Biodiversidade e ocupação humana do Pantanal mato grossense: conflitos e oportunidades

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CONSELHO EDITORIAL Bertha K. Becker Candido Mendes Cristovam Buarque Ignacy Sachs Jurandir Freire Costa Ladislau Dowbor Pierre Salama


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Editoração Eletrônica Estúdio Garamond / Luiz Oliveira Capa Estúdio Garamond / Anderson Leal (Vista parcial da região da Serra do Amolar a partir da margem esquerda do Rio Paraguai (MS)) Fotografias Marcelo Ismar Santana Produção do e-book Editora Garamond CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ B512 Biodiversidade e ocupação humana do Pantanal Mato-grossense : conflitos e oportunidades / José Luiz de Andrade Franco ... [et al.]. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Garamond, 2013. Inclui bibliografi a ISBN 978-85-7617-417-2 1. Meio ambiente. 2. Biodiversidade - Pantanal Mato-grossense (MT e MS). 3. Recursos naturais. 4. Conservação da natureza. I. Franco, José Luiz de Andrade, 196513-05032.

CDD: 577 CDU: 574.1


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Sumário Prefácio Miguel Serediuk Milano Introdução Capítulo 1 O Pantanal da Biodiversidade 1.1 – O contexto geográfico 1.2 – O contexto ecológico e a biodiversidade Capítulo 2 Ocupação do Pantanal Mato-g rossense 2.1 – O Pantanal e a dinâmica de fronteiras 2.2 – Fronteiras pantaneiras – ondas e refluxos pré-históricos e históricos 2.3 – Portugueses e espanhóis disputam a fronteira pantaneira 2.4 – As monções: os rios aceleram a penetração da fronteira pantaneira 2.5 – O refluxo das frentes de mineração e a formação de uma fronteira de bovinocultura 2.6 – A República fortalece a pecuária pantaneira por meio da estadualização das terras públicas 2.7 – Novas atividades em Mato Grosso não deslocam a pecuária 2.8 – Impactos ambientais antigos e recentes Capítulo 3 Disputas socioambientais e conservação da natureza no Pantanal 3.1 – Contexto e território 3.2 – A configuração regional nas últimas quatro décadas 3.3 – As condições ambientais e os grupos sociais em foco 3.4 – As unidades de conservação e a conservação da biodiversidade no Pantanal Mato-grossense 3.5 – O turismo de pesca 3.6 – A terra: novos donos e novos usos 3.7 – Perfil socioeconômico dos ribeirinhos de Paraguai-Mirim, "bibliografia ParaOverride-9">Barra do São Lourenço e Serra do Amolar 3.8 – O contexto socioeconômico dos grupos ribeirinhos 3. 9 – Sobre o conceito de “comunidades tradicionais” 3.10 – Políticas diferenciais versus políticas universais 3.11 – Condições de vida e de trabalho: elementos da modernidade e da tradição 3.12 – O tradicional e o moderno 3.13 – Tradicionalidade: uma identidade e uma ideia 3.14 – Sobre justiça ambiental 3.15 – Turismo Ecológico e Planejamento Biorregional: uma análise propositiva Considerações finais Referências Posfácio Anexo Fotografias: flora, fauna e sociedade


Prefácio Honrado com o convite, por parte de José Luiz de Andrade Franco e Teresa Bracher, para prefaciar este importante livro, começo o trabalho por posicioná-lo na minha própria história profissional, uma vez que meu envolvimento com o Pantanal venha já de meados da década de 1980. Desculpo-me, assim, pelo texto inicial um tanto autobiográfico. Creio ter sido em fins de 1986 ou início de 1987, ainda professor da Universidade Federal do Paraná e na época cumprindo uma assessoria formal na antiga Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), em Brasília, como coordenador do componente unidades de conservação do Projeto Nacional de Meio Ambiente, em negociação com o Banco Mundial (mais tarde nominado de “programa”), que conheci Angelo Rabelo, tenente, comandando a linha de frente do combate aos coureiros de jacaré do Pantanal. Não lembro se, à época, ele já havia sido ferido em combate pelo tiro que quase lhe ceifou a vida e o deixou com sequelas permanentes. Apenas sei que, desde que o conheço, ele nunca perdeu a disposição de defender o Pantanal e suas riquezas, entre elas as tradições do homem pantaneiro. Como diretor da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza, a partir de 1990, tive a oportunidade de visitar o Pantanal várias vezes, avaliando resultados de projetos apoiados, entre eles projetos da Polícia Florestal, de pesquisadores da Embrapa Pantanal e de universidades do Mato Grosso do Sul, da SODEPAM e de organizações não governamentais como a Fundação Neotrópica do Brasil. Entre os muitos projetos, um eu devo destacar aqui: os cursos de capacitação em estratégias de conservação para oficiais das Polícias Militares Florestais e Ambientais de todo o país, liderados por Rabelo, de caráter quase regular, hoje na 11ª edição, e que contaram com minha participação como professor convidado em nove ocasiões. Pela Fundação O Boticário, ainda, tive a oportunidade de liderar o processo de planejamento, desenho e implementação da Estação Natureza Pantanal – um projeto efetivo de educação ambiental de qualidade, inaugurado em fevereiro de 2006, sediado num casarão histórico e restaurado, tombado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Mais recentemente, como representante da Fundação Avina para a região Sul do Brasil e o Pantanal, na qual um dos trabalhos mais importantes era a identificação e o apoio de lideranças capazes de fazer a diferença para o desenvolvimento sustentável, conheci, me aproximei e mais tarde inseri na rede de líderes duas pessoas com histórias, personalidades e trabalhos distintos, mas de grande relevância no e para o Pantanal: o promotor de justiça de Bonito-MS, Luciano Loubet Furtado, e a proprietária de terras, conservacionista e filantropa Teresa Bracher, esta última tendo sido apresentada a mim por Angelo Rabelo, então já coronel reformado, liderando o Instituto Homem Pantaneiro e, através dessa organização, um expressivo programa de conservação e defesa do Pantanal. Luciano eu tive oportunidade de apoiar na criação da Rede de Promotores de Justiça de Meio Ambiente do Pantanal, depois ampliada como rede de cooperação do Ministério Público ambiental para todo o Mato Grosso do Sul, mas mantendo forte atuação pantaneira e cooperação com os congêneres da Bolívia e do Paraguai, viabilizadas pelas representações da Fundação Avina nesses respectivos países. Essa rede estadual, com raízes pantaneiras e cooperação internacional, foi logo expandida e hoje é a Rede Latinoamericana de Promotores de Meio Ambiente, congregando cerca de 300 profissionais dos Ministérios Públicos estaduais e federais do Brasil e de praticamente todos os


países de fala latina, desde o México até o Cone Sul, sob a articulação e a liderança deste jovem promotor. Teresa Bracher eu conheci preocupada em proteger, para fins de conservação da natureza, a maior parte das terras de suas fazendas, e disposta a ajudar na construção de um grande corredor de áreas protegidas unindo sua Fazenda Santa Tereza às terras ao norte do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, iniciativa que apoiei pela Fundação Avina. No curso desse processo eu vi Teresa adquirir uma pousada, até então dedicada à pesca turística, para transformá-la numa escola no meio do Pantanal para atendimento das crianças da região sem acesso à educação, em regime de internato, que hoje é um exemplo sem precedentes em termos de qualidade e oportunidade para as crianças atendidas em comparação com qualquer outra iniciativa na região, seja do poder público, da iniciativa privada ou de organizações não governamentais. Foi da associação entre Tereza Bracher, Angelo Rabelo, Adalberto Eberhard (também uma liderança apoiada pela Fundação Avina, criador e presidente da Fundação Ecotrópica, sediada em Cuiabá e proprietária de um significativo conjunto de RPPNs na região) e José Augusto Ferraz de Lima (chefe do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense) que nasceu a Rede de Proteção e Conservação da Serra do Amolar. Esta, uma iniciativa que rapidamente envolveu outros agentes públicos e privados, incluindo a Companhia da Polícia Militar Ambiental do Mato Grosso do Sul sediada em Corumbá, que, apoiada no seu trabalho de defesa da natureza e aplicação da lei, fez mais presente o poder institucional do Estado na região, não apenas fiscalizando, mas apoiando e ajudando as comunidades. Mas há ainda uma última iniciativa na contextualização do meu envolvimento regional que requer menção, a Plataforma Diálogo entre empresas e terceiro setor sobre o polo minero-industrial de Corumbá. Esta iniciativa articulou o diálogo entre empresas e organizações não governamentais de defesa ambiental, tendo o ministério público estadual como observador, na obtenção de conhecimento de qualidade e construção de soluções negociadas, acima dos padrões mínimos exigidos pela lei, distencionando a situação vivida até 2006. Por escolha e decisão unânime dos representantes das seis empresas e das dez ONGs participantes, eu cumpri o papel de articulador e moderador do processo por três anos, certamente os mais difíceis, mas, possivelmente, também os mais produtivos. Meu conhecimento sobre e relação pessoal com os autores se limitam a José Luiz de Andrade Franco e José Augusto Drummond. O primeiro eu conheci como aluno do curso de verão sobre manejo de áreas naturais protegidas da Colorado State University, onde fui professor visitante e mais tarde instrutor regular do referido curso por vários anos. Historiador vindo do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS-UnB), como participante de um curso intensamente prático e de campo, “Zé Luiz” foi das mais gratas surpresas que eu tive, tal seu interesse no tema, e depois descobri grande dedicação profissional. Através dele, mais tarde, conheci pessoalmente José Augusto, sociólogo por formação e professor da UnB dedicado à pesquisa histórica, a quem eu já conhecia como referência bibliográfica obrigatória no campo da história ambiental, do qual é um dos mais respeitados profissionais do país. Assim, e conhecendo ambos melhor pelo trabalho Terras de Quilombolas e Unidades de Conservação: uma discussão conceitual e política, com ênfase nos prejuízos para a conservação da natureza, conduzido no âmbito do Grupo Iguaçu, do qual fui integrante, recomendei-os àTeresa como possíveis pesquisadores da situação agora retratada neste livro que prefacio. Por sinal, uma tarefa que considero fazer com plena legitimidade, quer por conhecer bastante o contexto, como pela responsabilidade da apresentação dos autores aos integrantes da Rede de Proteção e Conservação da


Serra do Amolar, em cujo âmbito o trabalho se desenvolveu. Biodiversidade e Ocupação Humana do Pantanal Mato-grossense: Conflitos e Oportunidades, eu não tenho dúvidas, tende a ser obra de referência sobre a região. Resumindo o contexto geográfico, a biologia e a história de ocupação da região antes de apresentar a luta (ideológica e sem sentido) promovida por certos atores sociais contra as iniciativas de conservação da natureza, o livro tem, inegavelmente, um toque de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que é uma influência clara, pelo menos em termos de organização do texto. Vale então lembrar que em Os Sertões, Euclides estruturou sua obra em: a terra, o homem e a luta. Ao tratar da terra, Euclides revelou detalhes da geografia em termos de relevo, solo, fauna, flora e clima da região nordestina, destacando que nada é maior calamidade no sertão do que a seca, que tem sazonalidade anual própria e ciclos pluarianuias, de nove a doze anos, com incidência mais rigorosa e devastadora (observe que no Pantanal a sazonalidade e os ciclos são de mais água, de inundação, o oposto da de Os Sertões). Sobre o homem, passando pelo determinismo que o define como um produto do meio geográfico, da herança racial e do momento histórico em que vive, Euclides também fez uma análise pscicológica do sertanejo, definindo-o como, antes de tudo, “um forte”. Por fim, Euclides descreve a luta, explicando com riqueza de detalhes a Guerra de Canudos, que dizimou a população local de fanáticos seguidores do messiânico Antônio Conselheiro e deixou severas marcas na história e cultura regionais. Entretanto, atual como só poderia ser esperado pela contemporaneidade da causa, ainda que de denso conteúdo, Franco, Drummond, Gentile e Azevedo apresentam um texto claro e que flui fácil na leitura, diferentemente do padrão euclidiano e da sua obra clássica, Os Sertões. Um primeiro destaque do texto tem por base o consagrado cientista Aziz Ab’Sáber, numa referência de 2006, e chama a atenção para o fato de que: “... o Pantanal Mato-grossense – pela sua posição de área situada entre pelo menos três grandes domínios morfoclimáticos e fitogeográficos sul-americanos – funciona como uma intensa depressão-aluvial-tampão e, ao mesmo tempo, como receptáculo de componentes bióticos provenientes das áreas circunvizinhas. Neste sentido, como acontece com todas as faixas de transição e contato, o Pantanal Mato-grossense se comporta, em termos fitogeográficos, como um delicado espaço de tensão ecológica. Em termos zoogeográficos, devido à sua extraordinária diversificação de habitats e potencialidades de cadeias tróficas, ele funciona como centro de concentração competitiva, numa espécie de réplica às áreas de difusão. Fato que redunda em uma riqueza biótica ímpar, dentro e fora do País. Uma riqueza que, de resto, deve ser preservada a qualquer custo, independentemente da existência de governantes e tecnocratas insensíveis e cooptantes com a predação” (destaque meu). Apresentado o contexto regional com base em literatura de referência nos campos geográfico (como acima), antropológico, histórico (antigo e recente), socioeconômico e ecológico, os autores trazem a público os resultados de consistente pesquisa de campo realizada. A partir do conjunto de informações coligidas e analisadas, são objetivos e efetivos na desconstrução de mitos propagados como exercício político-ideológico, que, como todo mito, tem pouca ou nenhuma fundamentação científica. Este é o caso do texto Populações tradicionais e preservação ambiental no Pantanal sul matogrossense: um dilema entre a promoção do ecodesenvolvimento ou criação de eco-vítimas, de Amâncio, Amâncio, Ribeiro e Toniazzo, que tem sido referência para ação de outros agentes públicos no campo político, como foi o caso do Ministério Publico Federal de Corumbá, na pessoa do procurador Wilson Rocha Assis. Por sinal, a mesma sagacidade e qualidade de desconstrução do texto pseudoacadêmico ora referido, os autores também aplicaram sobre a argumentação do referido procurador, tomando por base documento público disponível e citado (ofício) onde sobra argumentação ideológica e falta consistência técnico-legal.


De outra forma e talvez mais claramente, posso dizer que, com base em ciência e história, os autores não poupam nem a baixa qualidade de trabalho (supostamente) acadêmico nem a forma de agir de agente público, no caso, o procurador federal, que deveria cuidar de fazer a lei ser cumprida e promover a concórdia, mas prefere agir com e por motivação política pessoal, no sentido contrário, tentando ele próprio fazer política pública e com isso promovendo conflito. Os autores entendem que, além de considerações sobre ambientalismo e socioambientalismo, os seus respectivos valores e a história de suas relações conflituosas, o texto de Amâncio et al. contém alguns pontos críticos substanciais. O enfoque escolhido por Amâncio et al. – ou seja, preservação ambiental, criação de unidades de conservação e desenvolvimento das populações locais como problema de justiça social e equidade distributiva – perde-se, infelizmente, na afirmação ideológica de posições pré-formadas e pouco enraizadas nas condições locais. Os autores do livro ainda explicitam que Amâncio et al. “usam repetidamente as expressões ‘parcelas de populações tradicionais’, ‘hábitos tradicionais’, ‘presença de populações tradicionais’, ‘habitantes tradicionais da região’”, e perguntam: “O que eles entendem como ‘tradicional’?”.A conclusão é que para Amâncio et al.“O conceito, ou melhor, a reconhecida identidade do ‘tradicional’ é tomada e aplicada como válida em si e por si. Ela é assumida acriticamente como verdade objetiva e autoevidente, que não precisa ser explicada e muito menos questionada. É sustentada por meio de operações espúrias”. Isto posto, ressalvo a coragem dos autores nas suas afirmações. Mas há, acima de tudo, e para além de coragem, honestidade de princípios para com a ciência e a história no que tange à metodologia científica, à forma de coleta de dados, à análise e interpretação de fatos, e à formulação das suas próprias conclusões. Por exemplo, no que diz respeito a esta mais que questionada tentativa de construção, senão invenção, de população tradicional na região, os autores são taxativos. Para eles, é importante mostrar um ponto fundamental da interpretação desenvolvida, ou seja, o questionamento da validade do uso do conceito de “tradicionalidade” com o intuito de garantir direitos e dirimir conflitos. Deste ponto de vista, é duvidoso que a solução de problemas como aqueles observados na área trabalhada resida – ou, pelo menos, resida primariamente – em meticulosas tentativas de reconstrução das antigas esferas de ocupação das terras. Isso porque, primeiro, a cronologia das recentes e contínuas mudanças que ocorreram na região torna difícil e pouco pertinente utilizar a noção de tradicionalidade (o que há de mais tradicional na região é a criação de gado, impossibilitada pelos alagamentos). Em segundo lugar, porque a raiz dos atuais conflitos não se funda na possibilidade, impossibilidade ou limitação de residência e acesso a determinados lugares. Como demonstram os autores, trata-se de uma situação complexa que envolve a escassez de oportunidades e de capacitação, a pobreza material e as dificuldades ambientais, as necessidades imediatas e a necessidade de garantir a sustentabilidade do uso dos recursos naturais e a proteção de espécies e ecossistemas. Mas os autores vão ainda além ao afirmar que a tradição mais antiga é a de uma economia e sociedade baseadas na pecuária, em uma estrutura social relacional assentada na falta de autonomia, no compadrio e na violência. A atividade de coleta de isca para o turismo de pesca – muito pouco tradicional, pois que totalmente dependente de uma situação de mercado bastante moderna – não parece ter criado uma situação melhor para a população local. Portanto, a defesa de se reproduzir a situação atual como ‘tradicional’, segundo os autores do livro, implica simplesmente a reprodução da pobreza, da exploração e dos atuais padrões de vida dos ribeirinhos, além da possibilidade de impactos crescentes à biodiversidade e aos ecossistemas do Pantanal. Se isso não bastasse, “Grande parte da atual população residente se instalou na área ao longo dos últimos 40 anos [...], somando-se a uma população preexistente. Assim, os atuais habitantes não


guardam uma origem homogênea – há grupos que chegaram em momentos diferenciados, vindos de lugares diversos, e grupos com características peculiares...”. Mais que isso, detalhes dos dados dos autores ainda indicam que cerca de 75% ou três quartos dos entrevistados, elementos centrais das famílias da região, chegaram nos últimos 30 anos! O pulso das águas do Pantanal determina, anualmente, a alternância entre períodos de alagamento das terras, muitas vezes com retirada de gado e gente, e de vazante e seca, com a reocupação do pasto, das propriedades e dos domicílios, sempre havendo anos ou mesmo períodos de vários anos seguidos com enchentes mais rigorosas. Conforme os autores, mesmo que não fazendo parte dos registros oficiais das maiores cheias, esse parece ter sido o caso da enchente ocorrida em 1974, ainda viva na memória de muitos habitantes da área, que alterou a dinâmica hidrológica da região e foi responsável pela substituição do sistema prevalentemente baseado na agropecuária (criação de gado e roça) por modalidades de subsistência centradas na pesca artesanal e, mais recentemente, na coleta e venda de iscas vivas. Esse ano, bastante recente em termos históricos e culturais, é plenamente consistente com o tempo de residência dos moradores, conforme demonstram os registros das entrevistas realizadas pelos autores. O período mais prolongado de cheias maiores a partir desse ano de 1974 determinou altas taxas de mobilidade da população, afinal, o repentino e extenso alagamento das terras gerou um movimento de demissão e dispersão da quase totalidade dos antigos moradores e trabalhadores das fazendas, que passaram a morar nas beiras dos rios. Essas migrações coincidiram com o alagamento permanente de grandes faixas de terra firme, e os desempregados das fazendas e também famílias procedentes de regiões circunvizinhas, analogamente desalojadas pela grande enchente, procuravam por novos locais onde morar. Para os autores: “As populações residentes na área de estudo têm traços semelhantes aos de muitas populações rurais de outras regiões do país. Exibem altos níveis de miscigenação étnica e cultural, vivem em relativa marginalidade, têm escassa integração com agências governamentais e serviços sociais básicos. Têm baixa capacitação (instrução e formação profissional), reduzida capacidade de gerar renda dentro de um quadro pouco diversificado de oportunidades de trabalho, e capacidade de gerar pressão sobre uma única fonte de recursos”, o que ainda implica “evasão escolar precoce e existência de trabalho infantil, com sérias consequências para a saúde de jovens e mulheres”. A coleta de iscas, principal atividade de geração de renda identificada,“feita a partir das primeiras horas da madrugada, envolve longos períodos de imersão na água e exposição às radiações solares, predadores, insetos etc.”. A coleta e comercialização de iscas vivas é um subproduto do turismo de pesca (na verdade insumo para, dependendo da mirada dada), que hoje em dia é a principal atividade geradora de renda para a população ribeirinha em questão. De fato, o que lhes restou após o declínio da agropecuária, decorrente dos alagamentos permanentes e assoreamentos, o fim dos empregos nas fazendas de gado, e a quase completa ausência do Estado como ente protetor e facilitador de uma possível transição para uma realidade melhor. Primeiro, dedicaram-se às pescas de subsistência e comercial, atividades que, devido a mudanças nas normas legais sobre pesca no Mato Grosso do Sul, mais restritivas, os fizeram mudar novamente, dedicando-se hoje aos trabalhos de coleta de iscas e de ‘piloteiros’ de barcos. Estas atividades, advindas do desenvolvimento do turismo de pesca na região, são as principais fontes de rendas dos ribeirinhos hoje em dia. Mas “esses empregos são temporários, privados de estabilidade e garantias trabalhistas e restritos ao período de duração anual da temporada de pesca (fevereiro a outubro)”, como frisam os autores do livro. Segundo Catella (2004), citado no texto, “a política de pesca estadual não deu voz nem apontou


alternativas para os pescadores profissionais artesanais, causando um forte impacto negativo sobre as condições econômicas e sociais desse segmento (composto principalmente por trabalhadores que já tinham sido ‘expulsos’ das fazendas de gado em declínio)”. Sustentam a afirmativa dados e informações indicando que a captura total de pescado “registrada no Pantanal Sul em 1984 foi em torno de 2.800 toneladas, das quais os pescadores profissionais artesanais capturaram ¾ e os pescadores esportivos, o quarto restante”. Uma situação que foi invertida rapidamente com as novas regras, tendo a maior parte da captura passado a ser realizada pelos pescadores esportivos, que chegaram em números cada vez maiores a cada ano. “No período 1994 a 1999 o desembarque total médio foi de 1.415 t/ano e a situação se inverteu em relação ao período anterior (1979-1984). Desse montante, o equivalente a 1.086 t/ano (76%) foi capturado pelos pescadores esportivos e 330 t/ano (24%) pelos pescadores profissionais.” Seguindo com a análise dos autores, dessa situação resultaram altos custos sociais, representados pela queda acentuada do poder aquisitivo e da qualidade de vida dessas famílias; situação particularmente evidente no caso da região Paraguai Mirim-Serra do Amolar, onde houve um substancial achatamento da economia e da produção locais e onde a coleta de iscas se tornou quase que a única alternativa de geração de renda para os ribeirinhos, o que tem implicado tanto em baixa remuneração como sobreutilização do recurso natural explorado. Fica bem evidenciado pelos autores a complexa e paradoxal situação existente, que poderia ser sintetizada da seguinte forma: (1) a proteção de territórios via unidades de conservação, de fato, não é a causa ou origem da miséria e da condição de penúria das populações locais, que está fundada numa combinação de alterações hidrológicas com fundiárias que se iniciaram cerca de quarenta anos atrás; (2) a assunção de tradicionalidade invocada para, supostamente, resolver os problemas dos ribeirinhos, fortemente influenciada por terceiros movidos ideologicamente, conflita frontalmente com a realidade, quer pelo curto período de residência das populações no local, quer pelas características da principal atividade econômica exercida, a coleta de iscas, que é uma decorrência da moderna atividade do turismo de pesca, desenvolvido com intensidade apenas nas duas últimas décadas; (3) a regulação estadual da pesca para evitar sua sobreutilização parece ter sido o fator maior de achatamento da renda dos ribeirinhos, eles próprios um fenômeno recente, além de fator de indução na mudança de atividade de pesca para a coleta de iscas, e consequente não evolução ou rebaixamento socioeconômico; e (4) essa mesma regulação parece não ter sido suficiente para conter a sobrepesca, visto que, a considerar os dados apresentados, os desembarques somados de turistas e profissionais caíram à metade entre 1984 e 1999, sugerindo a necessidade não apenas de se manter as regras aos pescadores profissionais como de torná-las mais rígidas para os pescadores turísticos, para se manter em níveis adequados de renovação de um recurso de interesse vital a todos. Para Franco, Drummond, Gentile e Azevedo, se não for enriquecida a qualidade dos modos e dos meios produtivos locais, em uma situação de fato já intensamente modificada e mesmo produzida originalmente pelas influências da modernidade (mercado, tecnologias, bens, serviços, valores ambientais), para além das boas intenções, toda a tentativa de defender os direitos dos povos locais pode se tornar um instrumento de perpetuação de “condições iníquas”. Por sinal, destacam eles, os residentes “não querem rejeitar a modernidade”. Muito pelo contrário. Eles já possuem e almejam bens que são frutos emblemáticos da modernidade (palitos de fósforo, roupas, celular, televisão, internet, motor, fármacos etc.). Em boa medida, os isqueiros já dependem da modernidade: sua renda deriva de um produto que o moderno mercado turístico, de origem urbana, demanda. O rótulo de “tradicionais” que eles reivindicam, paradoxalmente, tem como objetivo as próprias políticas diferenciais que garantam a inclusão no sistema moderno (e não a garantia de permanecer fora dele e


“bem conservados”). Nisso são corroborados por Barreto Filho (2006), citado no texto, para quem: “Existe, da parte de muitos grupos rotulados como ‘tradicionais’, um desejo legítimo de usufruir direitos, modelos de vida, bens e confortos caracteristicamente modernos, dos quais eles estão tipicamente excluídos. A noção de ‘população tradicional’ conspira, de certo modo, contra a autonomia destes grupos de decidir sobre o seu próprio futuro, pois implica uma relação instrumental com eles, ao torná-los reféns de uma definição exterior de si próprios e do problema que vivem”. Este, por sinal, parece ser o ponto crucial da realidade local: a necessidade de uns – mormente agentes públicos de diferentes ordens e integrantes de ONGs – de criar e manter um conceito de grupo que lhes sirva de instrumento aos próprios propósitos, sejam eles meramente filosóficos (ainda que bem pouco fundamentados), de exercício ideológico, de investigação acadêmica ou de captação de fundos institucionais, entre outros possíveis. Pena é que os pobres ribeirinhos, eles próprios, não saibam disso e, muito pior ainda, que devido à educação da qual foram e seguem sendo privados, exceto por iniciativas como a da Escola Jatobazinho e de outros programas do Acaia Pantanal, também não tenham sofisticação de raciocínio para entender a plenitude do jogo para onde os empurram, no qual tendem a não passar de meras peças num tabuleiro manipulado por outros! Aos autores, minha admiração pela qualidade do trabalho e minha gratidão por mais esta contribuição intelectual de valor para a conservação. Aos leitores, votos de um mergulho profícuo na proveitosa obra. Enfim, encerrando, faço menção especial às fotografias de Marcelo Ismar Santana que, não só retratam o contexto em pauta nos seus mais diferentes aspectos, como constituem, em muitos dos casos, verdadeiras poesias pictóricas sobre a região e seus moradores. Miguel Serediuk Milano (Engenheiro Florestal, MSc, Dr.)


Introdução O texto deste livro é fruto de pesquisa apresentada, em 2012, pelos autores à Rede de Proteção e Conservação da Serra do Amolar, por solicitação dessa organização. O objetivo da pesquisa foi o de reunir elementos que permitissem uma reflexão fundamentada sobre as possibilidades e dificuldades para a conservação da biodiversidade e dos ecossistemas do Bioma Pantanal Mato-grossense. A pesquisa focalizou, principalmente, populações ribeirinhas residentes nas localidades conhecidas como Paraguai-Mirim, Barra do São Lourenço e Serra do Amolar, no município de Corumbá, Mato Grosso do Sul. Estas localidades, que formam um microcosmo do bioma, estão situadas na área conhecida como Pantanal do Paraguai, uma das subdivisões do Bioma Pantanal Mato-grossense. O presente livro, embora seja um desdobramento da pesquisa inicial, difere dela consideravelmente em extensão, organização, escopo e estrutura. Ele está enriquecido por dados e perspectivas analíticas oriundas de uma pesquisa bibliográfica mais extensa sobre os aspectos biofísicos do bioma e sobre o histórico da sua ocupação humana. No entanto, os conceitos, argumentos e proposições do livro são rigorosamente os mesmos que orientaram a pesquisa original. O texto é de caráter multidisciplinar, combinando perspectivas e dados pertinentes a diversas disciplinas – história ambiental, história econômica, antropologia, economia, ecologia, biologia, sociologia, geologia, geografia, ciência política e outras mais. Ele está dividido em três capítulos, que permitem leitura independente ou em ordem alternada, visto que cada um deles pode ser entendido como uma parte autônoma do trabalho final. O primeiro descreve e avalia os diversos aspectos naturais – formação geológica, hidrografia, clima, solos, vegetação, fauna etc. – do Bioma Pantanal Mato-grossense. Ele é o menor dos biomas terrestres brasileiros, mas nem por isso o menos importante em matéria de biodiversidade. Desse capítulo são retirados diversos argumentos e ângulos analíticos pertinentes aos capítulos posteriores, respectivamente sobre a ocupação humana e sobre a problemática da conservação da biodiversidade nativa. O segundo capítulo trata do histórico da ocupação humana do Pantanal, principalmente nos três séculos mais recentes, embora sem deixar de fora a sua milenar ocupação pré-histórica, ou a vivência de povos nativos antes do seu contato com europeus e africanos. A abordagem desse capítulo enfatiza as dinâmicas de fronteira que predominaram nesses séculos recentes de ocupação e condicionaram, juntamente com a localização dos recursos naturais mais atraentes, a localização e a viabilidade econômica das diversas atividades produtivas. Dentro dessa abordagem, alguns temas ganham mais ênfase, por indicarem fatos e processos que nos parecem mais decisivos na atual configuração social e ambiental – a resistência dos povos indígenas à penetração europeia e a sua dizimação ou rarefação, as descobertas de ouro, as dificuldades de deslocamento e comunicação dentro do bioma e de dentro para fora dele, a agricultura e a pesca de subsistência, os deslocamentos humanos causados por cheias – tanto regulares quanto atípicas –, o estabelecimento de grandes fazendas de gado bovino e de usinas de produção de álcool e açúcar, a emergência da caça e da pesca turística etc. O terceiro capítulo trata de questões contemporâneas e atuais situadas na interface da natureza pantaneira com as diversas ocupações e atividades humanas, dentro do contexto recente e mais amplo de valorização positiva de conservação da natureza. Os temas principais são as políticas e as práticas de conservação da natureza e a proteção da biodiversidade, em especial a relação delas com as atividades produtivas dos diferentes grupos humanos residentes no Pantanal. Descrevemos e


analisamos os conflitos e as compatibilidades entre conservação e proteção, de um lado, e as atividades produtivas e a vida cotidiana de diferentes grupos sociais, com ênfase particular nas populações ribeirinhas. A nossa conclusão principal é a de que existem potencialidades promissoras para o Pantanal Matogrossense, potencialidades essas que apontam para a compatibilidade entre diversas atividades produtivas e os requisitos de conservação e proteção da biodiversidade e dos ecossistemas. Essas atividades produtivas são capazes de melhorar significativamente a qualidade de vida das populações ribeirinhas do bioma, a curto prazo, enquanto que a proteção concomitante da biodiversidade representa a base de uma verdadeira sustentabilidade das atividades produtivas dos ribeirinhos, todas ligadas estritamente aos recursos naturais. Mesmo levando em conta a inevitabilidade das restrições – e das tensões e conflitos – que as políticas de conservação e proteção criam, enxergamos ampla margem para a convivência das atividades produtivas dos ribeirinhos com os requisitos de uso conservacionista e mesmo com a proteção integral de partes desses recursos. Para bem promover essas potencialidades, é preciso envolver, além das próprias populações ribeirinhas, as autoridades públicas das diversas esferas de governo e a iniciativa privada. Entendemos que as soluções, ainda que difíceis de alcançar e imperfeitas, passam pelo investimento em soluções propositivas e negociadas, e não no acirramento de conflitos. Em resumo, buscamos mapear o contexto histórico e geográfico, as condições de vida, os recursos naturais, as políticas ambientais e sociais pertinentes e os elementos de conflito embutidos nas diferentes dinâmicas. Esse mapeamento nos ajudou a identificar os determinantes da vida social, a partir das relações sociais e das práticas de vida, do trabalho, do manejo dos recursos naturais e das formas de construção do território. Apresentamos ainda propostas de políticas e de ações para a área de estudo, algumas delas possivelmente válidas para outros trechos do Pantanal, com o fim de superar conflitos e de garantir tanto a conservação da biodiversidade e dos ecossistemas como o desenvolvimento econômico e social. No entanto, destacamos que essas propostas não substituem a necessidade de políticas públicas “de base”, muito mais abrangentes, cujo status na região é cronicamente deficitário, como regularização fundiária, oferta de serviços públicos de saúde, educação, segurança e justiça, transporte, comunicação, aplicação da legislação trabalhista etc. * Além da consulta a uma extensa literatura empírica e conceitual, toda ela registrada na listagem bibliográfica, o texto deste livro se enriqueceu com dados e perspectivas geradas pela pesquisa de campo. Entre os dias 7 e 15 de outubro de 2011, a nossa equipe esteve presente nas três localidades acima mencionadas – Paraguai-Mirim, Barra do São Lourenço e Serra do Amolar, em Corumbá, Mato Grosso do Sul. A equipe aplicou questionários a 62 famílias – quase 90% das famílias residentes nessas localidades. Os 62 respondentes nos receberam bem e nenhum deles manifestou qualquer resistência a conversar conosco ou a responder às nossas perguntas. Eles nos forneceram dados válidos para cada grupo familiar, e não somente informações pessoais. No conjunto, as suas respostas se referem a um total de 314 ribeirinhos. Os números de integrantes dos grupos familiares para os quais obtivemos esses dados variaram de 1 a 10 pessoas. Conseguimos dados válidos para uma ampla amostra da população das três localidades. Os dados se referem a diversos aspectos da vida dos residentes, como local de nascimento, escolaridade, tempo de moradia no local, situação fundiária de lotes residenciais e agrícolas, dedicação a diferentes atividades produtivas, presença de equipamentos


domésticos, frequência e motivos de viagens a Corumbá, recebimento de aposentadorias, pensões e transferências de renda, e assim por diante. Fizemos ainda 25 entrevistas informais, individuais, com diversas pessoas. Elas foram gravadas e depois parcialmente transcritas. As informações obtidas nessas entrevistas nos permitiram complementar e avaliar melhor os dados colhidos nos questionários. No entanto, decidimos aproveitar as informações das entrevistas sem fazer citações literais das falas dos entrevistados. Em alguns casos, essas pessoas nos convidaram a visitar as suas casas, hortas e roças. Tivemos oportunidade assim de observar pessoalmente aspectos como a divisão dos cômodos, o mobiliário, os materiais de construção, os tipos de cultivos e de animais domésticos, o cuidado com hortas e pomares, e assim por diante. Outro resultado do trabalho de campo foi uma documentação fotográfica, feita por Marcelo Ismar Santana e apresentada em um anexo do texto. Parte das fotos registra os residentes, as suas casas e os seus ambientes imediatos nas três localidades. Outra parte registra paisagens naturais típicas, a fauna e a flora do Pantanal. * Os autores do texto desse livro contaram com a colaboração das seguintes pessoas: Gislaine Maria Silveira Disconzi, que participou da equipe de campo ajudando a realizar os questionários e entrevistas; e Daniela Oliveira, que fez levantamento bibliográfico e de dados referentes às unidades de conservação do Pantanal Mato-grossense. Agradecemos o apoio do Acaia Pantanal, do Instituto Homem Pantaneiro e da Ecotrópica, que disponibilizaram pessoal de apoio e infraestrutura para a realização de nosso trabalho. Brasília, fevereiro de 2013 José Luiz de Andrade Franco José Augusto Drummond Chiara Gentile Aldemir Inácio de Azevedo


Capítulo 1

O Pantanal da Biodiversidade 1.1 – O contexto geográfico O Pantanal é uma das maiores extensões úmidas contínuas do globo. é uma planície sedimentar de 230.000 km², que abrange o extremo sudoeste do Brasil e partes do Paraguai e da Bolívia, contidos totalmente na faixa intertropical. Em território nacional, a sua superfície é de 147.574 km² (o que representa dois terços de todo o bioma), divididos entre os estados de Mato Grosso (35%) e Mato Grosso do Sul (65%) (SILVA et al., 1998; RUMI, 2000; ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006; ANTAS, 2009). O Pantanal tem características suficientemente distintivas para ser oficialmente considerado um bioma à parte dentro do território brasileiro. O objetivo deste capítulo é caracterizar o Bioma Pantanal, nas suas dimensões geológicas, topográficas, hidrográficas, florísticas e faunísticas. O Pantanal brasileiro, conhecido como Pantanal Mato-grossense, está inserido na bacia do alto rio Paraguai. Além da chamada Planície Pantaneira (cujas altitudes variam de 80 a 150 metros acima do nível do mar), a bacia compreende os planaltos adjacentes (com altitudes que vão de 200 a 1.000 metros). Esses planaltos hospedam as nascentes dos demais rios pantaneiros, afluentes e subafluentes do rio Paraguai. O rio Paraguai atravessa o Pantanal de norte a sul (nasce na Chapada dos Parecis e termina na confluência com o rio Paraná). Comanda toda a rede de drenagem da região, formada pelos rios Cuiabá, São Lourenço, Itiquira, Piquiri, Correntes, Taquari, Negro, Aquidauana e Miranda – todos na sua margem esquerda. Pela margem direita, ainda antes de entrar no Pantanal, o rio Paraguai recebe as águas do rio Jauru. O Pantanal Mato-grossense está localizado entre os paralelos 16 e 22 (latitude) e os meridianos 55 e 58 (longitude), e a sua extensão é de, aproximadamente, 500 km de norte a sul e de 300 km de leste a oeste (SILVA et al., 1998; RUMI, 2000; ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006; ANTAS, 2009). A depressão geográfica que originou o Pantanal Mato-grossense é o resultado do soerguimento da Cordilheira dos Andes e do Planalto Central Brasileiro. Desde o período Quaternário (2,5 milhões de anos atrás), sedimentos foram sendo depositados na depressão formada entre esses dois conjuntos de terras soerguidas. Formou-se uma bacia sedimentar (areia, argila e depósitos orgânicos), um mosaico de aluviões. As terras altas (serras e planaltos), que circundam a planície periodicamente inundada, têm relevo dos mais antigos da história da Terra. Elas são constituídas por rochas dos períodos Cretáceo (há 65 milhões de anos), Jurássico (há 136 milhões de anos), Devoniano (há 345 milhões de anos) e mesmo de períodos do Pré-Cambriano (há mais de 500 milhões de anos atrás), além de rochas basálticas intrusivas. A leste fica o Planalto Central Brasileiro; ao norte, a Chapada dos Parecis; ao sul, as serras da Bodoquena e Maracaju; e a oeste, o Maciço do Urucum, a Serra do Amolar, a Serra de Santa Bárbara e as serranias de Santiago e Sunsas. O Pantanal tem variado de tamanho. Foi menor, entre 23 mil e 13 mil anos atrás, no clímax da aridez glacial. Foi, também, maior, entre 7 mil e 5 mil anos atrás, no apogeu do último período úmido interglacial. A tradição das populações indígenas que habitaram a região se reporta ao “Mar dos Xaraies”, referindo-se provavelmente ao período de máxima extensão do Pantanal (VELOSO, 1972; ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006; ANTAS, 2009). Ab’Sáber (2009) se refere ao Pantanal Mato-grossense como “um mundo à parte em termos


hidrogeomorfológicos, de representatividade planetária” (p. 218). Situado no interior de ampla e complexa depressão: [...] ocorrem diversos leques aluviais depositados na forma de grandes pacotes de solos dos terrenos cristalinos que ainda asilam rochas sedimentares da Bacia do Paraná. Nos desvios dos leques aluviais de eixos divergentes escorrem as águas de rios provenientes das escarpas de Maracaju, faixas de rios dotados de estreitas planícies aluviais, embutidas no dorso de areias. Todos esses rios vindos do leste, nordeste, sul e sudeste coalescem na margem esquerda do Alto Paraguai, constituindo verdadeiramente uma imensa área alagada. Exatamente aquilo que a tradição popular de língua portuguesa arcaica chamou de pantanal. A mancha aluvial brejosa que surgiu por inundação das planícies dos rios que vêm do leste difere de todos os tipos e faixas de planície aluvial do território brasileiro. A complexidade criada pela coalescência dos baixos vales aluviais vindos de leste é tão grande que somente em aerofotos e imagens de radar ou de satélites pode-se avaliar o emaranhamento dos meandros inundados na maior parte do ano (AB’SÁBER, 2009, p. 218).

O clima no Pantanal Mato-grossense caracteriza-se por verões muito quentes e úmidos e invernos secos e amenos. Está sob a influência do sistema climático do Brasil Central, de tipo mediterrâneo. O regime de chuvas apresenta precipitação total anual que varia de 800 a 1.200 mm, com dois períodos distintos: chuvoso (outubro a março), quando ocorrem cerca de 80% do total anual das chuvas, e seco (abril a setembro). A umidade relativa do ar se mantém em cerca de 70%. A temperatura média anual do ar é de 25°C, com média anual das mínimas e das máximas de 20°C e 32°C, respectivamente. As temperaturas máximas podem ultrapassar os 40°C. A longa extensão do Pantanal implica variações de temperaturas entre os extremos norte e sul. No sul, durante o período de passagem das frentes frias, no outono/inverno austral, de junho a setembro, há quedas expressivas e frequentes de temperatura. Em menos de 12 horas, a temperatura pode cair de 30ºC para até menos de 10ºC. Eventualmente, esse fenômeno, conhecido como friagem, chega a reduzir consideravelmente as temperaturas mesmo em áreas bem mais ao norte, como Cuiabá (SILVA et al., 1998; GALDINO et al., 2006; DOUROJEANNI, 2006; SOARES et al., 2006; ANTAS, 2009). O grande e lento afluxo das águas vindas das cabeceiras do Paraguai e dos afluentes, devido à edafologia, à baixa declividade dos solos pantaneiros – cerca de 2,3 centímetros por quilômetro de norte a sul e, ainda menor, de leste a oeste – e ao padrão anastomosado do seu sistema fluvial, gera fenômenos alternados de cheia e seca, combinando extensas áreas alagadas com áreas sazonalmente inundadas. O Pantanal Mato-grossense tem solos prevalentemente arenosos, de alta salinidade, e um rico sistema de drenagem instalado dentro de um gradiente topográfico de baixo desnível, contendo diversas sub-bacias hidrográficas que se originam na região circundante. Isso lhe confere componentes bastante peculiares, cujas denominações regionais são: baías, áreas deprimidas, com formas circulares, contendo água às vezes salobra e com dimensões variadas de dezenas a centenas de metros de diâmetro; cordilheiras, pequenas elevações do terreno localizadas entre as baías, situadas geralmente a apenas dois metros acima do nível da água, quase nunca alagadas, e que servem de abrigo para o gado e para construir as residências e sedes das fazendas; vazantes, amplas depressões situadas entre as cordilheiras, que servem de escoadouro entre as baías; e corixos, que são pequenos cursos de águas perenes conectando baías contíguas (FRANCO e PINHEIRO, 1982; SOARES et al., 2006; ANTAS 2009). A hidrologia do Pantanal Mato-grossense é desregulada, ou seja, a cheia varia em toda a planície, devido à quantidade do fluxo de água e à declividade suave do terreno. O período de inundação é retardado em relação à ocorrência das chuvas (outubro a abril) que atingem as cabeceiras dos rios no planalto. O Pantanal Mato-grossense é inundado exatamente pelo transbordamento dos rios que chegam à planície, mas em determinados pontos a chuva local também pode causar inundação rasa. Durante o período de cheia, o fluxo de água é lento, interligando os rios com as depressões por


intermédio dos corixos e das vazantes, e enchendo as baías. Depois de receber o forte influxo das águas das chuvas carreadas pelos rios que nascem ao norte, no planalto, as águas que causam as enchentes podem levar de quatro a cinco meses para chegar à parte meridional do Pantanal Matogrossense, quando o período de seca já está começando no seu extremo norte. Desse modo, o padrão da cheia do Pantanal Mato-grossense varia, desde fevereiro/abril no norte, até junho/agosto no sul, como resultado da lentidão na drenagem da planície inundada (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; HAMILTON et al., 1996, ANTAS, 2009). Em virtude desse mecanismo complexo de subida e vazante das águas, e associado com as características diferentes dos sedimentos carregados por cada rio, há a formação de diversos sistemas naturais inundáveis, com a ocorrência de peculiaridades locais e regionais. Isto tem levado a que os diversos trechos, cada qual com as suas particularidades, recebam denominações diferenciadas (ANTAS, 2009). As classificações variam de acordo com diferentes autores: Adámoli (1982); Franco e Pinheiro (1982); Alvarenga et al. (1984); PCBAP (1997); Silva e Abdon (1998); Silva et al. (1998) e IBGE (www.ibge.gov.br). Adotando a classificação de Silva e Abdon (1998), temos que o Pantanal Mato-grossense é dividido em 11 sub-regiões que afetam os territórios de 16 municípios atuais dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Os onze pantanais identificados – cada um com características próprias de solo, vegetação e clima – têm os seguintes nomes: Cáceres, Poconé, Barão de Melgaço, Paraguai, Paiaguás, Nhecolândia, Abrobal, Aquidauana, Miranda, Nabileque e Porto Murtinho. Fig ura 1 – Mapa dos Onze Pantanais


Fonte: Carlos Christian Della Giustina, Marco Túlio Granja Poubel de Castro, Silas Semprini de Toledo Contaifer

Como podemos observar na Figura 1, acima, os rios que deságuam no rio Paraguai fluem pelas diversas sub-regiões pantaneiras, convergindo todos, finalmente, nas sub-regiões de Nabileque e Porto Murtinho, formadas quase que exclusivamente pela planície de inundação do rio Paraguai. No capítulo 3, em nosso estudo de caso, focalizaremos mais a atenção nas sub-regiões de Paraguai, Cáceres, Poconé, Paiaguás e Nhecolândia, onde estão situadas as áreas protegidas e populações humanas estudadas, ou que as influenciam mais diretamente pela proximidade. Além do padrão sazonal de cheias e secas, ocorrem ciclos de mais longa duração. No período de 1961 a 1973, caiu o volume das chuvas, o que resultou em uma redução no volume de água do rio


Paraguai. A partir de 1974, as chuvas aumentaram, resultando em um período bem mais úmido, com maior variação no fluxo de água durante as estações de cheia e seca. Assim, as variações dos níveis dos rios e, consequentemente, a amplitude das cheias dependem da quantidade de precipitação ocorrida a cada ano. Há estudos que observaram periodicidades de flutuações no nível de precipitações e no nível dos rios entre dois e cinco anos; outros notaram variações nesses parâmetros a cada 28 anos; e houve ainda pesquisas que constataram periodicidades diferentes (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005).

1.2 – O contexto ecológico e a biodiversidade As inundações anuais e plurianuais determinam a estrutura e a função dos ecossistemas do Pantanal Mato-grossense, formado por um mosaico de ambientes aquáticos, permanente ou sazonalmente alagados, mesclados com ambientes de terra firme, eventualmente ou nunca cobertos pelas águas. O máximo de inundação, como vimos, ocorre entre fevereiro e abril, nas regiões de borda da planície, ao norte, e entre junho e agosto, na calha do rio Paraguai, na altura de Corumbá, e mais ao sul. Essa alternância entre enchentes e vazantes é o fenômeno ecológico mais importante do Pantanal Matogrossense. Com a recorrência dos ciclos anuais de seca e cheia (o ciclo anual comporta as etapas de “enchente”, “cheia”, “vazante” e “estiagem”, não ocorrendo no mesmo lapso de tempo em todas as regiões do Pantanal Mato-grossense. As maiores enchentes raramente excedem os 6 metros e as menores são inferiores a 3,5 metros). Em meio a essas variações, ocorrem a expansão e retração de habitats: habitats aquáticos se transformam em habitats terrestres e habitats terrestres se transformam em habitats aquáticos. Isso faz com que ocorram, lado a lado, plantas adaptadas à vida aquática, como as macrófitas, plantas mésicas, de ambiente úmido, e plantas xéricas, de ambiente seco (HAMILTON et al., 1996; ALHO JR., 2005; ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006; ANTAS, 2009). A flora do Pantanal Mato-grossense é composta por espécies de ampla distribuição geográfica dispersas por vários biomas,e por espécies encontradas em outros biomas como o Cerrado, a Amazônia, a Floresta Atlântica e o Chaco. O Pantanal Mato-grossense sofre influência, portanto, dos biomas vizinhos: Amazônia, por meio dos rios que nascem nas zonas de contato (ecótonos); Bioma Cerrado, que cobre as terras elevadas dos planaltos, onde estão os afluentes da margem esquerda do rio Paraguai, a leste, que drenam para a planície do Pantanal; Bioma Mata Atlântica, pela sua extensão através das matas de galeria e das matas ciliares, e por seus ecótonos na região sul-sudeste do Pantanal Mato-grossense; e Bioma Chaco, – que ocorre no Paraguai e na Bolívia, mais seco (com chuvas anuais abaixo de 800 milímetros), visualmente semelhante à Caatinga do nordeste brasileiro –, que faz contato com o Pantanal no seu limite sudoeste (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006; POTT e POTT, 2009; ANTAS, 2009). O bioma que mais influencia o Pantanal é o Cerrado. O conjunto de espécies que ocorre em um não difere muito do conjunto das que ocorrem no outro, embora haja maior biodiversidade e inclusive formas endêmicas no Cerrado. As fitofisionomias também apresentam correspondências. Para autores como Junk et al. (2006), o Pantanal pertence ao Bioma Cerrado, sendo composto por diferentes tipos de savana. Ainda assim, as fitofisionomias diferem quando se compara o Cerrado com a planície pantaneira. O regime de enchente e vazante estabelece as principais diferenças. Desse modo, as fitofisionomias do Pantanal caracterizam-se por arranjos fitossociológicos e ecológicos que determinam a estruturação de unidades de paisagem bem definidas, indo desde áreas inundáveis até formações florestais (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; ANTAS, 2009; POTT e POTT, 2009).


