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Cinquenta Anos de História – 1965-1970 (Homenagem da Academia de Medicina de Brasília à Primeira Turma de Médicos Formada pela UnB – Depoimentos

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Comunicado (3

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CINQUENTA ANOS DE HISTÓRIA 1965-1970

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HOMENAGEM DA ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA À PRIMEIRA TURMA DE MÉDICOS FORMADA PELA UNB

DEPOIMENTOS

A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA DA 1ª TURMA DE MEDICINA DA UnB

Acad. Marcus Vinicius Ramos Presidente da Academia de Medicina de Brasília

Fruto de um projeto inovador e considerada por muitos como a tentativa mais séria feita até então no Brasil para se ensinar ao futuro médico a realidade social do país, a 1ª turma de medicina da Universidade de Brasília comemora este ano o cinquentenário de sua formatura.

Com diferentes motivações e expectativas, seus alunos vieram de todos os estados para estudar numa faculdade de medicina que tinha seu foco no trabalho em equipe, na abordagem multidisciplinar e na participação conjunta da comunidade sob seus cuidados, o que divergia completamente do modelo até então adotado pelas demais escolas médicas brasileiras. Divergente também era o padrão daqueles estudantes: com uma idade média mais alta que a habitual, muitos já tinham algum tipo de emprego e formação política, atividade que de resto contagiava a quase todos os demais alunos, pois era praticamente impossível não se envolver nas vicissitudes pelas quais passava a UnB naquela época (1965-1970).

Memória e História reivindicam retratar a verdade: ambas procuram contar “o que realmente aconteceu” no passado, às vezes se revezando, às vezes trabalhando em conjunto. Mas a memória, “além de passível de ser manipulada, pode deixar de existir, por perder seus suportes materiais. Nada mais pungente que ouvir a frase ‘já não existe mais’ repetida à exaustão por aqueles que perderam seus marcos e tiveram seus rastros apagados”. Afinal, as lembranças, se apoiadas 37

apenas na transmissão oral de certas recordações, não passam de meros fragmentos do passado e usualmente têm curta duração e conteúdo limitado. A memória da 1ª turma de medicina da Universidade de Brasília precisa, portanto, apoiar-se em outros meios e suportes mais firmes para ser duradoura.

Foi utilizando esta linha de pensamento que a Academia de Medicina de Brasília (AMeB) se propôs a publicar os depoimentos dos alunos e de alguns dos seus professores no momento em que é comemorado o cinquentenário de formatura dessa turma singular. Acompanhar passos tão diversos – e paradoxalmente tão homogêneos – por tanto tempo, significa se preocupar com o que aconteceu com esses atores históricos e ter uma noção de suas individualidades e aspirações, suas peculiaridades e paixões. Significa reconstruir o projeto original da escola, identificar a participação de seus professores, alunos e funcionários no desenvolvimento do curso e reconhecer as medidas e práticas adotadas por eles na atenção à saúde dispensada à comunidade de Sobradinho. Significa recuperar a memória de um período em que a Faculdade de Ciências Médicas, hoje Faculdade de Medicina, refletiu, mais que nenhuma outra, as lutas e contradições da fase inicial da Universidade de Brasília e da nossa cidade. Significa abrir as portas para a compreensão do que somos, do que fomos, do que poderemos vir a ser.

Aos colegas da Primeira Turma, a Academia de Medicina de Brasília dedica esse livro.

À PRIMEIRA TURMA DA FACULDADE DE MEDICINA POR OCASIÃO DO CINQUENTENÁRIO DE FORMATURA

Prof. Gustavo Adolfo Sierra Romero Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília

Costumeira é a tarefa de homenagear o pioneirismo daqueles que construíram com coragem e inteligência soluções para resolver os problemas prioritários da população. Na área da educação, o surgimento da Universidade de Brasília representou fato notável na história do Distrito Federal e do Brasil e o pioneirismo que caracterizou a sua fundação resultou na criação de cursos com propostas inovadoras e arrojadas em diversas áreas, dentre as quais se destaca a do curso de medicina.

Os pioneiros pensaram e implementaram o ensino em medicina na UnB com uma visão transformadora que inspira até hoje as nossas ações no enfrentamento do permanente desafio de formar médicas e médicos capazes de exercer com sólida formação técnica, aliada à indispensável sensibilidade humana e à prática permanente da alteridade, a arte de cuidar da saúde da população.

No entanto, é comum esquecermos de reconhecer o esforço daqueles que, frente à notável proposta organizada pelos mestres, decidiram aceitar o desafio de trilhar um rumo novo, assumindo corajosamente os riscos e abrindo com o seu caminhar os horizontes vislumbrados pelos construtores.

Assim, a primeira turma formada em medicina pela UnB desbravou com firmeza o percurso traçado no inovador projeto de formação e, 39

certamente, participou de forma crucial na construção de tudo aquilo que foi novo e que molda até hoje o nosso presente.

Na ocasião do cinquentenário de formatura da 1ª. Turma de Medicina da Universidade de Brasília coube a mim o privilégio, como diretor da Faculdade de Medicina, de escrever estas palavras de homenagem às pessoas que marcaram definitivamente a história da nossa faculdade, caminhando junto aos mestres pioneiros na inauguração do futuro do qual usufruímos hoje e que certamente iluminará de forma permanente a caminhada dos que nos sucederão.

Dessa forma, a Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília saúda a 1ª. Turma e reconhecendo o significado histórico da sua participação na construção do ensino da medicina no Distrito Federal, sente-se honrada ao se juntar à comemoração do cinquentenário da sua formatura.

MENSAGEM DO CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO DISTRITO FEDERAL AOS PRIMEIROS MÉDICOS FORMADOS EM BRASÍLIA

Dr. Farid Buitrago Sánchez Presidente do Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal

Cinco décadas se passaram desde que os alunos da primeira turma de medicina da Universidade de Brasília (UnB) iniciaram um dos cursos mais importantes para a humanidade. Os tempos são duros e ser um profissional da saúde é hoje, mais do que nunca, uma contribuição para a vida, pois ele que dá o melhor de si, todos os dias, em prol da saúde de um desconhecido, muitas vezes perdendo horas de sono ou grandes momentos com a família.

Como não se interessar por uma turma que entrou na UnB em 1965, formada por 77 alunos, sendo apenas sete mulheres? Naquela época, o número de médicas ainda era pequeno e as mulheres buscavam “o seu lugar” na profissão. Quando penso nos desafios sociais que enfrentaram nos últimos 50 anos tenho a certeza que foram muito privilegiados em participar de tantas conquistas. Os primeiros alunos a ter aula no Instituto Central de Ciências, mais conhecido como o “minhocão”, inauguraram o Hospital Regional de Sobradinho, ofertando assistência médica a população do Distrito Federal.

