uma médica americana nascida em Nova Iorque. Tenho ascendência francesa, pois os meus avós migraram da França para os Estados Unidos da América onde deram vida ao meu pai, que atualmente é um influente senador americano de forte apreço à nação francesa, em respeito à origem dos seus genitores. Por atuar em favor da agenda franco-americana, sempre teve prestígio perante o governo francês. Eu estava, em 2004, passeando por Kigali, feliz por não ser reconhecida pela gente que passava por mim. Encontrei poucas com pessoas as quais convivera em 1994 e, em meio à multidão, comecei a temer não estar preparada para a triste recorrência do passado. Amaldiçoei o meu psicólogo por ter me mandado de volta àquele lugar, chantageando-me com o término das suas chatas seções de análise. Eu me perguntava por que não guardava a história ruim no coração, partia de volta para os EUA e dizia ao meu amigo em Nova Iorque: Cara, eu sou maluca, contudo gosto de mim desse jeito. Não preciso dos seus serviços, tampouco da sua terapia. Portanto, deixe-me em paz com minha maluquice! Considero-me uma boa pessoa, amigável, companheira e sensível. A minha mãe, entretanto, costumava comentar que sou valente e tenho um gênio forte sempre aceso por um pavio curto. Não costumo protelar o desfecho do que tenho de fazer de imediato e sou do tipo ou gosta de mim ou me odeia. Desde menina, sempre fui uma garota hiperativa, com uma energia acima da média e, por conseguinte, praticava quase todo tipo de esporte para o qual fosse convidada. Porém, em dois, me destaquei: nas lutas de competição e no tiro esportivo na modalidade fossa olímpica. Aprendi a atirar muitíssimo bem por influência do senador que tinha na caça o seu passatempo predileto. No entanto, quando me conscientizei de que era uma covardia atirar nos pobres patos em migração pelos banhados do Estado do Missouri, entrei para uma escola de tiro ao alvo e comecei a competir contra outros seres humanos. Em vez de abater aves inocentes, passei a quebrar, à bala, pratos ou discos de onze centímetros de diâmetro feitos de betume e calcário arremessados ao ar por incansáveis máquinas. As geringonças lançavam 75 alvos em série de 25 e, por conta disto, eram a razão de meus tormentos. Elas quase sempre me venciam, a despeito de eu quebrar um monte de pratos. Meu treinador costumava me dizer:

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Caramba! Erre alguns pratos, Isabelle, senão perderei o meu emprego, por não ter mais nada que lhe ensinar. Ah! Ah! Ah! Meu pai possuía amigos nas Forças Armadas e, entre os quais, profissionais de segurança e franco-atiradores, que executam tiros de precisão em alvos a longas distâncias. Percebendo minha habilidade, apresentou-me àquelas pessoas com as quais pratiquei por um bom tempo. Achava legal acertar um objeto a um quilômetro e meio. Tentaram me levar para os Fuzileiros Navais, no entanto, ele foi radicalmente contra. Alto lá! Minha filha é meiga e não foi criada para atirar em seres humanos em uma porcaria de guerra. Não participei por mais tempo de equipes americanas de tiro de competição porque outra obrigação tomou conta de quase todo o meu tempo de juventude: o curso de medicina. Chegou um momento em minha vida no qual tive de fazer uma escolha difícil e ou continuava competindo ou me tornava uma boa médica. Discuti a questão com os meus familiares e eles me aconselharam a priorizar os estudos da medicina, pois o esporte é algo efêmero e dura somente o tempo da juventude e vitalidade e, por isto, hoje sou uma boa médica. Mesmo assim, quem quer que seja objeto de uma mira em minha mão, está enrascado, se me deu motivos para apertar o gatilho a qualquer distância eu esteja. O judô, associado ao meu temperamento impulsivo, fizeram-me uma brigona quando menina e meu pai tinha o hábito de me tirar de encrencas nas escolas por onde eu passava, pois sempre brigava com os meninos da minha idade. Apesar de as meninas me acharem diferente, nunca fui uma garota má, ainda que vivesse metida em confusões. Eu era uma adversária dura nas brigas e assídua convidada às salas dos diretores das instituições de ensino nas quais eu era aceita, sem muitos obstáculos, por ser filha de um político influente. Ao andar pela cidade, imaginava que poderia estar participando de uma linda manhã no Central Parque de Nova Iorque. Todavia, estava em Ruanda outra vez após tanto tempo. Eu passei pelo Centro Hospitalar de Kigali, o CHK, onde trabalhei em 1994 e lá estava, à sua frente, o majestoso podocarpo, um tipo de árvore que me traz muitas lembranças. Por toda a cidade, havia eventos interessantes, tais como: espetáculos de músicas, tertúlias de poesias, peças de teatros, exibições de filmes e exposições de arte a rememorarem o horror, mas também a celebrar a vitória da vida sobre a morte. O amor e a esperança de um futuro de paz e prosperidade eram a mensagem transparente em Kigali em 2004, além do apelo por justiça contra os perpetradores da carnificina. Como haveria um evento no Amahoro National Stadium, tomei um táxi à porta do hotel pela manhã e comecei o meu trajeto para o local da cerimônia em memória ao decênio do genocídio ruandês. Saímos do hotel, passamos defronte ao Union Trade Center, dobramos à direita e pegamos uma longa estrada sem cruzamentos nem congestionamentos de trânsito. O veículo desenvolvia sua velocidade tranquilamente, o que tornou o percurso prazeroso. Eu fiz questão de sair cedo, justamente para não 11