Silva et al. (2000), considerando aspectos fisionômicos, florísticos e ecológicos do Pantanal, bem como a combinação entre eles, estabeleceram um paralelo classificatório entre a vegetação do sistema fisionômico-ecológico adotado pelo IBGE (1992) e as denominações regionais. Eles chegaram à seguinte classificação para as fitofisionomias que ocorrem no Pantanal Mato-grossense: a. babaçual: formação homogênea densa composta predominantemente pela palmeira babaçu (Orbignya oleifera), de 10-22 m altura; b. baceiro ou batume: formado por ciperáceas e plantas aquáticas, com raízes densamente entrelaçadas, formando ilhas flutuantes presentes nos mais diversos tipos de corpos de água; c. brejo: áreas permanentemente inundadas, com presença de arbustos, trepadeiras, gramíneas e ciperáceas. Incluíram-se os “espinheirais”, nos quais predominam “espinheiros” (Byttneria filipes e Mimosa pellita) e “pombeiros” (Combretum spp.); d. buritizal: formação composta principalmente pela palmeira buriti (Mauritia vinifera), de 515 m de altura; e. cambarazal: formação homogênea densa, de área inundável, com dominância de cambará (Vochysia divergens), de 5-18 m de altura; f. campo inundado: áreas com dominância de gramíneas e ciperáceas, incluindo as várzeas; g. campo seco: áreas não inundadas com vegetação herbácea; h. canjiqueiral: formação homogênea esparsa encontrada em áreas arenosas, com domínio de canjiqueira (Byrsonima orbignyana), de 1-5 m de altura; i. carandazal: formação homogênea densa com dominância da palmeira carandá (Copernicia alba), de 8-20 m de altura; j. cerradão: formação densa composta de árvores e arbustos, com comportamento semidecíduo, de 8-20 m de altura; k. cerrado: formação lenhosa esparsa, sobre um estrato herbáceo, composta por arbustos e árvores de 0,8-10 m de altura; l. chaco: vegetação arbustiva caducifólia, micrófila e espinescente, geralmente associada a solos salinos; m. mata semidecídua: composição de arbóreas de 8-20 m de altura, na qual a maioria das árvores perde as folhas no período seco; n. mata de galeria: matas de beira de rio e/ou sob sua influência direta, de 10-12 m de altura, com espécies como piúva (Tabebuia heptaphylla) e ingás (Inga spp.); o. paratudal: formação savânica alagável, com estrato arbóreo quase exclusivo de paratudo (Tabebuia aurea), de 5-16 m de altura; p. pirizal/caetezal: áreas de alto grau de inundação, com dominância de pirizeiro (Cyperus giganteus) e caeté (Thalia geniculata). É grande a riqueza da vida vegetal do Pantanal Mato-grossense. Estima-se que haja cerca de 2.000 espécies de fanerógamas (plantas superiores), incluindo 200 exóticas. As leguminosas e as gramíneas são as principais famílias. Com base em coletas botânicas, as proporções fitogeográficas são de 50% de espécies de ampla distribuição, 30% de espécies do Cerrado, e 20% de outras origens (POTT e POTT, 2009). As 350 principais plantas lenhosas do Pantanal, segundo Pott et al. (2009) podem ser “agrupadas em contingentes fitogeográficos e alguns grupos combinados que não são exclusivos de um único bioma” (p. 1). De acordo com esta classificação de Pott et al. (2009), o grupo mais numeroso é do Cerrado (66 espécies), seguido pelos de Cerrado e Floresta Estacional (47), Ampla


Distribuição (31), Chaco (29), Floresta Estacional (23), Cerrado, Floresta Estacional e Mata Atlântica(22), Chaco e Floresta Estacional (21), Ampla Distribuição exceto Floresta Estacional (21), Floresta Estacional e Amazônia (14), Amazônia (10), Amazônia e Mata Atlântica (9), Bacia do Paraná-Paraguai (10), Floresta Estacional e Mata Atlântica (8), Floresta Estacional, Amazônia e Mata Atlântica (7), Cerrado, Floresta Estacional e Amazônia (6), Cerrado e Mata Atlântica (6), Cerrado e Amazônia (5), Chaco e Amazônia (5). Ao tratar da vegetação do Pantanal Mato-grossense é importante distinguir, sobretudo, os ambientes aquáticos dos terrestres, embora isso não seja uma tarefa fácil, devido à interface cambiante entre eles. A vegetação aquática submersa e enraizada é rara, por causa da competição com as abundantes plantas flutuantes pela luz solar. Existem cerca de 250 espécies de macrófitas aquáticas, com diversas formas de plantas: emergentes, anfíbias, flutuantes, submersas e epífitas. São gramíneas, ciperáceas, leguminosas, pondetérias, dentre outras famílias. Essas macrófitas desempenham um papel importante para o ecossistema: atuam no ciclo do oxigênio e servem como alimento e abrigo para perifíton (algas), insetos aquáticos, moluscos e outros invertebrados, além de peixes e aves. A estrutura das comunidades depende da profundidade da água, de fatores físico-químicos e do grau de sucessão ecológica. Chamam a atenção, entre as plantas flutuantes, pelo caráter espetacular, espécies como a vitóriarégia (Victoria amazonica) e a orquídea flutuante (Harbenia aricaensis), ou ainda, pela produtividade e ubiquidade, o aguapé (Eichornia crassipes). Os aguapés, associados a plantas dos gêneros Salvinia, Pistia, Scirpus e Cyperus, formam ilhotas flutuantes, conhecidas como “camalotes”, uma biocenose (conjunto de seres vivos agrupado, vivendo em comum, em um dado lugar) típica, de grande importância para a vida de muitas espécies da fauna. Entre a vegetação anfíbia, que se desenvolve, em locais sempre úmidos, temporariamente alagados, sobressaem o “capim de água” (Paspalum repens) e as grandes gramíneas dos gêneros Cyperus e Scirpus (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006). A vegetação terrestre arbórea ou arbustiva do Cerrado raramente ocorre nas partes mais planas do Pantanal Mato-grossense, onde predominam os campos ou campos limpos ocupados por herbáceas, sobretudo as gramíneas de diversos gêneros: Panicum, Paspalum, Mesosetum, Paratheria, Axonopus, Elyonurus, Oryza, Setaria, Portulaca e Arachis. Em algumas formações mais elevadas (1 a 2 metros) existentes nos campos, conhecidas como “murunduns”, há árvores dos gêneros Curatella,Simarouba, Byrsonyma, Dipteryx, Tabebuia e Vochysia. As formações de cerrado sensu strictu e de cerradão que ocorrem no Pantanal Mato-grossense não diferem das que existem no Planalto, no Bioma Cerrado. As espécies mais comuns são pequi (Caryocar brasiliense), pau-terra (Qualeaparviflora), pau-terramacho (Qualeagrandiflora), paratudo (Tabebuia aurea), carvão-vermelho (Diptychandra aurantiaca), jatobá (Hymenaea stignocarpa), marmelada-preta (Alibertia sessilis), morcego (Andira cuyabensis), canjiqueira (Byrsonima orbignyana), chá-de-frade (Casearia sylvestris), lixeira (Curatella americana), maminha (Fagara hassleriana), coroa-de-frade (Mouriri elliptica), mutuqueira (Sapium haematospermum), pau-bosta (Sclerolobium aureum), perdiz (Simarouba vesicolor), olho-de-boi (Tocoyema formosa), araticum (Annona dioica), ata-de-lobo (Duguetia furfuracea), fruta-de-veado (Pouteria ramiflora), piúva-do-cerrado (Tabebuia ochracea), piuchinga (Tabebuia roseo-alva), angelim (Vatairea macrocarpa), piúva-da-mata (Tabebuia impetiginosa), gonçalo (Astronium fraxinifolium), pombeiro (Trichilia elegans), almecega (Protium heptaphyllum), tarumã (Vitex cymosa), tarumarana (Buchenavia tomentosa), pururuca (Casearia decandria), louro (Cordia glabrata), peroba (Aspidosperna tomentosum), canela (Ocotea suaveolens), açoita-cavalo (Luehea paniculata), timbó (Magonia pubescens), cumbaru (Dipteryx alata) e acuri (Schellea phalerata)


(ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006). As matas ciliares ou florestas de galeria se distribuem ao longo dos rios, corixos e vazantes e são conhecidas localmente como “saranzais”. As principais espécies de árvores encontradas são: acuri (Scheelea phalerata), várias espécies de figueiras (Ficus spp.), piúva (Tabebuia heptaphylla), várias espécies de ingá (Inga spp.), novateiro (Triplaris americana), bacupari (Rheedia brasiliensis), chicomagro (Guazuma tomentosa), cambará (Vochysia divergens), pau-sangue (Pterocarpus rohri), canafístula (Pithecellobium multiflorum), caiarana (Guarea macrophylla), tucum (Bactris glaucescens) e pimenteirinha (Erythroxcylum sp.) (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006). As florestas semidecíduas (cerca de 30% das árvores perdem as folhas no período mais seco) e decíduas (cerca de 60% das árvores perdem as folhas no período mais seco) se encontram nas “cordilheiras”, áreas mais elevadas e não alagadas do Pantanal Mato-grossense. Ao norte, essas florestas sofrem influência da Amazônia, ao sul da Mata Atlântica e no sudoeste do Chaco. As árvores mais comumente encontradas são a curi (Scheelea phalerata), piuchinga (Tabebuia róseoalva), piúva-da-mata (Tabebuia impetiginosa), jatobá-mirim (Hymenaea courbaril). Chamam a atenção também Acosmium cardenasii, Caesalpinia floribunda, Acacia paniculata, Rolinia spp., Tabebuia ochracea, Neea sp., Aspidosperma sp., Pseudocopaiva chodatiana, Sapindus sp., Casearia gossypiosperma, Aspidosperma subincanum, Aspidosperma pyrifolium, Ficus Calyptroceras, Urera bacífera, Alophyllus edulis, Sapium grandulatum, Pseudobombax marginatum, Jacaratia corumbensis, Talisia esculenta, Anaderanthera colubrina, Cnidoscuus Cnicodendrum, Reichenbachia paraguaiensis, Sebastiania brasiliensis, Erythroxylum deciduum e Acacia glomerosa. Nos bosques mais secos destacam-se espécies xerofíticas, como a barriguda-do-pantanal (Ceiba pubiflora), a barriguda-deespinho (Ceiba boliviana), a lupuna (Ceiba samauma) e os cactos dos gêneros Cereus e Pereskia (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006). As fitofisionomias dominadas por poucas ou por uma única espécie são típicas do Pantanal Matogrossense. São chamadas de “parques”, como os acurizais (Attalea phalerata), babaçuais (A. speciosa), cambarazais (Vochysia divergens), canjiqueirais (Byrsonima orbignyna), lixeirais (Curatella americana), paratudais (Tabebuia aurea), pimenteirais (Licania parvifolia), pindaivais (Xylopia aromatica) e piuvais (Tabebuia heptaphylla). Elas se apresentam como savanas arborizadas inundáveis ou como florestas mais densas (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006). O número de espécies exóticas presentes no Pantanal Mato-grossense é significativo, embora ainda não seja conhecido com exatidão (cerca de 200 espécies), pois as plantas de introdução antiga ou naturalizadas muitas vezes são difíceis de distinguir das nativas. A ocorrência das exóticas está, em geral, confinada a locais perturbados não inundáveis. Em anos secos elas tendem a se expandir e com as cheias, a retroceder. Pott et al. (2009) esclarecem que: Atualmente o Pantanal está muito seco e se observa o avanço de várias invasoras pantropicais, como Dactyloctenium aegyptium, Indigofera suffruticosa, Sennaobtusifolia, Urena lobata etc., e até Calotropis procera, de clima semiárido. Poucas lenhosas exóticas tornaram-se subespontâneas, caso de Bambusa vulgaris, Citrus limon, Mangifera indica, Muntingiacalabura (recente) e Psidium guajava, escapadas de cultivo, mas não representam ameaça (p. 3).

As fitofisionomias do Pantanal Mato-grossense são o que há de mais destacado em sua biodiversidade. Elas são o produto da interação entre fatores bióticos (microrganismos, flora e fauna) e abióticos (clima, hidrologia, solos, elementos químicos). O fluxo hídrico dos rios do planalto, descarregando as suas águas na planície e causando períodos alternados de cheia e de vazante, resulta em uma sazonalidade hidrológica que influencia a produtividade de nichos alimentares e reprodutivos. O fluxo das águas traz consigo materiais orgânicos e inorgânicos que


enriquecem os micro-habitats, favorecendo a proliferação de microrganismos, plantas, invertebrados, peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos, possibilitando assim a formação das cadeias tróficas, que suportam, no topo, os grandes predadores (JUNK, 1993; VINSON e HAWKIN, 1998; WANTZEN e JUNK, 2000; ALHO JR., 2005; ALHO JR. e GONÇALVES, 2005). Existem dois fatores importantes para a compreensão da biodiversidade: a distribuição de espécies e a abundância. A distribuição de uma espécie diz respeito à amplitude geográfica na qual ela ocorre. A abundância está relacionada com o número de indivíduos de uma espécie em uma área dada; ela se traduz na densidade da população. Quando comparado com biomas como o Cerrado e a Mata Atlântica, o Pantanal apresenta uma biodiversidade menor e uma taxa de endemismo (espécies que são exclusivas de um bioma) bem pequena, tanto para a flora como para a fauna. Por outro lado, a produtividade (disponibilidade de requisitos para garantir espécies com populações densas de espécimes) do Pantanal é impressionante. A densidade ou abundância das populações das várias espécies, sobretudo no que diz respeito à herpetofauna e à fauna de aves e mamíferos, constitui-se em um espetáculo que pode ser visto com muito mais facilidade no Pantanal do que em qualquer outro bioma brasileiro (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; JUNK et al., 2006). O Pantanal Mato-grossense é, portanto, um ecossistema de alta produtividade. Ele combina habitats situados em terras altas não inundáveis, (planaltos), zonas de transição e planícies inundáveis. A sua produtividade ecológica é determinada por: (a) dinâmica ou pulso hidrológico do rio Paraguai e de seus afluentes; (b) propriedades físicas, químicas e microbiológicas do substrato, que refletem a natureza de sua inundação periódica; e (c) a presença de organismos, incluindo plantas e espécies de vertebrados – aves, anfíbios, répteis e mamíferos – adaptados ao regime recorrente de inundação (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005). O ciclo anual das fases de enchente, cheia, vazante e seca, aliado à tropicalidade e ao regime de chuvas, resulta nos seguintes padrões pertinentes para a formação da biodiversidade do Pantanal Mato-grossense: a) influencia a riqueza de espécies de plantas, a diversidade delas, e os padrões de dispersão de espécies; b) proporciona a adaptação das espécies a diferentes tipos de habitats recorrentemente inundados; c) favorece a diversidade de habitats e a heterogeneidade do ambiente (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005). Há estudos que discutem diversas facetas relacionadas com o papel do regime sazonal de enchente do Pantanal sobre a biodiversidade, particularmente o efeito da ciclagem de nutrientes: (a) sobre a sucessão sazonal de comunidades de macrófitas aquáticas (PRADO et al., 1994); (b) sobre as comunidades arbóreas (SCHESSL, 1997; CUNHA, 1998; CUNHA e JUNK, 2000); (c) sobre a estrutura e dinâmica de árvores jovens (ALMEIDA, 1998); (d) sobre a produção de frutos da palmeira Bactris glaucescens (FERREIRA, 2000); e (e) sobre a morfologia e as fases de habitats aquáticos e terrestres, os efeitos da sazonalidade, a limnologia e elementos químicos na água, e a produção primária (SILVA e ESTEVES, 1993, 1995; HECKMAN, 1996; HARDOIM; HECKMAN, 1996; HECKMAN, 1997). Plantas, microrganismos, fungos e a fauna de invertebrados formam a base ecológica sobre a qual repousa a fauna de vertebrados do Pantanal Mato-grossense. Os vertebrados são os componentes da biodiversidade que mais chamam a atenção de leigos e estudiosos no bioma, mas eles são uma função daquela base ecológica. Os estudos sobre microrganismos, fungos e invertebrados ainda são pontuais e as informações ainda são bastante fragmentadas. Isso permite uma visão apenas parcial da diversidade de espécies desses compartimentos. O fitoplancton e os zooplancton que habitam as águas pantaneiras ainda são muito pouco conhecidos. Há uma diversidade maior de fitoplancton nos lagos levemente salinos, especialmente de algas verdes e verde-azuis. Outro aspecto constatado é que as algas fitoplanctônicas são quase


ausentes durante as enchentes, reaparecendo em quantidades enormes durante a estação seca – nas lagoas quase secas, quando a temperatura ultrapassa os 40ºC, são comuns as “almofadas” vermelhas formadas por Euglinea sanguinea. A fauna que integra o zooplancton é formada, sobretudo, por rotíferos, cladóceros e copépodes (DOUROJEANNI, 2006; JUNK et al., 2006). As plantas flutuantes (macrófitas) proporcionam um nicho adequado para diversos tipos de invertebrados: oligoquetos, copépodes, ostracodes, cladóceros, vermes, nematoides, ácaros, tubelários, além de muitas formas imaturas de moluscos e insetos (ephemeridos, odonatos, trichopteros, dípteros, hemípteros e coleópteros). Os ambientes terrestres, desde a serrapilheira até o dossel das árvores das florestas,contêm os habitats de uma quantidade enorme de artrópodes, com destaque para ácaros, aranhas, formigas, cupins e besouros. Embora haja estudos que descrevem as respostas adaptativas desse tipo de fauna aos pulsos de inundação, eles ainda são localizados e insuficientes para determinar se há e quais são as principais especificidades da interação entre plantas e artrópodes no Pantanal em relação a outros biomas como o Cerrado e a Amazônia (DOUROJEANNI, 2006; JUNK et al., 2006). Dentre os invertebrados, os moluscos e crustáceos são bastante representativos da fauna aquática do Pantanal Mato-grossense, pois são abundantes, apresentam uma considerável diversidade de espécies e têm um papel importante na constituição da cadeia trófica, sobretudo como alimento de peixes, jacarés, aves e até mesmo de pequenos mamíferos. Os moluscos da classe dos bivalves são representados, principalmente, pelos gêneros Diplodion, Castalia, Iheringiella, Anodontides, Leila, Mycetopoda e Lamproscapha. Os moluscos da classe dos gastrópodes são, sobretudo, da família Ampullaridae, com gêneros como Pomacea, Pomella e Marisa. A família Rissoidae tem um gênero endêmico do Pantanal – Aquidauana. Dentre os crustáceos, destacam-se os caranguejos dos gêneros Trychodactylus, Sylviocarcinus, Dilocarcinus, Zilchopsis e Poppiana, e os camarões (pitus) dos gêneros Macrobrachium, Atya e Palaeomonetes (DOUROJEANNI, 2006). Os vertebrados são o grupo taxonômico mais conhecido e mais bem estudado do Pantanal Matogrossense. Os peixes são intensamente utilizados pelas populações humanas da região, seja para alimento ou comercialização, para lazer (pesca esportiva, que gera renda para as populações locais), ou mesmo como animais de estimação e decoração. Existe um fluxo de comércio de peixes ornamentais, muitas vezes ilegal, que também gera renda para as populações locais. Há aproximadamente 400 espécies de peixes na bacia do Alto Paraguai, das quais 263 ocorrem no Pantanal Mato-grossense. São 161 gêneros e 36 famílias, com o predomínio de três: Characiformes, Siluriformes e Cichlidae. Os peixes são um elemento biótico de importância fundamental para o funcionamento do ecossistema. Eles constituem a oferta de alimento em torno do qual – nos rios, baías e vazantes – se agregam várias espécies de vertebrados: peixes carnívoros, aves, répteis e mamíferos (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; JUNK et al., 2006). As espécies de peixes de maior importância para a pesca comercial e/ou esportiva são: pintado ou surubim (Pseudoplatystoma corrucans), cachara (Pseudoplatystoma fasciatum), jaú (Paulicea luetkeni), pacu (Piaractus mesopotamicus), dourado (Salminus maxillosus), piraputanga (Brycon microlepis), piavuçu (Leporinus leprocephalus) e jeripoca (Hemisorubim platyrhynchus). A tuvira (Gymnotus sp.) é muito utilizada como isca na pesca esportiva. Destacam-se também, entre as espécies encontradas no Pantanal Matogrossense, piranhas (gêneros Pygocentrus, Serrasalmus e Pygopristis), traíra (Hoplias malabaricus); o peixe pulmonado piramboia (Lepidosiren paradoxus), adaptado a sobreviver nas lagoas secas; lambaris (gêneros Astyonax, Hyphessobrycon, Moenkhausia, Cheirodon, Gastropelecus), pequenos peixes apreciados como ornamentais e para frituras; peixes anuais (Neofundulus parvipinnis, Plesiolebias glaucopterus, Pterolebias longipinnis, Pterolebias


phasianus e Trigonectes balzanii), cujos ovos resistem à estação seca para eclodir durante a cheia, e que são muito apreciados como ornamentais; e o mussum (Symbranchus vulgaris), peixe anguliforme que permanece enterrado na lama durante toda a estação seca (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006). Alho Jr. e Gonçalves (2005) identificam três fases distintas do ciclo de vida dos peixes, associadas ao regime das águas no Pantanal Mato-grossense: a) estação da cheia – período de chuva contínua, com inundação da planície, quando acontecem a “piracema” (cardumes de algumas espécies de peixes sobem os rios, no início da enchente, em busca de águas oxigenadas e abrigos para depositar as suas ovas) e a “rodada” (depois da piracema, os peixes migram dos leitos dos rios para as áreas inundadas – campos e baías – em busca de alimento para se recuperarem do esforço gasto na subida do rio e na reprodução. Como a reprodução ocorre no início da cheia, as larvas e alevinos, trazidos pelo fluxo das águas, também descem das partes altas dos rios para se alimentarem e se desenvolverem nas áreas de inundação); b) vazante – fim da estação da cheia, quando acontece a “lufada”. Os peixes voltam aos leitos principais dos rios por meio dos corixos e vazantes. Nesse período, muitos peixes são capturados por predadores, durante o retorno aos rios, ou quando ficam aprisionados nas baías e campos de inundação em fase de secagem; e c) estação seca – as espécies sedentárias, que não migram, estão adaptadas aos baixos níveis de oxigênio nas águas rasas e mornas, e algumas delas se enterram na lama e permanecem dormentes durante toda a estação seca. São um importante alimento para os predadores. A herpetofauna do Pantanal Mato-grossense tem ampla distribuição geográfica, com presença também no Bioma Cerrado. Portanto, não há casos de endemismo de anfíbios ou de répteis registrados no Bioma Pantanal. Embora a diversidade de espécies no Cerrado seja maior, a abundância de espécimes no Pantanal é superior. Das 80 espécies de anfíbios existentes no Cerrado, 41 ocorrem no Pantanal. Os répteis são 189 espécies no Cerrado, 113 das quais ocorrem no Pantanal. No que diz respeito à distribuição, 52% das espécies de répteis do Pantanal Mato-grossense são terrestres, 22% são arborícolas, 13% são aquáticas ou semiaquáticas, e 13% são fossoriais, semifossoriais ou criptozoicas. Quando consideramos os anfíbios, as porcentagens são mais ou menos as mesmas: 52% das espécies são terrestres (anuros, leptodactilídeos, todos os bufonídeos, e um único dendrobatídeo), 26% são arbóreas (quase todas as espécies de hilídeos), 12% são fossoriais, e 10% são aquáticas ou semiaquáticas (anuros) (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; JUNK et al., 2006; ALHO JR., 2008). As espécies de anfíbios mais comuns no Pantanal Mato-grossense são sapo cururu (Bufo paracnemis), rã-do-chaco (Leptodactylus chaquensis), rãs rapa-cuia (Scinax nasicus e Scinax acuminatus), pererecas-de-banheiro (Hyla fuscovaria e Hyla acuminata), rã-quarenta-e-três (Hyla raniceps), rã-pimenta (Leptodactylus labyrinthicus) e rã-manteiga (Leptodactylus ocellatus). O canto dos anfíbios é uma expressão de territorialidade e uma forma de comunicação dos machos para atrair as fêmeas. É noturno e executado individualmente. Algumas poucas espécies podem vocalizar durante o dia, como a pequenina Lysapsus limellus, a rã-chorona (Physalemus albonotus) e a rãparadoxo (Pseudis paradoxa), assim chamada porque os seus girinos são bem maiores que as rãs adultas. Outras espécies características do Pantanal são: Hyla punctata, Bufo typhonius, Chiasmocleis mehelyi, Leptodactylus elenae, Physalaemuscuvieri, Phrynohyas venulosa, Pseudopaludicola falcipes, Elaschistoclei ovale, Leptodactylus fuscus, Leptodactylus podicipinus e Bufo granulosus. A pererecafolha (Phyllomedusa hypochondrialis) chama a atenção por sua coloração forte, uma forma de alerta de sua toxicidade para os predadores (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005).


Entre os répteis do Pantanal Mato-grossense, o jacaré-do-pantanal (Caiman crocodilus yacare) impressiona por sua ubiquidade, mas também ocorrem jacaré-coroa ou jacaré-paguá (Paleosuchus palpebrosus) e jacaré-do-papo-amarelo (Caiman latirostris). Durante a estação das cheias, os jacarés se dispersam por todo o ambiente alagado, para se alimentarem e se reproduzirem, enquanto que na estação seca eles se concentram nas poças e lagoas remanescentes. A sua alimentação é variada, incluindo aves, peixes moluscos, crustáceos e até insetos. Há cerca de 20 espécies de lagartos no Pantanal Mato-grossense, sendo os maiores e mais notáveis a iguana ou sinimbu (Iguana iguana) e os teiús (Tupinambis spp.). Outras espécies de lagartos comuns são calangos-verdes (Ameiva ameivae Cnemidophorus ocellifer), dracena ou bírbola (Dracaena paraguayensis), Mabuya guaporicola, Kentropyx spp., Hemidactylus mabouia, Phyllopezus spp. ePolychus spp. Ocorrem os quelônios cágado-cabeçudo (Acanthochelys macrocephala), espécie aquática, e jabutis (Geochelone carbonaria e Geochelone denticulata), espécies terrestres. A serpente que mais chama a atenção no Pantanal Mato-grossense é a sucuri-amarela (Eunectes notaeus), sobretudo pelo seu tamanho e pela sua força – ela pode atingir até 7 metros de comprimento; não é venenosa, matando as suas presas por constrição. Outras espécies de serpentes não venenosas e que acompanham a linha da água durante as estações de cheia e seca (como a sucuri-amarela) registradas no bioma são jiboia (Boa constrictor), jaracuçu-piau (Hydrodynastes gigas), Liophis poecilogyrus, Liophis typhlus, Helicops leopardinus, Leptodeira annulata, Lystrophis mattogrossensis e Thamnodynastes cf. strigilis. Em geral, se alimentam de anfíbios. Apenas quatro espécies de serpentes que ocorrem no Pantanal são peçonhentas: jararaca-boca-de-sapo (Bothrops moojeni), boipeba (Bothrops neuwiedi), cascavel (Crotalus durissus) e coral (Micrurus tricolor). Elas preferem ambientes secos e mais elevados (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006; RAN – Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Répteis e Anfíbios, http://www4.icmbio.gov.br/ran/index.php). As aves são o grupo mais bem estudado do Pantanal Mato-grossense. 463 espécies ocorrem na planície, mas chegam a 665 quando são consideradas as terras altas do entorno. É uma diversidade considerável, embora não haja endemismos. As espécies de aves do Pantanal ocorrem também no Cerrado, que tem uma diversidade ainda maior, com 837 espécies registradas. A grande peculiaridade do Pantanal é a quantidade de espécies de aves aquáticas que forrageiam e se reproduzem em colônias concentradas, os ninhais, característicos da região. Outro aspecto que tem chamado a atenção é o fato de que o Pantanal está na rota de alguns grupos de aves migratórias. Pela diversidade e abundância de aves, o Pantanal Mato-grossense tem se constituído em ponto privilegiado para a sua observação, atraindo birdwatchers de várias partes do mundo (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006; JUNK et al., 2006;ALHO JR., 2008; ANTAS, 2009). Entre as abundantes espécies de aves aquáticas presentes no Pantanal, destacam-se biguá (Phalacrocorax brasilianus), biguatinga (Anhinga anhinga), garças e socós (dos gêneros Egretta, Ardea, Florida, Bubulcus, Syrigma, Nycticorax, Pitherodius, Cochlearius, Tigrisoma e Butorides), tabuiaiá (Ciconia maguari), colhereiro (Platalea ajaja), cabeça-seca (Mycteria americana) e jaburu ou tuiuiú (Jabiru mycteria), ave-símbolo do Pantanal Mato-grossense. Outras espécies aquáticas são tachã ou anhuma (Chauna torquata), saracura (Aramides cajanea), cafezinho ou jaçanã (Jacana jacana), pernilongo (Himantopus himantopus), carão (Aramus guarauna), curicacas (Harpiprion caerulescens, Theristicus caudatus, Mesembrinibis cayanensis e Phimosus infuscatus), patos (Cairina moschata e Neochen jubata), marrecas (Dendrocygna bicolor, Dendrocygna viduata, Dendrocygna autumnalis e Amazonetta brasiliensis), talha-mar (Rhynchops niger), trinta-reis ou gaivotinha (Sterna superciliaris), gaivota (Phaetusa simplex), batuirinha (Charadrius collaris), manuelzinho-da-croa ou


mexeriqueira (Hoploxypterus cayanus) e várias espécies de maçarico (Tringa solitaria, Tringa flavipes, Actitis macularia, Calidris fuscicollis e Micropalama himantopus). O martim-pescador está presente no Pantanal, com todas as cinco espécies brasileiras (Ceryle torquata, Chloroceryle amazona, Chloroceryle americana, Chloroceryle aenea e Chloroceryle inda). Existem também algumas aves de rapina com hábitos aquáticos, predadoras de anfíbios, peixes, crustáceos e moluscos, como gavião-caramujeiro (Rosthramus sociabilis), gavião-belo (Busarellus nigricollis), gavião-preto (Butteogallus urubitinga) e águia pescadora (Pandion haliaetus) (DOUROJEANNI, 2006; SIGRIST, 2007; ANTAS, 2009). As aves terrestres do Pantanal Mato-grossense são, basicamente, as mesmas que habitam o Cerrado. Emas (Rhea americana) e seriemas (Cariama cristata) são comuns. Existem muitas espécies de gaviões (como gavião-carrapateiro, Milvago chimachima, e gavião-mateiro, Geranospiza caerulescens), falcões (como Falco rufigularis, Falco femoralis e Falco sparverius), o caracará ou carcará (Caracaraplancus), corujas (como coruja-buraqueira, Athene cunicularia) e urubus (urubucomum, Coragyps atratus, urubu-rei, Sarcorhamphus papa, urubu-de-cabeça-vermelha, Cathartes aura, e urubu-de-cabeça-amarela, Cathartes burrovianus). São frequentes, também, aracuã ou aranquã (Ortalis canicollis), mutum (Crax fasciolata) e jacutinga (Pipile pipile). Chamam a atenção tucanos (tucanuçu, Ranphastos toco, e araçari, Pteroglossus castanotis), as variadas espécies de papagaios e periquitos (como Amazona aestiva, Amazona xanthops, Amazona amazonica, Ara nobilis, Ara auricollis, Aratinga aurea, Aratinga leucophthalmus, Nandayus nenday, Brotogeris versicolurus, Pionus maxilimiani, Myiopsitta monachus e Forpus crassirostris) e, sobretudo, as araras (arara azul, Anodorhynchus hyacinthinus, arara-canindé ou arara-amarela, Ara ararauna, e arara-vermelha, Ara chloroptera). Há ainda muitas espécies das famílias Tinamidae (nhambus e perdizes), Columbidae (pombas), Psidae (pica-paus), Trochilidae (beija-flores), além das inúmeras espécies da ordem dos passeriformes (DOUROJEANNI, 2006; SIGRIST, 2007; ANTAS, 2009). Entre as aves ameaçadas (presentes na Lista de Espécies Ameaçadas de Extinção do Brasil) que ocorrem no Pantanal Mato-grossense estão codorna (Nothura minor), gavião-pato (Spizastur melanoleucus), águia-cinzenta (Harpyhaliaetus coronatus), gavião-real (Harpia harpyja), jacu-goela (Penelope ochrogaster), arara-azul (Anodorhynchus hyacinthinus), rolinha-do-planalto (Columbina cyanopis), galito (Alectrurus tricolor), maria-do-campo (Culicivora caudacuta), tico-tico-do-campo (Coryphaspiza melanotis), caboclinho (Sporophila cinnamomea) e bicudo (Oryzoborus maximiliani) (SIGRIST, 2007; ANTAS, 2009). Os ninhais são exemplos de comportamentos de forrageamento e reprodução sincronizados com a sazonalidade do ambiente do Pantanal Mato-grossense. Diferentes espécies de aves se agregam nas copas das árvores para fazer os seus ninhos e aproveitar os recursos disponíveis durante a estação seca. Os ninhais formados por cabeças-secas (Mycteria americana), garças brancas pequenas (Egretta thula), garças-brancas (Ardea alba) e colhereiros (Platalea ajaja) são conhecidos como ninhais brancos. Os ninhais formados por biguás (Phalacrocorax brasilianus), biguatingas (Anhinga anhinga) e garças-mouras ou maguaris (Ardea cocoi) são conhecidos como ninhais pretos, o que demonstra uma certa segregação entre essas espécies (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006). Segundo Alho Jr. e Gonçalves (2005), há duas vantagens adaptativas para o comportamento comunal apresentado nas colônias que formam os ninhais: a) a sincronia do evento reprodutivo, quando várias espécies se beneficiam da oferta sazonal de alimentos (invertebrados e peixes confinados nas baías, vazantes e corixos durante a seca) e de nichos reprodutivos (árvores); e b) a colônia é uma estratégia segura e eficiente para a reprodução, pois permite uma vigilância maior


sobre os predadores e mesmo uma oferta de presas capaz de satisfazê-los, com folga suficiente para garantir o sucesso reprodutivo e a sobrevivência das populações dos ninhais. Assim, as colônias de aves garantem oferta de alimentos para vários predadores (aves de rapina, jacarés, sucuris, lobinhos, mãos-peladas, quatis), que capturam peixes, artrópodes, moluscos e anfíbios nas águas rasas, e atacam os ninhos ou ficam à espera dos filhotes de aves que caem deles. Os tuiuiús (Jabiru mycteria) também exibem comportamento reprodutivo sincronizado com o regime sazonal do Pantanal. O peixe muçum (Symbranchus marmoratus), uma de suas presas preferidas, fica dormente e encapsulado na lama durante a estação seca, quando o jaburu consegue capturá-lo na água rasa, usando o seu bico especializado. O mesmo ocorre com a traíra (Hoplias malabaricus), outra presa apanhada com a mesma estratégia. O nascimento dos filhotes de tuiuiú coincide com essa época de maior oferta de alimento (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006). O Pantanal recebe também grupos de aves que fazem migração transcontinental. Há basicamente dois grandes grupos. O primeiro é o das espécies que se reproduzem no sul do continente, durante a primavera e o verão austrais, e que depois migram para o norte até o Pantanal ou passam por ele, seguindo ainda mais ao norte. Essas aves variam desde espécies associadas aos ambientes aquáticos até aquelas adaptadas a sistemas terrestres sem ligação com o regime de inundação do Pantanal. Uma das mais emblemáticas é o são-joãozinho (Pyrocephalus rubinus), cujo nome reflete o fato de ele chegar ao Pantanal em junho, quando acontecem as festas de São João. O segundo grande grupo de aves migratórias se reproduz na América do Norte, durante a primavera boreal. No final do verão e início do outono no Hemisfério Norte, elas migram para a América do Sul, chegando ou passando pelo Pantanal, a partir de agosto/setembro. São espécies como as andorinhas Progne subis, Hirundo rustica e Hirundo pyrrhonota, o maçarico Pluvialis dominica, o falcão-peregrino (Falco peregrinnus) e a triste-pia (Dolichonyx oryzivorus). Existem três rotas migratórias que atravessam o Pantanal Matogrossense: Brasil Central, Rio Negro e Cisandina (ANTAS, 1983; ANTAS et al., 1986; ANTAS, 1994; ALHO JR. e GONÇALVES, 2005). Os mamíferos são outra classe de animais que impressiona pela sua abundância no Pantanal Matogrossense, mas não ocorrem endemismos. 132 espécies de mamíferos são registrados no Pantanal, enquanto o Cerrado, conta com 195. A fauna de mamíferos do Pantanal e do Cerrado depende fortemente da complexidade dos ambientes arbóreos e florestados, o que confirma a importância do mosaico de fitofisionomias desses biomas e da complementaridade entre ambientes secos e úmidos. Embora a quantidade de espécies de mamíferos no Pantanal seja menor do que a dos biomas Cerrado, Amazônia ou Mata Atlântica, esses animais chamam a atenção devido à densidade das suas populações no Pantanal. É nele que muitos mamíferos “carismáticos” podem ser avistados com mais facilidade. Diferentes espécies de mamíferos do Pantanal, como capivara (Hydrochaerishydrochaeris), anta (Tapirus terrestris), cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus), lobinho (Cerdocyon thous) e onça pintada (Panthera onca) respondem ao regime de expansão e encolhimento dos habitats relacionado com a sazonalidade de enchentes e vazantes. A maior frequência na visualização de mamíferos ocorre na estação de seca. Capivaras e cervos são facilmente observados durante a seca, forrageando nos campos inundáveis (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006; JUNK et al., 2006; MAMEDE e ALHO JR., 2006; ALHO JR., 2008). Os mamíferos do Pantanal Mato-grossense pertencem a diversas ordens. Da ordem Didelphimorphia (Marsupialia), há várias espécies de cuícas e gambás, como Chironectes minimus, Lutreolina crassicaudata, Gracilinanus agilis, Monodelphis domestica, Monodelphis kunsi,


Marmosamurina, Marmosopsocellatus, Metachirus nudicaudatus, Philander opossum, Cryptonanus chacoensis, caluromys lanatus, caluromys philander,Thylamys macrurus, Didelphis albiventris e Didelphis aurita. Da ordem Edentata, as espécies são tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), tamanduá-mirim (Tamandua tetradactyla), tatu-de-rabo-mole-pequeno (Cabassous unicinctus), tatude-rabo-mole-grande (Cabassous tatouay), tatu-galinha (Dasypus novemcinctus), tatu-peba (Euphractus sexcinctus), tatu-canastra (Priodontes maximus) e tatu-bola (Tolypeutes matacus). Da ordem Primates, ocorrem no Pantanal bugio ou guariba (Alouatta caraya), macaco-prego (Cebus cay), sagui-marron (mico melanurus), boca-d’água (Callicebus pallescens) e macaco-da-noite (Aotus azarae). Da ordem Carnivora, lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), raposa-do-campo ou raposinha (Lycalopex vetulus), cachorro-do-mato, graxaim ou lobinho (Cerdocyon thous), cachorro-do-matovinagre (Speothos venaticus), quati (Nasua nasua), mão-pelada ou guaxinim (Procyon cancrivorus), jaritataca ou cangambá (Conepatus semistriatus), irara (Eira barbara), furão (Galictis cuja), lontra (Lontra longicaudis), ariranha (Pteronura brasiliensis), jupará (Potos flavus), gato palheiro (Leopardus colocolo), gato-do-mato-pequeno (Leopardus tigrinus), gato-maracajá (Leopardus wiedii), jaguatirica (Leopardus pardalis), gato mourisco ou jaguarundi (Puma yagouaroundi), onçaparda (Puma concolor) e onça-pintada (Panthera onca). Da ordem Perissodactyla, ocorre a anta (Tapirus terrestres). Da ordem Artiodactyla, queixada (Tayassu pecari), cateto ou caititu (Tayassu tajacu), cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus), veado-mateiro (Mazama americana), veadocatingueiro (Mazama gouazoubira) e veado-campeiro (Ozotocerus bezoarticus). Da ordem Rodentia, temos capivara (Hydrochoerus hydrochaeris), cutia (Dasyprocta fuliginosa), paca (Cuniculus paca), ouriço-caixeiro ou coandu (Coendou prehensilis) e vários pequenos roedores dos gêneros Kunsia, Calomys, Holochilus, Necromys, Nectomys, Oecomys, Oligoryzomys, Clyomys, Oxymycterus, Cerradomys, Euryoryzomys, Mus, Cacia, Ctenomys e Thrichomys. Da ordem Lagomorpha há tapiti ou coelho do mato (Sylvilagus brasiliensis). Da ordem Chiroptera, há muitas espécies de morcegos de vários gêneros, como Peropteryx, Desmodus, Anoura, Glossophaga, Chrotopterus, Glyphonycteris, Lophostoma, Micronycteris, Mimon, Phyllostomus, Tonatia, Carollia, Artibeus, Chiroderma, Platyrrhinus, Pygoderma, Sturnira, Uroderma, Vampyressa, Pteronotus, Noctilio, Thyroptera, Cynomops, Molossus, Nyctinomops, Lasiurus e Myotis (MAMEDE e ALHO JR., 2008; ALHO JR., 2008; REIS et al., 2010). Alguns desses mamíferos integram a lista oficial de espécies da fauna brasileira ameaçadas de extinção. Chamam a atenção nesse subgrupo, até por serem espécies carismáticas, tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), tatu-canastra (Priodontes maximus), lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), cachorro-do-mato-vinagre (Speothos venaticus), ariranha (Pteronura brasiliensis), gato-palheiro (Leopardus colocolo), gato-do-mato-pequeno (Leopardus tigrinus), gato-maracajá (Leopardus wiedii), jaguatirica (Leopardus pardalis), onça-parda (Puma concolor), onça-pintada (Panthera onca), cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus). No Pantanal Mato-grossense essas espécies ainda contam com populações bem significativas. Elas têm, também, um papel importante na estruturação e na manutenção do equilíbrio das cadeias tróficas e são boas indicadoras do estado em que se encontram os ecossistemas (MMA, 2008). A biodiversidade do Pantanal Mato-grossense (número de espécies e abundância de espécimes), a abundância de espécies raras e/ou ameaçadas nele existentes e o seu caráter único como extenso ecossistema de planície inundável fazem dele um patrimônio natural que merece ser protegido e conservado para as gerações presentes e futuras. Embora o Pantanal ainda tenha muitos espaços bem conservados, a área protegida por unidades de conservação da natureza ainda é mínima. A manutenção e a perpetuação dos ecossistemas e das espécies pantaneiras demandam uma atenção


maior, com a criação de mais áreas protegidas por unidades de conservação e a promoção de estratégias que garantam a conectividade entre as diversas fitofisionomias do Pantanal (a diversidade de espécies do Pantanal é intimamente ligada à diversidade de habitats), bem como entre as áreas do núcleo do bioma com os biomas adjacentes. Com esse intuito, corredores ecológicos devem ser implementados e a sua estrutura e função devem ser monitoradas ao longo do tempo. Esta é a condição básica para manter o fluxo genético e a sobrevivência de grandes populações de “espécies guarda-chuva”, como os predadores do topo da cadeia alimentar (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; DOUROJEANNI, 2006; JUNK et al., 2006; ALHO JR., 2008). Como boa parte dos problemas ambientais da planície pantaneira se origina no planalto, a sua proteção deve fazer parte central de um modelo de gestão integrada da bacia do Alto Paraguai. Devido à importância do pulso de inundação para as estruturas e funções dos ecossistemas e para a manutenção da biodiversidade da planície inundada projetos de desenvolvimento que modificam o regime hidrológico natural em larga escala, tais como reservatórios, diques e canais, devem ser evitados. Como veremos adiante, o Pantanal tem sido impactado por atividades produtivas diversas, como pecuária, agricultura, pesca e mineração. A urbanização das áreas ao redor da planície e o estabelecimento de fazendas (para a criação de gado e para cultivos de soja e cana-de-açúcar) nas terras altas no entorno do Pantanal Mato-grossense têm levado à destruição da vegetação natural e ao aumento da entrada de sedimentos e poluentes (agrotóxicos, mercúrio, resíduos industriais e esgoto doméstico) nos rios que inundam a planície pantaneira. Segundo Alho Jr. (2008), 17% do Pantanal (principalmente manchas de Cerrado ou “capões de cerrado”) e 63% da cobertura vegetal natural dos planaltos circundantes (savana e floresta semidecídua) já foram desmatados. A taxa de degradação da cobertura vegetal natural dos cerrados vizinhos tem sido, em média, de 2,3% por ano. Assim, se o atual ritmo de degradação continuar, os habitats naturais do Pantanal e dos cerrados adjacentes serão destruídos em cerca de 50 anos. Aziz Ab’Sáber (2006) chama a atenção para o fato de que: [...] o Pantanal Mato-grossense – pela sua posição de área situada entre pelo menos três grandes domínios morfoclimáticos e fitogeográficos sul-americanos – funciona como uma intensa depressão-aluvial-tampão e, ao mesmo tempo, como receptáculo de componentes bióticos provenientes das áreas circunvizinhas. Nesse sentido, como acontece com todas as faixas de transição e contato, o Pantanal Mato-grossense se comporta, em termos fitogeográficos, como um delicado espaço de tensão ecológica. Em termos zoogeográficos, devido à sua extraordinária diversificação de habitats e potencialidades de cadeias tróficas, ele funciona como centro de concentração competitiva, numa espécie de réplica às áreas de difusão. Fato que redunda em uma riqueza biótica ímpar, dentro e fora do País. Uma riqueza que, de resto, deve ser preservada a qualquer custo, independentemente da existência de governantes e tecnocratas insensíveis e cooptantes com a predação (p.58).

O conhecimento científico e a capacidade de apreciação estética da biodiversidade e do funcionamento dos ecossistemas do Pantanal Mato-grossense são componentes necessários para a tomada de decisões que limitem as atividades humanas danosas e garantam a perpetuação da qualidade do ambiente natural. A conservação das espécies e ecossistemas pantaneiros como patrimônio natural a ser usufruído pelas gerações do presente e a ser legado para as gerações futuras é uma responsabilidade que cabe à sociedade brasileira, que deve ser cobrada de todos e de cada um. É um patrimônio que não pode ser reconstruído pelo artifício humano, pois que é o resultado de milhões de anos de processo evolutivo. Portanto, precisa ser preservado. O capítulo seguinte trata da trajetória da ocupação humana no Pantanal Mato-grossense. Mostra as motivações que levaram os humanos ao Pantanal, as disposições a partir das quais recursos naturais foram explorados e como se chegou às atuais condições de ocupação do território. Discute também quais são as principais ameaças antrópicas ao Bioma Pantanal.


Capítulo 2

Ocupação do Pantanal Mato-grossense

2.1 – O Pantanal e a dinâmica de fronteiras A ocupação do Pantanal Mato-grossense pelos colonizadores europeus, tal como muitas outras áreas do atual território brasileiro, pode ser interpretada a partir do conceito de fronteira. Fronteira é usada aqui não como equivalente à palavra inglesa border, limite geográfico entre países ou territórios políticos, mas como equivalente a frontier, palavra igualmente inglesa. Frontier significa uma extensão grande de “terra livre” – ou considerada livre – que passa por um processo intensivo de ocupação ou colonização por pessoas oriundas de outras áreas, próximas ou longínquas (TURNER, 1976; HENESSY, 1978). Os conflitos sociais em tais áreas tendem a ser violentos, por causa da fragilidade da lei e das instituições. A fronteira é um ponto de convergência de muitos indivíduos que não se conhecem uns aos outros, que se encontraram recentemente em um lugar para eles novo, que vêm de diversas localidades e que pertencem a grupos sociais distintos. As normas de convivência social são “soltas” e a coesão social é fraca. Além disso, a fronteira é um espaço para o qual os recém-chegados são atraídos tipicamente por expectativas fortes de apropriação de recursos naturais, vistos por eles como bens sem donos, prontamente disponíveis, e capazes de proporcionar enriquecimento rápido. Ainda que populações locais previamente residentes possam apoiar esse processo, e por vezes até se beneficiar dele, em geral elas são sobrepujadas ou deslocadas pelos forasteiros. A fronteira não é, portanto, apenas um espaço de exploração de recursos naturais, ela é um terreno fértil para manifestações de anomia – na forma de assassinatos, roubos, violência organizada, trabalho escravo – e, em especial, para a ocupação desordenada da terra e a apropriação tumultuada dos recursos naturais conexos à terra (TURNER, 1976; HENESSY, 1978; HALLER et al., 2000). A colonização do território brasileiro como um todo obedeceu a uma dinâmica definida por vários pulsos de avanço da fronteira, alimentados por diferentes ciclos de extração e produção de bens primários. Esses ciclos foram, em geral, fracamente relacionados uns com os outros, ou se passaram sem que houvesse interligações, especialmente quando ocorriam em lugares distintos. Eles não foram simultâneos no tempo nem espacialmente concentrados. Foram movidos pela exploração de diferentes recursos: captura de populações indígenas para a escravização; extração de produtos da flora e da fauna silvestre; cultivo de cana-de-açúcar, algodão e café; criação de gado; mineração de ouro e pedras preciosas, entre vários outros exemplos (DEAN, 1977; DEAN, 1989; STEIN, 1986; FURTADO, 2000; PRADO JR., 2004; HEMMING, 2008). Esses pulsos se manifestaram quase sempre por “saltos” sobre produtos ou áreas específicos, em geral distantes entre si, e não por uma ocupação sistemática e ordenada de faixas do território próximas entre si. Ainda assim, eles contribuíram para expandir e eventualmente dar forma ao território brasileiro atual. Depois desses repetidos pulsos, que a literatura e a linguagem popular inglesa chamam de booms (“bolhas”), relativamente curtos, muitos espaços do território foram abandonados pelos colonizadores e esquecidos pelos governos centrais. Isso deu margem para a


criação das hollowfrontiers –“fronteiras ocas”. Essas fronteiras deixaram entre si extensas áreas praticamente isentas de ocupação, depois que os recursos naturais foram explorados e exauridos (HENNESSY, 1978). McCreery (2006), ao discutir a ocupação da província de Goiás, por exemplo, observou que: Se a literatura sobre fronteiras parece sugerir que a fronteira “ideal” é uma linha claramente móvel atrás da qual ocorrem uma ocupação ordenada e a institucionalização do poder do Estado, e se a fronteira do café em São Paulo foi, em contraste, “oca,” o Goiás do século XIX talvez possa ser mais bem entendido como uma fronteira “queijo suíço”, ou uma miscelânea de fronteiras. As fronteiras cercavam e isolavam cada uma das localidades ocupadas e só permitiam contatos tênues ou esporádicos entre elas. Os habitantes de cada vila, fazenda e assentamento viviam por conta própria no “sertão”, um “deserto” real ou imaginado marcado por sede e fome, por tempestades violentas e rios caudalosos, por animais selvagens e “bugres”. A geologia do ouro dispersou a população original sem atentar para as possibilidades da agricultura e dos transportes. As baixas densidades populacionais, a qualidade variável dos solos, e as enormes extensões de terras reivindicadas pelos fazendeiros asseguravam que os vizinhos não se enxergassem uns aos outros. Para os colonos luso-brasileiros e os seus escravos africanos ou nascidos no Brasil, o “outro” do sertão não ficava atrás de uma linha distante, mas, ao contrário, esse “outro” os cercava e confrontava diariamente, fazendo com que tivessem consciência de sua situação desconfortável e precária1 (p. 17).