O Sistema Único de Saúde (SUS), ainda em construção, contou com ajuda de muito desses médicos, que não tinham acesso a tecnologia como a disponível atualmente, mas que com o estudo, dedicação, contato com o paciente, ética e empenho, fizeram um trabalho excepcional durante anos. Foram muitas as aquisições que mudaram

e marcaram a história da UnB, do DF e do país. A medicina viveu uma transformação nos últimos 50 anos, como nunca aconteceu na historia da humanidade e vocês não só foram testemunhas, como também foram partícipes dessa transformação.

A formatura da turma ocorreu em 1970, com a materialização de um sonho, mas completar 50 anos de formado é algo ainda maior. A medicina é vocação, dedicação, prazer, amor, cansaço... Talvez não haja outra profissão na qual seja possível fazer tanto bem ao ser humano, por isso, a satisfação de ser médico supera todas as dificuldades e os desânimos que encontramos no meio do caminho.

É com muito orgulho que o Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal (CRM-DF) participa de um momento tão ilustre nesta homenagem a esses grandes profissionais que transformaram para melhor a história, a medicina e a vida de todos nós.

AOS EGRESSOS DA PRIMEIRA TURMA DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Ognev Cosac Presidente da Associação Médica de Brasília

A Associação Médica se congratula com a Academia de Medicina de Brasília na comemoração dos 50 anos da primeira turma de Medicina formada pela Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília. A medicina é um ato de amor e vocação. É dedicação exclusiva, cuidado e obstinação. É atuar dia após dia com o coração cheio de perseverança. Neste cinquentenário, parabenizamos os profissionais que dedicaram suas vidas aos cuidados com o próximo. Não há dúvida de que a saúde na Capital Federal avançou ao longo dos anos e esse resultado se deve à devoção incansável de muitos de vocês. Com certeza a caminhada foi dura, foi intensa, às vezes exaustiva, até chegar aqui.

Nesta trajetória, com vestibular realizado em 1965, com oitenta vagas, alguns ficaram pelo caminho ainda no período universitário e outros mais adiante, depois de cumprirem o seu papel como médicos. Neste momento, temos ainda quase seis dezenas desses bravos guerreiros entre nós, que atuaram e ainda atuam; preceptores e professores, distribuindo cuidados e conhecimento aos seus discípulos, seus pacientes e familiares.

O agradecimento é a palavra de ordem no momento em que vivemos. A vocês, pelo exemplo impecável de exercício da medicina e pelo esmero exemplar, parabéns.

Fica o reconhecimento da entidade e o meu pessoal como dirigente atual da AMBr.

A PRIMEIRA TURMA DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA: INEDITISMO E ANTECIPAÇÃO DO FUTURO

Marcos Gutemberg Fialho da Costa Presidente do Sindicato dos Médicos do Distrito Federal

A primeira turma de estudantes de Medicina da Universidade de Brasília (UnB) iniciou o curso em 1965 e formou-se em 12 de dezembro de 1970. Na Universidade idealizada pelo educador Anísio Teixeira e pelo antropólogo Darcy Ribeiro e projetada pelos arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, foram os primeiros a ocupar o Instituto Central de Ciências, o Minhocão.

A história do curso de Medicina da UnB desde cedo se entrelaçou à da saúde pública do Distrito Federal. Esteve sob a ameaça de ser suspenso, pela falta do que hoje se chama cenário de prática, uma vez que o Hospital Universitário de Brasília só viria a ser inaugurado em 1972. Não fosse o convênio proposto pelo então secretário de Estado de Saúde e presidente da Fundação Hospitalar do Distrito Federal (FHDF), Francisco Pinheiro Rocha, de cessão da unidade de saúde em convênio pelo prazo de 10 anos, aquela turma teria que completar o aprendizado em outra instituição. Em 1968, como internos, inauguraram a Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho (UISS), que viria a se tornar o Hospital Regional de Sobradinho. Não fica somente por aí a afinidade do curso de Medicina da UnB com a história da saúde pública do Distrito Federal. A Universidade era vanguardista e o projeto inicial do curso antecipava diversos aspectos do que se consolidou, em 1978, na Conferência de Cuidados Primários

em Saúde, realizada em Alma-Ata. Uma década depois da experiência da UnB em conjunto com a FHDF, a Declaração de Alma-Ata propunha a ação de todos os governos e de todos os que trabalhavam nos campos da saúde e do desenvolvimento da comunidade mundial para promover a saúde de todos os povos com base na implementação de uma política universalizada de atenção primária à saúde. Esse conceito de uma medicina integral, racional e moderna, visando à criação de uma consciência preventiva e voltada para os problemas de cada comunidade já vinha sendo aplicado no curso da UnB e fizeram florescer a UISS como uma experiência inovadora, em sintonia com o Plano Bandeira de Mello.

A turma de 1965 da UnB chegou formada aos anos 1970 preparada para se integrar perfeitamente ao projeto de saúde coletiva que ganhou força naquela época e culminou com o movimento da Reforma Sanitária que gestou o SUS, em 1988, e a implementação da Política Nacional de Atenção Primária à saúde, na década de 1990.

Foi uma geração que viveu, sob diversos aspectos, momentos únicos na história da Universidade e da Medicina, tanto no âmbito local quanto nacional. Pela trajetória conjunta e individual, os integrantes a primeira turma do curso de Medicina da UnB constituem um baluarte para toda a comunidade médica do Distrito Federal e para toda sua população.

A FUNDAÇÃO DA FACULDADE DE MEDICINA DA UnB

Prof. Luiz Carlos Lobo Fundador da Faculdade de Medicina da UnB

Em 2020 comemora-se os 50 anos de graduação da primeira turma da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília. Criar a Faculdade de Medicina da UnB foi o mais importante desafio que tive ao longo da minha vida.

O convite me foi formulado por Ernani Braga, ex-diretor da Escola Nacional de Saúde Pública e recém nomeado diretor do departamento de Recursos Humanos da Organização Mundial da Saúde, e José Roberto Ferreira, diretor executivo da então Associação Brasileira de Escolas/ Faculdades de Medicina. O Reitor Laerte Ramos de Carvalho, sucessor de Zeferino Vaz, havia convidado, depois de múltiplas tentativas, Edgard Barroso do Amaral, professor da USP para criar a faculdade que já tinha cerca de 80 alunos que haviam terminado seu ciclo básico nos Institutos Centrais da UnB e haviam optado por medicina. O Prof. Barroso pensou em usar a estratégia adotada na criação da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, viajando à Europa para convidar docentes para o novo empreendimento. Os tempos eram diferentes dos antes encontrados na Europa do pós-guerra e sua viagem não obteve sucesso.

O convite era um grande desafio, que me atraiu de pronto. Levou-me a deixar o Rio de Janeiro e o trabalho na UFRJ e vir para o planalto central, no início de 1966, para participar da experiência inovadora de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, que tinha sido a criação da UnB e

participar do espírito de afirmação da identidade nacional, que caracterizara a construção de Brasília.