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perder tempo no caminho até o Amahoro Stadium. Passamos pelo parlamento ruandês e seguimos viagem até chegarmos ao famoso restaurante kigalense Chez Lando, que me trouxe boas recordações. Dobramos à esquerda e nos avizinhamos do nosso local de destino. No trajeto, li a programação do evento e resolvi que sairia do Amahoro, após o pronunciamento do Presidente da República de Ruanda, Paul Kagame. Segundo o folheto em minhas mãos, que me fora dado pelo pessoal do Hotel Mil Colinas, ocorreria às doze horas e quinze minutos. Inicialmente, teríamos discursos de autoridades convidadas e depoimentos de sobreviventes. Antes da fala do presidente, aconteceria um ato de 10 minutos de silêncio em recordação aos mortos e, após, seríamos contemplados com apresentações de música e poesia e outros relatos de vítimas do genocídio. Esta seria a ocasião em que eu pretendia sair do estádio. Em outras localidades do país, ocorriam cerimônias semelhantes com a mesma finalidade. À porta do estádio, segui as pessoas que iam em direção às arquibancadas e encontrei uma acomodação entre as 65 mil pessoas que estavam no recinto. Uma banda se apresentou para a plateia e, depois, no horário programado, o Presidente Kagame discursou emocionadamente. Em suas palavras, culpava a França, apontando os franceses como contribuintes decisivos para a ocorrência da matança e, inclusive, como circunstantes dos combates. Eles, de caso pensado, treinaram e armaram os soldados do governo e as milícias que estavam se encaminhando para cometer o genocídio, e eles sabiam o que os hutus fariam. O dura acusação sem meias-palavras foi suficiente para que o Ministro de Relações Exteriores do governo francês do Presidente François Miterrand, Renaud Muselier, abreviasse sua curta visita ao país. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, Kofi Annan, conclamou-nos a fazer um minuto de silêncio, ao meiodia local, para marcar o dia internacional de reflexão sobre o genocídio ruandês. Solicitou que as nações do mundo inteiro adotassem medidas preventivas e efetivas para que fatos daquela magnitude não voltassem a ocorrer. Houve críticas pela não participação de algumas grandes nações nos eventos patrocinados pela autoridade ruandesa. Outras, como a Bélgica e os Estados Unidos, rogaram escusas pela sua passividade diante do ocorrido em 1994. Quando eu estava sentada em meio ao povo, julgando usufruir um confortável e desejado anonimato, um soldado que mantinha a segurança das arquibancadas do Amahoro estendeu-me um olhar atento, de modo intrigante. Olhei-me da cabeça aos pés. O que será que ele está olhando? Pus meus óculos escuros e, camuflada em indiferença, esperei que parasse de me observar. Cri ser inoportuna tal sondagem, pois a ocasião lutuosa não era propícia a galanteios. Infelizmente, logo após, veio em minha direção. Preparei-me para,