Seja “oca” ou “queijo suíço”, a fronteira no Brasil e na América Latina em geral diferia da fronteira nos Estados Unidos (EUA). Nos EUA, a fronteira avançou em grande parte de maneira mais linear, com anexação de terras vizinhas a terras ocupadas anteriormente e estabilizadas. Apesar de ocorrerem os tumultos e as efervescências típicos de áreas de fronteira, houve certa ordem na ocupação das “terras novas”. Isso permitia deixar para trás toda uma estrutura administrativa, meios de comunicação e transporte, escolas e atividades produtivas consolidadas, e não “bolhas” esvaziadas. A diferença se manifesta também em dois fatos: (i) nos EUA, a ocupação da fronteira foi precedida de inventários relativamente detalhados das terras públicas eventualmente transferidas a particulares; e (ii) foi acompanhada por uma política amplamente democrática de acesso à terra, tanto em termos da “qualidade” dos beneficiários (de diversas nacionalidades, religiões e posições sociais), da quantidade desses beneficiários e dos módulos relativamente pequenos de terras distribuídos (alguns textos que detalham as particularidades do fenômeno da fronteira dos EUA são WHITE, 1991; HINE & FARGHER, 2007; OPIE, 1998; SHEROW, 1998). No Brasil, em contraste, as terras públicas foram distribuídas em grande parte entre os integrantes de um círculo muito restrito de pessoas – portugueses católicos e bem relacionados com a Corte. Além disso, os beneficiários eram de inteira confiança do rei de Portugal ou dos governos centrais do Brasil nomeados pelo rei. Adicionalmente, o padrão predominante foi o da formação de grandes propriedades, cujos recursos eram tipicamente desconhecidos e quase nunca inventariados previamente (DRUMMOND, 1989; DEAN, 1996; LEONARDI, 1996). Existe um importante aspecto comum, observado por Webb (1979), sobre a “grande fronteira” criada pela expansão europeia para as “novas” terras do continente americano. Trata-se do fato de que os colonizadores de todas as metrópoles europeias pressupunham que os territórios a serem ocupados eram ricos, e que essas riquezas “não tinham dono” e estavam disponíveis para a apropriação. Assim, a fronteira era encarada como “uma vasta área de riquezas sem proprietários”.

2.2 – Fronteiras pantaneiras – ondas e refluxos pré-históricos e históricos Foi essa a perspectiva que animou os colonizadores europeus que se aventuraram na imensa planície inundável do Pantanal, a partir do século XVI. Ela já era habitada milenarmente por populações indígenas (essa ocupação indígena se intensificara pelo menos desde cinco mil anos


atrás). No entanto, o Pantanal foi atribuído de maneira arbitrária pelo Tratado de Tordesilhas (1494) ao império colonial da Coroa Espanhola. As terras pantaneiras hospedaram diversos povos indígenas, como os Xaray, os Guarani, os Guaxarapo, os Guaná (Terena), os Bororo, os Caiapó, os Guató, os Payaguá e os Guaikurú (Kadiweu). Os primeiros exploradores espanhóis a entrarem na região, no século XVI, a chamaram Xarayes e Laguna de los Xarayes, em razão do contato inicial amistoso com os índios Xaray e da impressão equivocada de que a imensidão das águas pantaneiras constituía um grande lago. Os interesses dos aventureiros espanhóis se concentravam, para além da ocupação das terras e do transporte de gêneros coloniais de abastecimento, na descoberta e na exploração de riquezas minerais da bacia do rio da Prata e na utilização da rede fluvial para escoamento das riquezas das minas andinas (HOLANDA, 1986; CORRÊA, 1999; LEONARDI, 2007; FERNANDES, 2009; COSTA, 2003; ESSELIN, 2006; SILVA, 2008; DOUROJEANNI, 2006). Costa (2003) chama a atenção para o fato de que as populações indígenas que habitavam o Pantanal Mato-grossense viviam em uma complexa simbiose humanos-água. A sua vida seguia os ritmos alternados dos regimes de seca e cheia. Assim: Adaptando-se a estas crescidas de águas, quando da chegada dos conquistadores, dividiam-se pela imensa planície inundável uma centena de povos indígenas. Longe de ser o bom e romântico selvagem apregoado por Jean-Jacques Rousseau, estes povos de língua e costumes diferenciados [...] mantinham rivalidades e competitividades recíprocas, procurando definir domínio de territórios. Alguns ainda traziam rasgos totalmente paleolíticos, locomovendo-se a pé ou, preferencialmente, em canoas, numa busca constante de alimentos; outros, já neolíticos, faziam moradas bem mais estáveis, nas proximidades das quais, além de caçar e pescar, plantavam e colhiam fartamente (COSTA, 2003, p. 64).

No período colonial, em que espanhóis e portugueses disputaram as terras pantaneiras, destacaramse os contatos com os Xaray, os Guaikurú e os Payaguá. Os Xaray eram agricultores neolíticos e, pelo menos inicialmente, travaram relações amistosas com os colonizadores espanhóis. Eles habitavam ambas as margens do rio Paraguai, desde a desembocadura do rio Taquari até a do Jauru. As suas aldeias eram densamente povoadas, compostas de dezenas de casas arredondadas, construídas de palha muito bem trançada. Mantinham uma espécie de estrutura federalista de organização, para proteger as suas aldeias e plantações dos povos nômades guerreiros. Na estação das secas, cultivavam milho, batata, mandioca e algodão, armazenando o excedente para a estação das cheias. Criavam patos, para consumo e para combate aos gafanhotos que atacavam as plantações. Eram exímios canoeiros, caçavam e pescavam. As mulheres eram excelentes tecelãs, confeccionando mantas de algodão coloridas e ornadas com motivos faunísticos. Até fins do século XVI, os Xaray tinham uma população numerosa, em torno de oito mil pessoas, mas, a partir das tentativas dos espanhóis de utilizá-los como mão de obra, por meio de repartimientos e encomiendas, na cidade de Santa Cruz de La Sierra, fundada em 1557, eles se dispersaram e não houve mais notícias sobre eles (COSTA, 2003). Os Guaikurú ou Mbaiá-Guaikurú eram povos nômades e guerreiros, caçadores-coletores de cultura paleolítica, que atacaram feroz e persistentemente, desde os primeiros contatos, os colonizadores espanhóis e portugueses. O conquistador espanhol Alvár Nuñes Cabeza de Vaca retratou-os como um povo chaquenho, inimigo dos Guarani, valentes, altos, ligeiros e fortes. Foram invencíveis até 1542, quando foram derrotados pelo próprio Cabeza de Vaca. Negociaram a paz, mas, atentos às tecnologias de guerra dos espanhóis, logo aprenderam a usar o ferro e a domar e montar cavalos. Tornaram-se um flagelo para espanhóis e portugueses que se aventuravam nos territórios do PrataParaguai. Ficaram conhecidos pelos luso-brasileiros como o “gentio cavaleiro”, pela habilidade exibida ao guerrearem a cavalo. Em meados do século XVII, os Guaikurú migraram para as terras da bacia do Alto Paraguai, na região pantaneira do Itatim, nos campos banhados pelo rio Miranda –


próximo da atual Aquidauana. Eles destruíram, na década de 1640, Santiago de Xerez, cidade fundada pelos espanhóis, e dominaram esse território. Venceram e depois se aliaram aos índios Guaná (atuais Terena) ou Guaná-Txané-Arawak, um povo de agricultores e de índole bem mais pacífica. Os Guaikurú se aliaram, também, aos Payaguá. No século XIX, o Império brasileiro adotou uma política de extermínio, ou “guerra justa”, em relação aos Guaikurú. Os índios denominados Kadiweu são hoje o que resta deles no Mato Grosso do Sul. Eles dividem uma terra indígena localizada no município de Porto Murtinho, de 538.536 hectares, com os índios Terena e Chamacoco (COSTA, 2003; HOLANDA, 1986; HOLANDA, 1990; ISA, 2000). Os Payaguá eram, como os Guaikurú, guerreiros e nômades, caçadores-coletores paleolíticos. Porém, ao invés de pedestres e mais tarde equestres, os Payaguá foram sempre canoeiros. O seu ambiente preferencial era aquático – chamavam-se a si próprios de gente das águas. Da família linguística Mbaiá e igualmente provenientes do Chaco, eram aparentados dos Guaikurú. Ficaram conhecidos como índios de corso, pois saqueavam, usando as suas ágeis canoas de guerra, as embarcações de espanhóis e portugueses que navegavam as águas do rio Paraguai, durante os séculos XVI, XVII e XVIII. As guerras movidas pelos colonizadores e as políticas para a sua pacificação levaram este povo, também, ao quase extermínio. No início do século XIX, os Payaguá viviam marginalmente nos arredores da cidade de Assunção, no Paraguai. Os seus descendentes podem ser encontrados ainda hoje em favelas desta mesma cidade (COSTA, 2003; HOLANDA, 1986; HOLANDA, 1990). Os Guató também ocupavam as terras pantaneiras quando da chegada de espanhóis e portugueses. Existem hoje apenas duas aldeias remanescentes deste povo, que já foi muito numeroso. Uma epidemia de varíola, no final do século XIX, dizimou a população. Como os Payaguá, seus inimigos, eram “índios canoeiros” – nômades e paleolíticos, viviam da caça, pesca e coleta, sempre montados em suas canoas. Pertencentes ao tronco linguístico Macro-Jê, eles ocuparam, durante muito tempo, extensões consideráveis na planície úmida do Pantanal (LEONARDI, 2007; OLIVEIRA, 1996; SILVA, 2008). Descritos por Castelnau (1949), em 1846, e depois por Schmidt (1902), que os visitou em 1901, os Guató foram estudados mais recentemente por Oliveira (1996) e Silva (2008). Os Guató ocupavam terras que hoje pertencem a Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Bolívia. Eles se distribuíam pelas ilhas e ao longo das margens do rio Paraguai, desde as proximidades de Cáceres até a região do Caracará, passando pelas lagoas Gaíba e Uberaba e, ao leste, nas margens do rio São Lourenço. A sua presença neste vasto território foi registrada, desde o século XVI, por viajantes e cronistas (SILVA, 2008). Quando as fazendas de gado avançaram sobre os seus territórios, entre 1940 e 1950, intensificou-se a expulsão dos Guató, afetados desde antes pelas frentes de expansão dos brasileiros. O gado invadiu as roças dos índios e os peleiros (comerciantes de peles de felinos, especialmente da onça pintada) e coureiros (comerciantes de peles de jacaré) dificultaram a permanência dos Guató na ilha Ínsua (lagoa Uberaba) e arredores. Os Guató migraram para outras regiões do Pantanal ou se dirigiram para as periferias de cidades próximas (Corumbá, Ladário, Aquidauana, Poconé e Cáceres). Na década de 1950, os Guató foram oficialmente declarados extintos pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Ficaram, portanto, excluídos de quaisquer políticas de assistência. Umas poucas famílias, porém, permaneceram na ilha Ínsua. Em 1976, missionários salesianos identificaram índios Guató vivendo na periferia de Corumbá. Aos poucos, com o apoio dos missionários, os Guató se reorganizaram e lutaram pelo reconhecimento étnico e pela posse da Ilha Ínsua. Depois de mais de uma década, essa luta resultou na transformação da ilha em reserva indígena (OLIVEIRA, 1996; SILVA, 2008; ECOTRÓPICA, 2003).


Leonardi (2007) descreve a situação dos Guató, nos anos 1990 e 2000, da seguinte maneira: Uma expedição interinstitucional percorreu parte do território Guató em 1991. [...] Segundo o relatório de Gilberto Azanha, as condições socioeconômicas dos Guató alteraram-se profundamente a partir da proibição do comércio de couro e de peles de animais silvestres, principalmente de jacaré, onça e capivara, que eram vendidos ou trocados por mercadorias com os “coureiros”. Depois da proibição, muitos Guató jovens foram viver nas periferias de Corumbá e Cáceres e “as mocinhas vão ser empregadas domésticas de soldados do destacamento de Porto Índio”. [...] Segundo a Funasa, em 2003 existiam apenas 98 Guató no Mato Grosso do Sul (p. 82).

Atualmente, a área indígena Guató tem 12.716 ha, tendo como principais atividades produtivas a agricultura, com plantações de mandioca, milho, feijão e árvores frutíferas, a pecuária e a pesca. Os Guató estão entre os poucos grupos indígenas a sobreviver, ainda hoje, em uma área na planície alagada do Pantanal (SILVA, 2008). Assim, o Pantanal Mato-grossense não era um vazio humano quando os espanhóis e portugueses chegaram lá. Abrigava um complexo mosaico de sociedades indígenas, cada uma com os seus usos da terra e as suas culturas, paleolíticas ou neolíticas. Os indígenas e as suas terras eram vistos pelos colonizadores, no entanto, como objeto de conquista e apropriação, fosse no intuito de gerar riquezas materiais ou de arrebanhar novas almas para o cristianismo por meio da catequese. Os europeus e os neobrasileiros viam no Pantanal uma terra selvagem, um vazio de civilização, a ser preenchido com novos grupos humanos e novas crenças religiosas.

2.3 – Portugueses e espanhóis disputam a fronteira pantaneira A preocupação dos espanhóis com a cobiça dos portugueses pelas zonas mineradoras na margem oeste do rio Paraguai levou-os a tomar medidas para reforçar os seus núcleos de colonização. Criaram cidades e atividades produtivas para acelerar a ocupação do território. Foi essa a origem da cidade de Assunção (atual capital do Paraguai), em 1537. No Pantanal Mato-grossense, os espanhóis fundaram a cidade de Santiago de Xerez, duas vezes: primeiro, em 1580, no baixo curso do rio Ivinhema, e em 1600, às margens do rio Aquidauana, cerca de trinta léguas acima da sua confluência com o rio Miranda. A cidade distava 80 léguas de Santa Cruz de La Sierra e mantinha contatos esporádicos com as minas de Potosi. O povoado sempre foi pobre e a sua população bastante pequena, pois não havia um recurso natural que despertasse o interesse dos espanhóis, mas os rebanhos bovinos e equinos se desenvolveram bem. Esselin (2006) avalia a importância dos rebanhos nos primeiros anos da cidade de Santiago de Xerez: Os espanhóis partiam em caravanas; em carretas puxadas por juntas de bois levavam sementes para o cultivo e diversos outros utensílios para o início de suas atividades; pequenos rebanhos bovinos e equinos eram conduzidos por índios, tanto uns como outros, imprescindíveis, desempenhando importante papel: além de serem utilizados nos labores da lavoura, preparo do solo e colheita, constituíam o mais importante meio de transporte e fonte de proteínas (p. 88).

Santiago de Xerez foi destruída pelos Mbaiá-Guaikurú em meados do século XVII. O roubo de gado equino e bovino havia se tornado uma prática comum entre os Guaikurú. Além disso, com a dispersão dos rebanhos de Santiago de Xerez, os animais se tornaram selvagens nas planícies do Pantanal Mato-grossense e se multiplicaram extraordinariamente, ficando disponíveis para a captura pelos indígenas (COSTA, 2003; ESSELIN, 2006). A maior contribuição para o crescimento dos rebanhos bovinos no Pantanal Mato-grossense foi dada, no entanto, pelos padres jesuítas. Na década de 1620, fugidos dos ataques dos bandeirantes paulistas às missões que tinham criado na região do Guairá, no atual estado do Paraná, começaram a reduzir os indígenas que habitavam a região do Itatim, entre os rios Miranda e Apa, no atual Mato


Grosso do Sul. Os índios itatins englobavam vários grupos, entre os quais se encontravam os Ñuara, Ñguara e Guaxarapó. Para manter os índios nas missões, os jesuítas investiram na agricultura e na pecuária. As suas intenções de sedentarizar e cristianizar o gentio só poderiam se realizar com a garantia de produção de alimentos. Os padres custaram a obter sucesso com a introdução de cultivos europeus, a maioria inviável no clima quente do Pantanal. Incentivaram o plantio de espécies nativas, como a mandioca e o milho, para a alimentação, e o algodão, para vestir ou cobrir “as vergonhas” dos nativos. O gado prosperou. O bovino e o equino tornaram-se bens de valor inestimável nos aldeamentos. Era com eles que se preparava o solo para o cultivo, que se fazia aração e gradagem, e que se transportava a colheita para os armazéns ou a madeira para a construção de casas, carros de boi e embarcações. Além disso, a carne bovina era um complemento alimentar que compensava as insuficiências no cultivo de quaisquer outros gêneros alimentícios (ESSELIN, 2006). Os bandeirantes paulistas atacaram as missões do Itatin em 1632 e 1648. Depois do segundo ataque, comandado por Antônio Raposo Tavares, os jesuítas e os indígenas que escaparam atravessaram o rio Apa e se fixaram no Paraguai. A maior parte do gado se dispersou pelos campos do Itatin. Bovinos e equinos encontraram condições apropriadas para sobreviver e reproduzir. Como no caso dos animais de Santiago de Xerez, eles se tornaram selvagens, formando rebanhos que podiam ser apropriados a qualquer momento (ESSELIN, 2006; HOLANDA, 1986; HOLANDA, 1994). Holanda (1986) observa que: Desses campos limpos, campos da Vacaria, como se chamaram já no século XVII, e que podem lembrar seu homônimo do sul do Brasil, deviam descer os animais no tempo da vazante para alcançar os lambedouros salinos e os pastos nos lugares ainda úmidos do cerrado. Os carreiros abertos nas quebradas iriam dar passagem, por sua vez, aos sertanistas que, então e mais tarde, vão ao encalço de tribos lavradoras das cercanias do Paraguai. Não é difícil acreditar que a presença ali desse gado alçado, restos dos rebanhos outrora existentes nas reduções jesuíticas do Itatim, compensasse para aqueles homens as amofinações de um mundo hostil, onde às constantes ameaças de febres e flechas se somava a temperatura mortificante (p. 47).

Com a debandada dos espanhóis de Santiago de Xerez e dos jesuítas do Itatim, restaram no Pantanal Mato-grossense os indígenas que sobreviveram ao contato com os europeus, à brutalidade da conquista e, sobretudo, às doenças do Velho Mundo. Essas doenças eram frequentemente fatais para os habitantes do Novo Mundo, cujos organismos estavam despreparados por milênios de isolamento para o contato com agentes patogênicos desenvolvidos na Europa, Ásia e África (ESSELIN, 2006; JESUS, 2011; HOLANDA, 1986; HOLANDA, 1990; HOLANDA, 1994). Os bandeirantes, no final do século XVII e no princípio do século XVIII, continuaram a percorrer os atuais estados de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, em busca de mão de obra indígena e de possíveis riquezas minerais, especialmente o ouro. O ouro foi encontrado, casualmente, em 1718, por Pascoal Moreira Cabral, às margens do rio Coxipó-Mirim, quando o bandeirante seguia em busca do gentio Coxiponé. Cabral levantou um arraial e logo iniciou a faina aurífera, que por pouco não terminou desastrosamente, com um ataque de grupos indígenas hostis. A bandeira de Fernando Dias Falcão socorreu o arraial. Já em 1719, a mineração do ouro se estabeleceu, com Falcão eleito como cabo maior dos mineiros e Cabral como guarda-mor. Pouco depois, em 1722, Miguel Sutil se deparou, não muito longe do Coxipó-Mirim, nas barrancas do rio Cuiabá (onde se localiza Cuiabá) com riquíssimos aluviões (ESSELIN, 2006; JESUS, 2011; HOLANDA, 1986; HOLANDA, 1990; HOLANDA, 1994): Em pouco tempo abatia-se o mato cerrado que vestia essas terras opulentas e ao cabo de um mês de trabalho insano, as minas [...] tinham fornecido mais de quatrocentas arrobas de metal, sem que as socavações se tivessem aprofundado, em geral, muito mais de meio metro. Trazida a notícia a São Paulo, determinou quase imediatamente o êxodo de parte da sua população válida. Contam-se às centenas e aos milhares as pessoas – paulistas e emboabas – que, logo nos primeiros anos da exploração, chegaram ao arraial


cuiabano (HOLANDA, 1994, p. 142).

2.4 – As monções: os rios aceleram a penetração da fronteira pantaneira A descoberta do ouro atraiu os primeiros colonos luso-brasileiros com os seus escravos de origem africana. Os rios do Pantanal Mato-grossense se transformaram, logo, em vias de transporte de longo curso. As monções, como ficaram conhecidas as expedições que partiam de São Paulo para abastecer as minas de Cuiabá e voltavam carregadas de ouro, deram origem a núcleos de povoamento lusobrasileiro. É o caso de Camapuã, ainda fora dos limites do Pantanal, e de Albuquerque, futura Corumbá, nas margens do rio Paraguai. A viagem de ida levava em média seis meses e a de volta, menos da metade do tempo (HOLANDA, 1990; HOLANDA, 1994; COSTA, 1999). As canoas utilizadas nas monções, construídas preferencialmente com peroba ou tambori, tinham em média 12 metros de comprimento. Eram escavadas em um só tronco e podiam levar até vinte passageiros, fora a marinhagem (piloto, contrapiloto, proeiro e cerca de cinco remadores). Eram uma piroga indígena com algumas melhorias, como bancos, toldos e mosquiteiros. As expedições cobriam a longa distância entre São Paulo e Cuiabá, navegando por uma teia de rios. Desciam até a foz do Tietê, subiam o rio Paraná e depois o rio Pardo, até o rio Anhanduí-Guaçu, chegando então ao rio Paraguai, por onde alcançavam o São Lourenço e finalmente o Cuiabá. Havia uma rota alternativa, cuja vantagem era evitar um trecho encachoeirado do rio Pardo, acima da barra do Anhanduí-Guaçu. Seguia-se pelo rio Sanguexuga para atingir o divisor de águas dos rios Paraná e Paraguai em sua menor largura. As monções envolviam dificuldades e perigos que exigiam planejamento cuidadoso, como o enfrentamento das cachoeiras e corredeiras dos rios Tietê, Paraná e Pardo, das febres e dos mosquitos e dos ataques do gentio Guaykurú, Payaguá e Cayapó (HOLANDA, 1990; HOLANDA, 1994; COSTA, 1999). Nas monções seguiam alimentos para os moradores de Cuiabá, mas, com o tempo, brotaram cultivos de subsistência (milho, mandioca, feijão, abóbora e cana-de-açúcar) e foram criados animais (galinhas, porcos, bois e cavalos) em torno de Cuiabá. A caça e a pesca também ajudavam a abastecer a população envolvida na mineração. O gado alçado (selvagem) da Vacaria possibilitou o estabelecimento de entrepostos comerciais no percurso das monções, como a fazenda Camapuã, e foi esse mesmo gado que foi levado para Cuiabá. Apesar de todas as dificuldades (transportes, comunicações, ataques de índios hostis, escassez de muitos gêneros fundamentais para a vida cotidiana), Cuiabá se transformou em um centro de povoamento e de explorações ulteriores. Dela partiam expedições, como aquela que, em 1734, alcançou a bacia amazônica e descobriu as minas que ficaram conhecidas como do Mato Grosso, às margens do rio Guaporé. Elas foram descobertas pelos irmãos Pais de Barros (HOLANDA, 1990; HOLANDA, 1994; ESSELIN, 2006). Fig ura 2 – Mapa da naveg ação das monções


Fonte: Carlos Christian Della Giustina, Marco Túlio Granja Poubel de Castro, Silas Semprini de Toledo Contaifer

Com o intuito de garantir o território aurífero (que, a rigor, pertencia à Espanha pelo Tratado de Tordesilhas), controlar a navegação fluvial e pôr fim aos conflitos com as populações nativas, a Coroa portuguesa fundou núcleos urbanos e fortes em pontos estratégicos: Vila Real do Bom Jesus do Cuiabá (atual Cuiabá) foi a primeira vila, em 1727; Vila Bela da Santíssima Trindade é de 1752 e se tornou a capital da Capitania de Mato Grosso e Cuiabá (que abarca os atuais estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Rondônia), criada em 1748; Albuquerque (atual Corumbá) é de 1778, e surgiu de um núcleo de parada e abastecimento das monções; Vila Maria (hoje Cáceres) é também de 1778; e Casalvasco é de 1783. A criação do Forte de Coimbra, em 1775, aumentou a presença de soldados e autoridades na região do rio Paraguai. Isso gerou mais informações geográficas e militares e permitiu a Antônio Rolim de Moura, primeiro governador da Capitania de Mato Grosso e Cuiabá, entre 1751 e 1765, fortalecer a ação de controle da Coroa. Foram criados ainda os fortes de Nossa Senhora da Conceição (1765), Bragança (1771) e do Príncipe da Beira (1776) (HOLANDA, 1990; HOLANDA, 1994; COSTA, 1999; FERNANDES, 2009; JESUS, 2011). A definição dos limites territoriais entre as coroas ibéricas, Portugal e Espanha, aconteceu entre os anos de 1750 e 1801, por intermédio, sobretudo, da assinatura de três tratados: o de Madri (1750), o de Santo Ildefonso (1777) e, finalmente, o de Badajós (1801). O argumento do uti possidetis pesou na incorporação das terras da Capitania de Mato Grosso e Cuiabá ao território pertencente à Coroa portuguesa. Para tanto, contribuíram os núcleos de povoamento criados pelos luso-brasileiros, ainda que fossem esparsos. (HOLANDA, 1990; HOLANDA, 1994; COSTA, 1999; FERNANDES, 2009; JESUS, 2011). Holanda observa que a ocupação do “nosso extremo ocidente” resultou do movimento das monções. Elas garantiram a posse plena de uma área de milhões de quilômetros quadrados, concluindo a obra iniciada pelas bandeiras. Considera que o movimento das monções, iniciado nos anos 1720 e extinto por volta de 1838, teve uma racionalidade maior do que as bandeiras, que foram movidas mais pelo espírito de aventura e pela possibilidade do encontro fortuito da riqueza. As


monções exigiam o cálculo das perdas resultantes de ataques de índios hostis, de doenças, das agruras do clima e dos acidentes nas corredeiras e varações (HOLANDA, 1990; HOLANDA, 1994). Além disso, elas indicaram o caminho que permitiria, ao longo do tempo, a integração e a incorporação das terras do oeste brasileiro: Compensaria tal riqueza tudo quanto exigiram as monções dos desbravadores do Brasil Central? É fácil responder, neste ponto, pela negativa. Mas postos nos dois pratos da balança os lucros e as perdas que porventura terão ficado do esforço daqueles desbravadores, os primeiros hão de avultar por imensa margem. E então, uma parcela da maior importância representará o que eles significaram particularmente para a unidade de nosso país. À experiência dos práticos, pilotos e proeiros das canoas das monções deve-se, em parte apreciável, a abertura das comunicações regulares entre Mato Grosso e o Pará, que viriam criar mais uma linha de comércio para aqueles sertões. Essa via constitui, em realidade, um prolongamento, na direção do extremo norte, do velho caminho fluvial que avança do sul, do planalto paulista (HOLANDA, 1994, p. 151).

Para Holanda (1994), a função histórica desse caminho fluvial de mais de 10 mil quilômetros de comprimento foi maior que a de quaisquer outras linhas de circulação natural do território brasileiro, sem exclusão do próprio rio São Francisco, denominado o “rio da unidade nacional”. Foi, portanto, a combinação dos núcleos de povoamento com as comunicações estabelecidas pelas monções que assegurou para os luso-brasileiros o extenso território a oeste e a noroeste do Brasil. Bandeirantes, monçoeiros, militares e diplomatas – cada um teve os seus méritos na transformação do mito da “ilha Brasil” (com base na geografia física) nas linhas de fronteira que definem o território brasileiro (com base na geografia política): Considerando que, desde o século XVI, se encontra em numerosos mapas um grande lago interior da América do Sul, de onde manam dois braços correspondentes, respectivamente ao Amazonas e ao Prata, supunha Jaime Cortesão que essa figura, onde o Brasil assume o aspecto de uma ilha, não é atribuível a simples fantasia dos cartógrafos. Em parte, ao menos, apóia-se ela na realidade, já que o lago central, identificado frequentemente com o Xaraies, representa o Pantanal mato-grossense, e um braço dele é o rio Paraguai, que através do Prata derrama suas águas no Oceano. Mas o importante está em que a “ilha Brasil” constitui de fato um mito expansionista, que ganha realidade através da íntima cooperação da metrópole com os colonos, de lusos com lusobrasileiros. Esses, sem deixar às vezes de mostrar uma astúcia maquiavélica, tratariam de preencher, através de sucessivas penetrações, todo o espaço insular definido nos mapas [...] (HOLANDA, 1986, p. 92-93).

A bolha (boom) da mineração do ouro cuiabano não durou muito, embora a atividade nunca tenha sido abandonada por completo. A partir de meados do século XVIII, os veios auríferos davam sinais de esgotamento. A duradoura crise da mineração conduziu à busca de alternativas que sustentassem a Capitania de Mato Grosso e Cuiabá. A construção de engenhos de cana-de-açúcar foi uma alternativa para recuperar o dinamismo da área, mas eles não passaram de pequenos estabelecimentos que produziam açúcar bruto, rapadura e aguardente para o comércio local e regional. A pecuária prosperou, tornando-se a principal atividade econômica, embora entre o último quarto do século XVIII e a década de 1870 ela se limitasse ao abastecimento local e interno (CASTRO, 2001).

2.5 – O refluxo das frentes de mineração e a formação de uma fronteira de bovinocultura Como foi sugerido no início do capítulo, a ocupação da Capitania de Mato Grosso e Cuiabá não se caracterizou como uma fronteira linear, como ocorreu nos EUA, mas como um padrão de fronteira do tipo hollow (oca) ou Swisscheese (queijo suíço). Essa ocupação formou um arquipélago de povoações dispersas e isoladas entre si. Os transportes e a comunicação com o restante da colônia e com o litoral eram difíceis e demorados. A sobrevivência era garantida por uma dieta baseada em milho, mandioca e feijão, complementada pela caça, pesca e coleta de frutos, raízes e ervas e,


sobretudo, pela carne bovina. O gado foi fundamental para a permanência de agrupamentos humanos na região depois da decadência da produção de ouro. Essa permanência garantiu a posse do território para Portugal e depois para o Brasil. No longo prazo, acabou havendo uma coincidência entre o avanço desse tipo de fronteira, a ocupação permanente (mesmo que esparsa), a exploração dos recursos naturais (frontier) e a consolidação de uma fronteira política (border). Foi nesse contexto, marcado por uma fraca integração com o restante da colônia, que a Capitania de Mato Grosso assistiu ao movimento de proclamação da independência do Brasil. Durante a Regência (1831-1840), a agora província de Mato Grosso (com o Império, a capitania se tornou província) não ficou imune às agitações políticas e sociais do período. A violência eclodiu, em 1834, na revolta que ficou conhecida como a Rusga, que resultou da união entre elites provinciais, camadas médias e setores da população mais pobre descontentes com o governo regencial. Os revoltosos voltaram-se contra os portugueses, donos da maioria dos estabelecimentos comerciais em Cuiabá e em outras localidades da província. Com a generalização dos tumultos, foram registrados saques e depredações em lojas e outros estabelecimentos de comércio, uma vez que a alta dos preços colocara a população muitas vezes em estado de necessidade. A revolta foi reprimida e controlada, em 1835, pelo governador Antônio Pedro de Alencastro, que tomou posse durante os distúrbios. Com a ascensão de Pedro II ao trono, em 1840, as contestações regionais cessaram, a ordem foi restaurada e os mecanismos de articulação entre as províncias e o governo central conseguiram garantir a unidade nacional, o que se traduziu no amplo território brasileiro. A província de Mato Grosso, ainda que isolada, se manteve minimamente coesa com o restante da nação. A integração na economia nacional se dava pela exportação em pequena escala de produtos como açúcar, ipecacuanha, ouro, diamantes, couro e peles de animais selvagens, e alguns produtos derivados do gado – chifres, ossos, unhas, crinas, peles e couros (CASTRO, 2001). Na planície do Pantanal Mato-grossense, o principal núcleo de povoamento era a vila de Corumbá. Inicialmente era um modesto vilarejo de 200 habitantes, que sobreviviam do cultivo de milho, feijão e algodão, e da caça e pesca abundantes. O vilarejo de Albuquerque, futura vila de Corumbá, serviu de ponto de passagem e abastecimento para os representantes oficiais e aventureiros que ainda se dirigiam, por via das monções, para as minas de ouro de Cuiabá e de Vila Bela da Santíssima Trindade. A ocupação da região foi marcada por uma mentalidade imediatista e exploratória, pelas dificuldades impostas pelas condições ambientais, de transporte e de abastecimento, e pela pobreza (CORRÊA, 1999; FERNANDES, 2009). A atividade pecuária teve, no século XVIII e XIX, um papel fundamental para a ampliação da ocupação do Pantanal Mato-grossense. Ela fortaleceu também os vínculos entre a área de mineração de ouro e a planície pantaneira. Como vimos, os bovinos descendentes do gado das extintas reduções do Itatim e de Santiago de Xerez deram início à pecuária nos arredores de Cuiabá. O gado espalhado na Vacaria permitiu o surgimento de entrepostos comerciais nas barras dos principais afluentes do rio Paraná, no roteiro das monções. Com a criação bovina nos arredores de Cuiabá, o fluxo de tropeiros que buscavam gado na Vacaria diminuiu, o que permitiu que o rebanho crescesse vertiginosamente. A derrota e o quase extermínio dos povos indígenas hostis, entre fins do século XVIII e início do XIX, deixou o caminho livre para que algumas famílias e indivíduos, entre os quais um grupo de insurretos da Rusga, estabelecessem fazendas de gado no Sul da província de Mato Grosso, na planície pantaneira (ESSELIN, 2006). Entre 1830 e 1840, a criação de gado alcançou sucesso na planície inundável, sobretudo nos campos do Sul. A grande quantidade de rebanhos bovinos e equinos asselvajados, à disposição dos recémchegados colonizadores, facilitou a organização das fazendas. O gado foi sendo amansado e o couro


e a carne seca foram introduzidos em uma incipiente rede de comércio: No início da década de 1850, era tal o volume do rebanho bovino, que foram se estreitando os laços comerciais entre os produtores do Pantanal sul e os tropeiros que vinham de Minas Gerais... Com o rápido processo de urbanização que o Brasil viveu, a partir do início do século XIX, os tradicionais fornecedores do gado bovino, como Goiás, São Paulo e Minas Gerais, já não conseguiam atender à demanda interna, sendo necessário recorrer ao rebanho sul-mato-grossense. A assinatura do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre o Brasil e o Paraguai, que abriu o rio homônimo à livre navegação, constituiu, entre outros fatores, um estímulo para os produtores ampliarem as exportações de couro e carne seca, o que possibilitou o aumento da renda interna. Com isso, algumas fazendas prosperaram, e a Província vagarosamente foi se integrando à economia nacional (ESSELIN, 2006, p. 104).

Corumbá, entre o sul e o norte de Mato Grosso, consolidou-se como local de passagem e parada, com funções comerciais, administrativas e militares. Esse quadro de relativo progresso no Pantanal Mato-grossense manteve-se até meados da década de 1860, quando explodiu a Guerra do Paraguai. O conflito durou de dezembro de 1864 a março de 1870. Opôs o Paraguai à Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai). No Mato Grosso, os combates alcançaram Coimbra, Corumbá, Miranda, Aquidauana, Nioaque, Dourados, Coxim e Cáceres. O conflito arrasou a incipiente organização desses núcleos, inclusive Corumbá: doenças, miséria e despovoamento atingiram a região. Houve abandono de terras e muita gente se deslocou para Cuiabá, à medida que as forças paraguaias avançavam do sul para o norte, chegando até Cáceres (CASTRO, 2001; DORATIOTO, 2002; ESSELIN, 2006; FERNANDES, 2009). Em 1865, pouco antes de ser invadida pelas forças paraguaias, Corumbá contava com pouco mais de mil habitantes, cerca de oitenta casas de telha e 149 ranchos cobertos de palha, capela, uma igreja em construção, quartel e depósitos do Exército e da Marinha. A partir de 1867, logo após ser retomada pelo exército brasileiro, Corumbá começou a ser reconstruída. A guerra não anulou o seu papel estratégico na navegação. O fim da guerra agilizou as comunicações entre Mato Grosso e a Corte, no Rio de Janeiro. A guerra revelou toda a fragilidade das defesas de fronteira e, sobretudo, a precariedade das comunicações entre Mato Grosso e o litoral. A região passou a ser alvo de maiores preocupações de parte do governo imperial. A livre navegação do rio Paraguai foi assegurada e nela foram usados navios a vapor. A viagem entre o Rio de Janeiro e Cuiabá, que durava três meses, foi reduzida a apenas um. A ocupação do Pantanal Mato-grossense pelos brasileiros foi retomada. Em 1878, Corumbá foi elevada ao status de cidade. Ela se tornou um entreposto razoavelmente próspero, recebendo mercadorias de vários pontos da Europa, da América e do Brasil, por meio de vapores de grande calado. Comerciantes brasileiros e estrangeiros implantaram em Corumbá companhias de navegação e casas comerciais (DORATIOTO, 2002; CASTRO, 2001; FERNANDES, 2009; LEONARDI, 2007). Um dos fatores que levou Solano Lopes a invadir a província de Mato Grosso, especialmente o sul do Pantanal, foi a presença do gado equino e bovino. O rebanho pantaneiro supriu as tropas invasoras, a população de Assunção e os brasileiros, civis e militares, prisioneiros de guerra. No entanto, a peste das cadeiras atingiu o rebanho equino, causando grande mortalidade e dificultando o manejo do gado bovino. Isso fez com que grande parte do rebanho bovino se dispersasse e se tornasse, mais uma vez, asselvajado. Cessada a guerra, esse gado atraiu uma parcela dos soldados brasileiros que, desmobilizados, permaneceu em terras pantaneiras. Alguns antigos fazendeiros retornaram e retomaram a criação de gado: Ao lado das iniciativas particulares, o Império, temeroso de novas agressões na distante Província, decidiu adotar providências que visavam à integridade territorial e à unicidade. A reabertura do rio Paraguai à navegação e as medidas de apoio ao desenvolvimento comercial, como a isenção de tributos aos produtos de importação e exportação comercializados nos principais portos de Mato Grosso, abriram perspectivas para o desenvolvimento local, como também possibilitaram a entrada de capitais estrangeiros,


decisivos para o crescimento econômico da região (ESSELIN, 2006, p. 105).

A reativação das relações comerciais com outras áreas do Brasil e com o exterior, a prospecção de mercados fornecedores de matérias-primas e a curiosidade científica atraíram para Mato Grosso uma leva de naturalistas, cientistas, empresários e aventureiros de todos os tipos. Cresceram o conhecimento sobre o território e a circulação de mercadorias. Atendendo às demandas do mercado internacional, expandiram-se as exportações de ipecacuanha, de couros e peles de animais selvagens e do gado bovino, e de penas de garça. Tiveram início também as explorações de erva-mate (no sudoeste da província) e de borracha (no norte da província). A produção de açúcar e de aguardente se intensificou e se modernizou, com a introdução de máquinas a vapor e equipamentos com componentes metálicos. Nas planícies pantaneiras, na década de 1870, os excedentes bovinos e a proximidade em relação a Minas Gerais, centro de engorda de rebanhos bovinos, favoreceram o comércio do gado em pé com os invernistas do sudeste. Além disso, surgiram as primeiras charqueadas, algumas delas como resultado do investimento e da instalação no Pantanal Matogrossense de empresários uruguaios e argentinos. (ESSELIN, 2006; CASTRO, 2001).

2.6 –A República fortalece a pecuária pantaneira por meio da estadualização das terras públicas A proclamação da República, em 1889, não alterou o cenário econômico e social de Mato Grosso. Entre outros fatos, ocorreu um fortalecimento das elites locais -– oligarquias. Com o novo regime político, o controle sobre a distribuição e a venda de terras públicas passou para os estados (as antigas províncias do Império). Isso levou a uma série de leis e decretos estaduais relacionados com o reconhecimento da posse de terras e com a concessão de uso de recursos naturais. Esse ordenamento foi conduzido no contexto do mandonismo local. O fim do Império, que indicava os presidentes de província e influenciava a administração pública local, abriu espaço para as disputas entre os poderosos locais – os coronéis. Em Mato Grosso, a imposição e a violência eram comuns e faziam parte do cotidiano de proprietários de terra, agregados, posseiros, assalariados, comerciantes, camponeses e bandidos. A situação de fronteira com outros países, com as tensões que lhe são próprias, como a prática do contrabando e do roubo de gado, acentuava ainda mais este aspecto (CORRÊA, 1995; CASTRO, 2001; BARROS, 2007). A pecuária, organizada a partir de relações sociais baseadas no mando e no favor, afirmou-se como a atividade estruturante da economia e da sociedade de Mato Grosso, sobretudo na planície pantaneira. O contexto era favorável. O mercado para a carne cresceu rapidamente com o processo de urbanização e de industrialização do país, particularmente com as demandas da poderosa economia cafeeira no sudeste do Brasil: No começo do século XX, as bases da pecuária pantaneira estavam solidamente estabelecidas; ao lado da erva-mate, já constituíam a principal atividade econômica do estado, e se iniciava a especialização na produção do gado de corte, na sua fase de cria e recria. A venda do gado em pé para invernistas do sudeste se justificava, pois a industrialização interna, através das charqueadas, embora significativa, não tinha capacidade para absorver toda a produção pantaneira, que só se completava com a venda do gado em pé para outros Estados (ESSELIN, 2006, p. 107).

A ampliação do comércio impactou os produtores de gado do Pantanal Mato-grossense. Com mais recursos, investiram na modernização da atividade: incorporaram novas técnicas de manejo; replicaram experiências bem-sucedidas em outras regiões do país; introduziram reprodutores selecionados, melhorando a qualidade do rebanho; cercaram e subdividiram as suas terras em


ambientes diversos e melhoraram a infraestrutura das fazendas. O gado foi, portanto, a atividade mais constante e importante na economia e na sociedade pantaneira, do século XVI ao XX, uma vez que a bolha (boom) provocada pela atividade aurífera foi de curta duração: O processo de colonização do Pantanal, desde o princípio do século XVI, esteve estreitamente ligado à pecuária. As limitações impostas pelo meio-ambiente foram superadas pelo bovino, que garantiu a ocupação econômica da planície, e contribuiu decisivamente para a incorporação da região ao mercado nacional (ESSELIN, 2006, p. 108).

A partir da primeira década do século XX, apesar das disputas oligárquicas rotinizadas pelo regime republicano, vários fatores contribuíram para dinamizar a economia mato-grossense: a construção da ferrovia Noroeste do Brasil, que ligou Bauru (SP) a Corumbá; a descoberta e a exploração de diamantes no leste do estado; a instalação das linhas telegráficas e as explorações da Comissão das Linhas Telegráficas e Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas, chefiadas por Cândido Mariano da Silva Rondon; o incremento da indústria extrativista (ipecacuanha, erva-mate e borracha); e a pecuária, sobretudo, no sul do estado. A Estrada de Ferro Noroeste do Brasil se destacou por beneficiar os criadores de gado e os especuladores imobiliários (CASTRO, 2001; QUEIROZ, 2004; DIACON, 2006). Cuiabá foi elevada à condição de cidade em 1818. Tornou-se, em 1835, capital da província de Mato Grosso. No sul da província, foi fundada em 1872, por colonizadores vindos de Minas Gerais, a vila de Campo Grande da Vacaria. A vila adquiriu o status de cidade em 1899, com o nome de Campo Grande. A disputa entre o norte e o sul do estado foi disparada pela abertura da navegação do rio Paraguai (1870), e acirrou-se em 1914, quando a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil ligou Bauru (SP) a Porto Esperança, nas proximidades de Campo Grande – a ferrovia só chegaria até Corumbá em 1952. Isso fortaleceu as oligarquias do sul mato-grossense. No norte do estado, a ferrovia teve um impacto bem menor. Apesar das expectativas dos cuiabanos, a ferrovia não chegou nem nas proximidades de Cuiabá (CASTRO, 2001; QUEIROZ, 2004; CORRÊA, 1995).

2.7 – Novas atividades em Mato Grosso não deslocam a pecuária Nos meados da década de 1910, a economia do norte de Mato Grosso sofreu um sério abalo com o colapso do comércio da borracha, evidenciando os limites do extrativismo vegetal. No sul, a inauguração da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil reduziu a importância da navegação fluvial. Isso reorientou o movimento de ocupação do estado, levando ao forte crescimento de Campo Grande. No sul do estado, com o desenvolvimento da pecuária e com a ligação ferroviária com São Paulo, as terras se valorizaram e viraram objeto de disputa entre fazendeiros e posseiros. A partir de 1930, com o governo de Getúlio Vargas, e principalmente a partir de 1940, com o lançamento do programa “Marcha para o Oeste”, uma política federal explicitamente direcionada para a ocupação e o desenvolvimento dos “sertões” do Brasil, as terras mato-grossenses adquiriram um novo sentido. O ideal de integração nacional propiciou novos impulsos de investimento e expansão.As terras matogrossenses se tornaram, desde então, objeto de um intenso processo especulativo (CASTRO, 2001; OLIVEIRA, 2000; OLIVEIRA, 2008). Corumbá declinou como porto comercial fluvial por causa da emergência dos novos meios e das novas rotas de transporte, mas manteve um papel importante como a principal cidade da planície úmida do Pantanal Mato-grossense. A construção da estrada de ferro, na primeira metade do século XX, e das rodovias BR-262, BR-267 e BR-163, a partir dos anos 1960, estimulou a integração interregional e o comércio de gado. Muitos antigos comerciantes instalados no porto de Corumbá


buscaram novas oportunidades de investimento e se tornaram pecuaristas. Com o deslocamento do eixo econômico regional para Campo Grande, ao longo do século XX, as novas vias de transporte desarticularam as funções portuária e de entreposto mercantil de Corumbá (CORRÊA, 2006; FERNANDES, 2009). A partir da década de 1940, uma nova atividade se instalou em Mato Grosso: a exploração mineral de escala empresarial ganhou corpo em Corumbá, com a instalação da Sociedade Brasileira de Siderurgia e da Sociedade Brasileira de Mineração. Elas se dedicaram à extração do minério de manganês e à produção de ferro gusa. Ainda assim, a pecuária continuou a ser o setor mais forte da economia corumbaense até a grande cheia de 1974, que alterou a geografia do Pantanal Matogrossense, principalmente ao longo do rio Paraguai. Isso desestruturou a economia das áreas atingidas pela cheia, destruindo e inviabilizando grandes e pequenos empreendimentos pecuaristas e acelerando a migração do campo para a cidade de Corumbá (FERNANDES, 2009). Nas décadas de 1950 e 1960, a fronteira agrícola, em escala nacional, começou a avançar para o centro-oeste e o norte. O Pantanal, cuja estrutura fundiária já estava definida – marcada por alta concentração – não foi alcançado por grandes projetos de colonização. Manteve um papel relevante no abastecimento de carne, principalmente para os núcleos urbanos do sul e sudeste do País, na base de um sistema extensivo, focalizado no gado de corte. As fazendas eram imensas e não havia cercas. Os proprietários acompanhavam as atividades dos peões e vaqueiros no manejo das boiadas. Nesse estilo de vida, desenvolvido no isolamento, havia um cotidiano de parceria e compadrio. As relações sociais e de poder estavam fundadas em uma combinação de autoritarismo, paternalismo e assistencialismo (LEONARDI, 2007; RUMI, 2000). As maiores mudanças começaram a partir dos anos 1970 (depois da cheia de 1974, mas principalmente nos anos 1980, e sobretudo no entorno da planície inundável do Pantanal), quando as velhas fazendas começaram a ser compradas por empresários de São Paulo, de Londrina, Campo Grande e por empresas multinacionais. Os novos proprietários não mais residiam nas fazendas. As comunicações e o transporte de cargas e pessoas foram facilitados com a construção da BR 362 – ligando Três Lagoas (MS) a Corumbá – e da BR 267 – ligando Porto Murtinho (MS) ao restante do país. As pistas de pouso para aviões (teco-tecos) nas fazendas pantaneiras se tornaram comuns. Segundo Leonardi (2007): Essas mudanças ocorreram em um tempo histórico muito curto. Os vaqueiros e peões, que até então viviam isolados, passaram a freqüentar cidades. Os carros de boi foram substituídos por jipes. As velhas chalanas foram substituídas por voadeiras rápidas e grandes lanchas que trazem turistas. Bois de sela já são raríssimos... Os próprios cavaleiros já não acompanham boiadas, como faziam antes, quando alguns vaqueiros levavam boiadas de até 20 mil bois para o Paraná, em 65 dias de viagem, ou para São Paulo, em 80 dias: hoje os bois são levados em caminhões, por estradas asfaltadas, ou em navios boiadeiros, que vão diretamente para os frigoríficos [...] (p. 76-77).