A UnB estava à época em uma situação difícil, na decorrência da renúncia coletiva de 223 de seus professores, em protesto pelas demissões arbitrárias de 29 docentes, feitas por reitores nomeados pelo regime militar instalado no país. Com isso ela estava meio sem ânimo, ou interrompida, como dizia o Professor Roberto Salmeron. Mas apesar desse ambiente complicado, movido pela ideia de implantar um projeto de curso médico com forte cunho social e inovador, aceitei a empreitada.

A reitoria da UnB constituiu uma comissão que contava com vários professores, sobretudo de São Paulo (Edgard Barroso do Amaral, Walter Leser, Jairo Ramos, Isaias Raw, Octávio Della Serra), José Roberto Ferreira e Francisco Pinheiro Rocha, secretário de saúde do Distrito Federal, para definir a nova faculdade. Fui convidado a definir os marcos conceituais que norteariam a criação da nova escola. Ênfase no aprendizado do aluno, cursos interdisciplinares, ensino modular e em tempo integral foi a proposta inicialmente apresentada. Envolvia, desde logo, professores das ciências sociais (antropologia, sociologia, psicologia, epidemiologia, demografia), de ciências básicas (anatomia, histologia, bioquímica, fisiologia, patologia, microbiologia e parasitologia) e ciências clínicas (clínica médica, cirurgia, pediatria, gineco-obstetrícia e especialidades). Já havíamos tentado implantar cursos integrados de ciências básicas na UFRJ, mas a experiência fracassou quando foi perdido o apoio do Decano do Centro de Ciências da Saúde, Professor Carlos Chagas Filho, que havia sido designado como embaixador do Brasil na UNESCO.

Propusemos realizar os cursos em bloco de tempo de 3 a 6 semanas, visando contratar inicialmente professores de outras universidades e hospitais como visitantes e assegurar desta maneira: 1 – Concurso de docentes altamente qualificados desde o início da escola.

2 – Garantir a participação em tempo integral, por períodos curtos, de docentes das várias áreas do conhecimento, convidados para participar nos cursos integrados que se propunha. 3 – Desenvolver cursos modulares, no ciclo básico do curso, abrangendo os vários sistemas orgânicos do homem e que se iniciava com um curso sobre Mecanismo de Agressão e Defesa indicando, assim, a importância da interação do homem com seu meio físico, biológico e social.

Os alunos da escola, representados por Armando Vasconcelos, Eleutério Rodrigues Neto e José Silvério Guimarães, acompanhavam todos os nossos passos em Brasília. Queriam saber tudo, conferir tudo, questionar tudo! Queriam saber que professores se fixariam em Brasília, dentre os convidados como professores visitantes, como equiparíamos os laboratórios multidisciplinares que planejávamos para o ciclo básico, onde se desenvolveria o ciclo clínico, que recursos teríamos para equipar o hospital de ensino, etc.

O Reitor Laerte Ramos de Carvalho havia indicado uma verba para implantar o curso de Medicina e com esses recursos começamos a solicitar a compra dos equipamentos dos laboratórios multidisciplinares de ensino, onde se desenvolveriam os cursos integrados do ciclo básico do curso e os dos laboratórios de pesquisa que pretendíamos implantar. Buscando integrar a nova escola e seus docentes e alunos na universidade, decidimos implantá-la no prédio ainda em construção do Instituto Central de Ciências, tendo que negociar a realização dos cursos com a colocação de suas enormes vigas pré-moldadas.

José Roberto Ferreira e eu elaboramos um documento básico, o livro verde, como era chamado, delineando os princípios que propúnhamos para a Faculdade de Ciências Médicas e que, como de regra, foi apresentado e discutido com um grupo de professores. O documento ressaltava conceitos básicos como ênfase no aprendizado, colocando o aluno como agente ativo do processo ensino/aprendizagem, integra-

ção das disciplinas, procurando elaborar a teoria a partir de projetos experimentais desenvolvidos por grupos de alunos em laboratórios multidisciplinares, discussão de problemas comunitários e o princípio de cobertura de serviços de saúde e não apenas assistência na estruturação do ciclo clínico do curso.

No ciclo básico propunha-se desenvolver o ensino por sistemas orgânicos, através de experiências integrando as várias disciplinas desse ciclo e, indo mais longe, pela integração da patologia, da clínica e das ciências sociais. O aprendizado da morfologia, da bioquímica, fisiologia e fisiopatologia era enfatizado, buscando transmitir uma compreensão plena dos processos de funcionamento dos órgãos e suas alterações patológicas.

Em 8 de agosto de 1966 foram dadas as primeiras aulas no prédio do Instituto Central de Ciências. A aceitação do conceito de aprendizado interdisciplinar norteava o ciclo clínico e o de cobertura de serviços de saúde, admitindo uma responsabilidade social na organização desses serviços, de modo a atender as demandas e necessidades de uma população definida, caracterizava a formação integral que se pretendia em medicina.

Essa decisão conceitual levou à escolha da Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho (UISS), responsável pelo atendimento da população dessa cidade satélite e área rural adjacente, como campo de formação clínica dos alunos. A participação efetiva do aluno, no ciclo clínico, em todas as atividades desenvolvidas pela Faculdade, com responsabilidade crescente e supervisão permanente, era a estratégia pedagógica proposta.

A organização dos cursos integrados em blocos de ensino permitiu convidar professores de várias universidades a virem a UnB como professores visitantes por períodos curtos. Mas tínhamos todos uma grande preocupação em se obter uma massa crítica de professores na Faculdade, que garantisse a troca de experiências necessária ao desenvolvimento de pesquisas médicas. Muitos vieram e, contaminados

pelo espírito inovador da escola e da UnB, pelo seu ambiente criativo e altamente estimulante, discutindo tudo a todo o tempo e com a participação sempre desafiadora dos estudantes, aqui ficaram.

Em outubro de 1966, o Professor Barroso do Amaral pediu demissão do cargo de Coordenador da Faculdade de Ciências Médicas e eu fui designado para substituí-lo nessa posição, o que fiz até ser demitido pelo Reitor Caio Benjamim Dias, em 10 de agosto de 1970.

No período em que estive coordenando a implantação da Faculdade tive o privilégio de contar com a colaboração engajada e constante dos Professores Antero Coelho Neto e Álvaro Alberto de Pinho Simões, que exerceram o cargo de vice-coordenador e dos Professores Odílio Luiz da Silva e Agnelo Augusto Braune Collet na direção da UISS. Deve-se à liderança de Collet e de jovens docentes como Henri Jouval, o trabalho desenvolvido na comunidade de Sobradinho visando atender suas necessidades e demandas em saúde.

Em dezembro de 1966 a Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho (UISS) foi cedida pela Fundação Hospitalar do Distrito Federal à Faculdade de Ciências Médicas por um prazo de 10 anos. O secretário de Saúde do Distrito Federal, Francisco Pinheiro Rocha foi decisivo na concretização desse convênio.