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educadamente, despedi-lo, caso viesse me inquirir com uma corte inadequada. No entanto, simplesmente me perguntou: — A senhora é Dra. Isabelle, não é? — Sim. Eu lhe respondi afirmativamente, pois imaginei que seria portador de alguma informação do Hotel Mil Colinas, já que o gerente ficara de confirmar minha partida de avião à tarde e me dissera que, se conseguisse uma desistência, mandaria alguém me procurar no estádio. — Eu a conheço do ano de 1994. Arrependi-me de ter lhe confirmado o meu nome. — Você está enganado e, talvez, me confunda com outra pessoa. — Acredito que não, pois, se não bastasse a semelhança, como poderia haver outra Isabelle em Ruanda, branca e médica? Eu servi na inteligência da Frente Patriótica Ruandesa em 1994, durante minha juventude. — Nós nunca nos vimos antes, meu rapaz, porque esta é a primeira vez que venho cá. Por favor, dê-me licença, visto que tenho de ir. Adeus! ***** Após sair do local, o militar, agora com outros colegas, continuava a observar a médica. Fazia-lhe sinais, entretanto, ela não lhe dava atenção. A americana continuou caminhando e, propositadamente, penetrou numa aglomeração para dificultar o trabalho de aproximação. Então, ele apressou-se na direção dela, temendo a perder de vista. Algo a dizia que o soldado insistente tinha por missão não a deixar escapar, para ventura dele, a cor e o aspecto de Isabelle a diferenciavam de quase todas as pessoas no estádio de futebol. O militar hutu inquiriu transeuntes no lugar. — Vocês viram uma mulher branca passar por aqui? — Ela seguiu em direção ao ponto de táxi. O jovem oficial retornou para seu posto e foi dizer aos companheiros que a suspeita já fugira do Amahoro e, sendo assim, solicitou sua liberação da incumbência que julgou idiota e inoportuna, pois fora ignorado. Ela que fosse para onde quisesse ir! Seu superior imediato passou um rádio para o centro de comando e teve uma resposta nada agradável.

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— Tenente, pelo amor de Deus, encontre a americana, imediatamente! Você não deveria ter deixado a mulher escapar, pois ela deve ser um peixe grande ou estar envolvida em algo sinistro, já que o alto-comando do exército a quer agora mesmo. — Ela foi para o aeroporto e já deve ter partido de Ruanda. — Pois vá lá e lace o maldito avião no ar! Se não a trouxermos de volta, serviremos em Byumba, a partir de amanhã. — Sério, senhor? — Você pensa que estou brincando, tenente? O próprio Ministro da Defesa acaba de me dizer isso pelo rádio. Ande logo, rapaz! — Se ela resistir, posso atirar? — Imagino que não, pois a querem viva. Vá atrás dela, fique atento ao rádio, por onde lhe darei instruções e não a perca de vista novamente quando a encontrar. Ao chegar à porta do Amahoro, disseram ao tenente que a médica tinha pegado um táxi havia instantes. Ele estava inquieto porque não podia falhar na missão de captura e disto dependia seu futuro na corporação. — Vocês viram uma bela gringa passar por aqui? Obteve como resposta: — Passou, apressadamente, dizendo que seu avião estava prestes a decolar. — Para onde ela foi? — Para o Mil Colinas e de lá, com certeza, para o Kanombe. O tenente embalou para o aeroporto de Kigali. Ligou o rádio da viatura e passou a dizer: Atenção, aqui é tenente Ngoma em missão de busca e captura de uma mulher americana que se encaminha para o kanombe. Se a encontrarem em outro caminho, detenham-na com cautela, pois não se sabe se é perigosa! Cheguei ao aeroporto e me sentei em um banco à espera do horário do meu voo, pois não tinha intenção de passar mais um minuto do meu tempo no país. Tinha vindo aproveitar a oportunidade de ajustar-me ao passado e me dava por satisfeita. Nós, passageiros, fomos chamados para o avião e entrei na aeronave para, finalmente, me sentir livre e em paz interior, quando ela começou a taxiar pela pista secundária. No entanto, de repente, soldados do exército ruandês adentraram no kanombe assustando toda a gente. Indaguei-me: será uma revolução ou um golpe de estado? Eles invadiram a pista com seus veículos e impediram-nos a decolagem. Três militares armados entraram no avião, olhando de um lado para outro até me verem e caminharam ao meu encontro. Um jovem oficial se perfilou diante de mim e questionou: — A senhora é a americana Dra. Isabelle?