O desmembramento do estado de Mato Grosso (MT), em 1977, implicou a criação de um novo estado, Mato Grosso do Sul (MS), com capital em Campo Grande, situada a 200 km do Pantanal. Nos anos 1980, 1990 e 2000, a busca de estratégias para o desenvolvimento econômico do Pantanal não levou ao fim do domínio da pecuária, transformada agora em uma atividade empresarial moderna nas fazendas mais bem-sucedidas, localizadas sobretudo nas terras mais altas de Cerrado. Foram estimulados também empreendimentos de pesca comercial, turismo e mineração (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; RUMI, 2000). A partir do final dos anos 1970 e do início dos anos 1980, a pecuária do Pantanal propriamente dito estagnou ou declinou. Agora as melhores condições para a plantação de pastagens artificiais e de culturas agrícolas de grande escala nos solos do Cerrado, o acesso facilitado ao transporte e o uso


mais intensivo de tecnologia favoreceram a ocupação das terras altas, não inundáveis, tanto no Mato Grosso do Sul quanto no Mato Grosso: Na atualidade, as atividades econômicas principais são rurais e se desenvolvem todas no planalto e na periferia do Pantanal. A mais importante pela sua extensão é a pecuária, baseada em pastagem plantada, embora a mais rentável seja a agricultura moderna e intensiva de soja e milho, entre outras culturas, como algodão e, em alguns distritos, cana-de-açúcar e arroz. [...]. A pecuária é mais importante, proporcionalmente, na Bacia do Alto Paraguai de Mato Grosso do Sul, onde, em 1993, existiam aproximadamente 10 milhões de cabeças (DOUROJEANNI, 2006, p. 47).

A mineração de calcário assumiu grande importância nesse mesmo momento, pois o uso intensivo dos solos do Cerrado dependia de aplicações de calcário. Brotaram também garimpos de aluvião de ouro e diamantes, atividade que gera poluição de mercúrio e sedimentos nos rios pantaneiros (DOUROJEANNI, 2006; ALHO JR. e GONÇALVES, 2005). Durante muito tempo, a caça de jacarés, onças pintadas e outros felinos selvagens, e ariranhas, por coureiros e peleiros, foi uma atividade econômica de considerável importância. A proibição da atividade, ainda que de implementação deficiente, bem como a redução drástica da demanda internacional por couros e peles de animais selvagens diminuíram muito a caça. No entanto, a caça ilegal (comercial ou esportiva) ainda ameaça a fauna pantaneira. Outra ameaça à fauna é o tráfico de animais silvestres vivos. Existem muitas pistas de pouso no Pantanal, utilizadas para embarcar animais vivos, peles e couros, mas principalmente para o tráfico de drogas e armas. Ocorre também a extração ilegal de madeiras nobres (como a aroeira) e de madeira para lenha e fabricação de carvão (DOUROJEANNI, 2006; ALHO JR. e GONÇALVES, 2005). Vale notar a violência gerada pelo tráfico de animais silvestres, pela caça ao jacaré e pela pesca ilegal durante toda a década de 1980. No início dos anos 1980, o Pantanal volta a ser o grande fornecedor de peles e de pássaros para o mercado clandestino. Os bens passavam pelo Paraguai. Diferentemente do que ocorreu no período entre 1890 e 1950, quando o Pantanal abasteceu grandes centros Europeus com peles e penas de forma legal, caçadores invadiram o Pantanal pelo sul, capturando espécies como a arara azul (Anodorhynchus hyacinthinus). De forma bem organizada, com apoio de aviões, retiraram mais de 2.000 espécimes. Simultaneamente, os coureiros fizeram uma verdadeira chacina de jacarés. Os números de animais mortos chegaram, em 1988 e 1989, a quase um milhão de peles por ano. A pesca tem sido, ao longo dos tempos, uma atividade importante para a subsistência das populações do Pantanal Mato-grossense. Durante o século XX, sobretudo a partir dos anos 1970, cresceram as pescas comercial e esportiva, nem sempre de acordo com as normas estabelecidas pela legislação: Nos anos de 1994-1995 estimou-se que existiam [no Pantanal] mais ou menos 7.500 pescadores profissionais, dos quais 3.700 estavam registrados em Mato Grosso do Sul. No rio Paraguai, a pesca é frequentemente realizada por embarcações pesqueiras relativamente grandes e utilizam-se redes e outros instrumentos proibidos. [...] Nos tributários do rio Paraguai a pesca é realizada com instrumentos mais tradicionais, legais e ilegais em proporções equivalentes e, em geral, com muito pouco respeito pelas vedas e tamanhos mínimos impostos pela legislação. A pesca esportiva teve um crescimento enorme entre os anos de 1980 e 1990, passando, no caso de Mato Grosso do Sul, de uma média de 17 mil a 44 mil pescadores amadores nesse lapso. Em Mato Grosso, o crescimento e os números são semelhantes. Até recentemente, a maior parte do volume de pescado extraído (estimado em 3 mil t/ano) correspondia aos pescadores amadores (DOUROJEANNI, 2006, p. 49).

No final dos anos 1980, os frigoríficos de pesca, liderados pelas empresas La Pesca, de Corumbá, e Sakamoto, de Aquidauana, passaram a capturar centenas de toneladas para atender o mercado do Centro Sul do país. Usavam redes, já proibidas na época, promovendo um verdadeiro arrastão nos rios do Pantanal. Por causa da violência decorrente das atividades ilegais relacionadas com a caça e a


pesca, é que foi criada a Policia Florestal que, com muito esforço, controlou a situação, que certamente poderia ter causado impactos irreversíveis no bioma. O turismo é outra atividade em expansão no Pantanal Mato-grossense, desde os anos 1980. Isto se liga ao maior conhecimento sobre a diversidade natural e cultural do Pantanal; ao estabelecimento de unidades de conservação da natureza; à abertura de estradas, como a Transpantaneira; à busca por parte de fazendeiros pantaneiros de novas oportunidades de investimento, bem como a iniciativas empresariais e públicas. Tudo isso tem resultado em melhor estrutura para a visitação da região. O turismo no Pantanal está fortemente associado à pesca esportiva. Mas há um crescimento significativo do turismo de contemplação da natureza, do turismo de aventura e, sobretudo, do ecoturismo. Dentre os atrativos oferecidos pelas pousadas e hotéis-fazendas, destacam-se trilhas e caminhadas, cavalgadas, manejo do gado, observação da fauna, safáris fotográficos, passeios de barco e canoagem, observação noturna de animais, observação de aves e ninhais, e pesca recreativa (DOUROJEANNI, 2006; ALHO JR. e GONÇALVES, 2005).

2.8 – Impactos ambientais antigos e recentes Duranteo século XX, os esforços para o desenvolvimento do Pantanal Mato-grossense e do Cerrado no seu entorno resultaram em pressões ambientais consideráveis. A pecuária bovina, a agricultura, a mineração, a pesca e mesmo o turismo acumularam impactos sobre a paisagem pantaneira. Como vimos no primeiro capítulo, boa parte dos problemas ambientais da planície pantaneira se origina no planalto circundante. Alho Júnior e Gonçalves (2005) observam que: O Pantanal [...] tem sido grandemente afetado por atividades de pecuária e agricultura do entorno, nos planaltos, principalmente pela drástica conversão da vegetação nativa em pasto ou campos de monocultura de soja. Muitas dessas alterações estão em regiões de nascentes dos rios que inundam a planície, além de obras de infra-estrutura como estradas e hidrelétricas. O resultado tem sido erosão e assoreamento de rios, com perda de habitats e de biodiversidade (p. 85).

Há uma interdependência entre os fatores que causam danos ao ambiente e, em particular, à biodiversidade no Pantanal Mato-grossense. Uma análise das causas-raízes da degradação ambiental, realizada no âmbito do projeto GEF Pantanal/Alto Paraguai, identificou os seguintes problemas e pontos de tensão: Interrupção do fluxo hídrico (causada por grandes obras, como hidrelétricas, estradas, hidrovias, aterros e outras interrupções no fluxo de água do planalto para a planície e, dentro da planície, alterações nas inundações rasas); Perda e modificação de habitats, com empobrecimento da biodiversidade (desmatamentos, modificações de habitats naturais, conversão da vegetação nativa em pastos, poluição de corpos de água); Tráfico de animais e plantas silvestres (apanha e comércio ilegal de animais e plantas); Introdução de espécies invasoras (mexilhão-dourado, porco-monteiro e gramíneas africanas); Sobrepesca (pesca predatória, captura de iscas vivas, desrespeito às rotas migratórias de peixes); Turismo não sustentável (turismo ocasional sem licenciamento e controle); Contaminação ambiental (mercúrio, pesticidas, herbicidas e outros produtos tóxicos);


Urbanização, esgotos e lixos domésticos nos cursos de água; Escassez de unidades de conservação da natureza e falta de implementação das existentes; Necessidade de fortalecimento institucional e capacitação de pessoal nos órgãos ambientais; Falta de implementação da legislação; Polos de desenvolvimento industrial dentro da planície pantaneira (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005). Embora a intenção de desenvolver o Pantanal seja legítima, nem sempre os fatores ambientais são suficientemente considerados, o que representa um risco para a biodiversidade e para o funcionamento dos ecossistemas. A paisagem pantaneira não é, sem dúvida, uma paisagem prístina. O seu aspecto atual é o resultado de milênios de ação humana. O manejo do fogo e de armas de madeira e pedra para a caça, pelos grupos indígenas que dominavam a planície pantaneira e os Cerrados do planalto, teve um sério impacto sobre a megafauna, contribuindo para a extinção de um grande número de espécies. A chegada dos colonizadores europeus (espanhóis e portugueses), com a sua fixação na exploração e acumulação de riquezas, com instrumentos e técnicas cada vez mais sofisticados, aumentou continuamente a pressão sobre os recursos naturais, alterando mais e mais a paisagem e os ecossistemas (DEAN, 1996; DIAMOND, 2002; FERNANDEZ e ARAÚJO, 2012; DOUROJEANNI, 2006). O padrão de ocupação territorial no Pantanal Mato-grossense, no entanto, deixava vazios, formou um arquipélago de povoações dispersas, uma fronteira do tipo hollow (oca) ou Swisscheese (queijo suíço). Ainda na primeira metade do século XX: [...] a região, a exemplo de outras onde a ocupação pelos representantes da “civilização” não havia deixado marcas mais duradouras ou transformado significativamente a paisagem, acentuava no viajante a percepção de estar penetrando em um espaço onde a natureza “praticamente desconhecia a mão do homem”. Desse modo, a ideia de adentrar territórios intocados pelos homens, embora bastante equivocada, impulsionou grande parte dos viajantes que estiveram em Mato Grosso (CASTRO, 2001, p. 113).

Foi esta paisagem e este tipo de sentimento que atraiu homens dados a aventuras em terras selvagens, como Rondon e Roosevelt, a perscrutar os sertões pantaneiros (DIACON, 2006). Martins (1997), ao tratar do conceito de fronteira no Brasil, sugere que ele tem sido ocupado por uma frente de expansão e por uma frente pioneira. A primeira se define pelo contato com as terras selvagens e com os povos indígenas, levando a uma ocupação mais pontual e tênue. A segunda frente tem como referências o empresário, o fazendeiro e o agricultor moderno e empreendedor, o comerciante, resultando em um padrão de ocupação mais intensivo, institucionalizado e baseado na lógica da economia de reprodução ampliada de capital. De um modo geral, a frente pioneira sucede à frente de expansão. Mas há casos em que elas se sobrepõem, o que atrasa o desenvolvimento dos processos relacionados com a intensificação da produção econômica e da ocupação territorial. Foi o que ocorreu e, em alguma medida, ocorre ainda hoje no Pantanal Mato-grossense. As populações indígenas foram contatadas, “pacificadas” e quase extintas. Colonizadores europeus implantaram uma série crescente de atividades produtivas, muitas das quais não traduziram a expansão em ocupação densa ou permanente. Diferentes meios de transporte cruzaram as terras e águas pantaneiras, mudando os eixos de ocupação e produção. Mas há muitos espaços onde a natureza ainda continuou a prevalecer. Isso permitiu que a paisagem do Pantanal Mato-grossense chegasse aos dias atuais ostentando uma rica biodiversidade e ecossistemas bem conservados. Ainda que ameaçado, o Pantanal oferece alternativas para um desenvolvimento econômico que podem conciliar a preservação da natureza, o


respeito pelos diversos grupos humanos residentes e a geração de riquezas. O fato de o avanço da fronteira não ter sido linear e ter deixado espaços “vazios” ou povoados de modo mais esparso gerou a possibilidade de se pensar e planejar um futuro diferenciado. Esse futuro seria baseado em um uso menos intensivo de recursos naturais e em usos indiretos desses recursos, em associação com atividades intensivas em informação (turismo, pesquisa científica, fruição de belezas naturais etc.). Isso exige, entre muitas outras coisas, capacitação das populações residentes e agregação local de valores, apontando para uma economia baseada na conservação da natureza e no pleno desenvolvimento das capacidades humanas. O próximo capítulo trata dos conflitos e das potencialidades relacionados com a conservação da natureza em uma região específica do Pantanal Mato-grossense, localizada ao longo do rio Paraguai, no município de Corumbá.

Notas 1Tradução livre do original em inglês.


Capítulo 3

Disputas socioambientais e conservação da natureza no Pantanal

3.1 – Contexto e território

Este capítulo é um estudo de caso que envolve a conservação da natureza pantaneira e diversos grupos sociais – especialmente as populações ribeirinhas – que residem em Paraguai-Mirim, Barra do São Lourenço e Serra do Amolar, no município de Corumbá. Ele pretende ilustrar como a presença de diferentes grupos sociais no Bioma Pantanal toma a forma de inovações no sistema produtivo, de cooperações e de conflitos e como tudo isso se relaciona com a conservação do bioma. Essas populações ribeirinhas estão situadas na região conhecida como Pantanal do Paraguai, uma das subdivisões do Pantanal mato-grossense. Buscamos compreender o conjunto de relações e conflitos constitutivos da vida dessas populações e das instituições presentes em seu cotidiano, examinando os personagens principais, os seus interesses e características, e as suas modalidades de interação com o território e com outros atores sociais. O foco principal recai sobre os conflitos e perspectivas gerados pelas relações entre essas populações e as terras privadas e públicas destinadas à conservação da natureza que existem nas proximidades do Pantanal do Paraguai e de Cáceres (onde está situado o Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense). Os objetos de análise são o território e as inter-relações que são peculiares e constitutivas dele, derivadas de condições históricas e ambientais específicas e que dotam o espaço de significados (FELD e BASSO, 1996; COSTA FILHO, s/d; LITTLE, 2002). Conceitualmente, o território é um cenário onde diferentes atores sociais desenvolvem papéis relacionados com os seus interesses, finalidades e visões. Este cenário se configura como um campo de forças, no qual indivíduos, grupos e organizações se posicionam fluida e estrategicamente segundo as suas próprias orientações, as suas hierarquias de valores e as influências oriundas do ambiente natural. A finalidade do estudo é compreender os impactos tanto do ambiente natural sobre os humanos, como dos humanos sobre o ambiente natural (RIBEIRO, 2005; WORSTER, 1991; DRUMMOND, 1991). Para se ter uma noção geral do contexto social e ambiental estudado, é importante mapear alguns elementos: os atores e as forças em campo, as dinâmicas e os motivos para cada conduta. Serão considerados os seguintes elementos: 2

as populações ou grupos sociais ribeirinhos; as organizações não governamentais; o poder público e as instituições públicas envolvidas na gestão territorial; as instituições e os indivíduos envolvidos diretamente com a conservação da natureza; as atividades de turismo;


as características ecológicas, climáticas e físicas; a terra e os bens fundiários, a propriedade privada e os estoques de recursos naturais. Para melhor visualizar o cenário a ser interpretado, esses fatores foram divididos em duas categorias, stakeholder e impactor. Stakeholders são todos os atores locais e não locais (indivíduos, grupos, categorias de trabalho, comunidades etc.) que detêm algum interesse (econômico, identitário, sociopolítico) e que atuam para alcançar esse interesse. Impactor é uma fonte pessoal ou impessoal, material ou não material, de qualquer natureza, que aparece e opera na cena local, desencadeia processos, cria ou mobiliza bens e valores, determina reações e consequências, aglutina interesses e forças, e define áreas de consenso, resistência e conflito (BEATO, 2000). Em geral, todos os atores sociais envolvidos – coletivos e singulares – constituem stakeholders. No caso sob exame, eles são as populações ou grupos sociais ribeirinhos, os donos de terras, as organizações não governamentais envolvidas com a conservação da natureza, o poder público e o setor turístico. Diversamente, o elenco dos impactors presentes na nossa área de estudo varia conforme o seu papel, as suas cotas de poder, o seu espaço de ação e as contingências temporais (a presença/ausência/intensidade de ação política das categorias em um determinado período e de acordo com variações ambientais). Serão examinadas, portanto, as influências mútuas de diferentes impactors – condição ambiental, turismo, bens fundiários, instâncias de conservação da natureza e as populações ou grupos sociais ribeirinhos. A motivação da pesquisa está relacionada com os conflitos entre a conservação da natureza e posicionamentos, sobretudo do Ministério Público Federal, na figura do Procurador da República Wilson Rocha Assis. A partir de meados de 2010, Assis passou a direcionar as suas ações contra quem – proprietários de terras, que as adquiriram com o intuito de conservar a natureza – ele identifica como opositores das comunidades ribeirinhas. As ações perpetradas por Assis, como representante do Ministério Público Federal, se deram no sentido de tentar caracterizar as populações ribeirinhas residentes em Paraguai-Mirim, Barra do São Lourenço e Serra do Amolar como “comunidades tradicionais” e por meio dessa estratégia garantir direitos ilimitados ao uso dos recursos naturais, inclusive nas propriedades privadas destinadas à conservação da natureza. O Procurador da República também instaurou uma série de inquéritos com o intuito de ampliar direitos dos grupos sociais ribeirinhos e de dificultar as ações dos proprietários de terras dedicados à conservação da natureza. Essas ações têm provocado mais tensões e confusões do que gerado soluções para as populações ribeirinhas e certamente ameaçam a preservação da biodiversidade pantaneira. Por isso, buscamos reconstituir o contexto histórico e social do conflito, visando a uma melhor compreensão dos diversos atores implicados, dirimir imprecisões conceituais geradas por interpretações enviesadas e tendenciosas, e contribuir com a agregação de conhecimentos para o debate sobre a melhoria das condições de vida das populações ribeirinhas e para a conservação da biodiversidade pantaneira.

3.2 – A configuração regional nas últimas quatro décadas

A ocupação do Pantanal do Paraguai por fazendas de gado, na área onde residem as populações ribeirinhas do Paraguai-Mirim, Barra do São Lourenço e Serra do Amolar, ligou-se com os ciclos hidrológicos de mais longa duração marcados pela seca, quando as águas sobem menos e é maior a disponibilidade de terras não alagadas para pastagens. Um longo período de secas mais intensas


ocorreu entre 1938 e 1973. No subperíodo 1964-1973, as secas foram ainda mais pronunciadas (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005). Isso favoreceu o desenvolvimento da pecuária bovina na área. Nas fazendas de gado os proprietários acompanhavam de perto o manejo das boiadas pelos peões e vaqueiros. O estilo de vida social característico das regiões pantaneiras, onde a pecuária era a atividade predominante em fazendas isoladas entre si, mesclava elementos de parceria e compadrio com outros de mandonismo e violência. As relações sociais e de poder estavam fundadas, como vimos, em uma combinação de autoritarismo e assistencialismo (CORRÊA, 1995; CORRÊA, 2006; BARROS, 2007). A economia e a sociedade baseadas na pecuária, que se desenvolveu na região desde o século XIX, predominaram até meados dos anos 1970. A partir da grande enchente de 1974, os níveis do rio Paraguai e de seus afluentes subiram bem mais do que nas décadas anteriores. Embora continuassem seguindo o ritmo sazonal enchente-seca, descrito nos capítulos anteriores, as águas não voltaram aos níveis mais baixos das décadas precedentes. Terras, roças e pastagens, antes afetadas apenas periodicamente pelo pulso de inundações ou situadas fora do alcance da cheia, ficaram alagadas constantemente. Os níveis médios das águas subiram. Durante a enchente de 1974, de acordo com a memória de velhos moradores, o nível da água subiu como nunca acontecera antes. Alho Jr. e Gonçalves (2005) afirmam que as enchentes mais severas do século XX ocorreram em 1905, 1913, 1920, 1921, 1980, 1981, 1983, 1986, 1989 e 1995. A cheia de 1974 não consta entre as que apresentaram um maior volume de águas, mas ela marcou o momento em que um ciclo hidrológico de menor pulso de inundação findou e em que começou outro ciclo de maior pulso de inundação. É por isso que os velhos moradores têm uma lembrança tão marcante da enchente de 1974, cujas sequelas certamente foram novas para eles. Abriu-se na área uma época de amplas mudanças produtivas, econômicas e sociais: o fim dos grandes rebanhos bovinos, o desemprego, o desalojamento dos peões das fazendas, e a venda de terras para novos proprietários com interesses outros que não a criação de gado. Essas mudanças foram associadas estritamente às alterações ocorridas no meio biofísico (clima, hidrogeologia, pluviometria). A “grande” e “memorável” cheia de 1974 não foi, porém, o único fenômeno que alterou a vida dos pantaneiros. Primeiro, essa enchente apenas abriu uma fase prolongada de maiores cheias, fase essa que permanece ainda hoje. Esse crescimento dos volumes de inundação está perfeitamente de acordo com a hidrogeologia do sistema aluvial da planície pantaneira (CURADO, 2004). Em segundo lugar, esse período de cheias maiores combinou-se com o fenômeno do assoreamento do rio Taquari – afluente da margem esquerda do rio Paraguai. O rio Taquari, no norte do Mato Grosso do Sul, tem cerca de 800 quilômetros de extensão. Drena uma área de quase 80.000 km², que compreende territórios dos municípios de Alto Taquari e Araguaia (MT), Alcinópolis, Bandeirantes, Camapuã, Costa Rica, Pedro Gomes, Rio Verde, São Gabriel do Oeste, Sonora, Corumbá e Ladário (MS). A área de influência do baixo Taquari, situada na região dos pantanais dos Paiaguás e da Nhecolândia (região conhecida também como pantanal do Taquari), vizinha ao Pantanal do Paraguai, é a maior área inundada da bacia do Alto Paraguai. Esse enorme leque fluvial é alimentado pelos sedimentos arenosos que o rio Taquari transporta e deposita. Desde o final da década de 1970, tem ocorrido uma sedimentação mais intensa no Pantanal, com consequentes quedas de barrancos do rio Taquari e inundação permanente de extensas áreas, um fenômeno conhecido como “arrombados”. Os “arrombados” são “canais secundários que se formam pelo extravasamento em alguns pontos das margens do rio Taquari, resultando no alagamento de extensas áreas de terra (estimadas em 11.000 km ) anteriormente sujeitas apenas às inundações temporárias [...]” (CURADO, 2004, p. 9). 2


De particular importância para a área de estudo são o “Arrombado do Zé da Costa” e o “Arrombado do Caronal”. O primeiro é atualmente responsável pela vazão quase total do rio Taquari, ou seja, recebe quase toda a água desviada do leito original do Taquari. Moradores locais relatam que as águas do Taquari começaram a verter pelo “Arrombado do Zé da Costa” na década de 1980, inundando várias terras. Em 1997, 70% das águas do Taquari eram desviadas pelo “Arrombado do Zé da Costa”. Hoje em dia, o canal do Taquari, a jusante do “Arrombado do Zé da Costa”, está desconectado do canal principal e praticamente seco. Com isso, o trecho (de montante para jusante) compreendido entre o rio Negrinho (braço do Taquari) e o rio Paraguai-Mirim (braço do Paraguai) transformou-se no novo curso das águas do rio Taquari até o rio Paraguai (PADOVANI et al., 1998; GALDINO et al., 2006). O “Arrombado do Caronal” surgiu na década de 1990. Uma grande quantidade de água do Médio Taquari verte por esse arrombado. As suas águas estão inundando grandes extensões de terras usadas pela pecuária bovina no Pantanal do Paiaguás. Os produtores locais afirmam que boa parte das águas do “Arrombado do Caronal” está desembocando no rio Paraguai, na localidade de Porto Chané, pelo Corixo Mata Cachorro (GALDINO et al., 2006, p. 39). As localidades mais afetadas pelo fenômeno têm sido as das regiões do Cedro, de Miquelina, de Rio Negro e das colônias São Domingo e Bracinho (CURADO, 2004). O fenômeno do assoreamento tem alterado profundamente a paisagem, a geomorfologia, a vegetação, a fauna e as atividades humanas, tais como a agropecuária, a navegação, e a agricultura de subsistência praticada nas margens do rio (GALDINO et al., 2006). Se a enchente de 1974 e o subsequente período de maiores cheias fazem parte de um ciclo plurianual de cheias que é natural da dinâmica de longa duração do Pantanal, o mesmo não vale para o assoreamento do Taquari. As causas desse fenômeno estão relacionadas a ações antrópicas na bacia do Alto Taquari, ou seja, no planalto. Desmatamento das matas ciliares, avanço rápido e desordenado da atividade agropecuária, atividades agrícolas mecanizadas e erosão dos solos, nos últimos 30 anos, têm intensificado o transporte de sedimentos na Planície Pantaneira, ocasionando sérios impactos no ambiente, e consequentemente na economia e nas comunidades. Além disso, moradores e proprietários locais fizeram intervenções para proteger as suas propriedades do alagamento. Eles fecharam artificialmente os canais que iam se formando, desviando o fluxo das águas (GALDINO et al., 2006; CURADO, 2004). Extravasamento e aumento permanente do nível médio das águas, alteração dos leitos dos rios, alagamento de áreas de fazendas e de sítios cultivados, problemas de navegabilidade, perda de áreas de pastagem e de vegetação nativa são consequências do assoreamento do rio Taquari. Embora as causas sejam distintas, o período mais úmido aberto com a enchente de 1974 e o assoreamento do Taquari tiveram consequências sérias e afins. Muitas fazendas tradicionais de gado bovino, até então a principal atividade da região, entraram em decadência. Houve redução dos rebanhos em várias subregiões pantaneiras. A crise da pecuária expulsou várias famílias de suas propriedades e de seus locais de residência. Proprietários, moradores, trabalhadores e agregados abandonaram fazendas. Tudo isso provocou um intenso movimento de pessoas e uma radical mudança nos modelos produtivos. Os peões que trabalhavam nas fazendas de gado perderam os seus empregos e tiveram de se mudar, junto com as suas famílias. Eles migraram em direção às periferias urbanas de Ladário e Corumbá, vivenciando problemas de integração, ou ocuparam terras ao longo dos rios (Paraguai e afluentes). Isso levou a constantes realocações de moradia e de atividades produtivas. Em áreas urbanas e periurbanas, a crise da agropecuária coincidiu com um período de dificuldades econômicas de Corumbá, agravando-as. Duas indústrias locais, a Cervejaria Corumbaense e a


Siderúrgica, fecharam. Assim, a crise da pecuária implicou uma repentina migração campo-cidade, com ocupação urbana não planejada (FERNANDES, 2009). Populações rurais empobrecidas passaram a se dedicar a atividades de pesca artesanal e comercial. Com o incremento do turismo de pesca no Pantanal, a partir do final da década de 1970, e as limitações impostas à pesca comercial (como a proibição do uso de redes e tarrafas), os novos moradores da beira do rio, doravante denominados ribeirinhos, passaram a viver da coleta de iscas para a pesca esportiva (sobretudo a tuvira e o caranguejo) e de serviços como “piloteiros” de barco (voadeiras). O turismo emergiu quase na mesma época como uma nova atividade humana no Pantanal. A quase mítica Expedição Científica Roosevelt-Rondon (1913-1914), durante a qual foram realizadas pescarias, caçadas e safáris (DIACON, 2006; ROOSEVELT, 1976), contribuiu para a formação, sobretudo no exterior, de um imaginário sobre a vida selvagem no Pantanal. Muitos turistas internacionais, entre eles pescadores esportivos e excursionistas, foram atraídos por essa “aura” de natureza selvagem pantaneira. No Brasil, o interesse pelo Pantanal Mato-grossense foi, repentinamente, incrementado pelo sucesso da novela televisiva “Pantanal” (exibida, no ano de 1990, pela hoje extinta TV Manchete). A demanda turística pela região teve um boom, que durou até finais da década de 1990. O crescimento do setor turístico foi uma alternativa econômica em torno da qual setores da sociedade pantaneira se mobilizaram. Surgiram os serviços como pequenas agências de turismo, meios de hospedagem, guias e tripulações de barcos de excursões, comércio de apoio à pesca etc. Conforme mencionado, muitas populações ribeirinhas também acabaram aderindo à atividade turística, ocupando, no entanto, os degraus mais baixos da cadeia produtiva e de serviços. As novas oportunidades de trabalho e investimento atraíram também pequenos empresários de fora, que instalaram as suas atividades nos prédios abandonados do porto de Corumbá e ao longo do rio Paraguai, nos chamados “barcos hotéis”. Isso contribuiu para estimular políticas públicas voltadas para o desenvolvimento do Pantanal Mato-grossense. Entre elas, estava a finalização da ponte sobre o rio Paraguai, como parte da BR-262, conectando o oceano Atlântico e o oceano Pacífico (FERNANDES, 2009). Outras políticas visavam à intensificação da agropecuária, por meio da inovação tecnológica, da busca de novos mercados internacionais e de práticas produtivas economicamente sustentáveis, viabilizando o agronegócio. Outro objetivo foi a sempre controversa possibilidade de concretizar a Hidrovia Paraná-Paraguai, projeto que envolve cinco países (Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai). Com cerca de 3.400 km, indo de Cáceres (MT) até Nueva Palmira (no Uruguai), a hidrovia viabilizaria a passagem de navios de porte oceânico e facilitaria as exportações de soja, minérios e madeira. Esse projeto conta com forte apoio dos empresários da monocultura de exportação e com a oposição de pesquisadores e ambientalistas, que preveem todo um conjunto de impactos ambientais negativos para a região pantaneira (FERNANDES, 2009). Outro segmento produtivo que cresceu nos últimos anos é o mineiro-siderúrgico. A partir de 2005, grandes mineradoras instalaram-se em Corumbá, sobretudo na região do Urucum, trazendo investimentos, perspectivas de emprego e promessas de benefícios difusos.3 Há planos de ampliação do setor, o que cria expectativas significativas (FERNANDES, 2009). Um importante contraponto a essas estratégias mais tradicionais para o desenvolvimento do Pantanal Mato-grossense tem sido a presença crescente de entidades voltadas para a conservação ambiental. Na própria região considerada por esse estudo, além do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense (instituído pelo Decreto Federal nº 86.392, de 24 de setembro de 1981, com área de


135.683 ha), diversas organizações não governamentais (ONGs) e fundações diretamente ligadas à iniciativa privada têm se engajado desde os anos 1990 na criação de unidades de conservação (UCs). Isso acarretou basicamente a criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), destinadas a pesquisas e projetos científicos, à educação ambiental, à visitação e à construção de uma rede de monitoramento e preservação da natureza (http://www.mma.gov.br/areas-protegidas/cadastronacional-de-ucs). Essa preocupação com o monitoramento ambiental do Pantanal vem do reconhecimento e da valorização da sua rica biodiversidade e incentiva a adoção de práticas produtivas capazes de conciliar o uso dos recursos naturais com a preservação de espécies e ecossistemas. Isso pode contribuir para a definição da vocação do território, estimulando o turismo responsável e a preservação da natureza, o reconhecimento da diversidade cultural e a promoção de atividades capazes de melhorar as condições de vida das populações mais pobres.

3.3 – As condições ambientais e os grupos sociais em foco

Podemos considerar o contexto biofísico e climático como o primeiro e mais elementar fator de impacto da natureza sobre as sociedades. Ele impõe condições e determina efeitos concretos de grande magnitude, geralmente fora do controle humano (pelo menos fora de um controle absoluto), forçando as sociedades a adotar medidas de adaptação. No caso das localidades aqui estudadas, os componentes ambientais que mais condicionam o cotidiano das populações pantaneiras, sobretudo os grupos ribeirinhos, são o (i) regime sazonal de seca e enchente e (ii) a alteração no pulso de inundação do Pantanal e do regime das cheias. Juntamente com o assoreamento do rio Taquari, esses dois componentes levaram ao alagamento permanente de muitas terras. Isso mudou a vida econômica, social e cultural dos habitantes da área e a sua configuração geoespacial, conforme descrito. A influência direta do mundo natural pode envolver outros fatores. A fauna selvagem é um deles. A presença da onça pintada (Panthera onca) é um bom exemplo de como os ribeirinhos percebem e se relacionam com o mundo natural à sua volta. Este predador (topo da cadeia trófica), majestoso habitante do Pantanal, está constantemente presente nos relatos e nas queixas dos ribeirinhos. A onça, um dos principais símbolos do Pantanal, além de ser uma espécie carismática, é um indicador importante da “saúde” dos ecossistemas. É fundamental para a conservação da biodiversidade, pela espécie em si e pelo papel (predador de topo de cadeia) que desempenha no ecossistema. As populações ribeirinhas percebem a onça como uma ameaça constante à segurança dos humanos e dos animais domésticos. No entanto, são raríssimos os casos comprovados de ataques a humanos e a maioria das mortes de animais domésticos atribuída às onças pintadas tem causas diversas. Instituições como o CENAP (Centro Nacional de Predadores) do ICMBio e a ONG Pró-Carnívoros, que estudam os grandes carnívoros, confirmam isso. O descontentamento popular com a presença do predador pode ser resumido assim: ele é considerado um perigo e uma ameaça a mais, que aumenta o número de limitações com as quais os ribeirinhos têm de lidar (enchentes, impossibilidade de cultivar a terra e de criar gado, proibição de pesca na época da piracema, interdição da caça, proibição de cortar árvores etc.). Esse temor da onça pintada ilustra o fato de que o meio natural que hospeda grupos sociais ribeirinhos, ao invés de ser o lugar de uma relação equilibrada, harmoniosa, idílica (como muitos imaginam) entre eles e a natureza, é o lugar de numerosas tensões e conflitos. Trata-se de um meio


que impõe duras condições de adaptação e que mantém os moradores em um status de precariedade. No que diz respeito às onças pintadas, os ribeirinhos não têm uma preocupação maior com a sua preservação, nem uma percepção de sua importância para o ecossistema. Há um temor, muitas vezes infundado, e uma sensação de desconforto com a sua presença. Para muitos deles, o melhor seria que as onças fossem eliminadas. A natureza do Pantanal, na opinião dos ribeirinhos é, sim, generosa e rica, uma mitológica alma mater que nutre e sustenta. É percebida, muitas vezes, como uma cornucópia de onde provém um fluxo interminável de recursos naturais. Ao mesmo tempo, ela é vista como dura e de difícil domesticação. A percepção ribeirinha das condições ecossistêmicas é dividida profundamente, mas as suas duas versões estão perfeitamente “conciliadas” nos discursos dos ribeirinhos entrevistados. Uma delas é determinada por componentes e percepções positivas e a outra, por percepções negativas. As percepções negativas dos ribeirinhos têm um peso maior quando são instrumentalizadas e acrescentadas às reclamações contra os fatores limitantes, de ordem ambiental ou social, e quando validam o descontentamento com as injustiças às quais, na opinião deles, estão sujeitos. Isso quer dizer que, em um contexto de limitações reais ou percebidas, qualquer proibição, ainda que razoável e com base legal ou científica, é representada como um ônus insustentável. Os ribeirinhos lamentam as condições de precariedade, a proibição de acesso e uso de recursos naturais, a delimitação e a exclusão das áreas instituídas como unidades de conservação, a interdição de posse e de uso de armas etc. Os cientistas sociais sabem que a percepção e os relatos que os indivíduos fazem sobre o mundo que os envolve passam frequentemente por fortes distorções, parcialidades e falta de objetividade, mas eles são pistas indispensáveis para o entendimento das relações entre grupos sociais e o seu meio ambiente. Novamente, o caso da onça pintada é ilustrativo. Muitos ribeirinhos questionam o fato de que a lei tenha retirado do ser humano o direito de se defender da onça pintada. Situações tão profundamente sentidas pelos ribeirinhos são um terreno fértil para conflitos de difícil extirpação. Portar armas e matar onças, o que parece um direito legítimo de autodefesa para os ribeirinhos, gera conflitos com os agentes encarregados de proibir o porte de armas e a caça da fauna silvestre. Para resolver o conflito, garantindo a conservação da biodiversidade (a vida da onça) e os direitos dos ribeirinhos (a sua segurança), é importante compreender como humanos e onças podem compartilhar um mesmo território, com um mínimo de risco, e conhecer os benefícios, tangíveis e intangíveis, dessa convivência. Maior conhecimento científico sobre os ecossistemas do Pantanal e melhor entendimento sobre a adaptação dos humanos ao bioma, com todas as suas limitações e possibilidades, podem e devem contribuir para tornar o convívio entre ribeirinhos e onças pintadas mais pacífico e harmônico. Esses dois fatores têm também um papel relevante para alcançar objetivos mais amplos, embora conexos, como a conservação da biodiversidade e a melhoria das condições de vida dos ribeirinhos.

3.4 – As unidades de conservação e a conservação da biodiversidade no Pantanal Mato-grossense O Bioma Pantanal tem aproximadamente 150.355 km² – 1,76% do território nacional. Apesar de sua rica biodiversidade, está protegido apenas por duas unidades de conservação (UCs) públicas federais, que somam 1.505,65 km , ou seja, apenas 1% da área do bioma. Ambas são de proteção integral. A Estação Ecológica de Taiamã (MT) protege uma área de 148,82 km ; o Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense (MT/MS) protege 1.356,83 km . 2

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Se acrescentarmos as UCs públicas estaduais dos estados de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul, a área protegida no Pantanal aumenta para 4.475,10 km , pouco menos de 3% do bioma. Essa proteção adicional é garantida, sobretudo, por três parques estaduais e um pequeno monumento natural: Parque Estadual do Pantanal do Rio Negro (MS), com 779,08 km ; Parque Estadual do Encontro das Águas (MT), com 1.081,34 km ; Parque Estadual do Guirá (MT), com 1.106,45 km ; e Monumento Natural Morro de Santo Antônio (MT), com 2,58 km (DRUMMOND et al., 2010; http://www.mma.gov.br/areas-protegidas/cadastro-nacional-de-ucs; http://www.imasul.ms.gov.br e http://www.sema.mt.gov.br). Embora reconhecido como um bioma dotado de grandes atrativos naturais e riquezas biológicas, o Pantanal só foi protegido por UCs relativamente tarde. Em 1971, foi criada a Reserva Biológica do Caracará, na foz do rio Cuiabá com o rio Paraguai. Ao mesmo tempo começaram os estudos para a criação do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, que originalmente era para ser localizado na região da Nhecolândia. Questões políticas ligadas à divisão do antigo estado de Mato Grosso fizeram com que a criação do parque se desse apenas em 1981 (Decreto nº 86.392, de 24 de setembro de 1981), em outro local (municípios de Poconé e de Corumbá, na confluência dos rios Cuiabá e Paraguai). O parque incorporou a Reserva Biológica do Caracará, que foi revogada – ela havia sido uma importante base de operações para o combate à ação dos caçadores de jacarés. Boa parte do território do parque veio da compra de uma antiga fazenda de gado, inundada em consequência das transformações hidrológicas no Pantanal, ocorridas depois de 1974. Em 1981, foi criada também a Estação Ecológica de Taiamã (Decreto nº 86.061, de 4 de junho de 1981), na ilha do mesmo nome, localizada no rio Paraguai, a montante do parque (ALHO JR. e GONÇALVES, 2005; http://www.mma.gov.br/areas-protegidas/cadastro-nacional-de-ucs). Os parques estaduais são bem mais recentes. O Parque Estadual do Pantanal do Rio Negro foi criado em 2000 (Decreto nº 9.941, de 5 de junho de 2000), nos municípios de Aquidauana e Corumbá, em Mato Grosso do Sul. O Parque Estadual do Guirá foi criado em 2002 (Lei nº 7.625, de 15 de janeiro de 2002), no município de Cáceres, em Mato Grosso. O Parque Estadual do Encontro das Águas foi instituído em 2004 (Decreto nº 4.881, de 22 de dezembro de 2004), nos municípios de Poconé e Barão de Melgaço, em Mato Grosso (http://www.mma.gov.br/areas-protegidas/cadastronacional-de-ucs;http://www.imasul.ms.gov.br e http://www.sema.mt.gov.br). Vale destacar que as Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) situadas no Pantanal Mato-grossense têm desempenhado um papel importante de complementar a proteção oferecida pelas UCs públicas. Somadas as RPPNs federais e estaduais localizadas no Pantanal Mato-grossense, são 2.383,42 km² de área protegida, o que representa pouco mais de 1,5% do bioma. Assim, UCs públicas e privadas juntas chegam a proteger 4,5% do Pantanal (http://www.mma.gov.br/areasprotegidas/cadastro-nacional-de-ucs;http://www.repams.org.br/rppns). As maiores RPPNs do país estão no Pantanal. A RPPN SESC Pantanal, situada na parte norte do Pantanal, entre os rios Cuiabá e São Lourenço, no município de Barão de Melgaço (MT), é a maior RPPN do país, com superfície de 878,71 km . Essa RPPN foi certificada pelas Portarias do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) nº 071/97N, de 4 de julho de 1997, e nº 151-N, de 9 de novembro de 1998. Além disso, 184,36 km adicionais foram adquiridos pelo SESC e estão em fase de certificação, o que fará a área da RPPN chegar a 1.063,07 km (http://www.sescpantanal.com.br; http://www.mma.gov.br/areas-protegidas/cadastro-nacional-deucs;http://www.repams.org.br/rppns). Há, ainda, as RPPNs federais Estância Caiman (MS), criada pela Portaria IBAMA 35/2004 – DOU 47 – 10/03/2004, com 56,032 km ; Arara Azul (MS), criada pela Portaria IBAMA 51 – DOU 75 – 2

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19/04/2002, com 20 km ; Paculândia (MS), criada pela Portaria IBAMA 20/2002 – DOU 26 – 06/02/2002, com 82,32 km ; Fazenda Santa Helena (MS), criada pela Portaria do IBAMA 76 – DOU 210-E – 31/10/2000, com 42,953 km ; Fazendinha (MS), criada pela Portaria do IBAMA 065/94N – 17/06/1994, com 96km ; Jubran (MT), criada pela Portaria IBAMA 50 – DOU 75 – 19/04/2002, com 355,31 km ; e as RPPNs estaduais Rio Negro (MS), criada pela Deliberação CECA nº 010/2001 – 18/05/2001, com 70 km ; Neivo Pires I (Fazenda Portal do Pantanal Sul I), com 1,61 km (MS), e Neivo Pires II (Fazenda Portal do Pantanal Sul II), com 3,201 km (MS), ambas criadas pela Deliberação CECA – MS Nº 011 – 18/05/2001; e Santa Sophia (MS) criada pela Deliberação CECA nº 010/2001 – 21/05/1999, com 73,87 km (http://www.mma.gov.br/areas-protegidas/cadastro-nacionalde-ucs; http://www.repams.org.br/rppns). Na região enfocada mais diretamente por este estudo, existem, além do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, várias outras RPPNs: Acurizal, Penha, Dorochê, Rumo Oeste e Engenheiro Eliezer Batista. Há também a Fazenda Santa Tereza, uma grande propriedade (630 km ) adquirida por Teresa Bracher, diretora do Acaia Pantanal, núcleo do Instituto Acaia, com o intuito de conservação da natureza. Nela estão sendo realizados estudos para a criação de uma RPPN. Essas áreas são contíguas ao parque nacional e ampliam muito a área protegida. A Fundação de Apoio à Vida nos Trópicos (Ecotrópica), uma ONG criada em 1989, sediada em Cuiabá (MT), é a proprietária das RPPNs Acurizal, Penha, Dorochê e Rumo Oeste. Em março de 1995, a Ecotrópica adquiriu a Reserva Dorochê, com 265,18 km , localizada a nordeste do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense. Essa RPPN é um importante corredor biológico para a fauna terrestre migratória. Ela contribui ainda para a preservação de ambientes florísticos e faunísticos não existentes no parque. A RPPN foi reconhecida pela Portaria nº 6 do IBAMA, de 19 de fevereiro de 1997. As fazendas Acurizal (132 km ) e Penha (131 km ) foram adquiridas pela Ecotrópica em dezembro de 1995 e reconhecidas como RPPNs pela Portaria nº 7 do IBAMA, de 20 de fevereiro de 1997. Elas são vizinhas do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, a sudoeste, situadas entre o rio Paraguai e a Serra do Amolar e na própria Serra do Amolar. Protegem um ecótono único, de transição abrupta entre ambientes alagados e montanhosos. A RPPN Rumo ao Oeste agrega mais 9,9 km às áreas protegidas no Pantanal Mato-grossense. Está localizada na Lagoa Gaiva, no limite noroeste da RPPN Acurizal. O seu reconhecimento foi feito pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SEMA/MS), pela Deliberação nº 22 – CECA/MS, em 8 de junho de 2005. Fundadas com o intento de preservar uma parte significativa do ecossistema do Pantanal e formar um centro de estudos e pesquisas, as RPPNs da Ecotrópica dispõem, a cerca de 20 km ao sul do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, descendo o rio Paraguai, na sede da RPPN Acurizal, de estruturas destinadas à hospedagem de gestores e pesquisadores, de pista de pouso e de ancoradouro (http://www.ecotropica.org.br/index.htm; http://www.mma.gov.br/areasprotegidas/cadastro-nacional-de-ucs; http://www.repams.org.br/rppns). O Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense e as RPPNs Acurizal, Penha, Dorochê e Rumo Oeste formam um complexo de áreas protegidas, com aproximadamente 1.900 km – essa cifra corresponde a apenas 1,26% do Bioma Pantanal. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) reconheceu, no ano 2000, o conjunto como Sítio do Patrimônio Natural Mundial e como área-núcleo da Reserva da Biosfera do Pantanal Mato-Grossense (http://www.ecotropica.org.br/index.htm). Além disso, o Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense e a RPPN SESC são considerados sítios Ramsar – conforme a Convenção de Ramsar (Irã, 1991) para conservação de ambientes aquáticos de importância internacional. Mais do que o reconhecimento mundial do valor da biodiversidade do Pantanal, esses títulos implicam compromissos sérios do 2

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Brasil com a conservação dessa parte do bioma. Fig ura 3 – UCs existentes na área de estudo, 2013

1. RPPN SESC Pantanal, 2. RPPN Poleiro Grande, 3. Parque Estadual Encontro das Águas, 4. Fazenda Porto Jofre, 5. Fazenda São Bento, 6. RPPN Dorochê, 7. Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, 8. Parque Estadual do Guirá, 9. RPPN Rumo ao Oeste, 10. RPPN Acurizal, 11. RPPN Penha, 12. Fazenda São Gonçalo, 13. Fazenda Santa Rosa, 14. Sítio Serra Negra, 15. RPPN Engenheiro Eliezer Batista, 16. Fazenda Santa Tereza Fonte: elaboração IHP.