Os Professores Agnelo Alberto Braune Collet, Hélio Barbosa Ferreira, Odílio Luiz da Silva, Zairo Eira Garcia Vieira, Antônio Marcio Lisboa, Pedro Pablo Magalhães Chacel, Antero Coelho Neto, Álvaro José de Pinho Simões, João Bosco Salomon, Jacques Bulcão, Gilvan Juvenal Dutra, José Carvalho Ferreira, Affonso Renato Meira, Oswaldo Martins Reis, João Batista Macuco Janine e Dejano Tavares Sobral foram convidados a organizar o ciclo clínico da Faculdade.

A eles se somariam, entre outros professores associados e assistentes, Henri Eugène Jouval Jr., Eraldo Pinheiro Pinto, Francisco Krause Martins, Célio Rodrigues Pereira, Fernando Santos, Paulo Tavares, François Wertheimer, Lise Mary Alves de Lima, Renato Saraiva, Antonio Carlos Moretzhon de Mello, Plínio Caldeira Brant, Lucia Ypiranga de

Souza Dantas, Reginaldo de Holanda Albuquerque, Geniberto Paiva Gonçalves, Fernando Miranda Henriques, João Geraldo Martinelli, Bráulio Magalhães Castro, Paulo Espirito Santo Saraiva, Renato Figueira, Valdenor Barbosa da Cruz e Luiz Meyer.

Contava inicialmente com quinze consultórios, radiologia, laboratório de patologia clínica e anatomia patológica. As primeiras enfermarias e demais dependências da UISS inclusive a unidade de ensino, foram implantadas em 10 de julho de 1967, sete meses apenas após a sua cessão pela FHDF! A UISS assumiu desde logo a responsabilidade pela prestação integral de serviços de saúde à população de Sobradinho e da área rural ao seu redor. Ressalte-se a importância oportuna da doação feita pelo Senado de duas ambulâncias, já usadas, mas ainda em boas condições de funcionamento.

O documento que propunha a Faculdade dizia que “o objetivo do ciclo de formação clínica não é demonstrar o máximo de eficiência e sofisticação de um serviço de saúde, mas sim treinar o futuro médico para ser o mais eficiente possível em face às diversas condições dos serviços existentes e à situação sanitária do País” antecipando de muitos anos as decisões da OMS e de sua reunião de Alma Ata.

Os alunos, que ingressaram na UISS em janeiro de 1968, iniciaram a sua formação através de um curso de Introdução à Medicina Comunitária e realizaram, sob a orientação de Affonso Renato Meira, o levantamento das condições sociais e de saúde da comunidade de Sobradinho, onde discutiam temas como epidemiologia, demografia, bioestatística, saneamento, nutrição, planejamento e administração de saúde e, desde logo, deontologia médica.

Através desse trabalho integrado discutia-se a importância do estudo das condições sociais, ambientais e econômicas da população e a determinação social das enfermidades, levantando a sua estruturação e o seu arcabouço social – como escolas, grêmios e igrejas – e se buscava definir prioridades de ação para nortear o trabalho a ser oferecido, sempre discutindo essas propostas com os docentes, os

profissionais da equipe de saúde e a própria comunidade. O trabalho era sempre integrado e coletivo.

O ciclo clínico compreendia os cursos de Introdução à Medicina Integral, Medicina Integral de Adultos, Assistência Materno-Infantil, Medicina Integral de Crianças e Internato em Medicina Interna, Cirurgia Geral, Pediatria e Obstetrícia.

O importante era dar condições para o aluno ver o doente, e não apenas a doença, estar preparado a resolver os problemas de saúde mais comuns e conhecer suas próprias limitações. Capacitar o aluno a lidar com condições estressantes de sofrimento e morte era também uma meta proposta. Sessões de “psicodrama” eram feitas com essa finalidade, sempre sob a supervisão de médicos e psiquiatras.

Havia uma participação efetiva e permanente do aluno em todas as atividades desenvolvidas na comunidade, centros de saúde, hospital comunitário (ambulatórios, enfermarias, centros cirúrgico e obstétrico, emergência). Seu aprendizado era, pois, todo feito em regime de “clerkship clínico”, ou internato, desde que começava sua formação clínica. Por isso, tanto os alunos como os docentes atuavam em regime de tempo integral e dedicação exclusiva. Não havia férias escolares longas e sim a obediência a escala de serviços e plantões como qualquer dos docentes e funcionários da UISS.

A ideia de se ter a UISS como Hospital da Escola, buscando formar um médico indiferenciado, era, no entanto, discutida por vários professores especialistas que viam na atividade centrada na população daquela cidade uma restrição ao seu desenvolvimento profissional. E assim era, pois, cobrindo uma população de cerca de 35.000 pessoas, dificilmente um endocrinologista atenderia senão pacientes com diabete ou bócio. Que dizer de outras especialidades? Que nosologias poderiam encontrar em Sobradinho?

Por outro lado, além de atender pacientes em Sobradinho, os nossos docentes tinham também que participar do ensino dos blocos

integrados do ciclo básico. Mas como atender a seus anseios legítimos de desenvolvimento especializado? Criou-se assim, um “conflito” entre professores “generalistas” e “especialistas”, minando a unidade do corpo docente da faculdade. A solução seria a construção do Hospital de Base, especializado e, portanto, terciário no atendimento, próximo ao Campus da Universidade. O Hospital do então IPASE, em construção e próximo ao campus da UnB, preencheria essa necessidade.

Com o aval do Presidente do IPASE, José Roberto Ferreira e Agnelo Collet, com a colaboração de outros professores da Faculdade, fizeram um estudo detalhando os recursos humanos, os equipamentos e os recursos materiais necessários à operação do Hospital. Um convênio foi discutido com o IPASE, que admitia terminar as obras do Hospital, equipá-lo, e pagar o custo das suas atividades assistenciais, assegurando uma dotação orçamentária para tal fim por um período de 10 anos. Tudo discutido, faltava assinar o convênio e assegurar assim um campo, não só para a atividade especializada de docentes, como também para a formação pós-graduada dos alunos. A dificuldade residia em convencer a reitoria a aceitar o novo convênio, vez que ela não nutria confiança no cumprimento das promessas feitas pelo IPASE e não entendia, por outro lado, a necessidade de se dispor de dois hospitais para a formação dos nossos alunos.

A não assinatura do convênio criou um desalento em muitos docentes da Faculdade. Uma série de discussões internas e um esforço muito grande da Reitoria em diminuir o papel da direção da escola, eis que incentivava que os chefes de departamento apresentassem diretamente à Reitoria as suas necessidades e pleitos, minou a unidade pretendida na faculdade. Esse ambiente de tensão na Faculdade, promovido pelo Vice-Reitor José Carlos Azevedo, com a aquiescência do Reitor Caio Benjamim Dias, foi finalmente resolvido com a minha demissão do cargo de Coordenador.