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— Sim, eu mesma, por quê? — Preciso que me acompanhe, doutora. — Por que você acha que eu farei isso? — Meu superior deseja vê-la. Pela insígnia no uniforme, percebi que ele era um jovem tenente, fato que me trouxe lembranças de outra pessoa que conhecera havia uma década no mesmo lugar. Então, mostrou-se surpreso, quando o interpelei utilizando sua patente no exército ruandês. — Tenente, tenho de partir. Diga ao seu superior que o verei em outra oportunidade. — Quem a chama é alguém especial e me incumbiu de lhe dar algo para convencê-la a aceitar o encontro. Tenente Ngoma chamou um soldado e o mandou buscar em uma viatura do exército que estava na frente do avião uma encomenda. Este retornou com um lindo arranjo floral. O buquê não significaria muito para mim, se não constasse de antúrios, helicônias, estrelícias, gengibres e violetas-africanas. Peguei as flores e seu aroma me fez voltar dez anos no tempo. Então, lágrimas começaram a cair dos meus olhos, pois a recordação do twa Tharcisse Mugabe apareceu transparente em minha mente. Espantei-me por perceber que justamente no momento da minha saída de Kigali, os meus fantasmas finalmente se expressavam na tristeza que escorria por minha face. — De onde são estas flores? — Perguntei ao oficial e ele me pegou pelo ombro e falou: — No caminho para cá, disseram-me pelo rádio que me faria esta pergunta, Dra. Isabelle. Mandaram-me lhe dizer que a reposta para ela fará parte do assunto a ser tratado, após me acompanhar. Os outros passageiros me olhavam admirados, pois eu recebia flores, contudo, com o olhar lacrimejante, estava sendo obrigada a desembarcar. Eles avaliavam-me. O buquê era um aceno de amizade ou deboche de gosto duvidoso e inadequado à ocasião? Os tripulantes tentavam entender por que motivo o exército daquele país havia parado a aeronave. Eles estavam assustados e com pena de mim, já que era-lhes evidente que aqueles homens sinistros, fardados e armados estavam me capturando. Perguntei ao tenente: — Quem insiste tanto em falar comigo, senhor? — O próprio Presidente da República deste país, Paul Kagame, Dra. Isabelle. Levantei-me da cadeira e acompanhei os soldados pelo corredor apertado, enquanto um sargento confiscava e carregava minha bagagem. Todos ficaram assustados dentro

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da aeronave, ao sentirem a tensão no ar que, no entanto, nos seguia, para alívio deles. Os militares, todos jovens, não sabiam ao certo por que me detinham e isso ficava explícito nos seus olhares curiosos. Desci as escadas ao encontro do destino e, enquanto passava pela pista, as pessoas a bordo do avião iam às janelas para me ver caminhar pelo kanombe escoltada por membros do exército. Olhavam-me curiosamente e temiam pela minha sorte. Por meu lado, percebi que acreditavam que eu tinha me metido em uma bela encrenca ou que deveria ser uma pessoa muito perigosa a ponto de os ruandeses terem quase atropelado um avião daquele tamanho em pleno trabalho de decolagem, somente para me segurarem por mais tempo em Ruanda.

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