O Programa O Homem e a Biosfera (MAB), criado pela UNESCO, atribui a determinadas áreas do globo, consideradas de relevante valor ambiental e humano, o título de Reserva da Biosfera. Trata-se de uma área protegida que adota um modelo de gestão integrada, participativa e sustentável dos recursos naturais, com os objetivos básicos de preservar a biodiversidade e desenvolver atividades de pesquisa científica, para aprofundar o conhecimento, o monitoramento ambiental, a educação ambiental e o desenvolvimento sustentável, e melhorar a qualidade de vida das populações locais. Portanto, com o reconhecimento da Reserva da Biosfera do Pantanal, o Brasil fica obrigado a empreender diversas ações conservacionistas. A sudoeste do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, descendo cerca de 30 km para o sul, pelo rio Paraguai, está a RPPN Engenheiro Eliezer Batista, vizinha à RPPN Penha. Pertencente à empresa MMX Mineração e Metálicos S.A., ela foi fundada, em 2006, com a compra de duas propriedades rurais contíguas, às margens do rio Paraguai. A reserva foi criada por meio da Portaria nº 51 do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), de 24 de julho de 2008. Dos 202,60 km das duas propriedades, 126,08 km foram certificados como RPPN. A RPPN fez uma parceria com o Instituto Homem Pantaneiro (IHP), que assumiu a responsabilidade de gerir a área. O IHP é uma ONG, surgida em 2002, cujos objetivos principais são a preservação do Pantanal e o fortalecimento da identidade do homem pantaneiro. Promove ações voltadas para a proteção e 2

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valorização da diversidade cultural e ambiental. Além disso, busca o desenvolvimento socioeconômico da região, visando melhorar a qualidade de vida das populações pantaneiras (http://www.institutohomempantaneiro.org.br). Ao sul e ao lado da RPPN Engenheiro Eliezer Batista, descendo ainda mais o rio Paraguai, está a Fazenda Santa Tereza. A compra dessa fazenda por Teresa Bracher, com o intuito de conservar a natureza, e o contato com a realidade de vida da população moradora da beira do rio motivaram a implantação do Acaia Pantanal, em 2008, ONG que tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento humano e social do Pantanal por meio de ações educativas integradas à preservação do bioma. O Acaia Pantanal desenvolve quatro programas: a) Programa Rede de Proteção e Conservação da Serra do Amolar, programa homônimo ao trabalho desenvolvido em parceria com outras organizações, integrantes da RPCSA (Rede de Proteção e Conservação da Serra do Amolar), citada mais adiante. O programa oferece educação a jovens e adultos e apoio social às famílias, por meio da Escola Itinerante; b) Programa Jatobazinho, que integra a Escola Jatobazinho, escola de ensino fundamental gerida em parceria público-privada com a Prefeitura de Corumbá, e o Núcleo Jatobazinho, espaço de desenvolvimento de habilidades e competências para o pleno exercício da cidadania; c) Programa Relações com a Comunidade, que desenvolve atividades de fomento à cultura, saúde, educação e cidadania, além de ações de acompanhamento de políticas públicas; d) Programa de Educação para o Trabalho, que oferece cursos de capacitação para inclusão no mercado produtivo e de trabalho (http://www.acaia.org.br/acaia-pantanal/ – acesso em abril 2013; INSTITUTO ACAIA, 2013). As parcerias para a execução de ações conservacionistas e de desenvolvimento social entre organizações e proprietários de terras deram origem à Rede de Proteção e Conservação da Serra do Amolar (RPCSA). O seu objetivo é propor ações de gestão integrada para a conservação da biodiversidade, proteger um grande conjunto de áreas protegidas, angariar recursos financeiros, técnicos e logísticos, e promover o desenvolvimento social da população do entorno. Compõem a RPCSA, como parceiros: o IHP, a Fundação Ecotrópica, a Fazenda Santa Tereza, o Acaia Pantanal, e o Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense. A RPCSA conta ainda, como apoiadores, com a 2ª Companhia de Polícia Militar Ambiental do Mato Grosso do Sul, com o ICMBio, com a EBX, com a AVINA e com a Panthera Foundation. A área total que é alvo desse esforço de conservação é de 2.720 km , dos quais 2.090 km estão legalmente constituídos como UCs. As ações estão agrupadas em programas de fiscalização, comunicação, pesquisa científica, prevenção e combate a incêndios florestais e apoio à população local (http://www.institutohomempantaneiro.org.br). As relações entre as populações ribeirinhas e as organizações e os proprietários de terras engajados na conservação da biodiversidade são oscilantes. Essas relações são um dos principais temas do restante deste capítulo. No caso do parque nacional e das RPPNs, ainda que os gestores tenham que fazer controle, fiscalização, limitação e repressão de acesso e/ou de uso dos recursos naturais, as comunidades locais mantêm diferentes atitudes em relação a cada um deles (ou em relação às suas funções). Há entre os ribeirinhos tanto posturas de aceitação-consenso-cooperação quanto de conflitohostilidade-transgressão em face das instâncias e dos atores sociais ligados à conservação. Isto deriva de uma estrutura social relacional (diferente de uma estrutura social fundada na noção de direitos e responsabilidades), baseada na “pessoalização” das instituições. O consenso e a oposição nunca se ligam a princípios abstratos, mas sim a pessoas. Os ribeirinhos não são contrários à preservação ambiental em si, mas se opõem às limitações ao uso dos recursos naturais (iscas, peixes, animais de caça, madeiras e solos). Os seus sentimentos e ações são determinados por uma história relacional, 2

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feita de rostos, interações diárias, colaborações, conversas, desentendimentos, incompreensões, hostilidade e danos (sofridos ou imaginados). As regulações, normas e leis não são percebidas em sua racionalidade abstrata, mas sobretudo naquilo que implicam de sofrimento ou de benefício para cada família ou indivíduo. Os agentes da conservação geralmente vêm de fora do Pantanal e portam valores relacionados com a ideia de uma sociedade baseada no direito e em responsabilidades gerais. Ainda assim, enraízam-se na vida social do Pantanal quando decidem morar ou atuar nele. Eles inevitavelmente produzem impactos na vida cotidiana e na configuração da sociedade local. Para todos os efeitos, no entanto, eles são stakeholders, em virtude da “localidade” das suas ações. Eles têm caras, vozes e corpos que os habitantes podem ver e com os quais interagem diária e diretamente. Eles são interlocutores fisicamente presentes que personificam de maneira tangível uma determinada classe de princípios e interesses. As possibilidades de diálogo passam pela sua compreensão da dinâmica das populações ribeirinhas e pela construção de acordos baseados no entendimento de que há direitos a serem usufruídos, mas também responsabilidades a serem assumidas. A capacitação (educação) é uma clave importante para tornar os indivíduos mais autônomos e capazes de fazer escolhas sensatas (pesadas e pensadas) entre o que manter do passado e o que projetar para o futuro. Para os conservacionistas, o bioma Pantanal merece uma atenção especial. Eles julgam que a importância da sua biodiversidade é reconhecida por setores expressivos da opinião pública e sobretudo nos meios ambientalistas nacionais e internacionais. Em particular, a área abrangida pelo Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense e pelas áreas protegidas vizinhas tem vocação para a conservação e para as atividades correlatas a ela, por causa da biodiversidade que abriga e da presença de várias UCs. É fundamental lembrar a carência de UCs na planície Pantaneira. Embora haja progressos nos estudos para a implantação de novas UCs e em planos de corredores ecológicos para interligar o Pantanal com o Cerrado, e para conectar os diversos tipos de pantanais (MMA, 2007), estamos distantes de ter um percentual satisfatório de áreas protegidas por UCs no Pantanal Mato-grossense. Não chegamos nem perto da meta de 10%, o que é ainda pouco. O Brasil ainda está longe de cumprir, no Pantanal e em outros biomas, as metas quantitativas que ele mesmo estabeleceu para conservação dos ecossistemas terrestres e marinhos por meio de UCs – 30% do Bioma Amazônia e 10% dos demais biomas e da zona costeira e marinha. Essas metas nacionais, que deveriam ter sido cumpridas até 2010, foram adotadas pela Comissão Nacional de Biodiversidade (CONABIO), por meio da Resolução CONABIO nº 3, de 21 de dezembro de 2006. Elas derivam do compromisso do Brasil com as Metas CDB 2010, referendadas pelo Brasil e outros 192 signatários da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). Recorde-se ainda que na 10ª Conferência das Partes da CDB (COP-10), realizada em dezembro de 2010, em Nagoya, no Japão, as metas, denominadas agora Metas CDB 2020, cresceram, de 10% de todas as regiões ecológicas do planeta para 17%. O governo brasileiro enfrenta hoje o desafio de definir as novas metas nacionais: manter a meta de 30% para o Bioma Amazônia e ampliar o patamar de conservação de 10% para 17% nos demais biomas; para as áreas marinhas e costeiras, a proteção da biodiversidade precisa alcançar 10%. Ações públicas e privadas para melhorar as condições de vida das populações ribeirinhas e para integrá-las em atividades econômicas compatíveis com a conservação da biodiversidade são importantes para gerar opções que liberem esses grupos do puro e simples uso da terra e dos recursos naturais. Por outro lado, é urgente aumentar a quantidade de áreas protegidas por UCs no Pantanal Mato-grossense, para salvaguardar espécies e ecossistemas e para cumprir as metas da CDB.


Compreender as relações entre as populações ribeirinhas e os ecossistemas pantaneiros é um passo necessário para encontrar soluções para os conflitos relacionados com o uso dos recursos naturais e com as demandas da conservação da biodiversidade.

3.5 – O turismo de pesca O turismo de pesca, atividade relativamente recente no Pantanal mato-grossense, é um impactor de grande relevância. Para compreender este componente da vida socioeconômica da região, é importante reconstituir algumas de suas características históricas. Na área pesquisada por nós e talvez em outras áreas do Pantanal, o turismo de pesca é hoje a principal atividade geradora de renda para a população ribeirinha. Após o declino da agropecuária, devido aos alagamentos permanentes e assoreamentos, as populações locais, anteriormente empregadas nas fazendas de gado, passaram a se dedicar à pesca artesanal de subsistência e ao comércio de peixe. Com o desenvolvimento do turismo de pesca, a coleta e venda de iscas vivas (principalmente a tuvira e o caranguejo) destinadas aos turistas passou a gerar renda para os ribeirinhos. O turismo gera ainda a possibilidade de empregos de “piloteiros” dos barcos de pesca turística. A explosão do turismo criou um mercado significativo e uma alternativa para a economia decadente do antigo núcleo portuário de Corumbá e das suas áreas rurais. A pesca turística começou a competir com a pesca artesanal profissional, pois ambas visam aos mesmos recursos naturais. Entre as principais espécies capturadas no Pantanal, por turistas e pescadores profissionais, temos barbado (Pinirampus pinirampu e Luciopimelodus pati), cachara (Pseudoplatystoma fasciatum), dourado (Salminus maxillosus), jaú (Paulicea luetkeni), pacu (Piaractus mesopotamicus), pintado (Pseudoplatystoma corruscans) e piranha (Pygocentrus nattereri) (CATELLA, 2004). O perfil da pesca no Pantanal mudou ao longo dos anos. A produção da pesca profissional-artesanal cresceu de 1.007 toneladas, em 1979, para 2.136 toneladas, em 1984, quando ainda era permitido aos pescadores profissionais o uso de redes e tarrafas. Cerca de 17.000 pescadores esportivos atuavam anualmente na região, capturando em média 40 kg cada um, o que representava um total aproximado de 680 toneladas ao ano. Portanto, estima-se que a captura total registrada no Pantanal do Mato Grosso do Sul, em 1984, foi algo em torno de 2.800 toneladas, 75% pelos pescadores artesanais profissionais e 25% pelos pescadores esportivos (CATELLA, 2004). Esse quadro mudou. A pesca profissional-artesanal decaiu, em detrimento da emergente pesca turística. A própria legislação limitou a atividade dos pescadores profissionais, proibindo o uso de redes e tarrafas (Portaria Sudepe/MS nº 25/1983 e Decretos Estaduais nº 5.646/1990 e nº 7.362/1993). A maior parte da captura passou a ser efetuada por pescadores esportivos, cujos números cresciam. Entre 1994 e 1999, o desembarque total médio de pescado foi de 1.415 toneladas ao ano. A situação do período anterior se inverteu: 1.086 toneladas ao ano, ou 76%, foram capturadas pelos pescadores esportivos, contra apenas 330 toneladas, ou 24%, dos pescadores profissionais (CATELLA, 2004). O setor do turismo baseado na sede de Corumbá se desenvolveu. Os donos de agências turísticas e dos barcos-hotéis que percorrem o rio Paraguai se beneficiaram com essa mudança. Muitos ribeirinhos passaram a trabalhar para operadoras de turismo, principalmente como pilotos de barcos de alumínio com motor de popa – são os “piloteiros”, que levam os turistas para pescarias em canais e corixos ou em excursões. Um número maior de ribeirinhos passou a atuar como catadores e vendedores de iscas vivas. Mas, embora o turismo de pesca tenha virado uma alternativa econômica importante, há impactos sociais e ambientais a serem considerados e ajustes a serem realizados. Os empregos gerados, por exemplo, carecem na sua maior parte de estabilidade e garantias


trabalhistas. São sazonais – limitam-se à temporada anual de pesca, nos nove meses que vão de fevereiro a outubro. Essa situação é particularmente evidente no caso da região do Paraguai MirimSerra do Amolar, onde a coleta de iscas se tornou a principal – muitas vezes a única – alternativa de geração de renda para as populações ribeirinhas. Os principais impactos sociais da pesca de iscas são: a) ausência quase total de diversificação produtiva, pois quase todos dependem apenas dessa atividade; b) os catadores e, especialmente, as catadoras de isca fazem o trabalho mais pesado e insalubre da cadeia econômica turística, ocupando as posições mais baixas e menos rentáveis; c) a coleta de iscas emprega mão de obra pouco qualificada, barata e sobre-explorada; d) as escassas margens de ganho levam as populações ribeirinhas a entrar em uma relação de dependência com os intermediários para obter bens de primeira necessidade (alimentos); além disso, endividam-se e não conseguem acumular mesmo pequenas cifras monetárias que lhes permitam investir em melhoramento das condições de exercício de suas atividades ou em capacitação. Esses traços de especialização extrema, trabalho árduo e dependência de intermediários reproduzem condições adversas muito comuns entre populações extrativistas do Brasil (vide os antigos seringueiros amazônicos) e de muitos outros lugares. Portanto, para os ribeirinhos, a coleta de iscas permite apenas a subsistência, no mais estrito e literal sentido do termo: a atividade gera o mínimo indispensável para sobreviver, sem possibilidade de poupança. Embora não haja uma relação direta e necessária entre a presença de turistas e intermediários comerciais e a incapacidade dos ribeirinhos de acumular e alcançar melhorias, a situação atual contribui decisivamente para manter um status quo pouco promissor. As dificuldades dos ribeirinhos derivam de uma situação complexa de carência generalizada – escassez de oportunidades e de capacitação para aproveitá-las, combinação de pobreza material e baixo capital cultural, mentalidade mais favorável ao imediatismo e à imprevidência, fraca capacidade organizativa etc. Investimentos em capacitação e estímulos à diversificação das atividades produtivas podem ajudar as populações ribeirinhas a reverter esse quadro. Entre os impactos ambientais do turismo de pesca podem ser contabilizados a sobrepesca – tanto de peixes capturados pelos turistas como de iscas coletadas pelos ribeirinhos – e os danos causados aos barrancos na beirada dos rios onde atracam as grandes embarcações de turismo. O monitoramento das atividades da pesca turística e o estabelecimento de normas para o seu desempenho podem e devem contribuir para controlar os seus efeitos adversos no ecossistema pantaneiro. Pesquisas aprofundadas devem ser desenvolvidas para estabelecer níveis sustentáveis de pesca. Apesar dos problemas expostos, pensamos que o turismo de pesca está entre as atividades que podem promover o desenvolvimento econômico do Pantanal Mato-grossense, gerar renda e melhoria da qualidade de vida para as populações ribeirinhas, e garantir a preservação de espécies e a conservação dos ecossistemas. Mas, para tanto, a atividade deve ser planejada, normatizada, monitorada e fiscalizada.

3.6 – A terra: novos donos e novos usos Durante a pesquisa de campo, ficou evidente a importância de um fator histórico conexo às mudanças e às dinâmicas até aqui descritas. Esse fator contém algumas matrizes dos conflitos vigentes na área de estudo. Trata-se das mudanças nos usos e no valor da terra. Os processos de transformação que ocorreram no Pantanal nos últimos 40 anos reordenaram a propriedade da terra, a ocupação e os usos dos solos e das águas. A terra – um componente dotado de valor material e simbólico – passou por mudanças significativas desde a grande cheia de 1974 e dos alagamentos


permanentes, do aumento do nível médio das águas, do assoreamento e dos arrombamentos. Houve substancial perda de terras antes destinadas à pastagem e à roça. Para muitos donos e trabalhadores de fazendas, isso levou à interrupção das atividades produtivas habituais e ao abandono de terras ocupadas há anos. Houve um intenso movimento de realocação humana, com abandono de antigos locais e busca por terras secas remanescentes. Analogamente ao que ocorre em boa parte do território nacional, a situação fundiária no Pantanal Mato-grossense, desde sempre indefinida (falta de regularização e de escrituras), foi complicada pelo fato de que ex-empregados deixaram as fazendas de gado e ocuparam terras nas margens dos rios (terrenos de marinha, APP4). A maioria dos grandes fazendeiros, forçada a reduzir drasticamente os seus rebanhos, abandonou ou parou de investir nas suas propriedades. A população rural migrou das fazendas em que trabalhava e das moradias reunidas ao longo dos pontos de embarque e desembarque do gado. Poucos moradores permaneceram nas fazendas – donos, arrendatários, ocupantes ou herdeiros cujas terras não foram alagadas. Os ex-empregados das fazendas ocuparam tacitamente antigas propriedades inundáveis ou inundadas que ficaram sem moradores ou foram autorizados pelos fazendeiros a morar nelas. Esse quadro fundiário em mutação acelerada se complicou ainda mais quando surgiram novos destinos para as terras das antigas fazendas pantaneiras. Entre outras novidades, a região atraiu as citadas iniciativas públicas e privadas de conservação da biodiversidade. Novos atores sociais, como ONGs e indivíduos interessados na preservação e nas belezas do Pantanal, estranhos à agropecuária tradicional, começaram a comprar terras e fazendas. Houve casos de aquisição e unificação, pelo mesmo proprietário, de mais de uma fazenda – como no caso da Acurizal e da Penha, mencionado acima. Além da implementação do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, começou o processo de criação de UCs de caráter privado – as RPPNs. A consequência dessas iniciativas foi a limitação e, em alguns casos, a interdição de acesso, da retirada de madeira, da pesca, de acampamentos e da coleta de iscas nas áreas protegidas. Como verificamos durante a pesquisa de campo, esses novos proprietários, cujo traço comum é o comprometimento com objetivos de preservação e valorização dos bens naturais e paisagísticos, compraram terras com três características: terras ainda ocupadas por habitantes descendentes das famílias instaladas desde a época dinâmica de criação de gado e que permaneceram (há entre eles descendentes que tinham saído e, anos depois, retornaram aos lugares onde tinham morado os seus pais); terras em que famílias foram demitidas, indenizadas ou expulsas antes de as propriedades passarem dos antigos para os novos – e atuais – proprietários; terras em que moradores foram dispensados, demitidos, indenizados ou expulsos pelos novos proprietários, depois do ato de compra. É difícil reconstruir detalhadamente a cronologia exata de todas as saídas e ocupações porque esta é uma área de ocupação redesenhada pelos recentes e não documentados fluxos migratórios – internos e externos à área considerada, mas medianamente circunscritos. A informalidade da maioria desses processos e a escassez de documentação oficial complicam o trabalho de reconstrução histórica. Nesse caso, os levantamentos são baseados em depoimentos, memórias e reconstruções (parciais) feitas por pessoas diretamente envolvidas nas delicadas questões relacionadas com as aceleradas mudanças no uso e na ocupação do espaço.


Lembrando que as informações registradas no campo têm valor relativo e que as nossas hipóteses sobre os esquemas históricos de ocupação da região têm caráter aproximativo, é importante considerar alguns fatores geradores de conflitos: surgimento de novos proprietários e de novos usos da terra, sobretudo os relacionados com a conservação da biodiversidade, que puseram fim à falta de controle e regras que caracterizou a fase de abandono das fazendas e impuseram respeito às limitações de uso da propriedade pública (Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense) e/ou privada (RPPNs e outras – Fazenda Santa Tereza); mudança de hábitos consolidados, por causa da presença de novos interesses e novos atores; iniciativas de indivíduos de várias procedências (comunidade científica, pesquisadores, poder público, militantes sociais) engajados na defesa dos direitos das populações locais (consideradas por eles “populações tradicionais”) estimularam a manifestação de reivindicações inexistentes até há poucos anos, baseadas em razões até então não explicitadas. Estas questões serão discutidas e aprofundadas mais à frente. No entanto, um aspecto deve ser ressaltado desde já: os atuais traços socioeconômicos e culturais das populações ribeirinhas foram marcadamente influenciados por adaptações a fenômenos físicos razoavelmente recentes, ou seja, o período mais úmido que se iniciou com a enchente de 1974. Esses fenômenos causaram mudanças nas condições ambientais, sociais e produtivas, às quais os grupos que mudaram para as beiras dos rios tiveram que se adaptar. Cabe, pois, indagar sobre a legitimidade e a funcionalidade de argumentos identitários baseados em “tradições” do passado – relacionadas com a cultura, o modo de produção econômica e a organização social – para defender os direitos dos ribeirinhos de Paraguai-Mirim, Barra do São Lourenço e Serra do Amolar. A tradição mais antiga dos povos da região é, na verdade, moderna: uma cultura, economia e sociedade baseadas na pecuária, em uma estrutura social relacional assentada na falta de autonomia, no compadrio e na violência, como foi visto no capítulo 2. As eventuais heranças culturais de povos indígenas que habitaram o Pantanal em tempos pré-colombianos e pós-colombianos tinham sido dissolvidas ainda antes do ciclo de pecuária bovina pantaneira. Por sua vez, as atividades contemporâneas de coleta de isca e de condução de lanchas para o turismo de pesca são escassamente tradicionais, pois que totalmente dependentes de uma situação de mercado recente e moderna. Além disso, elas não parecem ter criado uma situação substancialmente melhor para a população ribeirinha. Portanto, a defesa de uma identidade “tradicional” implica simplesmente a reificação da pobreza, da exploração e dos baixos padrões de vida dos ribeirinhos, além de abrir margem para impactos crescentes sobre a biodiversidade e sobre os ecossistemas do Pantanal, causados tanto por ribeirinhos quanto por outros atores.

3.7 – Perfil socioeconômico dos ribeirinhos de Paraguai-Mirim, Barra do São Lourenço e Serra do Amolar A presente seção apresenta e interpreta os dados obtidos por meio de aplicação de um questionário a habitantes das localidades de Paraguai-Mirim, Barra de São Lourenço e Serra do Amolar. A intenção é integrar a análise quantitativo-descritiva com a análise interpretativa, elaborada a partir da observação direta efetuada em campo e das informações obtidas em entrevistas formais e em conversas com membros das localidades.


A nossa pesquisa de campo não se beneficiou das vantagens inerentes às permanências prolongadas dos pesquisadores junto aos grupos estudados, típicas dos estudos etnográficos clássicos (que muitas vezes consumiram muitos meses ou anos). Elas permitem um aprofundamento e uma disponibilidade de detalhes proporcionais ao tempo durante o qual a equipe de pesquisadores esteve em campo (sete dias, no nosso caso). Por isso, a pesquisa de campo não foi exaustiva, nem pretendeu ser. Outra questão pertinente sobre o nosso trabalho de campo diz respeito à diversidade de circunstâncias entre as várias localidades visitadas. Foi constatada uma diferenciação que revela não apenas variações de poder aquisitivo e de capacidade de estruturação da vida cotidiana, mas, também, preferências estéticas e gostos particulares. Vestuário, materiais de construção, tamanhos das casas, equipamentos domésticos, cuidados e limpeza das pessoas, das casas e dos seus arredores, meios e instrumentos de transporte e de pesca adotados variam muito de uma localidade para outra (e às vezes de uma casa para a outra na mesma comunidade). O Paraguai-Mirim e uma porção da Barra de São Lourenço (próxima à escola) são as localidades que exibem os maiores sinais de precariedade e carência. Em uma primeira análise, isso pode ter relação com vários elementos: a extensão e a qualidade das terras emersas ou disponíveis para a agricultura; a densidade habitacional de cada área estudada; a data de chegada/assentamento de cada habitante atual; as estruturas familiares e de grupo de cada localidade. Sem generalizar, parecem ser mais afetados por dificuldades sociais e econômicas os moradores das parcelas de terra mais densamente habitadas (nas quais a pressão sobre o estoque de recursos é maior) e das localidades mais próximas dos principais pontos de trânsito fluvial. Nesses dois tipos de localidade um parcela elevada dos moradores parece ter chegado em épocas mais recentes. Os núcleos familiares aparecem aí mais segmentados e “espalhados” – apesar de numericamente significativos. Essas evidências contrastam com dois fatos significativos: por causa de sua localização, são essas localidades as que vivem mais próximas das escolas e das vias de trânsito fluvial que levam à cidade. Ou seja, elas gozam – idealmente – de maior acessibilidade e visibilidade em relação aos serviços básicos (baseados na cidade ou ocasionalmente deslocados ao longo do rio, como no caso dos serviços de saúde oferecidos periodicamente pelas passagens do navio-hospital da Marinha de Guerra, por exemplo). As casas mais isoladas, situadas nos canais secundários, são maiores e mais bem cuidadas e são construídas totalmente com materiais naturais. Elas são, de fato, mais harmônicas e aconchegantes no que toca à distribuição e à funcionalidade dos seus componentes. Foi nessas casas amplas e articuladas que as nossas visitas inesperadas foram recebidas por famílias de muitos membros, improvisadamente reunidas nas grandes e limpas estruturas dedicadas à vida diurna e social. Essas habitações, a maioria na região da Serra do Amolar e em alguns locais de Barra de São Lourenço, são em geral rodeadas por pomares e hortas bem cuidadas, o que leva a pensar que a disponibilidade de terras secas, que permitem atividades agrícolas e pequenas criações, está relacionada a um padrão de vida mais bem estruturado (Ver Fotos 79 a 86). De todo modo, cabe enfatizar que não existe uma homogeneidade entre as características da cultura material e imaterial das localidades, das comunidades e das famílias residentes na mesma localidade. Entre os dias 8 e 15 de outubro de 2011, foram aplicados questionários a 62 famílias das três localidades mencionadas. Além disso, foram entrevistadas, individualmente, diversas pessoas das


localidades visitadas. Os dados apresentados e analisados a seguir foram retirados integralmente das respostas dadas aos questionários aplicados. As informações relevantes obtidas por meio das entrevistas individuais foram aproveitadas sobretudo em outras partes do presente texto. A cada um dos 62 respondentes foi aplicado o nosso questionário, que solicitava dados sobre cada grupo familiar, e não somente informações pessoais. Essa amostra corresponde a quase 90% das residências existentes nas três localidades visitadas. As respostas se referem a um total de 314 ribeirinhos residentes nos 62 domicílios objetos dos questionários. Os números de integrantes dos grupos familiares para os quais obtivemos esses dados variaram de 1 a 10 pessoas. O gráfico seguinte (Figura 4) mostra a distribuição por sexo dos respondentes. O questionário foi respondido por 53% de mulheres e 47% de homens. Embora a diferença não seja grande, ela se explica pelo fato de que os homens ficam mais tempo fora de casa do que as mulheres, que passam a maior parte do tempo na residência, cuidando dos filhos e dos afazeres domésticos. Portanto, é mais comum encontrar as mulheres em casa. Ainda assim, constatamos que as mulheres formam grande parte da mão de obra utilizada na coleta de iscas, que é feita no fim da madrugada e durante as primeiras horas do dia. Fig ura 4 – Distribuição por sexo dos respondentes (%)

Fonte: Pesquisa de campo.

Quanto à origem dos respondentes, constatamos que 72% são originários do próprio Mato Grosso do Sul e 26% vêm de outros estados e/ou países. Entre os que vieram de outros estados, a maior parte veio do vizinho Mato Grosso. Entre os 45 respondentes oriundos do próprio Mato Grosso do Sul, somente 1 é de outro município (Campo Grande). Os 44 restantes são de Corumbá. Outro dado relevante é que entre os sulmatogrossenses, 64% (29) são originários da própria área de estudo. Esse contingente representa 46% dos respondentes, ou seja, quase a metade (Ver Figura 5). Fig ura 5 – Orig em dos respondentes (%)

Fonte: Pesquisa de campo.


Para melhor aferir a mobilidade espacial dos ribeirinhos, identificamos as origens geográficas dos cônjuges, para compará-las com o atual local de moradia. Constatamos a formação de novos núcleos familiares a partir dos casamentos entre pessoas da mesma localidade e de localidades diferentes para confrontá-la com o paradeiro atual dessas famílias. Usamos apenas os dados dos respondentes e dos cônjuges naturais do Mato Grosso do Sul. Para respondentes e cônjuges, a cidade de Corumbá apresenta o maior número de ocorrências como local de nascimento. Nasceram na área urbana municipal e em algum momento migraram para a área de estudo, 12 respondentes e 12 cônjuges. Em segundo lugar para os respondentes estão as comunidades de Barra de São Lourenço e ParaguaiMirim, com 6 pessoas nascidas em cada localidade. Já no caso dos cônjuges, em segundo lugar veio Barra de São Lourenço, como berço de 7 pessoas, e em terceiro aparece Paraguai-Mirim com 5 pessoas. Estes dados estão no Quadro 1. Quadro 1 – Locais de nascimento dos respondentes e cônjug es naturais do Mato Grosso do Sul

Fonte: pesquisa dos autores.

Os dados do Quadro 1 mostram que os membros das localidades estudadas têm origem predominantemente na região em que vivem atualmente, ainda que seja possível admitir a importância de movimentos migratórios. O Quadro 2 e a Figura 6, a seguir, apresentam dados sobre a dinâmica espacial da formação dos casais, considerando o total das famílias dos respondentes. Há 9 casos (18%) de cônjuges nascidos na área de estudo, porém em localidades diferentes; em 10 casos (19%) os cônjuges nasceram na área de estudo e na mesma localidade; em 22 casais (42%) somente um dos cônjuges nasceu na área de estudo; em 11 famílias (21%) os cônjuges são nascidos fora da área de estudo, podendo ser no mesmo local ou não. Além disso, em 11 famílias estudadas existe somente um dos cônjuges (foi o caso de solteiros, viúvos e separados). A sua origem não foi identificada no quadro porque interessa aqui mostrar a dinâmica de formação das famílias. Desse modo, os dados corroboram a análise anterior, evidenciando que os grupos familiares se formam prioritariamente com membros de uma mesma localidade ou de localidades diferentes, mas pertencentes a nossa área de estudo.


Quadro 2 – Distribuição dos locais de nascimento dos casais (esposo e esposa) das famílias dos respondentes

Famílias em que há somente a presença de um dos cônjuges. Fonte: pesquisa dos autores. Fig ura 6 – Dinâmica espacial de formação das famílias da área de estudo (%)

Fonte: pesquisa dos autores.

Os dados contidos no Quadro 3 e na Figura 7 mostram a relação entre o local de nascimento do casal (respondente e cônjuge) – quando se aplica – e o local de moradia atual. Aqui também se considera o total das famílias dos respondentes: 8 (13%) casais vivem no local em que ambos os cônjuges nasceram ou o chefe de família sem cônjuge vive onde nasceu; 21 (34%) casais vivem onde somente um dos cônjuges nasceu; e 32 (51%) casais vivem fora do lugar em que ambos nasceram ou o chefe de família sem cônjuge não vive onde nasceu. Vale destacar sobre esses dados o fato de que existem níveis elevados de intercâmbio de pessoas entre as comunidades estudadas e, também, que os


deslocamentos entre as comunidades ocorrem tanto a partir da formação das famílias quanto das migrações microlocais. Essa conclusão se sustenta no argumento de que 17,5% dos casais nasceram fora da área de estudo e 51% vivem fora do local de nascimento. Isso significa que pelo menos 53 pessoas do universo dos maridos e das esposas das famílias investigadas vivem em locais diferentes de onde nasceram. Mesmo entre aqueles que informaram viver atualmente onde nasceram é possível admitir deslocamentos temporários. Aliás, somente 12,9% das famílias dos respondentes declararam ter vivido sempre no mesmo local. Quadro 3 – Comparação entre os locais de nascimento e os locais atuais de residência dos respondentes

Fonte: pesquisa dos autores. Fig ura 7 – Comparação entre o local de nascimento do casal e o local de moradia atual dos respondentes (%)


Fonte: pesquisa dos autores.

Os dados em que se baseia a Figura 8 permitem compreender melhor a dinâmica das migrações na área de estudo. Os respondentes foram solicitados a revelar o motivo que os levou a sair do último local de moradia. O universo das respostas corresponde a 54 dos 62 respondentes, já que a pergunta não se aplicava aos demais. O motivo mais frequentemente citado foi o de conexões familiares: casamento, convite de parentes, acompanhar pai ou mãe (ou ambos) etc. Em seguida, aparecem motivos relevantes para a análise da dinâmica de reordenamento territorial nas décadas recentes: mudanças na gestão das fazendas e implantação de UCs. Isso afetou moradores que se encontravam em terras alheias que foram vendidas, ou simplesmente por decisão do proprietário. Em terceiro lugar apareceram duas razões com a mesma percentagem (15%): enchentes e a busca por melhores condições de trabalho. O primeiro aspecto a ser destacado é que esses diversos motivos sinalizam que os deslocamentos não ocorrem somente por motivações alheias à vontade da população. As razões que podem ser imputadas à ação externa de outras pessoas ou às instituições públicas somam 31%. Eventos naturais e a conformação natural do espaço físico somam 17%. Mas 48% dos deslocamentos podem ser creditados a motivações pessoais. Uma melhor compreensão das dinâmicas dos deslocamentos dependeria de informações que não pudemos coletar, tais como o número de emigrantes mais ou menos recentes, o destino desses emigrantes e os motivos pelos quais eles migraram. Fig ura 8 – Razões que levaram as famílias a buscar o atual local de moradia


Fonte: pesquisa dos autores (%).

Para complementar a análise anterior, que evidencia a mobilidade espacial da população estudada, foi feita a correlação das motivações para os deslocamentos com o exercício das atividades profissionais. Mais de 50% (32) dos respondentes disseram que já trabalharam em atividades diferentes das atuais. Além disso, as atividades anteriores se davam por meio de relações duradouras e formais de trabalho, seja como empregado(a)s nas fazendas ou no comércio e serviços da zona urbana. A distribuição registrada na Figura 9 se refere ao total dos que responderam ter trabalhado em atividade diferente da que exercem atualmente. Em 41% das famílias alguém (o marido ou a esposa) já trabalhou em serviços diversos nas fazendas. Em segundo lugar, apareceu o trabalho feito nas cozinhas de fazendas. Esses dois foram desagregados, porque este último diz respeito a uma função bastante específica (cozinhar). Mas, se somarmos as duas atividades realizadas em fazendas, vemos que 63% das famílias têm pelo menos uma pessoa que já trabalhou em fazendas. Em seguida, com 16%, há pessoas que já trabalharam em atividades comerciais e no setor de serviços. Tanto esse grupo como o dos 9% que já foram do serviço público desempenharam essas atividades na área urbana do município. Fig ura 9 – Outras atividades desenvolvidas pelos respondentes e/ou cônjug es que foram anteriores e diferentes das atividades atuais (%)


Fonte: pesquisa dos autores.

Todos os dados apresentados indicam que os grupos estudados são constituídos por pessoas com múltiplas experiências. No contingente de casos (mais da metade dos respondentes) dos que já exerceram outras atividades, todas as famílias praticam atualmente a pesca ou a coleta de iscas, ou ambas. Existe uma mistura de pessoas que transitaram por espaços e atividades laborais distintas. No caso das atividades desenvolvidas anteriormente, predominam ocupações ligadas ou realizadas no mundo rural. É instigante pensar que 63% dos cônjuges das famílias pesquisadas que declararam que um ou ambos já se dedicaram a outras atividades trabalharam nas fazendas da área de estudo. Ou seja, a situação atual deriva de fatores circunstanciais independentes da vontade das pessoas ou do desejo pessoal. De qualquer forma, é importante destacar que mais da metade das famílias respondentes não vivia da pesca ou da coleta de iscas. Outro ponto relevante é o tempo dedicado às atividades profissionais praticadas atualmente. A Figura 10 leva em conta apenas as duas principais atividades atuais, cada uma delas dividida em três periodizações: menos de 10 anos; de 10 a 19 anos; e mais de 20 anos. Os percentuais referem-se ao universo das famílias que praticam cada uma das atividades. Assim, dos 46 informantes que disseram exercer a atividade pesqueira, 43% a praticam há mais de 20 anos, 30% entre 10 e 19 anos, e 23% há menos de 10 anos. Para a coleta de isca, os dados se inverteram nos dois primeiros estratos: 49% das 53 famílias que coletam isca fazem isso entre 10 a 19 anos, 33% estão na atividade há mais de 20 anos, e 16% há menos de 10 anos. Essas distribuições confirmam o ponto que realçamos antes – a coleta de isca, mesmo envolvendo quase 75% dos respondentes, é uma atividade bem mais recente. Fig ura 10 – Distribuição das famílias dos respondentes pelo número de anos no exercício das atividades profissionais atuais (%)


Fonte: pesquisa dos autores.

O estado civil dos respondentes foi outro dado captado (ver Figura 11). 50% deles declararam que “vivem juntos”. Outros 24% são casados. Portanto, 74% dos respondentes têm um cônjuge. Dos 46 que disseram ter um “cônjuge”, 82% informaram que esta pessoa é originária do próprio estado de Mato Grosso do Sul. Desse conjunto, somente um morador declarou que o seu cônjuge não é de Corumbá. Os demais (17%) são de outros estados, dividindo-se entre Mato Grosso e Bolívia, excetuando-se alguns poucos que não forneceram essa informação. Fig ura 11 – Estado civil dos respondentes (%)

Fonte: pesquisa dos autores.

A distribuição dos domicílios por número de residentes pode ser visualizada na Figura 12. Em 32% dos domícilios moram de 1 a 3 pessoas, em 39% das residências vivem de 4 a 6 pessoas e em 29% das casas vivem de 7 a 10 pessoas. A média é de 5,1 pessoas por domicílio, relativamente alta em vista das cifras registradas no país, no estado e no município. Dados do Censo Demográfico 2010 registram que no Brasil a média de residentes por domicílio é de 3,3 pessoas; no Mato Grosso do Sul a cifra é 3,2 pessoas, e no município de Corumbá a cifra é 3,7 pessoas (http://censo2010.ibge.gov.br). Portanto, as famílias das comunidades estudadas vivenciam uma situação bem distinta e menos confortável, já que, quanto maior o número de pessoas vivendo em um mesmo domicílio, maior é a


divisão dos recursos disponíveis. Fig ura 12 – Distribuição dos domicílios dos respondentes

por número de pessoas residentes (%)

Fonte: pesquisa dos autores.

O nível de escolaridade dos ribeirinhos estudados é baixo. Os dados mostram que a maior parte dos moradores não concluiu ou ainda está cursando o Ensino Fundamental. O Ensino Médio completo ou incompleto é um nível de instrução quase ausente. Além disso, há elevada incidência de estudantes em situação defasada no tocante à relação idade versus ano escolar, situação que tem diversas explicações: repetência, desmotivação, falta de compromisso dos pais (retardando o ingresso dos filhos na escola ou retirando-os durante algum tempo), entre outros. Quando são considerados todos os membros das famílias, exceto os respondentes, 11,9% deles são analfabetos. Quando se exclui as pessoas que ainda não atingiram a idade escolar obrigatória, o índice sobe para 14,1%. A precária situação educacional dessa população ajuda a compor o quadro de referência para analisar e compreender parte dos múltiplos desafios que ela enfrenta para viver. Parte da precariedade se deve à ausência de oferta de serviços educacionais. Em termos utilitaristas, outra parte da precariedade pode ser atribuída a fatores culturais e às limitadas perspectivas de melhoria de vida, já que nessas localidades existem poucas oportunidades de emprego que exijam algum nível de escolaridade. O efeito mais perverso disso é que a deficiência no campo educacional se reflete na própria vida das comunidades, nas dificuldades de se organizar e de construir capital humano e social, e na fraca capacidade de exercer pressão junto às instituições que podem oferecer bens e serviços coletivos. Os dados expressos na Figura 13 se referem ao tempo de moradia na localidade, dividido em três faixas. Das 62 famílias dos respondentes, 30% têm até 9 anos de residência no local. As que têm de 10 a 29 anos de moradia na localidade representam 40%. As que moram há 30 anos ou mais somam 25%. Portanto, 66% (uma maioria) das famílias residem há 10 anos ou mais na localidade. Entretanto, 70% vivem no local a menos de 30. Percebe-se que existe uma grande variação entre os moradores no item tempo de moradia. O fato não pode ser explicado somente pelas diferenças de idade, pois migrações e deslocamentos temporários também têm influência. Fig ura 13 – Distribuição das famílias dos respondentes por tempo de moradia no local


Fonte: pesquisa dos autores (%).

Outra informação levantada foi sobre a propriedade da terra onde residem as famílias. As Figuras 14 e 15 mostram os resultados. 40% disseram residir em áreas públicas. Agrupamos essas respostas, pois alguns disseram que a área é da Marinha e outros afirmaram que a terra é da União. Somente 21% responderam que a terra é própria. Porém, eles informaram que não detêm documentos comprobatórios. O terceiro grupo mais numeroso (15%) disse que as suas casas ficam em terras pertencentes a terceiros, que podem ser fazendeiros, antigos donos, e assim por diante. Outros 15% não sabem de quem é a terra onde vivem. 6% estão em terras de parentes. Esses dados permitem algumas inferências: (i) desconsiderando os que dizem viver em terra própria, quase 80% das famílias vivem em uma frágil situação de dependência; (ii) a heterogeneidade da situação dos locais de residência evidencia que a formação desses grupos sociais decorre de fatores que foram “empurrando” as pessoas para as localidades em que residem, em função da falta de melhores opções; (iii) essa afirmação é corroborada pelo fato de que 40% das famílias vivem em terras públicas. Em meados de 2012 foram emitidos e entregues aos ribeirinhos TAUS (Termo de Autorização de Uso Sustentável), instrumento de regularização fundiária que confere aos moradores da beira do rio, área da União, o direito documentado de moradia e utilização da área para subsistência. Fig ura 14 – Situação da propriedade da terra onde se localiza o domicílio (%)


Fonte: pesquisa dos autores.

As informações contidas na Figura 15 estão relacionadas com os dados da Figura 14. 82,3% dos respondentes disseram que a casa da família é própria. Mas, se apenas 21% vivem em terra ou lote próprio, é difícil confirmar que haja percentual tão alto de pessoas com casa própria. Isso significa que, por serem áreas sem dono identificado e presente, as pessoas constroem nela e consideram suas tanto a terra quanto a casa. O outro grupo – 17,7% – informou que a família mora em casa cedida/emprestada. O que parece estar em jogo aqui é um caráter de provisoriedade que essa população assume para a própria vida, já que importa “ter” uma casa enquanto se vive na localidade. O padrão das construções é muito simples. As moradias são feitas rapidamente quando a família se instala na localidade ou quando a enchente inviabiliza a permanência na residência anterior. Os dados sobre essas duas últimas questões podem ser reforçados pelo fato de o trabalho da maioria das pessoas não ser relacionado com a terra, mas sim com a pesca, e por consequência, com os rios, que são públicos. Isso leva a perguntar se foi a pesca que levou à instalação das famílias nessas localidades ou se foi a situação de falta de terra para o desenvolvimento de atividades agropecuárias que conduziu as pessoas para a pesca. Considerando o contexto mais amplo das localidades, a primeira hipótese parece mais razoável, embora a falta de acesso a terras agricultáveis, seja por motivos naturais (inundações mais fortes), seja por motivos sociais (falta de regularização fundiária), seja obviamente um fator interveniente. Fig ura 15 – Situação de propriedade da residência (%)


Fonte: pesquisa dos autores.

Como vimos, as condições dessas residências em geral são precárias. A maior parte das famílias mora em casas de tamanho inadequado. Na Figura 16 está expressa a distribuição percentual dos domicílios por número de cômodos. O maior grupo, com 30,6%, é o de residências de apenas dois cômodos. Ao considerarmos os dados sobre os tamanhos dos grupos familiares e compará-los com os números de cômodos, vemos que em muitos casos a relação espaço/morador não ajuda a proporcionar uma melhor qualidade de vida. Fig ura 16 – Residências por número de cômodos (%)

Fonte: pesquisa dos autores.

Quanto ao acesso a bens e serviços básicos, a situação das famílias estudadas é muito precária, conforme mencionamos em outras partes deste estudo. Não há fornecimento de água tratada, nem redes de coleta de esgoto. 100% das famílias utilizam água retirada diretamente dos rios. Somente 22,6% dos domicílios dos respondentes têm banheiro. O rebatimento direto desses déficits no


saneamento básico ocorre sobre a saúde, pois ocorrem doenças consideradas de fácil controle. Nestes aspectos a situação dessas comunidades não difere muito da de milhares de localidades rurais em todo o país. A Figura 17 mostra os percentuais de domicílios dos respondentes equipados com alguns bens considerados básicos para um bom padrão de vida. Apenas 41,9% dos domicílios têm acesso a energia de gerador. 48,4% declararam que têm aparelho de televisão em casa – ou seja, há mais domicíios com televisão do que com energia. Isso se explica por que em alguns casos o aparelho é movido a bateria. Além disso, 27,4% têm geladeira e outros 58,1% têm fogão a gás. Como as localidades não dispõem de infraestrutura para oferta residencial de energia elétrica, a oferta de energia tem cobertura muito menor do que em outros contextos rurais. Exatamente por isso, a posse de um ou outro item não significa que ele tenha uso contínuo. Devido às grandes distâncias e aos custos associados para instalar redes de transmissão e distribuição de energia elétrica, a solução mais viável para essas localidades é a adoção de fontes energéticas alternativas. Fig ura 17 – Percentuais de domicílios com acesso a bens básicos

Fonte: pesquisa dos autores.

Em relação às atividades profissionais e de manutenção da família, 85,5% das famílias dos respondentes coletam isca, 74,2% pescam e apenas 21% praticam a agricultura (Figura 18). Das 53 famílias que coletam isca, 42 (80,8%) também pescam. Do total de famílias que pescam (47), 80,9% comercializam o pescado. O restante utiliza os peixes capturados para o consumo familiar. No tocante à coleta de isca, somente um respondente disse que não vende. Fig ura 18 – Atividades produtivas dos respondentes (%)


Fonte: pesquisa dos autores.

No caso da agropecuária, das 14 famílias que disseram fazer plantios e/ou criar algum gado bovino, somente 3 (21,4%) afirmaram que vendem a produção. Os resultados da produção agrícola são, portanto, destinados prioritariamente ao consumo familiar. As áreas cultivadas são pequenas; na maior parte dos casos os cultivos são realizados nos quintais das residências. Os respondentes geralmente não souberam dizer com precisão o tamanho da área plantada. As espécies de cultivos são aquelas comumente encontradas em contextos de agricultura familiar e de populações ribeirinhas: mandioca, milho, cana, abóbora e banana. Outras plantas frutíferas são vistas ao redor das casas: laranja, limão, goiaba, abacaxi, acerola, melancia e melão. Apesar da concentração na pesca e na coleta de isca, ainda assim se pode dizer que as famílias mesclam atividades diferentes, seja para aumentar os “ganhos”, seja para compensar perdas eventuais de qualquer uma das atividades. De resto, esse tipo de estratégia é comum em contextos onde existem variações sazonais nos resultados do trabalho, principalmente quando elas ocorrem por fatores naturais. É importante registrar que somente 6 das 62 famílias dos respondentes praticam as três atividades: 8 famílias plantam e coletam isca; 41 famílias dependem da pesca e da coleta de isca. Por outro lado, os dados revelam a baixa rentabilidade das três atividades e a dificuldade para garantir a sobrevivência familiar para quem pratique somente uma delas. Neste sentido, 4 famílias afirmaram que apenas pescam e 10 que apenas coletam isca. Das 13 famílias que praticam agropecuária, 3 não se engajam nas duas outras atividades. Em um caso, a família tem barco e faz fretes. Em outro caso único, o marido trabalha exclusivamente com agricultura. A predominância da pesca e da coleta de isca possivelmente se liga à maior facilidade para praticá-las e mesmo à inexistência de outras opções. A conjugação de duas ou mais atividades é uma estratégia para aumentar a renda familiar (não somente financeira) e para amenizar as incertezas de uma ou outra atividade. É pertinente observar que, das famílias que pescam (46 dos 62 respondentes), 41,3% (19) pescam o ano inteiro. 3 dessas famílias recebem seguro-desemprego durante a piracema. No caso da coleta de isca, 28 respondentes das 53 famílias que praticam essa atividade afirmaram que trabalham o ano inteiro. Nesse grupo, 4 famílias recebem o seguro-desemprego durante a piracema. Esse dado indica que ocorre desrespeito a essa restrição, estabelecida para garantir a reprodução dos peixes. Seja por desconhecimento ou por necessidade, ocorre desobediência ao regulamento que disciplina a atividade pesqueira. Ainda no que diz respeito ao cumprimento dos regulamentos de pesca, registramos que 44 das 62


famílias respondentes têm registro/carteira de pescador. 6 dessas famílias só praticam a coleta de iscas e 4 vivem só da pesca. Por outro lado, 8 famílias pescadoras não têm o referido documento. 13 famílias de coletores de iscas estão na mesma situação irregular. Portanto, no que diz respeito à pesca, existe um esforço no sentido de obter a carteira de pescador. Isso é estimulado pela expectativa de recebimento do seguro-desemprego durante o defeso, já que só têm direito a ele os pescadores registrados. É grande a variedade dos pescados. As espécies – utilizadas tanto para a venda quanto para o consumo familiar – mais mencionadas pelos respondentes foram pacu, piranha, pintado, palmito, barbado, pacupeva (ou peva), jaú, kimbé, traíra, dourado, acari e xibué. As três primeiras são as mais citadas pelos moradores. Já a tuvira, o caranguejo e o cascudo são as principais espécies capturadas para o uso como iscas vivas pelos turistas de pesca. As respostas sobre a produtividade da coleta de iscas variaram de um mínimo de 200 iscas em uma “semana ruim” até 3.000 em uma “semana boa”. Já para a pesca artesanal, as respostas variaram de 2 a 13 kg/dia. Os preços pagos pelos intermediários são baixos. Segundo os respondentes, os preços das iscas variam de R$ 0,10 a R$ 0,50 por unidade. Mas o preço médio é de R$ 0,30 para o caranguejo e R$ 0,50 para a tuvira. Para os peixes, os preços variam muito conforme as espécies. No conjunto, a variação vai de R$ 4,00 (piranha) a R$ 13,00 (pintado) por quilo. A rentabilidade dos pescadores é pequena, pois os intermediários obtêm altos lucros. Em estudo realizado na mesma área, Amâncio et al. (2007) afirmam que as margens de lucro dos intermediários chega a 100% ou mais. Foi indicado que as iscas, pelas quais os intermediários pagavam R$ 0,15 a R$ 0,20 por unidade, eram vendidas para os turistas da pesca por R$ 0,50/unidade, em média. Tanto o valor comercial das espécies quanto a produtividade da pesca apresentam grandes variações. Isso também gera incertezas quanto aos resultados obtidos pelos pescadores. No que diz respeito à comercialização dos resultados de qualquer uma das atividades dos moradores da área de estudo, os intermediários invariavelmente tiram a sua parte. Eles intervêm também nas compras dos moradores, no melhor estilo dos mais bem conhecidos “regatões” da Amazônia. Apesar de muitos respondentes informarem que tanto o peixe para consumo quanto as iscas são vendidos para os turistas, os relatos, depoimentos e observações mostram que não é isso que ocorre. As respostas “vendemos para os turistas” indicam apenas o destino final dos produtos comercializados, e não uma relação comercial direta entre pescadores e turistas. A relação dos pescadores ribeirinhos da área de estudo com a comercialização dos seus produtos, tal como ocorre em muitos outros lugares do país, sofre a intervenção onerosa de intermediários. Como a população local não tem contato direto com o turista comprador, a renda subtraída pelo intermediários comerciais não é investida na melhoria da qualidade de vida ou das condições de trabalho dos pescadores. Entretanto, cabem umas ressalvas positivas no que diz respeito ao papel dos intermediários e sua relação com os ribeirinhos. Em primeiro lugar, poderíamos questionar se Amâncio et al. (2007), ao fornecer o dado relativo ao lucro de 100% obtido pelos intermediários sobre a compra do pescado, tiveram acesso aos custos que eles enfrentam (se levaram em conta, por exemplo, depreciação de investimentos em barcos e motores, custos de combustível e lubrificantes, gelo para manter refrigerado o pescado, tempo de trabalho e deslocamento etc.). Além disso, é inegável a estrita dependência entre ribeirinhos e intermediários, sendo que os últimos cumprem um papel indispensável no que diz respeito ao abastecimento e ao acesso a bens e produtos primários que, de outra forma, seriam difíceis e muito caros de obter (visto tanto as oportunidades como os custos de transporte para Corumbá). Aliás, conforme declarado em algumas


entrevistas, a escolha de vender iscas e pescado para os intermediários acaba sendo proposital: por serem adquirentes seguros, sempre presentes e interessados em comprar, eles representam uma garantia contra qualquer margem de incerteza. Outro aspecto notável é o dos métodos e instrumentos adotados nas atividades. Prevalecem técnicas artesanais e ferramentas rudimentares. As práticas de trabalho da população estudada tipicamente envolvem todo o grupo familiar. Constatou-se que, do total de famílias pesquisadas, em pelo menos 56,5% dos casos a esposa participa do trabalho do marido. Esse percentual aumenta para 66,7% quando não se descarta as famílias às quais a situação não se aplica, pelo fato de não existir um ou outro dos cônjuges. Já o auxílio dos filhos é menos frequente – acontece em 29% das famílias. Há várias justificativas para isso: não ter filhos; os filhos não moram mais com os pais; os filhos ainda não têm idade suficiente para trabalhar. Além disso, 24,2% dos chefes de família não responderam a essa pergunta. Não existem ganhos individualizados para os membros da família. A renda é destinada na sua totalidade para as despesas familiares. Prevalece um caráter coletivo dos resultados do trabalho do grupo familiar. É possível que tal característica contribua para a unidade familiar, mas essa estratégia pode estar também associada à baixa rentabilidade das atividades e às oscilações de produtividade. Foi constatado ainda que existem poucas opções de trabalho além das três principais seguidamente mencionadas nesta seção – pesca, coleta de isca e agricultura. Em somente 11,3% (7 casos) das famílias dos respondentes algum membro trabalha em outra atividade. As ocupações mencionadas foram merendeira escolar, piloteiro (de barco), motorista, serviços braçais na cidade (Corumbá) e gerente de fazenda. Consideramos que essas opções são atraentes para a população estudada se os empregos forem estáveis e os rendimentos, bons. Isso indica que existe para pelo menos alguns moradores uma propensão a descartar ou minimizar as atividades de pesca, coleta de isca e agricultura. Comparando os dados sobre os pequenos cultivos realizados nos quintais das casas com as informações sobre as atividades agrícolas, 27 entre os 48 respondentes que informaram não se dedicar à agricultura na verdade mantêm pequenos cultivos nos quintais. Entre todas as famílias, 40 fazem pequenos plantios de mandioca, milho, banana, entre outros. O cultivo de árvores frutíferas é encontrado em 23 dos domicílios e em 17 deles existem hortas. No que diz respeito à criação de animais domésticos, as galinhas são encontradas em 35 residências, os bois em 9 e os porcos em 7. O destino desses animais é basicamente o consumo familiar. Eventualmente ocorre alguma troca com vizinhos por gêneros alimentícios ou por outros animais. Os dados estão no Quadro 4. Em relação às áreas utilizadas para plantios e criações, 27 famílias informaram que são emprestadas e/ou cedidas por donos de fazenda ou por familiares. Em alguns casos, as famílias reconhecem que utilizam áreas públicas. Quadro 4 – Ocorrências absolutas de plantios e criação de animais domésticos entre os respondentes*

* admite múltiplas respostas.