O convite para as cerimônias de formatura, organizadas pelos alunos da primeira turma da Faculdade de Ciências Médicas, ora

comemorando 50 anos de formados, em que o orador foi Humberto Haydt de Souza Mello, dizia o seguinte:

“Nesta escola não tivemos obstáculos a transpor, mas deveres a cumprir. Nosso estudo não foi a prova da memória, mas o aprendizado do entender. Nossos mestres estiveram a nosso lado sem a distância do título e o vazio da cadeira. Não fizemos um curso: vivemos ciência, criamos um método, tornamo-nos médicos”.

O ideal traçado na criação da escola estava cumprido!

A FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Acad. Antônio Márcio Junqueira Lisboa Ex-Professor de Pediatria da UnB

A partir de 1965, pensei em ser professor universitário e tentar concretizar algumas ideias, o que seria impossível no Rio, por implicar profundas mudanças no ensino da medicina. Em 11 de janeiro de 1967, o Professor Agnelo Collet transmitiu-me o convite do diretor, Professor Luiz Carlos Lobo, para organizar as atividades de assistência, ensino e pesquisa em Pediatria na recém-criada Faculdade de Ciência Médicas da Universidade de Brasília. Aceitei-o e, no dia 1º de março, assumi o cargo e o desafio.

O “hospital universitário” era um barracão de madeira, em Sobradinho, cidade-satélite a trinta quilômetros de Brasília, com 27.000 habitantes. Optei por sair do HSE, uma das glórias da medicina brasileira, e trabalhar no velho e decadente Hospital Rural de Sobradinho onde, não raramente, matavam-se ratazanas, cobras e escorpiões que, colocados em vidros, faziam parte de um “museu”. O consultório resumia-se a uma sala debaixo da escada; a enfermaria contava com dez leitos; havia apenas dois pediatras eu e a Dra. Marília Meira. Tremendo desafio que só foi aceito porque a lei que criara a Universidade de Brasília dizia que: “na organização do seu regime didático, inclusive do currículo de seus cursos, a Universidade de Brasília não estaria adstrita às exigências da legislação geral do ensino superior.” E a Faculdade de Ciências Médicas era estruturada com proposições revolucionárias como “formar um profissional indiferenciado, capaz de atender às necessidades básicas de saúde da população – promoção,

prevenção, recuperação e reabilitação – em diferentes níveis de atenção – primária (domiciliar, postos e centros de saúde), secundária (hospitais comunitários), terciárias (hospitais especializados e maternidades).”

Para que esse objetivo fosse atingido, impunha-se a implantação de um currículo e de metodologias educacionais diferentes dos existentes em outras escolas. Uma das principais inovações era a de acabar com a fragmentação do ensino provocada pela existência de inúmeras disciplinas autossuficientes, que impediam uma visão holística do ser humano. Era o que eu queria. Começar do zero e testar minhas ideias. Larguei a segunda maior clínica do Rio, só suplantada pela do meu saudoso amigo pediatra Rinaldo de Lamare, e mudei-me para Brasília, ganhando a décima parte e trabalhando em regime de dedicação exclusiva.

Em maio do mesmo ano, mudávamos para a Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho (UISS), que iria sediar a maior experiência pedagógica relacionada com o ensino médico no país. O desafio era formar médicos em um hospital comunitário responsável pela saúde dos habitantes de uma pequena cidade, contando com um corpo docente constituído, em sua maioria, por professores sem titulação universitária, trabalhando em tempo integral e dedicação exclusiva. Com a finalidade de promover a integração de programas de promoção da saúde e prevenção de doenças com os de recuperação (hospitalares), pela primeira vez no Brasil, alunos de uma escola médica foram enviados para estagiar em áreas rurais, urbanas, em centros de saúde. Pioneiro em nosso país, o programa de integração docente-assistencial iniciado em 1968 por nós e pelo grande sanitarista Dr. Átila de Carvalho, na Unidade Sanitária de Planaltina, foi um sucesso. Em 1969, também pela primeira vez no Brasil, foram definidos os objetivos educacionais e as competências a serem alcançadas em cada local de estágio, pelos alunos, internos e residentes, registrados em várias publicações, que foram largamente utilizadas como modelo no país e no exterior.

Em 1967, criamos, pela primeira vez no país, as disciplinas de Neonatologia e Crescimento e Desenvolvimento, hoje existentes em quase todas as escolas médicas. Conseguimos uma boa integração com a Obstetrícia graças ao trabalho do Prof. Pablo Chacel, obstetra, e criamos também o programa “Mãe Acompanhante”, que passou a ser um programa prioritário da Sociedade Brasileira de Pediatria e foi incluído no Estatuto da Criança e do Adolescente, tornando-se obrigatório.

A Comissão de Promoção de Programas de Residência em Pediatria na América Latina, da Academia Americana de Pediatria, indicou como modelo o Programa de Residência da Faculdade de Ciências da Saúde. A Residência de Pediatria na UISS foi considerada a mais completa do Brasil pelo Professor Eduardo Marcondes, presidente do Comitê de Residência em Pediatria da Sociedade Brasileira de Pediatria.

A excelência do ensino da Pediatria na Universidade de Brasília pôde ser atestada pelas inúmeras visitas de importantes professores e pediatras e pelos convites para divulga-la no Brasil e no exterior – Argentina, Uruguai, Peru, Panamá, Costa Rica, Rep Dominicana, México, Guatemala. Fui membro da Comissão de Residência Médica do MEC (8 anos), da Sociedade Brasileira de Pediatria. Profissionais competentes e com alto grau de comprometimento social foram ali formados e, hoje, ocupam posições de destaque no meio médico. Essa experiência pedagógica, vivida intensamente, permitiu-me concluir que, para serem formados bons médicos generalistas, capazes de promover, proteger e recuperar a saúde de 80% da população, necessita-se, sobretudo, de um corpo docente motivado, dedicado e competente, que goste de ensinar e esteja profundamente comprometido com as necessidades sociais e de saúde da população.

Aos meus alunos cinquentenários

Vocês estão completando 50 anos de formados. Eu, 75. Foram meus primeiros alunos e, boa parte do que fiz, foi inspirado em nossa convivência diária. Tal como em Pediatria, interagimos com nossos

filhos e alunos, e ambos nos ensinam muito. De vocês, agradeço o carinho e a amizade que me dedicaram. Tinha um hábito, ao encontrar algum de vocês, como o Marcus Vinicius, de dizer com orgulho: “Foi meu aluno”. Minhas esposas, Therezinha (falecida) e Beth pediram-me que parecia que eu seria o responsável pelas vitórias. Mas a verdade é que, ao saber de seus feitos, eu tenho uma reação igual àquela que eu teria se fossem meus filhos: “Eu me orgulho de vocês”. Sejam felizes é o que lhes deseja este velho professor. Dedico-a a vocês essa mensagem Benjamin Mays que me ajudou a vir para a nossa querida Faculdade de Ciências da Saúde:

“Deve-se ter em mente que a tragédia da vida não é não poder alcançar seus objetivos. A tragédia da vida é não ter nenhum objetivo a alcançar. Não é uma calamidade morrer sem poder realizar nossos sonhos, mas é uma calamidade não sonhar.