Fonte: pesquisa dos autores.

Além dos recursos naturais disponíveis nos rios, a população tem acesso a outros recursos. A caça parece ser pouco praticada na região. Somente 7 famílias informaram que caçam (capivaras e porcos do mato). Outros 7 respondentes disseram que os vizinhos caçam, sendo que 4 dos que deram essa informação se declararam caçadores. Contudo, este tema é de difícil abordagem devido às restrições legais à caça. É difícil avaliar a intensidade da caça nessas comunidades com base somente nas respostas dos respondentes. Um deles afirmou que “todo o mundo caça”. De toda forma, fica claro que a vida dessa população está muito mais ligada à vida do rio do que à floresta (onde ocorre a maior parte da caça) ou mesmo à terra. Ocorre também a coleta de frutos nativos, tais como bocaiuva, acuri e ata. Os respondentes, porém, mencionaram que também “coletam” espécies geralmente cultivadas, tais como manga, goiaba e caju. Do total de 62 respondentes, 25 afirmaram que coletam frutos disponíveis na região. Somente 3 famílias informaram que vendem os frutos coletados. O restante informou que usa as frutas apenas para o consumo familiar. Portanto, a extração de frutos nativos ou o plantio de espécies frutíferas não tem relevância econômica para as comunidades estudadas. Da mesma forma, não parecem ser um traço cultural importante e muito menos um componente identitário. Por fim, outro recurso que parece ter grande demanda local é a madeira. A madeira para uso local tem dois destinos: a construção de casas e lenha para uso doméstico. Entre os respondentes, 39 declararam usar madeira para uma ou ambas as finalidades. Existe uma demanda constante de madeira para construção ou reforma das casas, devido às enchentes que regularmente as danificam. Portanto, essa demanda se origina do próprio contexto ambiental em que vivem as famílias, dos recursos naturais a que têm acesso e da dificuldade de obtenção de outros materiais de construção. Por isso mesmo, é provável que o número de usuários declarados de madeira esteja subestimado. O Quadro 5 apresenta os dados colhidos referentes à caça, à coleta de frutos nativos e ao uso de madeiras. Depois da pesca, a madeira é o recurso natural mais utilizado/demandado pela população local. Não foram encontradas evidências de exploração madeireira para fins de comercialização. Não há dúvidas, portanto, sobre a dependência da população em relação aos recursos naturais, cuja exploração parece ocorrer no nível da satisfação das necessidades básicas, o que mesmo assim causa algum tipo de impacto. Quadro 5 – Ocorrências absolutas de práticas de extrativismo e caça entre os respondentes

Fonte: pesquisa dos autores.

Colocado esse panorama das atividades desenvolvidas pelas populações das localidades estudadas, cabe agora estimar o rendimento mensal por domicílio. As respostas foram divididas em quatro grupos, correspondentes a diferentes estratos de renda. 40,3% das famílias informaram que recebem até meio salário mínimo por mês. Um pequeno grupo afirmou que a renda familiar é maior que meio salário mínimo e menor que um salário mínimo. O segundo grupo mais expressivo é o das famílias que têm renda de um salário mínimo por mês. Somando esses três grupos, eles representam 74,2% do total das famílias dos respondentes. O último grupo, que forma o estrato mais alto de renda, representa 16,1% do universo das 62 famílias. A maioria desse grupo declarou que ganha dois salários mínimos por mês. Vale registrar ainda que existe um aposentado em grande parte dos


respondentes cujos grupos familiares recebem um ou dois salários. Os percentuais apresentados estão na Figura 19. A renda dessa população é, portanto, baixa, mesmo com os acréscimos significativos representados por aposentadorias e outros benefícios do Estado. Fig ura 19 – Distribuição percentual da renda média mensal familiar dos respondentes

Fonte: pesquisa dos autores.

A Figura 20 mostra os percentuais de domicílios que têm ou não algum membro aposentado. Em 21% das residências existe alguém aposentado. Nesses 13 domicílios vivem 65 pessoas. É importante salientar que no contexto de intensa pobreza, de poucas oportunidades de trabalho e renda e sobretudo de ínfimas possibilidades de renda fixa, as aposentadorias representam um volume expressivo de recursos e uma fonte de renda confiável que permite uma melhor qualidade de vida. Fig ura 20 – Residências dos respondentes em que vivem aposentados (%)

Fonte: pesquisa dos autores.

62,9% dos domicílios pesquisados se beneficiam com o recebimento de recursos oriundos de algum programa de transferência direta de renda. Entre os programas mencionados estão o Bolsa Família,5 o Vale Renda, o Seguro-Desemprego (durante a piracema) e as cestas básicas distribuídas


pela Prefeitura de Corumbá (Figura 21). 15 famílias disseram receber o seguro-desemprego durante a piracema, o que representa 38,5% dos que declararam receber algum benefício do “governo” (Estado) e 28,9% das famílias que declararam comercializar algum tipo de pescado. Esse é um dado relevante porque, apesar de 61,3% dos respondentes terem afirmado que a pesca faz parte de suas fontes de rendimento, menos de um terço dessas famílias pescadoras recebe o seguro-desemprego durante a piracema. Nesse período de quatro meses – novembro a fevereiro – os pescadores são proibidos de desenvolver a atividade, para permitir a reprodução dos peixes. Isso evidencia que a pesca é uma atividade que existe ao lado de outras, pois se houvesse dependência exclusiva da atividade pesqueira, a procura pelo recebimento do seguro desemprego seria possivelmente mais expressiva. Corrobora essa constatação o fato de que muitos trabalhadores não estão com as suas carteiras de pescador regularizadas. Fig ura 21 – Recebimento de benefícios de prog ramas sociais pelos respondentes (%)

Fonte: pesquisa dos autores.

Em relação à vida cultural e ao lazer das populações estudadas, as principais ocasiões mencionadas são os momentos de encontro. Eles giram em torno da vida religiosa, mas os respondentes mencionaram também eventos ligados às escolas (reuniões de pais, festas juninas), ao poder público local (prefeitura), como distribuição de cestas básicas, e a festividades, como aniversários e comemorações de fim de ano (Natal e réveillon). Em relação a práticas religiosas, em 75,8% das famílias existe pelo menos um membro ligado a alguma religião. Apesar do predomínio do catolicismo, as denominações evangélicas também estão consolidadas nessas localidades, alcançando número expressivo de adeptos. Os respondentes destacaram que as práticas religiosas são um dos principais componentes da sociabilidade local, orientando comportamentos, definindo vínculos sociais e ordenando momentos de encontros nas localidades. Neste sentido, a religião é um dos aspectos culturais mais fortes dessas pessoas; pode ser caracterizada ainda como fator de identificação e de pertencimento social. No que diz respeito às relações com universos sociais distintos dos das localidades em tela, elas ocorrem principalmente com o centro urbano do município. É em Corumbá que estão o comércio mais próximo, os recursos para tratamento de saúde e as instituições bancárias. É lá que vão comprar os itens de primeira necessidade (principalmente comida), receber aposentadorias e benefícios de programas sociais e buscar tratamento médico e hospitalar. Contudo, a grande distância da cidade, a


pouca disponibilidade de transporte, o longo tempo de viagem para e de Corumbá (entre 3 e 16 horas)6 e os altos preços cobrados pelas lanchas (de R$ 60,00 a R$ 70,00) reduzem as incursões à cidade. As respostas sobre a frequência com que as pessoas vão a Corumbá variaram de uma vez por mês até uma vez por ano. A relação com a cidade é basicamente instrumental, ou seja, é marcada pelas necessidades mais básicas e imediatas da população. Os contatos com a área urbana acontecem principalmente em função dos serviços e produtos que ela oferece. Devido a essas dificuldades, muitas famílias e mesmo atores externos criaram estratégias para alimentar as relações comercias com a cidade. Há famílias que encomendam compras a vizinhos que vão com mais frequência a Corumbá. Há casos em que os moradores com melhores condições financeiras ou que vão com frequência para a região fazem compras e as levam para as famílias amigas, como favor. Alguns proprietários de terra que contratam ocasionalmente trabalhadores das comunidades por vezes fazem o mesmo. São comuns os mascates – marreteiros ou lanchas-mascates – que sobem e descem os rios comercializando gêneros alimentícios e produtos de higiene e limpeza, entre outros. Às vezes eles atuam também como intermediários na comercialização das iscas ou do pescado. Como nem sempre as famílias dispõem de dinheiro, utiliza-se o escambo de pescado por mercadorias. Além dos preços mais elevados cobrados pelos marreteiros, esse escambo gera uma relação de dependência, endividamento e exploração e cria vínculos de difícil rompimento. Ocorrem também escambos com os empresários de iscas, que oferecem produtos de consumo básico que os coletores de isca só conseguiriam obter no comércio de Corumbá. 98,4% (61) dos respondentes disseram que gostam de morar no local em que vivem. Somente um deles não respondeu a essa questão. As vantagens identificadas são muitas, destacando-se a tranquilidade, o sossego e a liberdade que eles afirmam não existir na cidade. Além disso, foi mencionada por muitos a vantagem de viver “perto da natureza”, onde há peixe, ar puro, muita água, plantas etc. Alguns falaram da vantagem de não pagar água, aluguel e energia elétrica. Pelo fato de a maior parte das famílias ser de baixa renda, essas despesas com itens básicos são fatores levados em conta na escolha do lugar de residência. Em síntese, os elementos que representam o conforto e a qualidade de vida nessas localidades estão associados à natureza. No entanto, isso não define o tipo de relação (mais ou menos sustentável) que esses grupos estabelecem com os recursos naturais. Os respondentes avaliam positivamente as relações comunitárias nas localidades pesquisadas. Apesar da pouca organização formal-institucional, 4,8% julgaram que os laços comunitários são ótimos, 77,5% informam que são bons, 11,3% afirmaram que são regulares e apenas 1,6% respondeu que são ruins. A Figura 22 ilustra essas respostas. É comum nesses contextos que as ligações por vizinhança ou parentesco formem laços fortes de respeito mútuo, autoajuda, prestação recíproca de serviços e solidariedade. Esse fenômeno tem sido bastante explorado por antropólogos que estudam pequenas comunidades mais ou menos isoladas das áreas urbanas. No entanto, essa base sólida de relações sociais locais não tem sido suficiente para induzir uma ação coletiva robusta capaz de ampliar a oferta de bens coletivos necessários à vida local. Fig ura 22 – Percepção dos respondentes sobre a qualidade das relações comunitárias


Fonte: pesquisa dos autores.

A despeito dessa coesão comunitária, os respondentes apontaram desvantagens e problemas que enfrentam para viver na área de estudo. Foram feitas duas perguntas sobre esse tema, em partes distintas do questionário, e os resultados foram distintos. Para a pergunta “Quais as desvantagens de morar neste local?”, uma das respostas mais frequentes foi as cheias dos rios. Por vezes as residências são destruídas e as famílias precisam construir casas novas em outros locais. Entre as famílias dos respondentes, algumas estavam ocupando provisoriamente um lugar até conseguir juntar recursos para construir casa nova, pois tinham sido desalojadas durante a última cheia. 51,6% dos respondentes mencionaram este problema. Outros 33,9% apontaram os mosquitos como uma dificuldade para viver bem na área de estudo. Além desses fatores ligados a causas naturais, o restante dos problemas mencionados decorre da deficiência da ação pública nas áreas de saúde, educação, transporte, fiscalização e serviços públicos – água tratada, comunicação e luz. Exceto pelas cheias e pelos mosquitos, os problemas mais mencionados em resposta a essa pergunta são corriqueiros em comunidades que vivem em lugares aos quais não chegam as ações efetivas do Estado. As respostas7 à segunda pergunta – “Quais são os maiores problemas/dificuldades existentes na comunidade?” – estão reproduzidas no Quadro 6. O problema mais citado foi a precariedade dos serviços públicos de saúde (58,1%), seguido pelas enchentes (37,1%). Em seguida, apareceram diversas situações, tais como trabalho, transporte, educação, atuação do governo etc. A forte concentração de respostas em apenas dois temas permite deduzir (i) as grandes dificuldades enfrentadas pela população para acessar os serviços públicos de saúde e (i) a forte interferência das enchentes na dinâmica da vida local. Quanto ao primeiro caso, é relevante lembrar a distância dessas localidades em relação à sede municipal, além da precariedade do transporte fluvial. No segundo ponto, a identificação da enchente como um problema local está associada aos transtornos causados pelos deslocamentos temporários ou permanentes, às eventuais perdas materiais (casa, plantios etc.) e à indefinição das áreas onde se pode fazer plantações, pescar e catar isca. É importante destacar que em alguns casos esses problemas se reforçam mutuamente e se sobrepõem na vida das mesmas pessoas, dificultando ainda mais a sua sobrevivência. Quadro 6 – Problemas locais identificados pelos respondentes


* Corresponde ao percentual de pessoas que responderam ao questionário que mencionaram o problema. O cálculo foi realizado para cada resposta diferente que apareceu em relação ao total de respondentes. Fonte: pesquisa dos autores.

Quando perguntados se escolheriam viver em outro local, 41,9% responderam que não pretendem sair e não têm outra perspectiva que não a de permanecer onde estão. Outros 24,2% disseram que gostariam de ir morar em alguma cidade; muitos citaram Corumbá. 12,9% dos respondentes afirmaram que, no caso de saírem do local atual, optariam por outro lugar na zona rural; alguns mencionaram que gostariam de permanecer em uma beira de rio. Apesar de todos os problemas identificados, mais de 40% das famílias não pretendem deixar o local onde moram. Isso pode ser explicado pela identificação com a localidade, pela baixa qualificação profissional, pela falta de opção, ou por alguma combinação entre esses dois motivos. De qualquer modo, as vantagens (mencionadas pelas famílias) de viver nessas comunidades confirmam esse achado. Mesmo com os problemas existentes, para uma grande parcela dos residentes ainda é preferível continuar vivendo onde estão instalados.

3.8 – O contexto socioeconômico dos grupos ribeirinhos A região das comunidades do Paraguai-Mirim, Barra do São Lourenço e Serra do Amolar historicamente apresenta condições ecológico-ambientais e de assentamentos humanos caracterizadas por instabilidades, grandes mudanças e adaptações. É principalmente o regime oscilatório de ciclos plurianuais de enchentes e secas das águas fluviais que determina as formas, a distribuição e a densidade dos assentamentos humanos, das atividades de subsistência e da extração de recursos naturais disponíveis. Esse regime passou, como vimos, por alterações mais drásticas, como no caso da enchente de 1974. Ela ainda está viva na memória dos habitantes mais antigos, já que produziu mudanças de largo alcance na dinâmica hidrológica. Esse fenômeno foi responsável pela substituição do sistema baseado principalmente na agropecuária (criação de gado e roças) por modalidades de subsistência centradas na pesca artesanal e, mais recentemente, na coleta e venda de iscas vivas. Isso determinou altas taxas de mobilidade da população interna e externa à região. Com a disponibilidade decrescente de terras secas a serem utilizadas para pastagens e plantios, houve um


movimento de demissão e dispersão da quase totalidade dos antigos moradores e trabalhadores das fazendas, que passaram a morar nas beiras dos rios. Essas migrações coincidiram com o alagamento permanente de grandes faixas de terra firme. A partir dos anos 1980, como vimos, o turismo de pesca criou novos postos de trabalho e fontes de renda para os ribeirinhos. A situação atual é a de uma economia de subsistência não diversificada, não planejada, baseada na coleta de iscas e na pesca, ambas sazonais, estimulada pela presença do turismo de pesca. Essas alternativas de obtenção de renda ajudam muitas pessoas, mas não são estáveis nem diversificadas. Além da sua fragilidade econômica, as populações ribeirinhas carecem de serviços básicos – como saúde e educação. A atividade extrativista, a principal fonte de subsistência, gera impactos sobre os ecossistemas, o que implica tensões e conflitos com a vocação da região para a conservação da biodiversidade. A agricultura é mínima, quase que totalmente impossibilitada pela escassez de terras. Grande parte da atual população residente se instalou na área ao longo dos últimos 40 anos (sendo que três quartos dela chegaram durante os últimos 30 anos), somando-se a uma população preexistente. Assim, os atuais habitantes não guardam uma origem homogênea – há grupos que chegaram em momentos diferenciados, vindos de lugares diversos, e grupos com características peculiares. Ainda assim, existem aspectos recorrentes que fazem com que as condições gerais de existência se assemelhem em algum grau. Os costumes dos ribeirinhos do Paraguai-Mirim, da Barra de São Lourenço e da Serra do Amolar, apesar de algumas peculiaridades, exibem alguns traços comuns. Materiais utilizados, modos de lazer, técnicas, aspectos da vida familiar, comunitária e religiosa, aspirações, exigências e demandas por serviços deixam evidente um vivo entrelaçamento do tradicional com o moderno. É difícil encaixar a complexidade dos residentes em categorias mutuamente excludentes do tipo “tradicional/não tradicional”. Além disso, entendemos que distinções rígidas como essa são frágeis, de duvidosa validade analítica e de imprevisível aplicação política e jurídica. Por isso, o presente texto assume uma perspectiva crítica e de desconstrução da demarcação rígida acima citada, propondo caminhos que, ao invés de fomentar conflitos, possibilitem a superação deles e a valorização dos recursos ambientais, humanos e culturais.

3. 9 – Sobre o conceito de “comunidades tradicionais” As categorias “povos tradicionais” ou “comunidades tradicionais” são relativamente novas, tanto na esfera governamental/legal, quanto na esfera acadêmica ou social. Estas expressões surgiram no seio da problemática ambiental, no contexto da criação das UCs, para dar conta da questão das populações humanas ou grupos sociais residentes em UCs (povos indígenas, comunidades remanescentes de quilombos, extrativistas, entre outros). Na medida em que esses grupos sociais começaram a emergir e a se organizar, saindo da “invisibilidade” em que se encontravam, surgiu a necessidade de se ponderar sobre normas e intervenções. No âmbito do IBAMA, foi criado o Conselho Nacional de Populações Tradicionais (Portaria/IBAMA nº 22-N, de 10 de fevereiro de 1992, que cria também o Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Populações Tradicionais – CNPT). Desde cedo, emergiram questões ligadas à definição apropriada dos ditos “povos tradicionais”. A Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que regulamenta o Art. 225 da Constituição Federal e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), menciona explicitamente as denominadas “populações tradicionais” (Art. 17) ou “populações extrativistas tradicionais” (Art. 18) e focaliza a relação entre elas e as UCs de uso sustentável (área de proteção ambiental, floresta


nacional, reserva extrativista, reserva de desenvolvimento sustentável). A despeito disso, a lei não define as “populações tradicionais”. A definição aprovada no Congresso Nacional sofreu veto presidencial, porque embutia sérios problemas conceituais. No dia 24 de dezembro de 2004, foi instituída, por Decreto da Casa Civil da Presidência da República, no âmbito do Governo Federal, a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais (CNPCT), presidida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e secretariada pelo Ministério do Meio Ambiente. Posteriormente, um novo Decreto da Casa Civil da Presidência da República, do dia 13 de julho de 2006, retificava o ato de criação da CNPTC e dava como objetivo dela “estabelecer uma Política Nacional específica para esses segmentos [populações tradicionais], apoiando, propondo, avaliando e harmonizando os princípios e diretrizes das políticas públicas relacionadas ao desenvolvimento sustentável das comunidades tradicionais nas esferas federal, estadual e municipal”. A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais foi decretada em 7 de fevereiro de 2007 (Decreto nº 6.040). Em seu Artigo 3, ela assim define povos e comunidades tradicionais: I […] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

Os seus territórios foram definidos assim: II […] os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações.

Segundo o documento que fundamenta essa política, são citados como comunidades tradicionais os seguintes grupos: sertanejos; seringueiros; comunidades de fundo de pasto; quilombolas; agroextrativistas da Amazônia; faxinais; pescadores artesanais; comunidades de terreiros; ciganos; pomeranos; indígenas; pantaneiros; quebradeiras de coco de babaçu; caiçaras e geraizeiros. Franco e Drummond (2009) argumentam que essa lista, dada a dificuldade de estabelecer critérios técnicos para a sua composição, pode ser ampliada facilmente. Persistiu o mesmo tipo de dificuldade conceitual da época em que foi aprovada a Lei do SNUC, pois se trata de uma definição ampla demais e que possibilita que quase qualquer grupo se qualifique como “tradicional”. Além desses regulamentos nacionais, em questões relativas a grupos sociais residentes em diversos tipos de territórios, a UCs e a disputas fundiárias, é frequente o recurso aos conceitos da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989. Ela foi promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Ela tem sido frequentemente usada no Brasil como fundamento para os direitos de “povos tradicionais” à propriedade da terra. No entanto, o documento da OIT trata exclusivamente dos direitos de povos “indígenas” e “tribais”. O artigo 14 dispõe que “deverão ser reconhecidos os direitos de propriedade e posse dos povos em questão sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. A dificuldade maior que enxergamos na aplicação desse documento da OIT reside no fato de que nem toda comunidade considerada “tradicional” se qualifica como “indígena” ou “tribal”. Ainda assim, no artigo 1º da convenção fica estabelecido que a consciência de “[...] identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção”. Assim, a norma adota o critério de autoidentificação para o reconhecimento legal da identidade, o que dispensa a necessidade de qualquer critério técnico ou cultural.


No que diz respeito ao conceito das “terras tradicionalmente ocupadas”, comumente presente nesses textos, Costa Filho (s/d) afirma: O uso comum de florestas, recursos hídricos, campos e pastagens aparece combinado, tanto com a propriedade quanto com a posse, de maneira perene ou temporária, envolvendo diferentes atividades produtivas exercidas por unidades familiares de trabalho, como o extrativismo, a agricultura, a pesca, o artesanato, a pecuária. Além da diversidade fundiária identificada por Almeida (1989) que inclui as chamadas “terras de preto”, “terras de santo” e as “terras de índio”, o autor apresenta, em outro trabalho, as formas de reconhecimento das diversas modalidades de apropriação das denominadas “terras tradicionalmente ocupadas”, representando diversas figuras jurídico-formais, contemplando a propriedade coletiva (correspondendo, por exemplo, aos quilombolas), a posse permanente (correspondendo, por exemplo, aos povos indígenas), o uso comum temporário, mas repetido em cada safra (correspondendo, por exemplo, às quebradeiras de coco babaçu), o “uso coletivo” (correspondendo, por exemplo, aos faxinalenses), o uso comum e aberto dos recursos hídricos e outras concessões de uso, como o comodato (correspondendo, por exemplo, às reivindicações ciganas), e as sobreposições de territórios tradicionais com unidades de preservação ambiental (pomeranos, quilombolas, indígenas e outros) (Almeida, 2006: 60-61). Várias dessas distintas formas fundiárias já haviam sido identificadas anteriormente por Diegues e Arruda (2001), mantidas pelas comunidades de açorianos, babaçueiros, caboclos, caiçaras, caipiras, campeiros, jangadeiros, pantaneiros, pescadores artesanais, praieiros, sertanejos e varjeiros (p. 7-8).

Uma definição como essa prima pela indefinição. A abrangência é enorme e equivale, quase, a dizer que qualquer população rural que faça uso da terra, em qualquer local ou em qualquer momento, tem direito à posse e/ou à propriedade dela. Ora, isso muitas vezes vai esbarrar na legalidade e violar os direitos de outrem. Portanto, existem diversas dificuldades técnicas para a delimitação conceitual e substantiva das “comunidades tradicionais”. O nosso questionamento focaliza a fragilidade inerente à adoção e à utilização desse conceito. Por um lado, o conceito é amplo demais e possibilita a inclusão de quase qualquer grupo que seja considerado marginalizado. Por outro, quando se procura restringir o conceito, ele acaba por deixar de fora grupos que deveriam, por uma questão de justiça social, ser incluídos. O conceito é tão abrangente que quase equivale ao conceito admitidamente genérico de “pobres rurais”. Ainda assim, vários grupos de residentes rurais pobres ficam de fora: diaristas (inclusive boias-frias); arrendatários; parceiros; assentados da reforma agrária e os ainda sem-terra; empregados domésticos; caçadores; empregados de minas, madeireiras e serrarias; garimpeiros; pescadores comerciais etc. (FRANCO & DRUMMOND, 2009, p. 21-22). Por ser a cada dia maior a quantidade de grupos sociais que reivindicam, justamente, inclusão nas diversas políticas públicas, existem hoje fortes pressões para “abrir” ainda mais o conceito de comunidade tradicional, de modo a incluir todos os grupos desfavorecidos. As dificuldades se desdobram no sério problema conceitual e legal de definir precisamente quem são as pessoas e as comunidades tradicionais alvos das políticas. Como afirmam Franco e Drummond (2009), essas pessoas seriam as portadoras concretas dos almejados direitos diferenciados: Porém, sem saber quem são esses portadores, é impossível desenhar políticas públicas eficazes para atendê-los. Termos como “comunidade local”, “comunidade tradicional”, “cultura popular”, “grupos formadores da cultura nacional” e “povo tradicional” são evidentemente inespecíficos demais para discussões conceituais e legais, e totalmente insatisfatórios para a atribuição consensual de direitos diferenciados e para o atendimento de necessidades específicas (p. 13).

Assumir a identidade tradicional para ter acesso a recursos diferenciais proporcionados pela sociedade exigiria, de fato, uma contrapartida específica: a adoção de critérios objetivos para tal classificação. No entanto, existem formas de resistência – deliberadas e involuntárias – ao estabelecimento de tais critérios. O que vale é a defesa instrumental de ambiguidades. Enquanto isso, as consequências da implementação de arriscadas práticas semânticas e políticas passam despercebidas. Os principais riscos implícitos no conceito corrente de comunidades tradicionais e no seu uso político-legal são:


ausência de definições ou utilização de definições inespecíficas ou tautológicas; autoidentificação motivada pela perspectiva de obter tratamento diferenciado; racialização dos direitos e das políticas públicas; des-historização e naturalização das condições dos supostos “tradicionais”; martirização/vitimização dos povos marginais; absolutização acrítica de uma suposta índole preservacionista dos “tradicionais” (reprise do mito do “bom selvagem”); vazamento do rótulo por causa da excessiva ampliação; adoção/aceitação e instrumentalização de supostas identidades étnicas motivadas pela obtenção de um ativo econômico – a terra – associado à possibilidade de acesso a subsídios e recursos financeiros diferenciados. Muitos problemas desses podem ser percebidos pela leitura de textos que defendem o conceito de comunidades tradicionais. Sem dúvida, o mais representativo material referente à nossa área de estudo é o de Amâncio et al. (s/d). Além de considerações sobre ambientalismo e socioambientalismo, os seus respectivos valores e a história de suas relações conflituosas, esse texto contém alguns pontos críticos substanciais. O enfoque escolhido pelos autores – ou seja, preservação ambiental, criação de UCs e desenvolvimento das populações locais como problema de justiça social e equidade distributiva – perde-se, infelizmente, na afirmação ideológica de posições pré-formadas e pouco enraizadas nas condições locais. Amâncio et al. (s/d) usam repetidamente as expressões “parcelas de populações tradicionais”, “hábitos tradicionais”, “presença de populações tradicionais”, “habitantes tradicionais da região”. O que eles entendem como “tradicional”? O conceito, ou melhor, a reconhecida identidade do “tradicional” é tomada e aplicada como válida em si e por si. Ela é assumida acriticamente como verdade objetiva e autoevidente, que não precisa ser explicada e muito menos questionada. É sustentada por meio de operações espúrias. Afirmam os autores: Esta região vem se tornando um espaço de disputas entre segmentos do movimento ambientalista, com características preservacionista[s] e setores do empresariado ligados ao turismo de pesca, além de setores mineradores e siderúrgicos.[...] De um lado procuram excluir os antigos moradores de áreas que, do ponto de vista da ecologia strictu sensu, consideram importantes serem preservadas; desta maneira, populações tradicionais são excluídas de seus antigos territórios em nome da ‘necessidade de preservar’ o meio ambiente. De um outro lado são impedidos de exercerem atividades típicas da região, como a pesca artesanal, em nome de reservar estoques pesqueiros sob falsa acusação de que seremos responsáveis pela degradação dos recursos naturais e pesqueiros do pantanal sul, mas na realidade são restringidos para alimentar a indústria do turismo de pesca esportiva [...] (p. 3-4).

O critério de temporalidade que, hipoteticamente, se poderia até imaginar como idôneo para dirimir questões de tradicionalidade ou autenticidade, é medido por um maldefinido “antigos” (antigos moradores, antigos territórios). À luz de tudo que foi exposto sobre as condições históricas de ocupação da área e sobre os modos de trabalho, não é pertinente falar de antiguidade em relação a populações que, na sua grande maioria, foram obrigadas a migrações intensas que datam de menos de 40 anos atrás. Além disso, ao se referirem à pesca esportiva, Amâncio et al. (s/d) disfarçam uma realidade bem mais complexa: a atividade típica da região passou a ser a coleta de iscas porque a consolidação do próprio turismo de pesca criou demanda e espaços de mercado nos quais essas populações se inseriram e dos quais, bem ou mal, sobrevivem. Eis outro trecho que distorce, intencionalmente ou não, o relato histórico: Esta região [...] foi habitada pelos povos Paiaguás, Guaikuru, Bororos e Guatós, entre outras etnias indígenas. Em harmonia com o


meio ambiente desde os primeiros contatos com o povo Ibérico, os povos indígenas têm sofrido muito com a chegada do homem branco. Doenças e novos costumes acompanharam as rodovias e a estrada de ferro e trouxeram desespero a muitos povos da região. Grande parte delas foi extinta e/ou expulsa pelos colonizadores europeus, contudo um remanescente destas antigas populações originadas ali mesmo continua resistindo e habitando a região onde seus antepassados viveram. Tanto que próximo a RPPN da MMX e as da Ecotrópica encontramos a Reserva indígena Guató. Nesta reserva ainda existem 120 famílias. Também é marcante na população local traços indígenas nos seus costumes quanto na própria fisionomia. Hábitos alimentares, de habitação e convívio com a natureza lembram muito os hábitos das populações indígenas locais. Este é um fator que ajuda a caracterizar parte desta população como tradicional (AMÂNCIO et al., s/d, p. 13).

Fica evidente que a apologia da tradicionalidade se apoia em operações semióticas capciosas: valer-se da antiga e quase extinta presença indígena (um inatacável “cartão de visita”); afirmar uma edênica harmonia entre os antigos povos indígenas e a natureza, atribuindo-lhes uma atitude conservacionista inata e uma sustentabilidade congênita à condição pré-moderna; destacar a imagem de violência e injustiças perpetradas contra as antigas populações indígenas (absolutizando uma situação simplificada do tipo malfeitor/vítima); afirmar a presença de traços e hábitos – não especificados – de convívio com a natureza que lembrariam “muito” os hábitos das populações indígenas locais e que ajudariam a caracterizar parte da população ribeirinha como “tradicional”. O link lógico, ontológico e conceitual dos traços remanescentes com a identificação com “população tradicional” e o corolário legal disto resultam frágeis e um tanto quanto forçados, pois se apoiam em traços de costumes e fisionomias caracterizadas por uma miscigenação indígena que pode ter ocorrido tanto na região estudada como em qualquer outro lugar do Brasil, ou mesmo da Bolívia ou do Paraguai. Por ser uma categoria descritiva, artificial, móvel e funcional, construída para usos práticos de tipo identificatório, o termo “tradicional” é exatamente o contrário de objetivo e autoevidente. Não existe isso na competente categorização da tradicionalidade que aparece no célebre livro de Eric J. Hobsbawm e Terence O. Ranger (1983), intitulada exatamenteThe Invention of Tradition (“A Invenção da Tradição”). Aliás, todo conjunto humano (comunidade, agregado, sociedade, cultura, grupo, subcultura etc.) tem como uma de suas bases algum princípio de tradicionalidade. Sem sofisma, somos todos tradicionais, porque todos, habitantes das grandes cidades modernas ou das aldeias da floresta, temos história, origens, antepassados, práticas e referências que vêm de épocas precedentes, que são repassadas de geração em geração, e que ajudam a dar forma ao presente. Fazer segundo a tradição, manter vivos elementos da tradição, recuperar e revitalizar costumes herdados das gerações passadas – todos os grupos humanos operam de acordo com esses componentes elementares da cultura, necessariamente. Muito mais do que isso, toda comunidade humana tem a tendência a criar tradições, a inventar a própria tradição. Porque “tradição” é justamente isso, a invenção de um padrão montado por meio da seleção, efetuada ao longo de tempos mais ou menos remotos, de traços singulares, práticas e ideias, que individualmente e coletivamente – porém sempre socialmente – escolhemos trazer do passado para o presente. O conjunto desses elementos, coletivamente reconhecíveis e praticados, forma a “tradição”. A tradição não é algo que existe objetiva e imutavelmente. Ela depende da ação de criação, invenção, manutenção, recuperação, reelaboração que os humanos exercem constantemente (HOBSBAWM & RANGER, 1983). A inespecificidade do conceito de “comunidades tradicionais” usado por Amâncio et al. (s/d) reflete a ausência de definições precisas e funcionais (requisitos e limites da categoria) que, como


ressaltamos, caracterizam as fontes legais (decretos, leis etc.).Que isso seja feito de propósito, para garantir a maior inclusão possível, é uma hipótese. Mas que isso reflete uma incapacidade de alcançar definições fixas e absolutas é algo de que se pode ter certeza, mas que é ocultado pelo estilo ideológico e autoritário do texto – os vazios de argumentação analítica são preenchidos com imagens hiperbólicas da pobreza e da vitimização dos ribeirinhos, destinadas a tocar o leitor pela emoção. Outro ponto crítico no debate sobre o conceito de tradicionalidade é a adoção do critério de autoidentificação para assumir/atribuir/reconhecer o status de população tradicional. É tradicional quem se considera e se declara tradicional. Isso vale como dado objetivo no reconhecimento legal dessa identidade. A solução de legitimar a autoidentificação, apesar de ser um estimável exercício de sensibilidade e liberdade democráticas, não resolve o problema conceitual. Da falta de disposição para se definir a tradicionalidade a partir de critérios e elementos fixos, objetivos, mensuráveis, estáveis e absolutos (porque sujeitos às hibridizações, a fluxos contínuos e reelaborações constantes), decorre a submissão à tácita admissão de que tal categoria identitária, em si e por si, não existe. O que existe é a vontade – espontânea ou induzida – de se autodenominar “tradicional”. Ou seja, o que existe é uma opção subjetiva por um rótulo que, por sua vez, é essencialmente subjetivo. Os motivos dessa escolha raramente dependem de um altaneiro sentimento de recuperação da própria ancestralidade. Na quase totalidade dos casos, a autoafirmação da tradicionalidade é fruto de um input externo, de um estímulo para criar/utilizar/forçar o discurso identitário para fins políticos. A permitir e implicar tudo isso estão alguns princípios do quadro jurídico nacional voltados para sanar simbolicamente a “dívida” contraída com os grupos étnicos, as minorias e os marginalizados. Essas premissas e medidas, porém, são frágeis, efêmeras e potencialmente perigosas para a convivência social entre todos os cidadãos. A autoafirmação de tradicionalidade como instrumento legal gera dois problemas profundos e insanáveis: (1) a fragilidade das identidades construídas de maneira ad hoc, com base em argumentos frágeis sobre origens puras e remotas e com estímulos políticos para obter ganhos materiais e (2) a homogeneização das diferentes configurações sociais construídas a partir das interações de cada grupo com a sociedade nacional (FRANCO e DRUMMOND, 2009, p. 32).

Fragilidade e periculosidade, então, derivariam da necessidade de assumir as vestes identitárias previstas por lei para obter garantias ou privilégios, mas, também, simplesmente para ver reconhecidos e tutelados os próprios direitos civis e sociais. O recurso a categorias e políticas diferenciais cria espaços de privilégios e constrói práticas identitárias funcionais para a obtenção desses privilégios. Assumir uma etiqueta classificatória com esse objetivo comporta o risco de uma “racialização” ou “etnização” da política, em consequência dos fatores hipotéticos que caracterizam o rótulo e do uso que dele pode ser feito, tanto por parte dos “autoidentificantes”, quanto por poderes externos. Pense-se nas caracterizações cunhadas, ao longo da história, pelos detentores de poder político para a individuação e a classificação, respectivamente, de judeus, de negros, mulatos, pardos, indígenas, orientais, eslavos, brancos etc. As categorizações étnicas e culturais tornam-se facilmente uma faca “racial” ou “étnica” de dois gumes. Isso é bem captado pela expressão “racialização dos direitos e das políticas públicas”. Como ressaltado, são comuns as situações em que agentes externos (ONGs, partidos políticos, poderes públicos, fundações etc.) assumem e promovem a causa de comunidades: eles detectam problemas, contatam líderes e comunidades, sugerem reivindicações, iniciam procedimentos legais, instruem a população. No caso de comunidades entrevistas como “tradicionais”, estimulam a criação de novas autoconsciências e de novas formas de representação comunitária (líderes mais eloquentes, redes de poderes, dinâmicas sociais e, até, novas “tradições”). Essas iniciativas exógenas às


comunidades não são ilegais ou mesmo necessariamente ilegítimas, mas podem descambar para atitudes oportunistas que esvaziem o atendimento das justas reivindicações dos grupos sociais envolvidos. Outra série de questões é gerada pela des-historização e naturalização das condições dos supostos “tradicionais”, pela martirização/vitimização dos povos marginalizados e pela absolutização acrítica da ideia de índole conservacionista dos “tradicionais”. Primeiro, afirmar a tradicionalidade, se quisermos ser coerentes, significa querer preservar a “pureza” ancestral dos sistemas nativos de saúde, tecnologias, meios de transporte, instrumentos artesanais de trabalho, meios de comunicação etc. Isso se traduziria no princípio de não ingerência, para que os ditos “tradicionais” não se contaminem com a nossa – segundo alguns – “nefasta modernidade”, para que sejam autossuficientes com base nos seus supostamente virtuosos e fortes recursos nativos. É a isso que os “tradicionais” aspiram de verdade? A tradicionalidade que teoricamente os caracteriza lhes possibilitaria alcançar esse estilo de vida puro, autônomo e idílico? A questão da tradicionalidade traz imediatamente à baila a questão correlata da modernidade. O argumento a favor dos direitos especiais dos tradicionais – e não apenas em relação à terra – é que a tradicionalidade se distingue e mesmo se opõe em algum grau à modernidade. Por isso, os tradicionais mereceriam um tratamento diferenciado. Entretanto, o que se percebe em todos os casos estudados é que eles não querem rejeitar a modernidade. Muito pelo contrário. Eles já têm ou almejam bens, instituições e serviços que são frutos emblemáticos da modernidade – palitos de fósforo, isqueiros, roupas, rádios, celulares, televisão, internet, motores, fármacos, remédios industrializados, postos de saúde, escolas, cooperativas, sindicatos, carteira de trabalho assinada, aposentadorias/pensões, seguro-desemprego, documentos pessoais etc., para não mencionar elementos mais difusos, mas plenamente modernos, como o cristianismo, a língua portuguesa e os ícones da cultura de massas. Em boa medida, os catadores de iscas do Pantanal dependem da modernidade: a sua renda deriva de um produto demandado pelo moderno mercado turístico, de origem urbana. O rótulo de “tradicionais” que eles reivindicam, paradoxalmente, tem como objetivo as próprias políticas diferenciais que garantam a sua inclusão no sistema moderno – e não a garantia de permanecer fora dele e “bem conservados”. No entanto, a observação dos fatos e dos processos mostra que os tradicionais reivindicam também direitos modernos e que, antes e além disto, eles mesmos estão imersos em várias dimensões da cultura e das instituições modernas. De maneira alguma isto é surpreendente, pois (a) o tradicionalismo não é sinônimo de isolamento cultural e institucional e (b) o mundo moderno tem forte capacidade tanto de atrair a adesão dos tradicionais quanto de conviver com manifestações tradicionais. Do nosso ponto de vista, no entanto, o que mais importa nesta mistura de direitos e expectativas, de tradição e modernidade, é que, quanto mais mergulhados estiverem os tradicionais na modernidade, mais os seus direitos se assemelham aos da cidadania universal e mais eficazmente os seus direitos podem ser efetivados sem recursos a políticas públicas seletivas (FRANCO e DRUMMOND, 2009, p. 99).

Direitos universais – saúde, educação, justiça, segurança, livre acesso a serviços, mercados e bens – passam assim a ser objeto de políticas diferenciais. Aqui teríamos o paradoxo de uma maior integração dos “tradicionais” à modernidade ocorrer por intermédio da afirmação de seu isolamento em relação à sociedade global. Além disso, a questão dos direitos sociais diferenciais acaba, muitas vezes, por se chocar com os direitos difusos relacionados com o meio ambiente. Trata-se de dois tipos de direitos fundamentais. Portanto, estratégias que possibilitem a satisfação desses dois direitos devem ser traçadas, para que nenhum dos dois seja prejudicado. Devido à desordem fundiária generalizada que ainda prevalece na maior parte do território nacional, as UCs (que são uma das principais estratégias, se não a principal, para a conservação da


biodiversidade, e uma política de defesa dos direitos difusos, ou seja, de interesse de toda a sociedade), como terras públicas identificadas, ainda que precariamente, tendem a se tornar alvos altamente visíveis para os movimentos e as organizações que focalizam unicamente os problemas sociais “imediatos” dos supostos “tradicionais”. A questão dos “tradicionais”, que na verdade são grupos que podem ser mais bem classificados como pobres rurais, acaba assim reduzida a um problema exclusivo de posse da terra, em detrimento de outros direitos, como educação, saúde e justiça. A conservação da biodiversidade, desse modo, entra na mesma lista que reúne grandes empreendimentos (hidrelétricas, mineração, estradas etc.) que abalam a existência e os estilos de vida das populações locais, que as expulsam, afastam e limitam. Certamente, o risco e a vontade de não perceber o impacto que uma UC, assim como uma usina, terá sobre a vida dos habitantes locais podem indicar um planejamento míope, além de ser uma causa de injustiça social. Impacto e alterações existem e são sofridos, tanto em um caso como no outro. No entanto, é preciso refletir sobre a substancial diferença entre objetivos, tipologias e qualidades de benefícios no longo prazo – efeitos de poluição, possibilidades de externalidades ambientais positivas/negativas e derivados úteis/deletérios para a região – gerados pelos grandes empreendimentos industriais e aqueles que advêm da criação de UCs. De todo modo, por definição as UCs restringem as possibilidades de uso dos recursos naturais para todos os atores, nem teriam sentido se não criassem tais restrições. Para garantir que os direitos de populações locais não entrem em conflito com a conservação da biodiversidade, é importante pensar em mecanismos compensatórios. Pensar apenas na distribuição de terras e na liberação do uso dos recursos naturais, sob o pretexto de que populações tradicionais são naturalmente conservacionistas e vivem em harmonia com a natureza, além de colocar em risco a biodiversidade e os ecossistemas, acaba por eximir as autoridades públicas das suas responsabilidades com a promoção de políticas públicas sociais e ambientais. Há outra observação a ser feita sobre as injustiças sociais atribuídas às UCs. Para a área do Pantanal que estamos considerando, é bom lembrar que os maiores conflitos, hoje, estão ligados à criação de RPPNs, e não de UCs como parques nacionais. Ou seja, não se trata de terras públicas habitadas que uma UC “expulsa”. Apesar dos eventuais desalojamentos efetuados, nas RPPNs a iniciativa é particular e afeta propriedades particulares. Para as localidades incluídas nas RPPNs, não é correto afirmar que se trata de “recursos naturais antes de uso comum que agora pertencem à propriedade privada” (AMÂNCIO et al., s/d, p. 13). A transição não consistiu na mudança de tipologia de propriedade, mas sim na alteração de uso e no efetivo controle de acesso. No que diz respeito à tentativa paradoxal de integrar os tradicionais por meio do isolamento legal, vale considerar uma tipologia de isolamento que está sendo instrumentalmente operada: o isolamento e o congelamento culturais. Associado ao conceito de população tradicional, e dando suporte a ele, existem noções como as de que os grupos abarcados pelo conceito – contrariamente ao Ocidente rico, desenvolvido, consumista e poluidor – viveriam em harmonia com o mundo natural, sendo, portanto, intrinsecamente conservacionistas. Estes grupos seriam, também, inerentemente resistentes à inserção no mercado e, por isso mesmo, “tradicionais”, pré-modernos ou pré-capitalistas. Esta maneira de justificar direitos para estes grupos acaba por destituí-los de sua historicidade e por naturalizá-los, como partes integrantes dos ecossistemas a serem protegidos [...]. É como se os seus direitos modernos dependessem de sua integração na natureza, e não na sociedade (FRANCO e DRUMMOND, 2009, p. 49).

Isso depende e dependeu do contexto de produção de definições de “populações tradicionais”, ou seja, do debate em torno da presença humana em áreas protegidas. Como sugere Barreto Filho


(2006), os defensores dos direitos dos grupos sociais que vêm sofrendo impactos – tais como deslocamento compulsório, desorganização econômica e restrição de acesso a recursos naturais – com a criação de UCs de proteção integral buscam salientar, por meio da noção de tradicionalidade, as características positivas desses grupos no que toca à conservação da natureza: Em vez de polemizar claramente na arena política em torno do eixo dos direitos humanos e da justiça social, construíram um argumento supostamente técnico-científico, em torno desses grupos como “ilhas de harmonia socioambiental cercadas por sociedades de mercado por todos os lados” [...] (FRANCO e DRUMMOND, 2009, p. 130).

Os que entendem que determinados grupos humanos não geram impactos sobre a biodiversidade remontam a uma tradição do pensamento social (não somente brasileiro) que confunde noções biológicas com elementos culturais. Isso alimenta expectativas idealizadas em relação aos modelos produtivos desses grupos. As conseqüências são a naturalização e a des-historização de culturas que, de fato, estão se transformando com o passar do tempo, tanto no que diz respeito as suas relações sociais como no que diz respeito as suas relações com a natureza. Existe, da parte de muitos grupos rotulados como “tradicionais”, um desejo legítimo de usufruir direitos, modelos de vida, bens e confortos caracteristicamente modernos, dos quais eles estão tipicamente excluídos. A noção de “população tradicional” conspira, de certo modo, contra a autonomia desses grupos de decidir sobre o seu próprio futuro, pois implica uma relação instrumental com eles, “ao torná-los reféns de uma definição exterior de si próprios e do problema que vivem” (BARRETO FILHO 2006, p. 131). Com base no que foi ponderado acima, é possível lançar um olhar mais crítico sobre as afirmações contidas em documentos, tais como o Ofício n° 0038/2012/MPF/CRA/MSIWRA do Ministério Publico Federal (os grifos são nossos): Considerando a necessidade de implementar políticas públicas capazes de equacionar os problemas g erados por práticas conservacionistas equivocadas, o que deve ser feito pelo resgate e reconhecimento do papel desempenhado pelas comunidades tradicionais na conservação do Pantanal, bem como pela garantia do acesso destas comunidades aos recursos naturais de seus territórios [...]; Considerando “a estreita e tradicional dependência de recursos biológicos de muitas comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais, e que é desejável repartir equitativamente os benefícios derivados da utilização do conhecimento tradicional, de inovações e de práticas relevantes à conservação da diversidade biológica e à utilização sustentável de seus componentes” (Convenção sobre Diversidade Biológica); Considerando o compromisso internacional assumido pelo Brasil de “respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas, e encorajar a repartição equitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas” (Convenção sobre Diversidade Biológica)[...]; Os sistemas de manejo ainda hoje praticados por populações indígenas e ribeirinhas contribuem sig nificativamente para a manutenção da diversidade biológ ica; [...] As culturas e os saberes tradicionais contribuem para a manutenção da biodiversidade dos ecossistemas, uma vez que são o resultado de uma co-evolução entre as sociedades e seus ambientes naturais, permitindo a conservação e o equilíbrio entre ambos; [...] Os modelos de uso dos recursos naturais de baixa intensidade, desenvolvidos pelas populações indíg enas e tradicionais, asseg uram a rentabilidade econômica das atividades desenvolvidas com a exploração dos recursos naturais, mantendo a biodiversidade e os processos naturais de forma eficaz [...].

Em relação ao que preconiza o documento citado, é importante saber: o que se entende por “estilos de vida tradicionais”, “tradicional dependência” e por “utilização sustentável”; faltam as definições e indicações sobre as singularidades e os


componentes concretos destes termos. O documento está repleto de afirmações que carecem de embasamento científico mínimo. Essas afirmações ignoram uma extensa literatura sobre evolução biológica, biodiversidade, reprodução e empobrecimento genético de cultivos agrícolas, mas mesmo assim elas se tornaram lugares-comuns no campo de debates sobre a contribuição humana para a preservação da biodiversidade; como e por que as práticas conservacionistas mencionadas são “equivocadas”; o quanto os “modelos de uso dos recursos naturais de baixa intensidade, desenvolvidos pelas populações indígenas e tradicionais, asseguram a rentabilidade econômica das atividades desenvolvidas”, dado que a coleta de iscas, além de ser uma “tradição” muito recente, está longe de ser uma atividade rentável (sem falar da sua insalubridade); essa afirmação ignora uma extensa literatura, com ampla base empírica, que mostra que esses usos de “baixa intensidade” no mais das vezes não apenas têm baixa rentabilidade econômica como nada mais fazem do que manter os seus praticantes na pobreza; o quanto são sustentáveis e se são mesmo sustentáveis (afirmação que implica medir) as práticas extrativistas dos ribeirinhos, especialmente em vista de uma eventual liberalização do uso direto dos solos, da madeira e das atividades de pesca e coleta de isca como “tradicionalmente” reconhecidas; se os fatos que passam por ser ecologismo inato e inata sustentabilidade de estilos de vida não dependeram, em grande medida, da falta de disponibilidade de tecnologias destrutivas e impactantes e/ou da baixa pressão demográfica exercida por esses grupos. Muito se tem escrito sobre um suposto mito da “natureza intocada”, que excluiria os humanos dos ecossistemas e atribuiria a eles, inapelavelmente, o papel de devastadores da natureza (IOVINO, 2008; DIEGUES, 1996). Esse suposto conteúdo mítico seria o “pecado original” de todas as políticas ambientais que coloquem alguma forma de restrição ao uso dos recursos naturais em geral, e da biodiversidade em particular. Mas, o “bom selvagem”, o ser humano naturalmente ambientalista, aquele que vive na natureza sem alterá-la, é apenas outro mito da modernidade. Toda afirmação de tradicionalidade e sustentabilidade não embasada na especificação de elementos concretos sofre a influência de práticas des-historizantes e naturalizantes.

3.10 - Políticas diferenciais versus políticas universais Como vimos, o conceito de população tradicional é, ou amplo demais, capaz de abarcar quase todas as populações rurais pobres do Brasil, ou estreito demais, incapaz de incluir diversos segmentos das populações rurais pobres do país. Todos os brasileiros rurais pobres são, no entanto, detentores de direitos que têm que ser respeitados e concretizados. É mais produtivo pensar e atuar com o intuito de garantir à população brasileira excluída o exercício dos direitos vinculados a um conceito de cidadania universal: Assim, a inclusão de grupos sociais como os quilombolas e os ditos tradicionais, bem como a possibilidade de conservar o nosso patrimônio natural, irá depender muito mais da capacidade do Estado de implementar políticas amplas para a garantia de direitos universais, tais como educação, saúde e habitação, ainda que levando em conta as particularidades relacionadas com as tradições de grupos específicos, e da sensibilidade para perceber a importância de se garantir a manutenção de unidades de conservação de proteção integral, como estratégia de preservação (o que também deve ser entendido como um direito universal) [...] (FRANCO e DRUMMOND, 2009, p. 36).


São numerosos os exemplos de fragilidade conceitual quando se recorre ao uso da categoria “tradicionalidade” para estender universalmente a cidadania e os direitos fundamentais modernos para as populações marginalizadas. Os próprios Princípios da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) merecem uma análise crítica neste sentido. O Art. 1, § II, por exemplo, afirma que “a visibilidade dos povos e comunidades tradicionais deve se expressar por meio do pleno e efetivo exercício da cidadania”. Diz ainda o Art. 3º: São objetivos específicos da PNPCT: III – implantar infra-estrutura adequada às realidades sócio-culturais e demandas dos povos e comunidades tradicionais; [...] VI –‘ reconhecer, com celeridade, a auto-identificação dos povos e comunidades tradicionais, de modo que possam ter acesso pleno aos seus direitos civis individuais e coletivos [...] (CNPCT, 2006).

A tutela e o desenvolvimento daqueles que são considerados povos e comunidades tradicionais ou, no nosso viés, pobres rurais ocorre por meio de uma integração a ser realizada pelo “pleno e efetivo exercício da cidadania” e pela implantação de infraestruturas adequadas. Ou seja, o caminho não passa pelo isolamento (mantê-los fora da esfera de influência da modernidade), nem por políticas de não ingerência, mas sim, pela inclusão na modernidade, como legítimos destinatários dos benefícios que ela traz. O paradoxo toma também a forma da seguinte pergunta: por que o acesso aos plenos direitos civis individuais e coletivos dos “tradicionais” e o exercício pleno da cidadania estariam garantidos pela aquisição de uma identidade diferencial? Se estudarmos os princípios democráticos da sociabilidade multicultural e multiétnica, em particular na tradição anglo-saxônica, veremos que o processo lógico, político e social procede exatamente no sentido inverso: de uma base comum (a igualdade de todos os cidadãos, que impõe a todos, indistintamente, direitos e deveres universalmente garantidos e exigidos) passa-se, em segunda instância, à individuação de diferenças culturais (religiosas, linguísticas, éticas etc.). As diferenças existem e são valorizadas, mas sempre dentro do quadro mais abrangente da igualdade substancial de todos os cidadãos frente ao estado e à lei. É isso que dá base às políticas universais de integração (o substrato comum), em virtude das quais podem existir políticas diferenciais (CONSELHO DA EUROPA, 2008). As políticas e os direitos diferenciais têm de ser proporcionais às cotas e às causas da marginalidade, que não podem ser lesivos aos direitos de outras categorias e de outros interesses legitimamente reconhecidos pelo Estado. A oferta de direitos diferenciados deve sempre, necessariamente, ser realizada a partir da igualdade inclusiva, e não de privilégios exclusivistas. Por isso, logicamente e politicamente, deve haver a implementação de políticas diferenciais, mas voltadas para sanar as carências que criam impedimentos à integração positiva dos membros da sociedade segundo os princípios democráticos de cidadania universal (oferecendo serviços de saúde e educação, previdência social, segurança, representação política etc.). A criação de categorias especiais, privilégios, benefícios e direitos seletivos não necessariamente contribuirão para a desejável universalização dos direitos fundamentais. Vale lembrar o inconveniente de uma categoria como “comunidades tradicionais”, ao mesmo tempo estreita demais e ampla demais, que pretende abarcar grupos tão diferentes como povos indígenas, quilombolas e toda uma gama variada de pobres rurais. Obviamente, a especificidade das políticas públicas voltadas para os grupos indígenas é e deve continuar a ser bastante diferente daquela das políticas públicas direcionadas aos pobres rurais. A equalização dos povos indígenas, portadores de línguas e de identidades particulares como povos autóctones, com quilombolas e pobres rurais, todos falantes da língua oficial (o português) e identificados com a nação brasileira, é


artificial. Conduz a distorções analíticas, a erros de diagnóstico e a políticas com alvos duvidosos. Em um caso, trata-se de promover o diálogo e um nível, mínimo que seja, de integração à nação. Essa questão é ainda bastante conturbada, pois existem grupos indígenas com graus bastante diferenciados no que diz respeito à sua integração com a sociedade nacional. Certamente há grupos indígenas profundamente inseridos na cidadania brasileira e outros que, vivendo nas fronteiras do Brasil, sequer habitam permanentemente o território brasileiro. No outro caso (quilombolas e pobres rurais), trata-se de garantir direitos fundamentais e inclusão social para grupos que, por princípio, já são cidadãos nacionais. Para os grupos sociais ribeirinhos da região do Paraguai-Mirim, de Barra do São Lourenço e da Serra do Amolar, a validade do uso do conceito de tradicionalidade com o intuito de garantir direitos e dirimir conflitos é tão questionável quanto qualquer outro caso escolhido aleatoriamente. A solução dos problemas observados nesta região não está – ou, pelo menos, não está primariamente – em meticulosas tentativas de reconstrução das antigas ocupações das terras. Primeiro, porque a cronologia das recentes mudanças torna difícil e pouco pertinente utilizar a noção de tradicionalidade. O que há de mais tradicional na região é a criação de gado, impossibilitada ou prejudicada pelos alagamentos mais fortes das últimas décadas. Em segundo lugar, porque a raiz dos atuais conflitos não se funda na possibilidade, impossibilidade ou limitação de residência e acesso a determinados lugares, mas sim em uma situação complexa que envolve a escassez de oportunidades e de capacitação, a pobreza material e as dificuldades ambientais, as necessidades imediatas e a necessidade de garantir a sustentabilidade do uso dos recursos naturais e a proteção de espécies e ecossistemas.

3.11 – Condições de vida e de trabalho: elementos da modernidade e da tradição 8 As populações residentes na área de estudo têm traços semelhantes aos de muitas populações rurais de outras regiões do país. Exibem altos níveis de miscigenação étnica e cultural, vivem em relativa marginalidade, têm escassa integração com agências governamentais e serviços sociais básicos. Têm baixa capacitação (instrução e formação profissional), reduzida capacidade de gerar renda dentro de um quadro pouco diversificado de oportunidades de trabalho, e capacidade de gerar pressão sobre uma única fonte de recursos. Isto implica evasão escolar precoce e existência de trabalho infantil, com sérias consequências para a saúde de jovens e mulheres: a coleta de isca, feita a partir das primeiras horas da madrugada, envolve longos períodos de imersão na água e exposição às radiações solares, predadores, insetos etc. O Decreto nº 6.481, de 12 de junho de 2008, que trata da proibição do trabalho infantil, lista entre os “prováveis riscos ocupacionais” da atividade de cata de iscas aquáticas (item 12): “trabalho noturno; exposição à radiação solar, umidade, frio e a animais carnívoros ou peçonhentos; afogamento”. Anota como “prováveis repercussões à saúde” o “transtorno do ciclo vigília-sono; queimaduras na pele; envelhecimento precoce; hipotermia; lesões; envenenamentos; perfuração da membrana do tímpano; perda da consciência; labirintite e otite média não supurativa e apneia prolongada”. Outros aspectos deletérios da coleta de iscas, de caráter social, foram mencionados antes: vendas a preços ínfimos; atividade extrativista intensa e prolongada, concentrada sobre um número limitado de espécies e de áreas de ocorrência; endividamento; e sistema de escambo de mercadorias ou pagamento de preços exorbitantes aos intermediários comerciais que fornecem bens básicos etc. Esses problemas são observáveis objetivamente. Mas pode-se perguntar mais: do que mais reclamam os habitantes da região?


Embora não seja uma percepção generalizada, alguns moradores das beiras dos rios foram bastante incisivos ao relatar para nós as suas queixas sobre aquilo que entendem como os problemas decorrentes da sua condição de vida. Os assuntos e os discursos mais frequentemente produzidos pelos ribeirinhos giram em torno das limitações impostas pela sua localização e da existência de áreas protegidas (RPPNs, Parque Nacional, Áreas de Preservação Permanente – APPs, e assim por diante). O conjunto das respostas e dos comentários registrado durante a pesquisa de campo se divide em duas grandes categorias semânticas, ou seja, interpretativas: (a) o tema da mudança e (b) o tema da exclusão. A essas duas dimensões de significado são atribuíveis a grande maioria das percepções, das opiniões, das visões e das reclamações expressas pelos ribeirinhos entrevistados. Para além da questão da veracidade, objetividade e confiabilidade das informações contidas nos depoimentos, importa compreender a percepção que os ribeirinhos, ou pelo menos uma parcela significativa deles, têm do lugar em que habitam e das suas relações com outros atores sociais. A visão deles é permeada de subjetividades e vieses. Ou seja, eles têm interesses e produzem versões. Os seus depoimentos não se constituem em verdade a ser acatada acriticamente, nem são afirmações desinteressadas. Portanto, não importa se eles “falam a verdade”, se lembram pouco dos eventos passados ou, caso muito frequente, se usam a presença dos pesquisadores para contar como as coisas são “realmente”. Muito mais importante e significativo é compreender a lógica que estrutura as suas percepções e versões. O tema recorrente da mudança aparece no tocante ao forte abalo cultural e econômico derivado de alterações na configuração histórica do mundo local. No que diz respeito às gerações que vivenciaram plenamente essas transformações, elas demonstram certa dificuldade de lidar com a mudança e de se adaptar. O apego a modelos “antigos”, característico das gerações mais velhas, se traduz em resistência ao novo e em elogio/nostalgia do passado, sobretudo em épocas de transição. Nesse tipo de discurso, o passado é uma espécie de defesa contra o desconhecido e o incerto. “Modelos antigos”, nesse caso, não significam necessariamente “modelos ancestrais”: o “velho” que o ser humano tende a lembrar e a preferir pode até ser um hábito que apareceu há poucos anos. Do choque cultural, implícito em momentos de intensa mudança, deriva o receio de aceitar e de se adaptar, assim como de entender o valor de novos recursos e de captar novos espaços de vida e oportunidades de ganho. Isso parece estar acontecendo na área estudada em relação ao desenvolvimento do turismo e, principalmente, à conservação da biodiversidade e a atividades dela derivadas, como o ecoturismo. Sobre essa incapacidade ou dificuldade de “ler” as novidades pesam a falta de capacitação e todas as carências estruturais, materiais e imateriais, que limitam o panorama local. O segundo tema presente nos discursos dos entrevistados é o da exclusão. O sentimento de exclusão, a impressão de estar permanentemente excluído, permeia os discursos dos ribeirinhos e a sua releitura histórica dos fatos ocorridos nos últimos 40 anos. Eles exprimem este sentimento quando falam de vários eventos: foram expulsos pela enchente que alagou as terras onde moravam; foram expulsos dos locais transformados em RPPNs ou em Parque Nacional; sentiram-se excluídos dos processos consultivos e das decisões de criação dessas UCs; vivem geograficamente isolados pela distância e pela falta de infraestrutura (comunicação, transporte, postos de saúde, escolas etc.). Para resumir, eles se sentem “rejeitados”, em certa medida, por alguns aspectos do meio natural que os hospeda e pelos indivíduos e grupos sociais dotados de mais poder. É preciso acrescentar a importância da intervenção de atores como o Ministério Público Federal, ONGs e alguns pesquisadores da Embrapa-Pantanal. Sobretudo em tempos recentes, eles “aderiram”


à causa dos ribeirinhos e contribuem para criar e alimentar esse sentimento de exclusão, por introduzir informações e reivindicações que não existiam antes de sua participação. Não se quer, aqui, afirmar que seja melhor que as comunidades ribeirinhas ignorem os seus próprios direitos, mas sim sugerir uma evidência objetiva, muito familiar aos antropólogos. Primeiro, a intervenção de atores externos, portadores de informações e intenções (louváveis) em favor da defesa dos direitos dos grupos sociais altera o equilíbrio de adaptação que os habitantes locais tinham alcançado. Esse equilíbrio pode até ser socialmente iníquo, mas é, de qualquer forma, um equilíbrio. Segundo, esses atores externos, intervindo em prol da preservação da identidade, dos hábitos e das tradições locais, desencadeiam dinâmicas exógenas que realmente redefinem os contextos locais, promovendo lideranças antes inexistentes, estimulando confrontos, ensinando qual é a “verdadeira” identidade cultural dos ribeirinhos, e criando novas redes de poder, novos objetivos e novas reivindicações (RIBEIRO, 2005). No caso específico, os ribeirinhos sob análise, querendo ou não, tinham se acostumado à necessidade de se deslocar, de mudar de sítio e de atividade. Até aqueles expulsos ou devidamente indenizados para que deixassem as futuras UCs (ou propriedades adquiridas com o intuito da preservação da biodiversidade) tinham aceitado essa imposição/compromisso. Comprova-o a ausência de rebeliões, reivindicações ou manifestações de dissenso em épocas passadas. Mudança e exclusão se traduzem nas variantes “expulsão”, “falta de consideração e respeito”, “falta de participação”. Isso fica claro nas vozes que declaram não ter ocorrido consulta para a criação das reservas e que os atores externos são incapazes de compreender os problemas quotidianos do ribeirinho. Testemunhas dessas sensações são as queixas sobre a escassa sensibilidade do “pessoal das reservas”, que “maltrata” os ribeirinhos, “não ajuda” e mantém uma atitude hostil. Essas percepções se orientam em três direções: 1. a falta de consenso sobre e de identificação com projetos locais, a forte desconfiança e a sensação de estarem sujeitos a abusos; 2. o elogio nostálgico aos tempos passados como melhores e idílicos – antes não havia problemas nem brigas, havia fartura, liberdade, prosperidade, e todos viviam em paz entre si e com a natureza. Essa idealização – que dá uma visão parcial e fortemente influenciada pelos acontecimentos presentes – aparece quando os informantes discorrem sobre suas vidas antes das reservas; 3. a forte carga simbólica atribuída à terra como elemento central: a posse da terra, o acesso à terra, o seu uso e todas as interdições que pesam sobre ela se tornaram – aparentemente – a causa e a solução imediatas de todos os problemas existentes na área. 9

O terceiro ponto exige um esclarecimento. As terras antes habitadas/utilizadas por grupos sociais ribeirinhos, situados nos perímetros de propriedades particulares, junto com as áreas hoje interditadas à pesca, à coleta e à extração de madeira por terem sido incluídas em UCs ou pelo fato de os seus proprietários estarem engajados na preservação da biodiversidade, tornaram-se o objeto de uma disputa. Essa disputa envolve o reconhecimento da “tradicionalidade” dos ribeirinhos e de seus direitos territoriais (que derivariam de práticas extrativistas “tradicionalmente” desenvolvidas em áreas onde agora está proibido extrair madeira, caçar e acampar). É relevante observar que a área da RPPN Engenheiro Eliezer Batista foi implantada recuada das margens do rio, deixando-as livres para que não houvesse conflito com as atividades de pesca e cata de isca dos ribeirinhos. Na área de propriedade particular da Fazenda Santa Tereza também não há proibição de pesca ou de cata de


iscas, atividades produtivas da população local. Não se nega que o mundo dos habitantes locais sofreu mudanças profundas. Essas mudanças aconteceram independentemente da vontade deles: eles viram a chegada dos turistas, viram proprietários vender e comprar terras antes ociosas e abertas, e viram alguns braços de rios e baías, aos quais tinham acesso, transformarem-se em unidades de conservação implantadas muitos anos antes. Do ponto de vista dos ribeirinhos, isso aparece como uma invasão dos territórios constituintes do quotidiano local. A defesa do território, sem dúvida, é um elemento unificador, capaz de criar uma identidade de grupo. No entanto, como foi visto, as próprias mudanças ecológicas, os altos níveis de mobilidade dos ribeirinhos e o papel dos personagens externos na defesa dos ribeirinhos influenciam a maneira como eles percebem e enunciam a sua relação com o ambiente e as mudanças propriamente sociais e econômicas que afetam as suas vidas. As queixas e reivindicações deixam transparecer uma visão de mundo relacional. Elas apelam para a permissividade e o favor dos poderosos, o que em si mesmo é uma postura bastante “tradicional”, herdeira do paternalismo e do autoritarismo da época de ouro das fazendas de gado. O entendimento de que o problema reside apenas em uma questão de disputa fundiária e de liberação para o uso irrestrito de recursos naturais é ilusório. A mera redistribuição de terras e a permissão para o uso desregrado dos recursos naturais, se as condições sociais e econômicas dos ribeirinhos se mantiverem, amenizariam apenas temporariamente alguns dos sintomas superficiais, sem agir de maneira duradoura sobre as causas mais profundas dos conflitos e carências que os afligem. A distribuição de terra por meio da criação de reservas extrativistas (RESEX) ou de reservas de desenvolvimento sustentável (RDS) parece ser uma medida prática e imediata. Encontraria o pleno apoio de muitos dos que ouviram promessas de regularização de propriedade das terras em que moram. Seria uma solução “espetacular” para aplacar o descontentamento (que é estimulado e orientado nessa direção). Entretanto, seria uma medida incompleta, que deixaria intocadas muitas iniquidades, profundas e sistêmicas, nas quais se originam a exclusão e a marginalidade (sociais, civis, econômicas e políticas). Pensar que a criação de uma nova dimensão fundiária (reserva extrativista, por exemplo) e alienação de terras particulares causem imediatamente todas as melhorias necessárias é uma visão utópica e ineficaz. Além disso, é importante entender que UCs como RESEX e RDS também implicam restrições ao uso dos recursos naturais. Criá-las com base na suposição ingênua de que as populações ribeirinhas não têm impacto sobre os ecossistemas, porque vivem em equilíbrio perfeito com o seu ambiente natural, é gerar um problema grave para a gestão dessas UCs. A liberação do uso irrestrito dos recursos naturais significaria a extração indiscriminada de iscas, a derrubada de árvores para a reconstrução anual de casas destruídas por enchentes, a caça de espécies da fauna ameaçadas de extinção, a “limpeza” e utilização de solos frágeis para a agricultura, e a utilização de maquinário agrícola (como tratores) para preparar esses solos. Isto só pode implicar consequências danosas para os ecossistemas do Pantanal. Há que salientar que o problema central na busca do desenvolvimento sustentável nas RESEX é a viabilidade econômica. Embora esse modelo de unidades de conservação busque aliar conservação do meio ambiente e justiça social, falta efetivamente solucionar a questão da viabilidade econômica para as comunidades envolvidas, elemento este que tem levado muitas RESEX ao fracasso, conforme mostram estudos fundamentados em dados altamente confiáveis (SACRAMENTO et al., 2003; IEG, 2013). É importante agir antes – mais profundamente – para mudar as variáveis que causam a atual


condição de indigência das populações ribeirinhas. A questão não é a posse da terra, mas sim a sua utilização, a capacitação para valorizá-la (não necessariamente por meio de extrativismo e do uso direto) e para agregar valor localmente aos recursos naturais. O valor da natureza protegida e da biodiversidade, o valor de existência para as presentes e para as futuras gerações, a salubridade, a qualidade do ar, dos solos e das águas, a preservação da paisagem, da fauna e da flora, os benefícios derivados da pesquisa científica e do ecoturismo, a valorização do patrimônio arqueológico, histórico e cultural: é fácil perceber a enorme riqueza potencial do Pantanal. No que diz respeito à terra, existe uma outra consideração a fazer. Se realmente quiséssemos adotar uma solução técnica, ou seja, individuação e restituição das áreas consuetudinariamente utilizadas para o extrativismo de subsistência, encontraríamos sérias dificuldades. Na hora de listar os lugares onde “antigamente” se fazia extração de recursos, em um contexto de livre acesso, se perguntarmos aos moradores locais, descobriremos que provavelmente todas as localidades podem ser assim reconhecidas e que muitas terras atualmente ocupadas não pertencem à categoria. Cada região tem uma pluralidade – talvez a totalidade – de locais que poderiam ser reivindicados como “tradicionalmente utilizados”. Todo morador, sem dificuldade, poderia convalidar lembranças, hábitos e anedotas ligados a qualquer um dos locais circunvizinhos. Isso legitimaria a sua inclusão na lista. Não existe um número exato, detectável e limitado de áreas “tradicionalmente” utilizadas: todas podem ter sido, uma vez ou outra, lugares onde os membros das comunidades pescaram, caçaram ou coletaram. Aliás, é evidente que se o objetivo é incluir e ganhar espaços e direitos de uso, a tendência será a de declarar o uso “tradicional” do maior número possível de lugares. Adicionalmente, não há sentido em alegar “tradicionalidade” quando se trata de terras sujeitas a recentes fenômenos de emigração, reassentamento e nova ocupação. Como definir o critério temporal e o nível de frequência e de intensidade necessários para reconhecer a tradicionalidade do uso? Quais os parâmetros para definir a importância desses locais e justificar a sua inalienabilidade, ou motivar a alienabilidade com dano para os atuais proprietários particulares? Quando se trata do elemento “terra”, as argumentações em favor dos ribeirinhos incorrem em um excesso de valorização, em uma sobrecarga simbólica e política. Nesse contexto, os agentes do poder público e os representantes dos vários interesses envolvidos veem na gestão e instrumentalização das questões fundiárias (reivindicação/concessão) a única solução para injustiças e “culpas” históricas que pesam quando o assunto está relacionado com grupos que se apresentam como “socialmente diferenciados”. Há, portanto, três orientações entre os ribeirinhos: (i) a falta de consenso e de identificação com os projetos locais, forte desconfiança e sensação de estarem sujeitos a abusos; (ii) saudade e elogio nostálgico dos tempos passados como melhores e idílicos; e (iii) forte carga simbólica atribuída à terra. Elas podem ser consideradas como exemplos de práticas instrumentais e “instrumentalizantes” dos processos históricos, dos recursos fundiários e das relações sociais vigentes. Para alcançar uma gestão integrada e eficaz do território e dos seus recursos, é importante refletir sobre como negociar e alcançar acordos em torno de questões que envolvem tensões, dissenso e conflito. Cabe ainda calcular custos e benefícios a serem alcançados, articular políticas públicas e iniciativas privadas, e pesar os interesses e possibilidades de ação e interação dos diversos atores.

3.12 – O tradicional e o moderno Na vida material e cultural da região do Paraguai-Mirim, de Barra do São Lourenço e da Serra do Amolar convivem elementos procedentes de várias tradições, ou seja, de várias dimensões históricas,


produtivas e geográficas. O que chamamos de “tradição”, de fato, não é outra coisa que o conjunto (ou os conjuntos) desses elementos: ex post e desde fora, estamos acostumados a individualizá-los, separá-los artificialmente e utilizá-los, por convenção e para efeito de síntese. Ecos da cultura material indígena, particularmente os ligados aos meios e instrumentos de caça e pesca e às tipologias habitacionais, interagem com influências das culturas urbanas e rurais das regiões circunvizinhas. Remos artesanais, canoas escavadas em troncos de árvores, fogões a lenha construídos com barro, rezas cantadas nas festas de Arraial e Banho de São João convivem com barcos a motor, geradores de eletricidade, fogões a gás, rádios, televisões, antenas, telefones celulares (ver Fotos 84 a 94). Tradição e modernidade, hábitos enraizados e equipamentos ligados a mudanças, passado e presente constantemente se encontram e se misturam na mesma comunidade, na mesma família e no mesmo indivíduo. Modelos, bens, valores, práticas, planos e desejos de diferentes procedências coexistem no mesmo contexto. Coexistem ainda dinâmicas de reprodução e de transformação de tradições culturais. Alguns membros das novas gerações, por exemplo, saem das comunidades para estudar em escolas da cidade ou na Escola Jatobazinho, nas quais entram em contato com novos ambientes e novas modalidade de vida. Alguns se profissionalizam (conseguem empregos urbanos em Corumbá e Campo Grande) ou continuam a viver nas cidades para prosseguir com os seus estudos. Optam por atividades e estilos de vida diferentes daqueles que os seus pais e mães praticam nas beiras dos rios. Constatamos que em algumas famílias ribeirinhas o pai ou a mãe trabalha e mora na cidade com os filhos estudantes, enquanto o outro cônjuge fica na beira do rio. Ainda que essa experiência de saída da comunidade e de “descoberta” do mundo externo pelos mais jovens possa levar a um choque entre eles e as gerações adultas, representa também uma abertura para novos elementos, para a possibilidade de conhecer modos de vida alternativos. De fato, o apego à vida nas beiras dos rios e a falta de vontade de morar em outro lugar coexistem com a aspiração de sair da marginalidade e alcançar a integração social e os confortos e bens que a modernidade oferece. É curioso observar como vários entrevistados, mesmo que se declarem satisfeitos com as suas vidas de ribeirinhos e nostálgicos dos “bons tempos”, se dizem também dispostos a ir morar nas cidades, desde que tenham um bom emprego e uma casa razoável – ou seja, desejam uma boa integração. Muitas mulheres afirmam preferir a vida nas beiras dos rios por causa dos sérios perigos que os seus filhos correriam se fossem criados na cidade (drogas, crime, violência, exposição a novos valores e perda do controle dos familiares). As mulheres mais velhas, cujos filhos já saíram de casa para ir trabalhar longe, não exprimem esses tipos de temores, mas reconhecem que elas, por escolha pessoal e costume, não abandonariam o tipo de existência que levaram durante a vida inteira. O “desconhecido”, podemos inferir, é um lugar perigoso e ruim de morar, e não apenas para “tradicionais”. Embora as condições reais e atuais apresentem dificuldades, o conhecido é sempre mais seguro do que o que não é familiar. Dentro de um ambiente conhecido, apesar dos problemas, o ser humano sabe aonde ir, como se mover e como solucionar problemas. Esse conceito é estudado pelas ciências humanas por meio das noções de homeland, territorialidade ou sentido do lugar – sense of place (FELD e BASSO, 1996; LITTLE, 2002; COSTA FILHO, s/d). Todo território habitado por humanos é construído por histórias (individuais e coletivas), práticas cotidianas, formas de subsistência, paisagens, objetos, lugares prediletos e marcos identitários. Todo território, por ser vivenciado e investido de significado pelos habitantes, molda a cultura deles e os seus modos de sentir e agir. É importante entender que isso ocorre sempre e em qualquer lugar onde haja existência “situada” de vidas humanas, independentemente de origem, etnia e da presença de


elementos ancestrais ou folclóricos. A territorialidade é um sentimento universal e legítimo – como tal merece ser respeitado – que caracteriza os habitantes dos bairros mais “caóticos” das grandes metrópoles ocidentais e orientais, assim como os povos tribais de ilhas remotas às margens da moderna civilização contemporânea. A territorialidade não é um traço exclusivo de povos dotados de “pureza étnica”, ou que vivam em contextos “tradicionais”. Sentimentos de territorialidade caracterizam-se por movimentos ambíguos de reconhecimento e de estranhamento. O impulso de se identificar com um lugar e de assumir os seus marcos e símbolos identitários pode conviver com o desejo de emancipação e de mudança. Essa ambivalência é comum nos contextos rurais sujeitos a contatos frequentes com as realidades urbanas (responsáveis por fluxos de entrada e saída de informações, pessoas, bens e ideias). É o caso da região estudada. Modernidade e tradicionalidade são, portanto, traços complexos e ambivalentes. Elas assumem duas faces distintas, alternando o bom/desejável e o negativo/rejeitado, dependendo da perspectiva e dos objetivos do sujeito, variando também de acordo com a identidade e o papel circunstancial do interlocutor.

3.13 – Tradicionalidade: uma identidade e uma ideia Cabe perguntar, por fim, se os grupos sociais ribeirinhos aqui estudados são ou não tradicionais. Inegavelmente, eles têm características de tradicionalidade. Na maioria, são compostos por pessoas que sempre moraram ou moram há algum tempo nas beiras dos rios do Pantanal, e cuja subsistência depende diretamente de um ou outro recurso natural (pesca, agricultura, caça, iscas). As ascendências, embora marcadamente miscigenadas, são indígenas, negras e brancas. Alguns dos elementos da cultura material – técnicas de construção das habitações, ferramentas, petrechos de pesca, conhecimento dos aspectos naturais do ecossistema pantaneiro – remontam a tradições culturais mais antigas ou mais modernas. Tais elementos da cultura material são acompanhados por memórias, valores, visões, afetos e narrativas (cultura imaterial) peculiares de um mundo e de uma forma de sentir. Observamos expressões disso, por exemplo, nas festas e nas rezas que constituem a memória coletiva. No entanto, há elementos de peso que nos levam a duvidar da “tradicionalidade” dessas populações. A atividade de subsistência por excelência é a coleta de isca, que se afirmou somente a partir dos anos 1980 (isto é, recentemente), sob estímulo de um elemento novo, estranho e externo: o turismo de pesca. A pesca e as roças de subsistência, praticadas com instrumentos tradicionais e modernos, continuam a ser praticadas, mas marginalmente. A disponibilidade de novas tecnologias invadiu capilarmente todos os âmbitos da vida dos ribeirinhos: apenas os mais carentes não dispõem de barcos a motor; muitos têm rádios, antenas e televisões; crianças e adolescentes falam e fotografam com celulares. Outra consideração diz respeito à vida comunitária. Embora existam vínculos familiares e de parentesco entre núcleos de moradores do mesmo local ou de localidades próximas, parece não existir uma dimensão comunitária abrangente e “tradicionalmente” estruturada. Não há organismos e funções autóctones de poder e não existem pessoas que encarnem papéis de liderança nas várias esferas da vida social. Isso é facilmente compreensível, dada a fragmentação e a diáspora ocorridas a partir de 1974. Os agrupamentos anteriores se dissolveram e os seus moradores se espalharam. Novas agregações surgiram espontaneamente e de maneira mais ou menos casual, conforme iam surgindo as oportunidades de exploração de um ou outro recurso natural. Em termos bem simples, a dimensão de


grupo organizado e formalizado ainda não existe entre os moradores das localidades estudadas. Alguém poderia objetar que hoje existe uma incipiente associação de moradores, com líderes e representantes escolhidos e legítimos. Mas trata-se de um fruto muito recente e, por assim dizer, não exatamente espontâneo, nem tem fundamento “tradicional”: nasceu sob estímulo da mencionada proposta de criar uma reserva extrativista, para disporem, como ribeirinhos, de representação política mínima perante uma política pública moderna de criação de UCs. Outra questão se liga ao tipo de tradições que se quer reconhecer e preservar. Dada a importância da atividade de coleta de isca (exercida por mulheres e jovens de idades precoces), há que se perguntar: o que aconteceria a partir do reconhecimento “oficial” da tradicionalidade dessas populações e de suas formas de uso e dependência desse recurso natural? Há sustentabilidade na sua exploração? Em que medida a atividade impacta a biodiversidade? Quais são as consequências da atividade para a saúde dos catadores? Como se justifica o trabalho infantil? Outros tipos de atividade poderiam resultar em mais rendimento e autonomia para os ribeirinhos? Ou será que a “tradicionalidade” implica a manutenção de um modo de vida baseado unicamente na coleta de iscas? Voltando ao que foi discutido em relação à liberalização de acesso em unidades de conservação para caça e extração de madeira, cabe indagar sobre os benefícios reais que derivariam dessa liberalização. Avaliamos que seria apenas uma intervenção imediatista no sentido de ampliar as áreas exploráveis, o que as exporia a um extrativismo intenso e concentrado em poucas espécies. A atividade de coleta de isca, já liberada dentro dos contornos da lei (assim como a pesca), continuaria sendo insalubre, arriscada e pouco rentável para os ribeirinhos. Qualquer ampliação da área de extração não melhoraria as condições de vida da população, pois não muda o caráter insustentável e/ou insalubre das atividades. Vale lembrar que estudo recente, encomendado pelo Banco Mundial, comprovou que muitos projetos financiados pelo banco e por outras entidades para promover o extrativismo tiveram resultados pouco satisfatórios. Em sua grande maioria não se mostraram sustentados (ou seja, não subsistiram por conta própria quando o dinheiro do financiamento acabou) e muito menos replicáveis. Após o investimento de vultosas quantias as populações locais continuaram pobres. A conclusão do estudo foi a de que sai bem mais barato e é bem mais efetivo, como política, pagar para que as populações locais protejam a biodiversidade (IEG, 2013). É importante melhorar a qualidade dos modos e dos meios produtivos locais, que passaram por profundas modificações causadas pelos influxos da modernidade – mercado, tecnologias, bens, serviços, valores ambientais. Para além das boas intenções, algumas propostas de defender os direitos dos povos locais podem se transformar em um instrumento de perpetuação de condições precárias de existência. Os grupos sociais ribeirinhos mesclam tradições mais antigas com novas tradições, inventadas ou apropriadas do estoque da modernidade, com o intuito de melhor se adaptar aos desafios do ambiente natural e social em que vivem. São cidadãos brasileiros e como tal são portadores de direitos fundamentais, que devem ser garantidos, independentemente de se adequarem ou não ao rótulo de “tradicionalidade”.

3.14 – Sobre justiça ambiental A política de conservação da biodiversidade e dos ecossistemas implica custos econômicos, sociais e culturais, da mesma forma que qualquer outra política pública ou empreendimento social. Por isso, vale refletir sobre quem são os maiores consumidores de bens ambientais e os maiores beneficiários da conservação. A natureza conservada é um bem escasso e por isso muito valorizado, para e por


aquela parcela da humanidade que, por ter crescido, em geral, em ambientes urbanos, e/ou com um padrão de consumo superior, comprometeu, direta ou indiretamente, os ambientes naturais. São esses grupos humanos que consomem grandes parcelas de recursos naturais e que pressionam e financiam a criação de áreas protegidas como medida compensatória. São os mesmos que hoje procuram saúde, informação e lazer ao ar livre. Atribuindo grande valor a tudo o que perderam, e que contribuíram e contribuem para ser perdido, eles se mobilizam para que a biodiversidade seja preservada nas áreas protegidas. Essas áreas muitas vezes se localizam onde outros grupos sociais, por falta de tecnologia ou graças à perpetuação de modelos produtivos de baixo impacto, ou mesmo pela baixa densidade demográfica, causaram menos prejuízos ao meio ambiente. Para os grupos sociais “locais”, é claro, a preservação não é uma prioridade urgente, tal como pode ser para as populações urbanas. Ao contrário, para eles a preservação pode, sim, representar um limite à autonomia decisória relativa aos seus próprios destinos e ao próprio desenvolvimento. Ela é percebida como uma prioridade exógena, voltada a satisfazer interesses externos e cujos custos socioculturais e econômicos pesam apenas sobre eles, ou seja, sobre quem mora em regiões economicamente marginais e bem preservadas. A natureza selvagem ou preservada é algo que toca as sensibilidades de parcelas da sociedade urbana que podem desfrutar das áreas protegidas como locais fortemente diferenciados de seus próprios locais de moradia. Essa atenção à conservação da biodiversidade e dos ecossistemas é, entretanto, necessária e legítima. Os seus valores e justificativas estão assimilados por uma parcela razoável e significativa da sociedade. Podem ser considerados, por assim dizer, uma corrente recente, mas forte, do pensamento e da atitude cultural modernos. Isso implica a necessidade de refletir em termos de responsabilidades, custos e benefícios, contrabalançando o peso de todos os direitos a serem considerados no momento das escolhas políticas, do planejamento e do manejo das questões ambientais e socioambientais (LANTERNARI, 2003). Os direitos das gerações presente e futuras a um ambiente saudável e a um patrimônio biológico e paisagístico biodiverso e bem preservado, assim como os direitos territoriais, culturais e à autonomia dos grupos locais, são todos dignos de consideração. Trata-se, certamente, de uma operação complicada de conciliação entre valores, entidades jurídicas e interesses diferenciados e, amiúde, divergentes. Para resolver essa questão complexa, a operação de reduzir a identidade dos povos locais à condição de “tradicionais”, em contraposição substancial com as sociedades modernas e com valores fundamentais, tais como a conservação da biodiversidade e dos ecossistemas, é reducionista e mistificadora. Essa operação se baseia em pressupostos falazes que, conforme Barreto Filho (2006), distraem a nossa atenção dos dois problemas centrais: 1. se a cidadania, ou seja, as condições de vida, de saúde, de educação, segurança etc. e o acesso aos serviços básicos desses grupos sociais – não importa se “tradicionais” ou “modernos” – são respeitados e garantidos; 2. se a residência de grupos humanos em áreas protegidas ou em regiões cujos ecossistemas e equilíbrios ambientais são reconhecidos como preciosos/ameaçados/frágeis é ou não é ecologicamente compatível com os princípios (legítimos) da conservação da biodiversidade e dos ecossistemas. Situar o debate na esfera dos direitos universais e da cidadania, devotando atenção especial à questão da conservação da biodiversidade e dos ecossistemas, não significa desconsiderar ou sacrificar as minorias, as suas lutas, os seus direitos territoriais e os seus problemas de desagregação


e marginalidade política, social e cultural. “Ocorre que importa defender todos os povos e grupos sociais que estão lutando para sobreviver e se reproduzir, em particular os mais desfavorecidos e explorados [...]” (BARRETO FILHO, 2006, p. 138). De nada adianta desqualificar as estratégias para a conservação da biodiversidade e dos ecossistemas, nem exacerbar as matrizes de conflitos socioambientais. É mais útil tomar iniciativas voltadas para recompor o diálogo e construir alternativas viáveis.

3.15 – Turismo Ecológico e Planejamento Biorregional: uma análise propositiva O estudo realizado sobre as populações ribeirinhas do Paraguai-Mirim, Barra do São Lourenço e Serra do Amolar demonstra a existência de um contexto marcado por conflitos de interesses e disputas por espaço e recursos naturais. Esses conflitos tomaram corpo, sobretudo, nas últimas três décadas. As sociedades são permeadas por conflitos de várias naturezas. Os antagonismos e tensões sociais têm origem nas relações econômicas, nos valores culturais e nas concepções políticas. Eles podem determinar estruturalmente outros conflitos. São exemplos disso as contradições nas formas de organização do trabalho e da propriedade privada, as disputas dos grupos políticos pelo poder, as contradições dos regimes econômicos e políticos, os avanços e retrocessos dos aparelhos de Estado, entre outros. Para Simmel (1969), o conflito é uma condição de existência da sociedade. É, sobretudo, indispensável para as mudanças sociais. Tem capacidade para produzir e/ou modificar grupos de interesse, organizações e as vidas dos indivíduos. O conflito promove a integração social, que é a condição de existência da sociedade.Todas as disputas que acontecem no tecido social entre os indivíduos e entre os grupos, bem como entre ambos, denotam uma multiplicidade de elos sociais que envolvem as relações humanas e as dimensões psicológicas individuais. No Brasil, como não poderia deixar de ser, os conflitos acompanham a história do país, seja no espaço urbano ou rural, na fábrica, nas ruas ou no campo, entre patrões e empregados, entre movimentos sociais e o Estado. Disputas podem ocorrer também entre entes públicos de mesmo nível ou de diferentes esferas, como no caso da disputa interestadual pelos recursos gerados pelo petróleo a ser extraído da camada pré-sal. Recentemente, emergiram conflitos sociais em torno de empreendimentos hidrelétricos. Eles ganharam visibilidade quando as populações afetadas pelas barragens dos rios começaram a se organizar. De uma forma mais ampla, cresceram os conflitos em torno do acesso e do uso de determinados recursos naturais. Seja em torno de recursos financeiros oriundos de políticas públicas ou de riquezas naturais, o conflito se estabelece basicamente porque os recursos ou bens são escassos e finitos. Diversos autores (ACSELRAD, 2004; BREDARIOL, 2001; FLEURY e ALMEIDA, 2009; ZHOURI, 2007; FRANCO e DRUMMOND, 2009) têm abordado, por variados ângulos, a relação conflituosa no âmbito da gestão e do uso de recursos naturais, em situações bastante heterogêneas. São trabalhos que, embora focalizem situações diferentes, permitem desenvolver uma perspectiva ampla sobre a gestão de conflitos. Na área em que se localizam as comunidades por nós estudadas, interagem múltiplos atores com interesses diversos. Esses atores podem ser assim denominados: proprietários privados de terras, ONGs, grupos sociais ribeirinhos residentes, turistas, cientistas, procuradores de justiça, intermediários e instituições do Estado. Os conflitos se dão em intensidades diferentes, conforme os interesses e os cruzamentos desses atores entre si, de forma direta ou indireta. Alguns conflitos podem ser expressos assim: área pública X uso privado; uso turístico de recursos naturais X uso comercial; uso comercial de recursos naturais X conservação da biodiversidade; pesca artesanal


profissional X pesca turística. Enfim, as principais relações conflituosas identificadas estão diretamente associadas com os recursos naturais: terra, água, peixes, matas, madeira, animais etc. Uma peculiaridade da região em análise é a existência de atores que não operam cotidianamente nela, mas que desempenham papéis relevantes em suas respectivas áreas de atuação. Neste caso se enquadram a Embrapa e o Ministério Público. A Embrapa gera conhecimento e pode ser fundamental na definição de padrões e limites de uso dos recursos naturais. Já o Ministério Público defende os direitos sociais e individuais fundamentais indisponíveis e fiscaliza a aplicação das leis. Entretanto, para a finalidade deste trabalho, e em decorrência do papel proeminente que cabe à instituição, cabem algumas ponderações sobre a inserção do Ministério Público. Além disso, é importante destacar que a instituição tem potencial para auxiliar muito na negociação e resolução dos conflitos ora identificados. Contudo, ele está contribuindo para acirrar ainda mais os conflitos. A tentativa do Ministério Público Federal de desempenhar o papel de defensor dos direitos sociais e individuais formalizou-se por meio da invocação do direito das populações ribeirinhas de assumir e exercitar uma identidade “tradicional” para garantir direitos sobre recursos naturais. Contudo, essa identidade é utilizada indiscriminadamente, antes mesmo de qualquer procedimento investigativo que evidencie a condição desses grupos. O tratamento dos grupos como “comunidades tradicionais” é feito quase que automaticamente, sem qualquer referência temporal ou cultural que os qualifique. Ainda que considerássemos válido o conceito legal de comunidades tradicionais, os grupos sociais estudados não apresentam aquele conjunto de atributos listados nas definições de “Povos e Comunidades Tradicionais” e de “Territórios Tradicionais”, conforme o Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Há, sim, traços isolados de práticas sociais cotidianas que indicam diferenças em relação aos grupos urbanos e sugerem características de construções culturais próprias. Mas esses traços são escassos. Não existem manifestações culturais peculiares herdadas de antepassados longínquos nem fortes conteúdos simbólicos, e especialmente não se vislumbra as práticas coletivas que caracterizariam esses grupos como “tradicionais”. Ademais, a atribuição desse status ocorre por um processo top down (de cima para baixo), em que o Ministério Público Federal é o ator principal e a comunidade é a coadjuvante, quando na verdade deveria ser o contrário, conforme preconizam os instrumentos jurídicos pertinentes. As reivindicações dos comunitários giram em torno de acesso a tratamento de saúde, equipamentos de comunicação, energia e outras necessidades básicas. As comunidades não se apresentam como “tradicionais” na sua busca por alcançar tais direitos. Pelo contrário, assumem a postura de cidadãos genéricos, portadores de direitos universais. Além do mais, é duvidoso o procedimento do Ministério Público de privilegiar/escolher um núcleo habitacional ou grupo de pessoas, as populações ribeirinhas da Barra do São Lourenço, ParaguaiMirim e Serra do Amolar, em detrimento de outros grupos vizinhos que vivem sob as mesmas condições socioeconômicas, ambientais, políticas e, sobretudo, culturais. Não há qualquer particularidade pertinente à tradicionalidade dessas três localidades. Certamente, muitas outras comunidades ribeirinhas do Pantanal poderiam usar as mesmas argumentações para alegar o status de “tradicionais”. É indiscutível a existência de profundas necessidades sociais e de déficits de cidadania por parte dessas populações. Elas clamam, com razão, por políticas públicas efetivas. Elas precisam mais disso do que do reconhecimento como “população tradicional”. Não fica evidente sequer que as comunidades em questão desejam esse reconhecimento. O que há são carências que precisam ser atendidas e condições que necessitam ser melhoradas para garantir qualidade de vida para essas populações. Enfim, a resolução dos conflitos sobre uso e ocupação de determinadas porções do espaço local, a


disputa pelo acesso a recursos naturais, e as alternativas de uso desses recursos são questões que dificilmente chegarão a uma solução mediante a manipulação de um conceito. Não é atribuindo uma determinada identidade tradicional a um grupo que se resolverá os problemas sociais. Entende-se claramente que esses grupos sociais representam a parte mais vulnerável desse imbróglio e que eles necessitam de amparo do poder público. Porém, a atuação do Estado nessas localidades é desde sempre frágil. É isso que precisa ser fortalecido: a presença do Estado. Já existem instrumentos diversos e suficientes, em termos de legislação e políticas públicas, com base nos quais as intervenções do poder público conseguirá proporcionar melhores condições de vida a essas populações. É de suma importância a construção de canais de diálogo e pactuação entre os atores, para dirimir conflitos e se chegar a um “jogo de ganha-ganha”, e não “ganha-perde” (jogo de soma zero). Independente da identidade tradicional, essas comunidades requerem a garantia de seus direitos e as condições para exercer a sua cidadania. O Ministério Público é um ator forte e capaz de exercer uma liderança nesse processo de resolução de conflitos, na base do diálogo e da criação de soluções negociadas, acordos, justiça e maior partilha e usufruto dos bens difusos e coletivos. No que diz respeito às possibilidades de geração de renda e à autonomia para as comunidades ribeirinhas, cabe refletir sobre a implementação do ecoturismo. Tanto as políticas públicas como os investimentos privados são fundamentais para mudar a face do turismo. Os ribeirinhos só poderão ganhar com isso na medida em que se investir em capacitação e se instituir mecanismos compensatórios, enquanto as atividades mais intensivas em agregação de valor (como os produtos e serviços relacionados com o ecoturismo) não são capazes de substituir ou complementar a renda gerada pelas atividades menos bem remuneradas, como a coleta de iscas. É previsível que exista um intervalo de tempo antes que uma demanda substitua a outra. O sucesso de uma atividade como o ecoturismo, capaz de garantir, ao mesmo tempo, a conservação da biodiversidade e dos ecossistemas e a melhoria da qualidade de vida dos ribeirinhos, só ocorrerá a partir do planejamento e do comprometimento das autoridades locais, estaduais e federais e dos empresários. Vale acrescentar uma explicação e uma reflexão sobre o ecoturismo. Nos anos 1980, as preocupações com o turismo de massa em ambientes naturais e com os impactos negativos sobre populações locais conduziram a um aprofundamento da reflexão sobre as vantagens e desvantagens da atividade turística e sobre o papel que o turismo poderia representar para a economia de determinadas regiões. O conceito de ecoturismo nasceu como uma estratégia capaz de unir a conservação da natureza ao desenvolvimento econômico e social local. Em 1990, a Sociedade Internacional de Ecoturismo (TIES) – primeira organização mundial dedicada ao ecoturismo – cunhou uma definição sucinta e abrangente da atividade: “Viagem responsável para áreas naturais, que conserva o ambiente e promove o bem-estar das comunidades locais”10 (HONEY, 2009, p. 6). O conceito convergia com o planejamento biorregional, elaborado por Kenton Miller, que buscava conciliar a preservação da biodiversidade em áreas protegidas com o desenvolvimento nas regiões no seu entorno (MILLER, 1997 e 1997a). Mais recentemente, John Terborgh e Carel van Schaik (2002) viram no turismo a melhor alternativa para combinar os objetivos de conservação da biodiversidade em parques nacionais com a melhoria das condições de vida das populações locais. Segundo Honey (2009), o ecoturismo se baseia em sete princípios fundamentais: envolve viagens para destinações marcadas por belezas naturais, minimiza o impacto sobre a natureza, promove o despertar da consciência ambiental, providencia benefícios financeiros diretos para a conservação, proporciona benefícios financeiros para as comunidades locais, respeita a cultura local e gera apoio para os direitos humanos e movimentos democráticos. Ainda que esses princípios, na maioria das


vezes, não sejam seguidos na íntegra, as potencialidades são expressivas: No nível local, os princípios do ecoturismo são parte de muitos conflitos rurais relacionados com o controle da terra, os recursos naturais e os rendimentos do turismo. Em qualquer lugar no mundo em que as pessoas estejam em conflito sobre parques e turismo [...] o ecoturismo é parte da demanda e parte da solução. Nos mais frágeis ecossistemas, como as Galápagos, o ecoturismo bem conduzido é a única opção, a única atividade que possibilita o recebimento de recursos estrangeiros que, se feita com cuidado e controles, não conduz a danos irreparáveis ao ambiente. [...] [E]studos em três países da América Central descobriram que uma estadia ecoturística traz de 18 a 28 vezes mais dinheiro para a economia local do que um cruzeiro de passageiros, enquanto que um estudo sobre fazendas de caça no Quênia descobriu que o turismo relacionado com a natureza selvagem era 50 vezes mais lucrativo do que a criação de gado 11 (HONEY, 2009, p. 444).