Não é um desastre ser incapaz de incapaz de conquistar seu ideal, mas é um desastre não ter um ideal a conquistar. Não é uma desgraça não poder alcançar as estrelas, mas é um desastre não ter estrelas a alcançar. O maior pecado não é falhar, mas sim não tentar o suficiente.”

A TURMA DA UNB 70 E A UISS3

Acad. Edno Magalhães Ex-Professor de Anestesiologia da UnB

Iniciei a minha residência médica em Anestesiologia na UISS, em 08 de janeiro de 1968, 23 dias após receber o diploma de médico da Universidade Federal da Bahia. A UISS era o hospital Escola da Universidade de Brasília, situado a 30 km do Plano Piloto, na cidade satélite de Sobradinho-DF. O Hospital era um pouco escuro, e o único sinal de juventude era a presença dos residentes: éramos apenas 12 nas diversas especialidades. A noite era um pouco triste, como também a escura cidade de Sobradinho, na visão noturna daquela época. De repente, o início de um dia com mais vozes, mais movimento, mais alegria e juventude.

Era a primeira turma do Curso de Medicina da Universidade de Brasília, lá pelo sétimo semestre, chegando ao Hospital. Para nós, residentes, foi igual a volta às nossas escolas, e logo ocorreu uma relação amigável e de companheirismo entre residentes e alunos. Era divertido observar os “foras” comuns na chegada de alunos ao Hospital. Passamos a conhecer melhor a cidade, graças às novas amizades. Várias dessas amizades perduram entre ex-alunos e ex-residentes que, como eu, permanecem em Brasília até os dias atuais.

Assisti, em 1970, à formatura da primeira Turma de Médicos graduados pela Universidade de Brasília. Turma constituída por jovens que acreditaram naquela Universidade, numa cidade que, à época, tinha

3 Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho.

apenas cinco anos de existência. Também acreditei em Brasília, que adotei pelo coração como a minha cidade. Há 53 anos convivo profissional e socialmente com muitos desses colegas da Turma de 1970 de forma amistosa e cordial.

Parabéns à Universidade de Brasília pelos 50 anos de formatura da sua Primeira Turma de Médicos! Aos colegas e amigos dessa Turma um grande abraço!

A PRIMEIRA TURMA DE MEDICINA DA UnB

Acad. Eraldo Pinheiro Pinto Ex-Professor Adjunto de Urologia da UnB

Nasci em Fortaleza, em 12 de março de 1934. Fui aluno do Colégio Cearense do Sagrado Coração, estabelecimento dos irmãos maristas até ingressar no curso de medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), em 1954. Formei-me em dezembro de 1959 e durante todo o curso minha meta sempre foi especializar-me na área cirúrgica.

Naquela época fazer residência médica não era um objetivo tão procurado e quase obrigatório como hoje, mas aperfeiçoei-me em cirurgia geral na Casa de Saúde São Miguel, no Rio de Janeiro em 1960, tendo como preceptor o professor Fernando Paulino, residência muito procurada inclusive por médicos de países vizinhos. Voltando para Fortaleza fui para o Instituto de Assistência e Previdência dos Industriários, o antigo IAPI, onde atuei como perito e posteriormente como cirurgião, até novembro de 1967.

Em 1961 ingressei como assistente no Departamento de Cirurgia da Universidade Federal do Ceará, inicialmente como voluntário. Nesse departamento, com o inestimável apoio de um de seus titulares, comecei a migrar para a especialidade de Urologia. Ressalto que já na Universidade do Ceará fazia experimentação com transplantes renais em cães. Em parceria com Antero Coelho Neto, que em 1967 também iria para a Universidade de Brasília (UnB), abri um consultório de urologia. Em novembro daquele mesmo ano, recebi um convite para participar do bloco do sistema urinário do curso de medicina dessa universidade. Seria apenas uma participação de aproximadamente trinta dias.

Além dos Drs. Antero e Célio Pereira, que já pertenciam ao quadro de docentes do bloco, vieram também como professores convidados dois nefrologistas, o Dr. Marcelo Marcondes, de São Paulo e um outro de Belo Horizonte (de quem infelizmente não me lembro do nome), ambos também muito competentes. Formamos um grupo afinado e produtivo. Embora fosse o menos experiente, consegui trabalhar de modo satisfatório, pois já tinha seis anos como professor assistente na UFC.

No programa didático da UnB, urologia e nefrologia formavam uma única disciplina. Os docentes convidados foram apresentados aos alunos num anfiteatro do “Minhocão” sem haver problema algum com o paulista ou o mineiro, mas quando anunciaram o meu nome, explodiu uma gargalhada geral. Na época meu sobrenome não tinha significado pejorativo no Ceará, fiquei sem entender. A galhofa permaneceu por todo o tempo em que atuei na UnB, mas o curso transcorreu muito bem: o grupo tinha um ótimo padrão. A anatomia do sistema e alguns temas de patologia urológica ficaram sob minha responsabilidade. A anatomia era ensinada pelo próprio urologista, resultando daí que cada acidente anatômico era relacionado a uma técnica operatória ou a uma patologia do sistema sempre que possível, o que facilitava muito a memorização. Da mesma forma, a utilização de experimentos em cães e ratos foi de grande valia – fez muito sucesso a demonstração de como a obstrução do ureter levava à produção de hidronefrose. A anatomia, a fisiologia e a patologia se encaixavam com facilidade.

Este tipo de ensino, que me parecia tão lógico e inteligente, foi um dos motivos que me influenciaram a aceitar o convite para ficar em Brasília, apesar da minha vida já estar organizada no Ceará. Além disso, havia um excelente convívio entre os docentes, pois não havia grandes diferenças de idade entre titulares e assistentes. Qualquer docente tinha fácil acesso à diretoria da escola, o que não se via nas faculdades tradicionais. Outro ponto positivo era o material didático – tudo que precisávamos para as experiências em laboratório e em

animais estava sempre à nossa disposição e não havia atropelos no biotério da faculdade. O regime de dedicação exclusiva para os professores era obrigatório, o que considero ser o regime ideal, desde que remunerado de forma justa.

Nosso sistema de ensino chamou atenção fora do Brasil e foi imitado em alguns lugares: vários países mandaram observadores. O hospital de Sobradinho, hospital de clínicas da faculdade, funcionava muito bem, era um prazer trabalhar ali.

Sinto saudades daquele tempo...

À DISTÂNCIA DO TEMPO: CONSIDERAÇÕES ATUAIS SOBRE A PRIMEIRA TURMA DE MÉDICOS DA UnB

Acad. Francisco Floripe Ginani Ex-Professor de Cirurgia da UnB

Reportar à atualidade fatos e acontecimentos de uma época em que estivemos envolvidos, enseja não só recordações, mas conduz a reflexões, fazendo-nos convergir com a perspectiva dos seus desdobramentos e repercussões. Torna-se então, oportuno submeter à prova o conceito que a história é uma ciência carregada de imaginação. É a ela, porém, negada a afirmação que seja possuidora de um sentido secreto, mas revelado, nem tão pouco um significado que ela por si só não tem.