Países como Estados Unidos da América, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, que há muito tempo faturam com o turismo de natureza, têm procurado melhorar os padrões da visitação aos seus patrimônios naturais. Para tanto, têm investido no ecoturismo. Países com maiores dificuldades financeiras e sociais como África do Sul, Quênia, Tanzânia, Costa Rica, Equador e Peru têm apostado em estratégias para atrair e desenvolver o ecoturismo. O Brasil tem enorme potencialidade para o ecoturismo. Tem preferido, no entanto, investir em um turismo de massa, com pouco planejamento e com efeitos danosos para a sociedade, para o patrimônio natural e para a imagem do país. O ecoturismo pode, em muitos casos, ser uma solução para os conflitos entre comunidades locais e UCs, desde que acompanhado de políticas públicas de inclusão social capazes de garantir a transição de economias intensivas no uso de recursos naturais para economias intensivas na agregação de valor – como é o caso do turismo. Esta digressão sobre as potencialidades do ecoturismo permite visualizar a sua aplicabilidade ao Pantanal, sobretudo na região que mais nos interessa, entre Corumbá e o Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense. O próprio turismo de pesca poderia ser subsumido no ecoturismo, desde que realizado dentro de critérios mais rígidos. A fauna, inclusive as tão temidas onças, poderia ser objeto de safáris fotográficos12 conduzidos por ribeirinhos treinados e orgulhosos de seu conhecimento dos meandros pantaneiros. Casas alagadas anualmente poderiam dar lugar a pousadas flutuantes, simples, mas capazes de oferecer conforto aos visitantes e de gerar renda para os ribeirinhos. Artesanatos de qualidade certamente seriam tão ou mais rentáveis que a coleta de iscas. Mesmo a coleta de iscas poderia ser exercida dentro de um plano baseado em acordos de pesca e preços mínimos. Um quadro desses geraria muito mais dividendos e dignidade para os grupos sociais ribeirinhos do que o seu reconhecimento como “tradicionais”. Pode-se argumentar que é esperar demais que um cenário desses se realize. No entanto, energia demais está sendo gasta na exacerbação de conflitos que parecem não levar a lugar algum. Um modelo conservacionista previsto pela Lei do SNUC e promovido pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) e pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) é o do mosaico de áreas protegidas. O conceito de mosaico aparece no artigo 26 da Lei do SNUC, com a seguinte redação: Quando existir um conjunto de unidades de conservação de categorias diferentes ou não, próximas, justapostas ou sobrepostas, e outras áreas protegidas públicas ou privadas, constituindo um mosaico, a gestão do conjunto deverá ser feita de forma integrada e participativa, considerando-se os seus distintos objetivos de conservação, de forma a compatibilizar a presença da biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável no contexto regional.

O mosaico se encaixa bem na citada estratégia de planejamento e manejo biorregional de Kenton Miller e tem potencial para garantir a conservação de espécies e de ecossistemas e promover o desenvolvimento econômico e social (MILLER, 1997 e 1997a). Uma iniciativa importante para a implantação de mosaicos de áreas protegidas ocorreu no início do


ano de 2005, com o Edital nº 01/2005 do Fundo Nacional do Meio Ambiente – “Mosaicos: uma estratégia de Desenvolvimento Territorial com Base Conservacionista (DTBC)”. O edital teve por objetivo selecionar projetos orientados (i) para a formação de mosaicos de UCs e outras áreas legalmente protegidas e (ii) para a elaboração de planos conexos de DTBC. O DTBC se baseia na associação entre desenvolvimento e conservação da natureza. A sua metodologia é a formação e o fortalecimento de cadeias produtivas (de bens e serviços) alimentadas pelo manejo sustentável dos recursos naturais. No caso do edital citado, essa metodologia deve ser aplicada em um território composto por várias UCs próximas entre si, por outras áreas legalmente protegidas e pelas zonas de interstício entre elas e de seu entorno. Nenhum projeto de DTBC foi aprovado para o Pantanal. Alguns projetos aprovados para outros biomas alcançaram sucesso notável e já ingressaram em uma segunda fase, com captação de novos recursos. É o caso do Mosaico Sertão Veredas-Peruaçu, no Cerrado do norte de Minas Gerais, e do Mosaico do Baixo Rio Negro, no Amazonas. Após o edital, outros mosaicos bem-sucedidos foram constituídos, com o apoio do MMA e do ICMBio, como o Mosaico da Mantiqueira, na Mata Atlântica. No Pantanal, na nossa área de estudo, existem as áreas das RPPNs, do Parque Nacional e da Terra Indígena Guató. A elaboração de um plano de DTBC seria uma excelente oportunidade para promover a conservação da biodiversidade e dos ecossistemas e o desenvolvimento territorial, com a consequente melhoria da qualidade de vida dos ribeirinhos e dos índios Guató. É uma iniciativa que pode começar imediatamente e que, ao contrário das propostas de RESEX e RDS, ajuda a resolver conflitos, ao invés de gerá-los. Essa combinação de um plano de mosaico de áreas protegidas com DTBC pode ser também um instrumento de pressão para a aplicação de políticas públicas sociais e ambientais para a região. Ela é compatível com alternativas como a do ecoturismo. Dessa forma, haveria investimento em soluções propositivas, muito mais do que o acirramento dos conflitos.

Notas 2 Este capítulo é baseado principalmente em pesquisa de campo – observação, aplicação de questionários em Paraguai-Mirim, Barra do São Lourenço e Serra do Amolar e entrevistas com ribeirinhos, proprietários de terras, indivíduos envolvidos com a conservação da natureza e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento atuantes na região. 3O Morro do Urucum, situado na zona rural de Corumbá, é a maior formação rochosa do estado e tem grandes reservas de manganês e ferro. Segundo Fernandes (2009), em 2008 estavam ativas em Corumbá as seguintes empresas de exploração de minério de ferro: Vale do Rio Doce, Mineração Corumbaense Reunida (MCR), Mineração e Metálicos (MMX), Mineração Pirâmide Participações (MPP) e a Corumbá Mineração (COMIN – Vetorial Siderurgia). Há ainda a mineração de manganês, da Mina do Urucum, controlada desde 1994 pela Vale do Rio Doce, que está presente também na área urbana de Corumbá com a usina de ferroliga da empresa Rio Doce Manganês. 4 Para a definição de terreno de marinha, veja o Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946, e a Lei nº9.636, de 15 de maio de 1998. Para a definição de Área de Preservação Permanente (APP), ver o Código Florestal brasileiro, definido pela Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965. 5 Diversos respondentes informaram que as suas famílias são beneficiárias do extinto Programa Bolsa Escola. Estas respostas foram contabilizadas na cota do Programa Bolsa Família. 6A variação se deve aos tipos de equipamento utilizados, desde barcos com motores de rabeta (mais lentos) até voadeiras com motores de diversas potências e velocidades (mais velozes). 7 A pessoa poderia dar várias respostas a essa pergunta e todas tiveram o mesmo peso, sendo analisados somente os números de vezes em que foram repetidas as respostas. 8 Esta seção e as duas seções seguintes se baseiam parcialmente em pesquisa de campo feita na área de estudo. A pesquisa envolveu entrevistas com moradores e gestores de UCs e observações de residências, meios de transporte, equipamentos sociais, ferramentas etc. As entrevistas foram gravadas e transcritas, mas optamos por não citar diretamente trechos das respostas obtidas. 9 A referência feita pelos informantes são as recentes propostas do Ministério Público de criar uma Reserva Extrativista ou de Uso Sustentável nas terras ocupadas pelos grupos ribeirinhos e em propriedades privadas nas quais se possa argumentar que ocorram os


chamados “usos tradicionais”. 10 Tradução livre do original em inglês. 11 Tradução livre do original em inglês. 12 Como o projeto Onçafari, coordenado pelo Cenap/ICMBio em parceria com a Wildlife Conservation e o Refúgio Ecológico Caiman. Ele faz parte de um plano de preservação da onça-pintada e de desenvolvimento sustentável do Pantanal por meio do ecoturismo. Visa estabelecer protocolos para o turismo de avistamento de onça-pintada e, com isso, aumentar as chances de o visitante ver o animal em seu ambiente natural sem que existam alterações no seu comportamento e qualquer risco de acidente (http://www.facebook.com/Projetooncafari –acesso em: outubro de 2012).


Considerações finais

Muitos textos que tratam dos variados aspectos da moderna questão ambiental, especialmente quando focalizam um lugar (biomas ou ecossistemas muito abrangentes, ou então áreas menores, como um trecho de rio ou litoral, uma montanha ou uma ilha), buscam fortalecer a sua narrativa com o argumento de que tal lugar é peculiar, raro, frágil, único, por causa de alguns poucos ou de muitos detalhes. Essa opção de narrativa é legítima e muitas vezes ajuda a criar uma empatia entre os autores e os seus leitores. Rigorosamente, é verdade que cada lugar é único, pois nunca será 100% igual a qualquer outro, por causa de diferenças de clima, altitude, latitude, relevo, vegetação e outros aspectos variáveis da natureza biofísica etc. Quando se leva em conta a presença de humanos, aí mesmo é que cada lugar se particulariza, porque as diferenças naturais são multiplicadas pelas numerosas diferenças entre pessoas e sociedades. Para quem lê muitos textos assim construídos, no entanto, o argumento do “lugar único” acaba se desgastando. Ele pode até funcionar ao contrário, prejudicando a transmissão das ideias dos autores aos leitores. Com razão, os leitores podem receber esses textos com um espírito cada vez mais fechado, pois se todos os lugares são únicos, acaba que nenhum lugar é único. Nestas breves considerações finais, tentamos evitar os riscos de usar ou abusar do argumento de que o Pantanal Mato-grossense é um “lugar único”. É verdade que enfatizamos muitos aspectos singulares na descrição que fizemos dos aspectos biofísicos do Pantanal, para embasar descrições e interpretações sobre as diversas formas de adaptação dos grupos humanos aos seus recursos e as suas paisagens. Essas formas de adaptação, se não são únicas, são ao menos bem características da região. No entanto, no que diz respeito à questão da compatibilidade entre a conservação da natureza e o bem-estar das populações ribeirinhas pantaneiras, o Pantanal não nos parece único. Pelo contrário, cremos que o nosso texto mostrou que ele é capaz de abrigar soluções facilmente transferíveis e adaptáveis para outros lugares. Destacamos que no Pantanal coexistem atividades produtivas de escala empresarial, como fazendas de gado, monoculturas de grande porte, turismo de natureza e de pesca, e atividades de subsistência, como pesca artesanal, agricultura familiar e extração vegetal e animal. Chamamos a atenção para o fato de que essas atividades têm convivido com a integridade de uma boa porção dos ecossistemas, das fisionomias, das funções e das paisagens pantaneiras, dentro e fora de instrumentos modernos como UCs e outros tipos de áreas protegidas. Essa coexistência ainda carece de uma melhor institucionalidade. Ou seja, ainda há ganhos a alcançar no Pantanal com a sua institucionalização. É essa coexistência – ou a possibilidade dela – que enxergamos como recomendável e viável para outras localidades, áreas, regiões, ecossistemas e biomas desse Brasil tão rico e diversificado nos seus componentes naturais e nos seus grupos sociais. A variada legislação ambiental brasileira e as políticas públicas conexas, aplicadas de forma criteriosa e harmônica entre si, permitem combinar a produção econômica com a conservação da biodiversidade em muitos locais e em diversas escalas. Referimo-nos aos tipos de áreas protegidas que ocorrem em propriedades particulares, como as áreas de preservação permanente e as reservas legais; às terras indígenas e de quilombolas; às UCs públicas de uso sustentável e de proteção integral; aos mosaicos de UCs; às reservas da biosfera; às reservas particulares do patrimônio natural e outras iniciativas conservacionistas de particulares; à pesquisa científica; às iniciativas de


recuperação de áreas degradadas; ao manejo da água e da fauna silvestre; ao zoneamento de atividades produtivas; ao pagamento por serviços ambientais; ao ICMS “ecológico” e outros incentivos fiscais; ao controle da origem dos recursos naturais veiculados pelo mercado; às certificações de qualidade ambiental, e assim por diante. Tanto no Pantanal quanto em outros biomas, o uso inteligente desse vasto instrumental torna desnecessários e desgastantes os conflitos identitários (ser ou não ser tradicional) e as consequentes tentativas invariavelmente ineficazes de criar “direitos especiais” para esse ou aquele grupo. Uma outra dimensão dessa desejável coexistência entre conservação e produção, observada no Pantanal – e passível de ocorrer nos demais biomas – é a percepção de que nenhum tipo de desenvolvimento (sustentável ou não) se enraíza sem investimentos produtivos e sem políticas e serviços sociais. Existe uma percepção equivocada de que certas atividades extrativistas, “leves”, de “pequena pegada ecológica”, ou que os “usos sustentáveis” deixam intocado o patrimônio natural e até que elas mantêm ou recuperam a biodiversidade. Essa visão é aparentada com a percepção igualmente equivocada de que grandes empreendimentos podem “compensar” os seus danos ao patrimônio natural com a adoção de programas de controle e monitoramento. Em particular, o extrativismo dos ditos “tradicionais” pode, além de causar prejuízos à biodiversidade, aprisioná-los em conhecidos circuitos de perpetuação de pobreza, circuitos esses muito bem explorados por atores sociais a que os “tradicionais” têm estado historicamente subordinados. No que toca especificamente às UCs, percebemos que, tanto no Pantanal quanto em outros biomas, uma cultura “desenvolvimentista” desafortunadamente criou raízes em órgãos ambientais federais e estaduais, em equipes de gestores, em ONGs e mesmo em grupos privados simpáticos às UCs. Nessa cultura, as UCs são orgulhosamente plotadas nos mapas e diligentemente defendidas como se fossem unidades produtivas ou itens de infraestrutura – assentamentos de reforma agrária, fazendas, agroindústrias, estradas, ferrovias, hidrelétricas – incumbidas de gerar desenvolvimento. As UCs se situam quase sempre “solitariamente” em localidades nas quais os investimentos produtivos são poucos e os serviços públicos e a infraestrutura são de inexistentes a precários. Por isso, as equipes de gestores das UCs são frequentemente solicitadas a atender a todo tipo de demanda local e assim são desviadas da sua missão específica de proteção da biodiversidade e dos recursos naturais. Dessa maneira, as UCs e os seus gestores ficam envolvidos – por vezes profunda e prolongadamente – em questões e disputas locais que caberiam à justiça, à polícia, a médicos, a educadores, a cartórios, a órgãos de assistência e previdência social, a concessionários de serviços públicos, a extensionistas etc. Ora, a proteção da biodiversidade e mesmo o “uso racional” dos recursos naturais implicam necessariamente restrições às diversas atividades produtivas primárias e à localização e à operação de empreendimentos industriais e de instalações de infraestrutura. Por isso, as UCs estão entre as instituições menos aptas a atuar no estímulo a atividades produtivas, na montagem e operação de infraestrutura e na oferta de serviços públicos básicos. No entanto, tanto no Pantanal quanto em outros biomas, as UCs podem muito bem integrar (sem liderar, ou sequer pretender liderar) coalizões de órgãos públicos, ONGs e movimentos sociais na busca por esses componentes indispensáveis de um desenvolvimento local sustentável. Estratégias de gestão biorregional, como os mosaicos de áreas protegidas, possibilitam o diálogo entre as diversas instâncias de atuação política, econômica, social e ambiental, e a elaboração de um planejamento participativo, visando compatibilizar a conservação da biodiversidade e o desenvolvimento econômico. É nesse cenário que as UCs, tanto no Pantanal como em outros biomas, podem desempenhar bem o seu papel na proteção da biodiversidade e ainda contribuir para gerar opções de rendimento econômico para as populações


locais, sobretudo quando sĂŁo possĂ­veis as atividades ligadas ao ecoturismo.


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Posfácio

Uma história... Um lugar... A responsabilidade de fazer o posfácio de um documento rico em competências, história, fatos, pesquisa e análise de conceitos associados à realidade de uma região do Pantanal me deixa orgulhoso e motivado. Orgulhoso, por ter a convicção de que tudo foi pautado no respeito, princípio básico da ética. Orgulhoso, por descrever episódios que vivenciei e que posso, com muita responsabilidade, relatar com a veracidade necessária, especialmente para esclarecer inúmeros fatos que lamentavelmente foram distorcidos por interesses outros e por ignorância. Assim, inicio uma viagem no tempo, onde me faço presente na história a ser relatada. Meu primeiro contato com o Pantanal ocorreu em 1978 na região do Passo do Lontra, indo para Corumbá. Estava com minha família, levando parentes vindos de Minas Gerais, lugar onde nasci, para conhecer o Pantanal e suas belezas. No lugar conhecido como Buraco das Piranhas fomos barrados pelas águas do rio Miranda que, junto com as águas do rio Paraguai, inundaram as estradas. Dali tivemos que voltar. Naquele momento, aprendi uma importante lição quando se trata de Pantanal: Quem comanda o lugar são as águas. Hoje leio e entendo um dos lindos poemas de Manoel de Barros em que ele diz: “Somos todos devedores dessas águas.” Meu segundo retorno à região foi em março de 1983, já como oficial tenente da Policia Militar. As condições eram tensas. Sob o comando do capitão Henrique, eu fazia parte de um grupo de Operações Especiais da PM, que deveria atender a uma denúncia de caçadores de jacarés que dominavam a região do Nabileque, próximo ao Forte Coimbra e avançando por todo o Pantanal. Eles estavam por toda parte, caçando jacarés, traficando araras azuis e criando um clima de total insegurança para os fazendeiros. Nesse momento, iniciei minha relação com a natureza, como soldado, lutando pela proteção de inúmeras espécies até então conhecidas por mim apenas nos livros e na televisão. Mal sabia que, ali, o destino estava delineando meu futuro. Os confrontos foram sempre muito violentos, um cenário de guerrilha. Em dezembro do mesmo ano, após inúmeras incursões e trocas de tiros, estava novamente no Nabileque, ao sul do Pantanal em MS, uma das regiões mais violentas, pelo fato de os coureiros, oriundos do Paraguai, terem o apoio do exército paraguaio. Fomos emboscados pelos caçadores numa abordagem de rotina. Meu piloteiro, o fiscal Costa, foi alvejado com um tiro na testa, e eu atingido com um tiro calibre 22 no ombro, o que provocou sérias lesões e hemorragia. O confronto durou mais de 4 horas e ao final, ferido, fui transportado para o destacamento do Exército, na região do Barranco Branco, onde o avião do governo, operando em condições críticas no escuro do Pantanal, com a pista iluminada com tochas, decolou comigo e com Costa já morto para Campo Grande. Durante os dois anos seguintes permaneci em São Paulo, onde fui submetido a cerca de 10 cirurgias. Para não ficar ocioso, fiz uma especialização em comunicação na Academia do Barro Branco da PMSP/USP, onde trabalhei o tema da criação de uma Polícia Especializada para o Pantanal e suas relações com a comunidade.


Após o meu acidente, tive a certeza de que somente uma presença permanente no Pantanal poderia controlar aquele cenário assustador de devastação. Retornei a Corumbá, em 1986, como subcomandante, para ajudar a formar os soldados que fizeram parte do primeiro efetivo da Polícia Militar Florestal, criada no mesmo ano. Instalamos uma unidade para continuar a luta contra os caçadores, traficantes de animais silvestres e, também, contra a pesca predatória, orquestrada por grandes frigoríficos que estavam instalados em Corumbá, Aquidauana e Coxim. O clima estava ainda mais violento. A inexistência de um controle por parte do Estado fazia de Corumbá uma cidade onde as relações com a natureza eram de total abuso. Quase todos tinham em casa um animal silvestre, um papagaio, uma arara e até filhotes de onças que tinham sobrevivido à matança dos pais. Caçar nos finais de semana era uma prática que envolvia todos os segmentos da sociedade, inclusive inúmeras autoridades. Iniciamos uma grande operação para promover uma mudança de valores e atitudes, mudar uma cultura da ilegalidade. Concomitante a isso, verdadeiras ações de guerrilha colocavam em risco as nossas operações. Os confrontos eram diários. Além dos paraguaios ao sul, bolivianos e brasileiros já atuavam na região do rio Taquari e na região do Amolar apoiados por pilotos de avião que levavam as peles e os couros para o Paraguai. Enfrentamos inúmeras dificuldades, e de forma marcante, a hostilidade da própria comunidade, acostumada com a ausência do Estado e com uma visão equivocada de fartura. Para a grande maioria, a natureza e seus recursos eram infinitos. Até o final dos anos 1980, presenciei inúmeras situações que me parece oportuno registrar, como uma contribuição para este importante livro, que busca provocar uma reflexão sobre o futuro do Pantanal Mato-grossense, baseada na história, nos dias de hoje e nos conflitos existentes, almejando caminhos alternativos para o futuro. O Governo Federal, após muita pressão, executou duas grandes operações no Pantanal, quando, durante aproximadamente 60 dias, inúmeros aviões e barcos foram apreendidos, mas tudo isto sem muita efetividade, apenas para acalmar a opinião pública, que recebia, por meio de diferentes meios de comunicação do país, notícias da guerrilha que ocorria no Pantanal. Entre 1987 e 1989, mais de cinco milhões de peles de jacaré entraram ilegalmente no mercado clandestino, assim como mais de mil espécimes de araras azuis foram contrabandeadas, ambos oriundos do Pantanal. Nessa época, chegavam ao Pantanal as primeiras organizações não governamentais (ONGs), a exemplo do WWF, que, através de denúncias internacionais, propôs-se a ajudar no combate à caça e ao tráfico de animais silvestres. Para enfrentar a guerrilha, tínhamos a nossa disposição uma estrutura de trabalho deficiente. Especialmente quanto à logística. Nossos equipamentos, herdados do INAMB, antigo órgão do governo, encontravam-se em péssimas condições de uso. Foi nesse momento que me aproximei de inúmeros fazendeiros, por meio da Sociedade de Defesa do Pantanal (Sodepan), criada para enfrentar esse desafio. Eles se tornaram nossos grandes aliados. Colocaram à disposição aviões e recursos que aumentaram muito a capacidade operacional da Polícia Militar. Graças à coragem da equipe que tive a honra de comandar, a tarefa foi cumprida com êxito. Tenho a certeza de que todos foram heróis, mesmo sem medalhas, motivados pelo desejo firme de cumprir a missão para a qual foram designados. A caça ao tráfico e à pesca predatória envolveu inúmeros grupos de moradores das margens do rio Paraguai. Em outubro de 1988, fui obrigado a sair de Corumbá em função de muitas ameaças de morte que colocaram em risco a minha vida e a de meus familiares. Somente no início dos anos 1990, retornei a Corumbá, já como comandante da Unidade. Foi quando conseguimos controlar definitivamente o quadro que ameaçava o Pantanal, seus recursos naturais e sua gente. Foi uma década de muito aprendizado e de fatos que mudaram definitivamente o curso da história


do Pantanal e da minha própria vida. Aprendemos no dia a dia a identificar aqueles que são de fato gente pantaneira. Um povo que soube, no isolamento do Pantanal, construir uma relação com a natureza de respeito e admiração. A lida do Pantanal sempre foi pautada pelo desafio da superação diária, diante da ausência do Estado e de infraestrutura, como estradas, escolas, saúde. Mas esta história – registrada com detalhes no livro de Franco, Drummond, Gentile e Azevedo – foi marcada por momentos que mudaram e continuam mudando o seu curso. Um bom exemplo disso foi a grande e inesquecível cheia de 1974, que provocou a falência de inúmeras fazendas e um trauma que, para muitos, ainda não foi superado. Nesse cenário, o processo de aceleração do assoreamento do rio Taquari, nos anos 1980, interrompeu a fartura de uma região rica e cheia de história, a relação de harmonia estabelecida com o rio, pelo povo que ali habitava, tornou-se impraticável. Em 1988, acompanhei a subida de uma grande draga, até a região da Palmeirinha e San Souci, onde foram fechados dois grandes arrombados, evitando que as águas invadissem a Nhecolândia. Porém, a situação do rio Taquari, na região do Caronal e do Zé da Costa, se agravou e a água invadiu inúmeras fazendas. Um lamentável e histórico fato marcou essa luta pela manutenção do rio: o Ministério Público Estadual foi acionado e induzido a um erro, por meio de denúncia orquestrada por pescadores ambiciosos e imprevidentes, que pescavam com redes e fugiam a qualquer imposição de limites. Eles conseguiram na justiça uma decisão que exigia estudos ambientais, EIA/RIMA, para qualquer procedimento de fechamento de arrombados. Isto configurou um caminho sem volta para o fim do rio Taquari, especialmente no seu terço final, na sua foz que desaguava próximo ao Porto da Manga. Com o total controle da caça e do tráfico de animais silvestres, iniciei um amplo programa de capacitação dos Policiais Florestais para entender de fato qual era o nosso papel no Pantanal e como proteger de forma eficiente o bioma. Mergulhamos no aprendizado sobre a Conservação da Natureza e, com ajuda de Universidades, da Embrapa Pantanal, da Fundação Grupo Boticário, e do WWF, nos reciclamos para agirmos com mais qualidade, executando não apenas ações de comando e controle, mas também ações de educação ambiental. O clima de paz estava restabelecido e precisávamos nos posicionar de forma preventiva nos lugares com maior importância para preservação. Na região do Amolar, o Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense estava recém-criado e instalamos uma base militar na Fazenda Acurizal, e no Porto Jofre, um posto policial. Em 1992, fui comunicado pelo dono da fazenda Acurizal da intenção que ele tinha de vendê-la. Sabedor do interesse de Adalberto Ebehard, presidente da Fundação Ecotrópica, de efetivar a proteção daquela importante área contígua ao Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, liguei de imediato para ele. A Ecotrópica tinha parceria com a TNC (The NatureConservancy), sendo efetivada logo em seguida a compra da fazenda para transformá-la em uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Pouco depois foram adquiridas também as Fazendas Penha, Rumo Oeste e Dorochê, pela mesma ONG e com o mesmo objetivo. Adalberto, um conservacionista que aprendi a respeitar e a ouvir, contribuiu muito para a capacitação dos policiais que atuavam na região. O relato dos fatos ocorridos naquela área é importante para demonstrar como foi o processo de criação e implementação das RPPNs e do próprio Parque Nacional. Foi um processo vivenciado por mim e posso afirmar com certeza que jamais houve moradores nas margens de rio pertencentes a essas unidades de conservação e, consequentemente, que não houve qualquer expulsão. O grupo da Barra do São Lourenço sempre foi restrito a poucas famílias. Naquela época, o Estado somente se fazia presente através da Polícia Florestal e a Prefeitura de Corumbá não tinha nenhum projeto de apoio para aquela pequena população. Com a chegada do Parque Nacional e da Fundação


Ecotrópica, ambos passaram a ser um ponto de apoio para os moradores da Barra do São Lourenço. Nesse período, também assisti à saída de inúmeras famílias da região, tanto da Barra do São Lourenço, como do Amolar e do Paraguai-Mirim, desmotivadas pela falta de emprego causada pela falência da pecuária. Essas famílias foram para Corumbá em busca de mais conforto e educação para os filhos. Assim, a década de 1990 foi marcada pela estruturação do turismo de pesca desportiva, que cresceu e se tornou mais sofisticado com o surgimento dos Barcos Hotéis. A região passou a ser frequentada pelos turistas, que começaram a comprar iscas vivas das populações locais. A cata de iscas para serem vendidas aos turistas atraiu novos moradores para a região. Famílias que vivem na linha da pobreza ou abaixo dela, com baixa escolaridade, alto índice de analfabetismo, e alta taxa de fertilidade. São famílias expostas à pratica de atividades ilícitas e mazelas como o alcoolismo, a exploração sexual e a gravidez precoce. Assisti, ao longo dos últimos 30 anos, a um processo de favelização do Pantanal. Vale a pena registrar o início da atividade do turismo de pesca, liderada pelo amigo Orozimbo Descenzo, (In memoriam), que constrói dois barcos batizados de Cabexy I e II, com oito e 12 lugares, respectivamente. Ele tinha uma relação de respeito aos limites e pregava o conceito do pesque e solte, muito antes que qualquer outro. Assisti, na sequência, à construção de barcos com capacidade para 30, 60 e até para 100 pescadores, uma demonstração da inexistência da percepção de limite ao que se podia retirar dos rios. O sonho de Orozimbo, o pesque e solte, nos dias de hoje já é uma realidade para muitos turistas. A partir dos anos 2000, ajudei a implantar a Secretaria de Meio Ambiente, Cultura e Turismo de Corumbá, que tem a missão, entre outras, de discutir a relação da comunidade com as suas riquezas naturais. Mesmo com muita dedicação em cumprir essa missão, tive a certeza de que ainda prevalece nesta comunidade uma relação de uso sem a clareza de que é preciso conhecer para proteger, e que existem limites para tal uso. Em 2002, decidi me dedicar à conservação da natureza, mesmo ainda na ativa da PM. Criei o IHP (Instituto Homem Pantaneiro), uma ONG com a missão de proteger o Pantanal e a sua cultura, que está desaparecendo. Tive, em 2008, a oportunidade de sugerir ao Eike Batista, Fundador do Grupo EBX, presente na região através da empresa MMX, a compra de uma área que se tornaria a RPPN Engenheiro Eliezer Batista, para ampliar a proteção proporcionada pelas áreas da Ecotrópica e do Parque Nacional do Pantanal. Este conjunto de áreas a serem protegidas, e com problemas similares, me levou a procurar parceiros, como Teresa Bracher, proprietária da Fazenda Santa Tereza, na época recém-adquirida (uma pessoa comprometida com as causas humanas e ambientais, das mais bem-intencionadas que já conheci); Adalberto, da Ecotrópica, um personagem importante e respeitado na história da conservação da região, com quem muito aprendi; José Augusto Ferraz de Lima, diretor do Parque Nacional do Pantanal, um funcionário padrão de relevantes serviços prestados à conservação do pantanal. A ideia era criar um grupo para a realização de ações conjuntas. Foi assim que nasceu a Rede de Proteção e Conservação da Serra do Amolar – RPCSA. A RPCSA priorizou algumas ações estratégicas, tais como: Implantar um sistema de rádio-comunicação. A região era totalmente desprovida de qualquer meio de comunicação trazendo inúmeros riscos, especialmente nos casos de emergência, em particular das populações do entorno. Um Plano de Prevenção e Combate ao Fogo, através da instalação de uma brigada de incêndio e aquisição de equipamentos de combate. A região era atingida pelo fogo sem controle, todos os anos,


ameaçando pessoas e causando grandes estragos ambientais. Nos últimos quatro anos o fogo tem estado sob controle na região da Serra do Amolar. Um Programa de Monitoramento Ambiental com uma equipe multidisciplinar para monitorar a região nos aspectos biológicos e sociais. Apoio à Polícia Militar Ambiental para assegurar sua presença na região. A ausência do estado estava transformando a região num palco de tráfico de drogas e roubo de gado. Apoio às ações de Pesquisa Cientifica para assegurar conhecimento científico e maior valorização da região e de sua riqueza em biodiversidade. Este trabalho está descobrindo novas espécies, até então desconhecidas pela ciência, o que confirma a riqueza da biodiversidade do Pantanal e sua importância. Todo este processo de parceria se consolidou de forma madura e sua evolução permitiu desenvolvermos um modelo único de gestão no país, no qual o Estado, o terceiro setor e a iniciativa privada estão harmoniosamente trabalhando para conservar e preservar uma região definida pela Unesco como Sítio do Patrimônio da Humanidade, de forma clara e objetiva, bem como para realizar ações práticas de apoio à população do seu entorno. Cabe aqui chamar a atenção para as inúmeras atividades realizadas desde 2009, ano de início das ações da RPCSA, voltadas a esta população: cursos de capacitação, apoio em situações de emergência, oportunidades de acesso ao trabalho, à educação e à saúde. São ações concretas, que estão em curso desde a criação da RPCSA, numa demonstração inequívoca de respeito e coexistência pacífica com todos os atores sociais que vivem na região. As relações das RPPNs e do Parque Nacional com a população do entorno, até a intervenção do MPF, subsidiado pela Ecoa e por Cristiane Amâncio, da Embrapa, sempre foram pautadas pela troca e pelo respeito. Cabe registrar que esta organização (Ecoa), historicamente, cumpriu um papel relevante na proteção do Pantanal. Na época em que o projeto da hidrovia tinha a intenção de retificar o rio Paraguai, a Ecoa, liderada por Alcides Farias, ofereceu forte resistência, sendo merecedora, até então, do nosso respeito. Quero crer que, sob nova direção, sem a maturidade suficiente e motivada apenas pelo interesse de cumprir suas metas relacionadas com os recursos captados, e sem qualquer disposição para dialogar com os diferentes atores envolvidos, que ali estavam há muitos anos, provocou um processo com consequências bastante negativas para todos. Ao longo desses anos no Pantanal, fortaleceu-se em mim a certeza de que o desafio da proteção da biodiversidade precisa ser enfrentado com urgência. Um dos meus importantes mestres, Miguel Milano, uma referência na história da conservação no Brasil, presenteou-me com um livro que pauta minha conduta profissional. A publicação Estratégia Global para Proteção da Biodiversidade, editado pela Fundação Grupo O Boticário de Proteção a Natureza, mesmo havendo passado 20 anos, continua um documento atual e oportuno,que releio frequentemente. Ele evidencia que só teremos sucesso na conservação de genes, espécies e ecossistemas se tivermos conhecimento da biodiversidade e consciência da importância do seu papel para a sociedade. Ou seja, reconhecendo que cada manifestação de vida é única e exige respeito e que a conservação da Biodiversidade é um investimento que resulta em benefícios locais, nacionais e mundiais. Qualquer proposta de desenvolvimento sem critérios técnicos claros e que negligencie a conservação da biodiversidade contribui para acelerar a sua perda. Desconhecer a relevância das RPPNs e do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, supondo que essas unidades de conservação foram criadas de forma equivocada, ou propor a criação de uma Reserva Extrativista, sem a clareza de qual recurso natural será manejado de forma sustentável,


demonstra um despreparo e até irresponsabilidade. Não se pode lidar com temas como o da biodiversidade pautados pela lógica de que a espécie humana deve se sobrepor, sem critérios, a qualquer outra espécie. Para concluir, quero propor algumas reflexões que podem contribuir para o entendimento das questões tratadas por Biodiversidade e Ocupação Humana do Pantanal Mato-grossense: Conflitos e Oportunidades: Os esforços de conservação da Biodiversidade para assegurar um futuro para a região e para o país tornam-se cada vez mais necessários. Os dados sobre perda de habitats no mundo, em função da nossa necessidade de comer, de gerar e consumir energia, de se vestir, são alarmantes. Afinal, somos sete bilhões e continuamos crescendo em números e consumo. Portanto, deixa de ser somente uma responsabilidade de governo, e exige uma participação da iniciativa privada. Exemplos como a transformação de áreas privadas em Reservas Particulares do Patrimônio Natural, uma categoria de área protegida prevista na lei n°9.985/2000, materializam o desejo de um gesto privado em prol do coletivo. A necessidade de construirmos um diálogo permanente entre os diferentes atores da região para, juntos, desenvolvermos alternativas de sustentabilidade econômica, social e ambiental. Sem dúvida é a única alternativa para asseguramos uma convivência que vá ao encontro de todos os anseios e necessidades que seguramente devem ser ponderados. Não me parece produtivo fomentar a lógica do conflito entre ricos e pobres, fortes e fracos. O esgotamento da atual atividade econômica, a captura de iscas, é algo previsível em médio prazo e com inúmeras adversidades naturais para a sua prática. Ela é altamente insalubre, especialmente para mulheres e crianças. Precisamos garantir o desenvolvimento de novas alternativas econômicas, com tecnologias aliadas à capacidade de suporte da natureza, a exemplo da meliponicultura, dos tanquesrede e do ecoturismo de base comunitária. A implementação destas ações pode e deve trazer sustentabilidade para os usos e harmonia nas relações daqueles que escolheram, de fato, viver e conviver com as águas do Pantanal, pois, como bem expressou Manoel de Barros: (...) “Acho agora que estas águas bem conhecem a inocência de seus pássaros e de suas árvores. Que elas pertencem também as nossas origens. Louvo portanto esta fonte de todos os seres e de todas as plantas. Vez que todos somos devedores destas águas. Louvo ainda as vozes dos habitantes deste lugar que trazem para nós, na umi’dez de suas palavras, a boa inocência de nossas origens.”

Coronel Angelo Rabelo


Anexo

Fotografias: flora, fauna e sociedade

Foto 2 – Campo inundado em período de cheia, com predominância de g ramíneas e plantas aquáticas (ag uapés).


Foto 1 – Campo em período de seca, com veg etação predominantemente g ramínea – arbustiva e formações mais elevadas conhecidas como capões, constituídos por veg etação arbórea, de cerrado, cerradão ou mata.



Foto 3 – A Bocaiúva (Acrocomia aculeata) é utilizada pelos pantaneiros para sua alimentação e de suas criações, além de fornecer madeira de boa qualidade para a construção civil e artesanatos.



Foto 4 – O Ang ico branco (Anadenanthera colubrina) é uma árvore de g rande porte, presente em áreas elevadas e não inundáveis, que fornece ao pantaneiro madeira para construção civil, carpintaria e produção de embarcações monóxilas.

Foto 5 – Buritizal ao entardecer, composto basicamente pela palmeira buriti (Mauritia vinifera), que pode ating ir de 5 a 15 metros de altura.


Foto 6 – Camalote Ê um ag lomerado de plantas flutuantes que foram carreg adas pelas åg uas, formando verdadeiras ilhas.


Foto 7 – Morro do Chané, fotog rafado do rio Parag uai - Pantanal do Parag uai (MS). Próximo à baía de Mandioré, na fronteira entre Brasil e Bolívia, uma lag oa permanente de tamanho avantajado, de vital importância para a fauna aquática, pois o fluxo das ág uas traz materiais org ânicos e inorg ânicos que enriquecem os micro-habitats.


Foto 8 – A Vitória rég ia (Victoria amazonica) é uma veg etação aquática tipicamente amazônica, mas que pode ocorrer em diversas áreas alag adas do pantanal.

Foto 9 - Na vazante do pantanal, os rios com mata ciliar podem baixar substancialmente, ficando ág ua apenas na sua calha e muitas vezes cobertos por alg as e outras plantas aquáticas.


Foto 10 – No pantanal, é muito comum encontrar durante o período seco árvores pertencentes à mata ciliar com raízes aparentes devido à força da vazante.

Foto 11 – Vista parcial da reg ião da Serra do Amolar a partir da marg em esquerda do Rio Parag uai (MS).


Foto 12 – A beleza cênica da alvorada encanta e mancha a paisag em pantaneira com um dourado fug az e penetrante. Rio Parag uai (MS).


Foto 13 – Casal de araras azuis (Anodorhynchus hyacinthinus), comendo coco de Bocaiúva (Acrocomia aculeata).


Foto 14 – Casal de araras azuis (Anodorhynchus hyacinthinus) transportando acuri.


Foto 15 – Bando misto de Periquito de cabeça preta (Aratinga (Nandayus) nenday) e Arating a de testa azul (Aratinga acuticaudata), forrag eando.


Foto 16 – Periquito de cabeça preta (Aratinga (Nandayus) nenday).


Foto 17 – PÊ vermelho (Amazonetta brasiliensis).


Foto 18 – Big uating a fêmea (Anhinga anhinga).


Foto 19 – Garça Moura (Ardea cocoi).


Foto 20 – Socozinho (Butorides striata).



Foto 21 – Garça branca g rande (Ardea alba).



Foto 22 – Gavião belo (Busarellus nigricollis).



Foto 23 – Urubu de Cabeça vermelha (Cathartes burrovianus).

Foto 24 – Martim pescador pequeno (Chloroceryle americana).


Foto 25 – Marreca caneleira (Dendrocygna bicolor).


Foto 26 – Pavãozinho do Pará (Eurypyga helias).


Foto 27 – Jaçanã ou Cafezinho (Jacana jacana).



Foto 28 – Gavião carrapateiro (Mivalgo chimachima).

Foto 29 – Filhotes de Trinta – réis (Phaetusa simplex).


Foto 30 – Trinta – réis adulto (Phaetusa simplex).



Foto 31 – Big uá (Phalacrocorax brasilianus).

Foto 33 – Galito macho (Alectrurus tricolor).


Foto 32 – Maçarico de sobre branco (Calidris fuscicollis).



Foto 34 – Arara Canindé (Ara ararauna).



Foto 35 – Periquito rei (Aratinga aurea).



Foto 36 – Coruja buraqueira (Athene cunicularia).



Foto 37 – Carcará (Caracara plancus).



Foto 38 – Falcão de coleira (Falco femoralis).



Foto 39 – Cabeça seca (Mycteria americana).

Foto 40 – Garça noturna (Nycticorax nycticorax).


Foto 41 – Tucano toco imaturo (Ramphastos toco).


Foto 42 – Ág uia Pescadora (Pandion haliaetus).


Foto 43 – Colhereiro (Platalea ajaja).


Foto 44 – Talha - mar imaturo (Rynchops niger).


Foto 45 – Ninhal de Garça vaqueira (Bubulcus ibis).



Foto 46 – Periquito de bando (Aratinga leucophthalma).

Foto 47 – Irerê (Dendrocygna viduata).


Foto 48 – Saracura três potes (Aramides cajanea).



Foto 49 – Garça branca pequena (Egretta thula).

Foto 50 – Martim pescador g rande fêmea (Ceryle torquatus).


Foto 51 – Pato do mato (Cairina moschata).


Foto 52 – Bando de Asa branca (Dendrocygna autumnalis).


Foto 53 – Bando de Jaçanã ou Cafezinho (Jacana jacana).


Foto 54 – Socó boi (Tigrisoma lineatum).


Foto 55 – Tachã (Chauna torquata).


Foto 56 – Mutum de penacho macho (Crax fasciolata).


Foto 57 – Bando de Asa branca (Dendrocygna autumnalis).


Foto 58 – Jaburu (Jabiru mycteria), ave símbolo do pantanal.


Foto 59 – Caturrita (Myiopsitta monachus).


Foto 60 – Tapicuru de cara pelada (Phimosus infuscatus).


Foto 61 – Ema (Rhea americana).


Foto 62 - JacarĂŠ do pantanal (Caiman yacare).


Foto 63 – Bico doce (Ameiva ameiva).


Foto 64 – Jabuti (Geochelone carbonari).


Foto 65 – Jibóia (Boa constrictor).


Foto 66 – Iguana (Iguana iguana).


Foto 67 – Teiú (Tupinambis merianae).


Foto 68 – Cervo do pantanal (Blastocerus dichotomus).


Foto 69 – Veado Campeiro macho (Ozotoceros bezoarticus).



Foto 70 – Veado Campeiro fêmea (Ozotoceros bezoarticus).



Foto 71 – Veado Mateiro (Mazama americana).

Foto 72 – Anta (Tapirus terrestres).


Foto 73 – Anta adulta (Tapirus terrestres) salivando para seu filhote.


Foto 74 – Porco monteiro (Sus scrofa).


Foto 75 – Capivara (Hydrochoerus hydrochaeris).



Foto 76 – Gambá de orelhas brancas (Didelphis albiventris).

Foto 77 – Bug io preto macho (Alouatta caraya) atravessando o Rio Parag uai (MS) a nado.


Foto 78 – Onça Pintada (Panthera onca).


Foto 79 – Habitação de ribeirinhos feita de madeira de bocaíuva. Localidade Serra do Amolar – Parag uai Mirim (MS).


Foto 80 – Habitação de ribeirinhos feita de adobe. Localidade Serra do Amolar – Parag uai Mirim (MS).



Foto 81 – Família de ribeirinhos. Localidade Serra do Amolar – Parag uai Mirim (MS).

Foto 82 – Habitação com antena parabólica. Localidade Serra do Amolar – Parag uai Mirim (MS).


Foto 83 – Habitação com janelas e portas teladas para proteção contra moscas e mosquitos. Localidade Serra do Amolar – Parag uai Mirim (MS).


Foto 84 – Gerador elétrico movido à óleo diesel, suficiente para abastecer uma habitação. Localidade Barra do São Lourenço (MS).


Foto 85 – Ig reja Evang élica. Localidade Serra do Amolar – Parag uai Mirim (MS).


Foto 86 – A utilização de “luz elétrica” de g erador facilita a vida do ribeirinho. Localidade Barra do São Lourenço (MS).


Foto 87 – Apesar de viverem em áreas afastadas das cidades,os ribeirinhos utilizam o telefone rural para falar com parentes e amig os de outras localidades e reg iões. Localidade Barra do São Lourenço (MS).



Foto 88 – “Orelhão” dos ribeirinhos, constituído por um aparelho celular lig ado à antena do telefone rural. Localidade Barra do São Lourenço (MS).

Foto 89 – Embarcação motorizada (rabeta) utilizada larg amente pela população local. Localidade Barra do São Lourenço (MS).


Foto 90 – Embarcação monóxila tradicional pantaneira feita de ang ico. Pantanal do Parag uai, Baía Vermelha (MS).


Foto 91 – Embarcação monóxila tradicional pantaneira. Rio Parag uai, Localidade Serra do Amolar – Parag uai Mirim (MS).


Foto 92 – Mesmo com aspectos culturais tradicionais enraizados no âmbito familiar, a modernidade é anseio para os mais jovens. Pantanal do Parag uai, Localidade Barra do São Lourenço (MS).



Foto 93 – Pesca praticada pelos membros mais antig os da reg ião. Localidade Serra do Amolar - Parag uai Mirim (MS).

Foto 94 – Motor utilizado para puxar ág ua do rio para abastecimento das casas do povoado, bem como os tanques de iscas. Localidade Serra do Amolar – Parag uai Mirim (MS).


Foto 95 – Tanques de iscas. Localidade Serra do Amolar – Parag uai Mirim (MS).


Foto 96 – Isca viva (carang uejo) vendida para turistas que sobem diariamente o Rio Parag uai. Localidade Serra do Amolar – Parag uai Mirim (MS).


Foto 97 - Isca viva (tuvira) vendida para turistas que sobem diariamente o Rio Parag uai. Localidade Serra do Amolar – Parag uai Mirim (MS).


Foto 98 – Tralha utilizada para a coleta de iscas. Normalmente embarcação a motor é utilizada por coletores profissionais (ao fundo). Localidade Barra do São Lourenço (MS).


Foto 99 – Embarcação dormitório utilizada por coletores de iscas profissionais. Comunidade Barra do São Lourenço (MS).


Foto 100 – Iscas vivas (carang uejo) prontas para serem vendidas aos turistas que sobem o Rio Parag uai. Localidade Serra do Amolar – Parag uai Mirim (MS).


Foto 101 – Turistas em busca de pontos de pesca no Rio Parag uai (MS).


Foto 102 – Barco Hotel utilizado por turistas para realização das refeições e pernoite. Pantanal do Parag uai (MS).


Foto 103 – O futebol, expressão da modernidade, é uma das principais formas de lazer entre os ribeirinhos. Localidade Serra do Amolar - Parag uai Mirim (MS).



Foto 104 – Brincadeiras com bola fazem parte da rotina de meninas e meninos. Localidade Serra do Amolar - Parag uai Mirim (MS).

Foto 105 – Brincar com bolas de g ude é outro passatempo preferido da criançada. Localidade Serra do Amolar - Parag uai Mirim (MS).


Foto 106 – A utilização de espécimes da fauna pantaneira como animais de estimação é comum entre os ribeirinhos. Localidade Barra do São Lourenço (MS).


Foto 107 – O apreço pela vida entre os ribeirinhos é alg o dig no de nota. Localidade Barra do São Lourenço (MS).


Foto 108 – Apesar de não ser uma atividade comercial, a criação de poucas cabeças de g ado é feita por alg umas famílias ribeirinhas. Localidade Barra do São Lourenço (MS).


Foto 109 – O fruto do acuri (Attalea phalerata) é um recurso chave para a população ribeirinha, pois constitui fonte de energ ia para o homem e suas criações. Localidade Barra do São Lourenço (MS).


Foto 110 – Após ser ralada, a polpa do acuri sofre um processo de secag em natural, podendo ser armazenada por long os períodos. Neste formato, normalmente é consumida “in natura” ou juntamente com as refeições. Localidade Barra do São Lourenço (MS).



Foto 111 – Outra forma de apreciar o fruto do acuri Ê mascando sua polpa, fato que lhe rendeu o apelido de chiclete de ribeirinho. Localidade Serra do Amolar - Parag uai Mirim (MS).



Foto 112 – Tomar o famoso “tereré” é outro hábito pantaneiro difundido em todas as populações ribeirinhas. Localidade Barra do São Lourenço (MS).



Foto 113 – Apesar da natural aspereza da vida ribeirinha e de suas limitações de ordem social e ambiental, o ribeirinho se considera feliz junto ao seu lar e de sua família. Localidade Serra do Amolar – Parag uai Mirim (MS).



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