No entendimento da história tem de haver um ponto de vista, uma perspectiva e um interpretação. É como iremos enfocar a importância que se apresenta a nós a celebração do cinquentenário de formação da primeira turma de médicos da UnB.

Pessoalmente, sinto-me especialmente envolvido nesse acontecimento, já que estive visceralmente ligado a todas as etapas do seu desdobramento como o procurarei deixar a conhecer na narrativa que se segue. Para alcançar esse intento, contando com o ato de escrever, que é necessariamente uma forma de ação cujas palavras se transformarão no ato de emprestar toda a relevância e importância a aquele período que, com certeza, influenciou uma fase da história de Brasília. É cativante e ao mesmo tempo paradoxal conceber que todo o movimento que nos sensibilizou na transitoriedade daquela época, deixa transparecer o que leva a permanecer no tempo.

O período que vamos evocar é o transcorrido entre as décadas de 60 – 70, quando se desenvolveu uma das grandes experiências do ensino médico no Brasil. Antes, porém, para melhor compreensão do que se passou, é importante fazer um curto relato de como se deu o meu engajamento em tal acontecimento. No ano de 1962 fui designado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, tempo em que exercia liderança estudantil, na qualidade de presidente do Diretório Central dos Estudantes, uma missão institucional junto ao Ministério da Educação.

Brasília, nos primórdios da sua construção causou-me um desconcertante impacto que repercutiu indelevelmente em meu espírito, cravando uma indisfarçável certeza de retorno, que mais tarde veio a concretizar-se, levando-me a fincar raízes profissionais e familiares que se estende até a presente data.

Concluído o curso médico, e já aceito para o programa de cirurgia geral na cidade do Rio de Janeiro, resolvi especular com uma visita à Brasília, mesmo desprovido de qualquer arranjo ou comprometimento prévios. Informado por colegas que a Universidade de Brasília estava implantando o seu hospital escola, dirigi-me até a Unidade Integrada de Saúde-UISS onde fui recebido pelo coordenador de cirurgia, o professor Hélio Ferreira Barbosa. O curso de medicina estava cumprindo as etapas curriculares iniciais e o hospital se preparava para o desempenho do ensino protocolar.

O programa da cirurgia geral já continha em sua grade o treinamento em cirurgia geral, cujos detalhes estavam sendo ultimados. Mesmo assim, considerando que o início desse programa estava previsto para o próximo ano, consegui, com insistência e senso de desprendimento e disponibilidade, convencer o professor Hélio, que após consulta à sua equipe, resolvesse aceitar-me. Admitido como primeiro residente de cirurgia da UISS, restou-me a gratidão e a consciência de que o acontecimento consagrou a minha volta a Brasília cursando um aprimoramento que constituiu num marco profissional incontestável. 65

O êxito dessa escolha foi colimado pelo convite em permanecer no hospital, na qualidade de docente, condição que permaneci até a minha aposentadoria.

No contexto dessa história, vale relatar o entusiasmo de que fui tomado ao fazer as escolhas acima referidas. Para começo, identifiquei-me amplamente com a linha programática do ensino a ser executado, baseado no conceito da medicina integral e comunitária eivada dos conceitos da multidisciplinaridade e da ênfase aos critérios social e epidemiológico. O médico integral advindo dessa formação era capacitado em sólidos e consistentes valores humanísticos. Acrescento que essa experiência de ensino e prática médica proporcionou-me estender as minhas lealdades e reforçar as minhas convicções.

É oportuno inserir nesse relato que o país experimentava, naquele momento, uma influência marcante derivada do movimento sanitarista-desenvolvimentista, que procurava influenciar tanto na elaboração do currículo do ensino acadêmico, como na cobertura dos serviços médicos brasileiros, dando um novo formato a estruturação no campo dos recursos humanos em saúde. Esse movimento era liderado pela Organização Pan-Americana de Saúde – OPAS, que conseguiu estabelecer um marco político-institucional e simbólico, proporcionando mudança e entendimento do papel de políticas públicas de saúde, e consequentemente dos seus profissionais, no campo deste desenvolvimento social e econômico dos países latino-americanos.

Para enfrentar a realidade sanitária do país o suporte desses objetivos projetava condicionantes para formar um profissional de saúde mais atento às circunstancias e a nossa realidade nacional e regional. O método de ensino tinha que ser aprimorado, fazendo-se a conexão das ciências sociais com a saúde, deslocando-se da medicina social para a saúde coletiva. O escopo da medicina integral associava-se intrinsecamente a uma sólida formação na prática médica, sustentado por um suporte hospitalar exemplar. Simbolicamente, procurava-se introduzir o médico na história das mentalidades, objetivando

aperfeiçoar sua forma de pensar, de viver, individual e coletivamente na sua tomada de decisões.

Assumindo que o desenvolvimento do meu projeto pessoal e profissional ia alcançando um sucesso marcante, ocorreu um forte abalo quando da desocupação da Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho. A década de 80 foi marcada por uma decisão precipitada da reitoria da UnB, e deixar o hospital e, consequentemente o seu programa de ensino, mudando o enfoque curricular para uma outra instituição hospitalar, na justificativa da desatualização da UISS para enfrentar uma realidade tecnológica no ensino e na assistência à saúde. O desastre deste movimento repercutiu de imediato, não só na exclusão de médicos e alunos numa linha programática de ensino e assistência médica, como no desaparecimento do pertencimento pela universidade de uma instituição preparada para receber alunos, professores e funcionários. Essa realidade começou a ser modificada dez anos depois quando foi designado o atual Hospital Universitário de Brasília – HUB, por decisão do presidente da república.

Falhou então a mudança na justificativa de encontrar um centro de formação mais tecnológico premiando as exigências mercadológicas, o currículo médico premiava agora uma nova perspectiva em consonância com o pensamento político da nação. Foi um período que faz lembrar a pensadora Anna Funder: “A falência das utopias, o homem vagueia sem crenças definidas e sem caminhos que agreguem uma coletividade.”

A intempestividade da saída de Sobradinho, não planejada no que era indispensável, não conseguiu notar que na ciência biológica com a resolução de problemas desafiadores relativos ao diagnóstico e a terapêutica das diversas especialidades médicas, distanciava o aluno e o futuro médico da abordagem integral do ser humano no contexto social. Novo estágio, novos desafios e novas prioridades foram postas no ensino da medicina na UnB, quando a partir da década de 90. É como celebrava o poeta Paul Valéry: “O mar recomeço das ondas.”

Embora não se reconciliando com aqueles pressupostos da formação médica em Sobradinho, é preciso acreditar que a educação médica deva sempre estar voltada para o coletivo dos indivíduos e ao ambiente físico, social, político, econômico e cultural através de políticas públicas e condições favoráveis ao desenvolvimento da saúde. Temos que levar em consideração que um dos meios de reduzir as desigualdades é o aprimoramento do atendimento primário, o que certamente cobrirá a maior parte das necessidades com a saúde de uma pessoa.

A experiência de Sobradinho fortaleceu a minha convicção de que o ensino da medicina privilegia duas tendências: uma profissional e técnica, outra cultural e formadora da cidadania. Demonstrando a ciência da responsabilidade que assumimos com isso, e da permanência que tomam os nossos atos que são inscritos e poderão ser avaliados, como nesse instante o faço no âmbito da nossa memória da vida. Inspirando-me no poeta Fernando Pessoa afirmo que vivi sem saber a experiência de Sobradinho só para hoje ter aquela lembrança.

“Sinto perto o que está longe, nada é, tudo passa”.

A CESSÃO DA UNIDADE INTEGRADA DE SAÚDE DE SOBRADINHO (UISS) PELA FUNDAÇÃO HOSPITALAR DO DISTRITO FEDERAL (FHDF) À FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UnB)

Acad. Francisco Pinheiro Rocha Ex-Secretário de Estado da Saúde do Distrito Federal

Neste ano de 2020 comemoram-se os 50 anos da formatura primeira turma de medicina da Universidade de Brasília (UnB). A criação da faculdade, que teve início em meados dos anos sessenta, me leva a relembrar fatos quase esquecidos. Eu ocupava, naquela época, o cargo de Secretário de Saúde e Presidente da Fundação Hospitalar do Distrito Federal, no governo do Professor Eng. Plínio Cantanhede, então prefeito da nova capital.

Em 1966, minha equipe e eu estávamos em meio à construção de três unidades hospitalares, projetadas pelo arquiteto mineiro Hélio Ferreira Pinto, sob a orientação e supervisão do Prof. Odair Pacheco Pedroso, da Universidade de São Paulo (USP), especialista em organização hospitalar: os hospitais da L2 Sul, o de Sobradinho e o do Gama.

Foi quando dois jovens estudantes da Universidade de Brasília, membros do Diretório Acadêmico de Medicina, foram à minha residência expor a problemática que estavam a viver: tinham concluído o curso básico no Instituto Central de Ciências, mas não poderiam continuar em Brasília por falta de um hospital ligado à universidade para prosseguirem nos seus estudos. Sensibilizado, prontifiquei-me a 69

ajudá-los, marcando uma reunião com o então Reitor da UnB, Prof. Laerte Ramos de Carvalho.

Expliquei-lhe a situação dos projetos hospitalares em construção e que pretendia concluí-los até o fim do ano. Coloquei-me também à disposição para que a Universidade de Brasília escolhesse, dentre as três obras, a que melhor lhe atendesse para que firmássemos um convênio com a Fundação Hospitalar, a fim de possibilitar a continuação dos estudos médicos dos seus alunos. Outrossim, a Reitoria constituiu uma comissão de professores do Rio de Janeiro e de São Paulo, da qual fiz parte, para organizar o curso de medicina, entre eles o Professor Dr. Luiz Carlos Lobo, ao qual fui apresentado na época.

Entreguei as obras dos hospitais da L2 Sul, Sobradinho e Gama em 22 de novembro de 1966, 17 de dezembro de 1966 e 15 de março de 1967, respectivamente. A comissão formada pela Reitoria entendeu que a unidade de Sobradinho era a que melhor se identificava com o projeto de escola médica que se queria implantar, com forte apelo social e inovador.

Assim, no dia de sua inauguração o Hospital de Sobradinho foi destinado, por convênio firmado pela Fundação Hospitalar do Distrito Federal com a UnB, a servir como hospital escola da Fundação Universidade de Brasília (FUB) por dez anos, ajudando a consolidar a recém-criada Faculdade de Ciência Médicas da Universidade de Brasília como uma das melhores do país.

RECORDAÇÕES DA PRIMEIRA TURMA DE MÉDICOS DA UnB

Acad. Hélcio Luiz Miziara Ex-Professor de Histologia da UnB

As comemorações do cinquentenário de Primeira Turma de Médicos da Escola de Ciências da Saúde da UnB, hoje chamada de Faculdade de Medicina, são acompanhadas de recordações que gostaria de trazer para esse evento.

Na realidade, não pertenci ao primeiro corpo docente, pois fazia parte do Instituto Central de Biologia (ICB) que era coordenado pelo Prof. Friedrich Gustav Brieger, e que foi na realidade, o embrião que formou a escola de medicina. E como havia a necessidade de começarmos o curso, fui o primeiro médico de Brasília a ser convidado a dar as aulas da disciplina de Histologia, e até 1968 fui responsável pela matéria, quando o Prof. Gilberto Santa Rosa veio do Rio e dividiu comigo o trabalho de dar as aulas. No início participava também do curso o Prof. Octávio Della Serra, em Anatomia e posteriormente, o casal Bráulio e Heloisa Magalhães Castro. Todos eles já vieram pertencendo à Faculdade, mas eu continuei sempre vinculado à Biologia.

Participei várias vezes de conversações com Luiz Carlos Lobo e José Roberto Ferreira, e dentre os episódios que guardo na lembrança foi o de que logo no começo houve uma greve que duraria mais de dois meses e nesse período fui procurado pelos alunos Humberto Haydt, Mauricio Vasques e Alcir pereira da Silva, que me pediram que os deixassem frequentar o meu laboratório no Hospital Distrital, enquanto perdurasse a paralização. Eles fizeram um excelente trabalho sobre o movimento e índice do número de biópsias. Alunos das turmas

seguintes também trabalharam comigo em serviços administrativos naquele hospital, cujos nomes fogem à minha memória.

Não era minha intenção ser professor ou seguir a carreira do magistério, no entanto fui guindado a dar aulas por solicitação do Prof. Paulo Becker, que ministrava Citologia e me fez o convite do então Reitor Laerte Ramos de Carvalho. Senti-me recompensado por participar da Faculdade de Medicina nesta cidade que lutávamos para a sua fixação, e me lembro ainda que a primeira aula foi ministrada no Auditório Dois Candangos. Foi muito gratificante, fiz muitos amigos, e voltei para a UnB, anos depois.

MEU DEPOIMENTO PARA A PRIMEIRA TURMA DE MEDICINA DA UnB

Acad. Maurício Gomes Pereira Ex-Professor de Pediatria da UnB

Cheguei a Brasília no longínquo ano de 1968. Vinha do Rio de Janeiro, onde havia me formado pela Faculdade de Medicina da Praia Vermelha, hoje UFRJ, e passado quatro anos em estudos de pós-graduação na Europa, nas cidades de Madri, Espanha, e Bruxelas, Bélgica. No regresso ao Brasil, pretendia permanecer no Rio de Janeiro, mas não foi o que ocorreu. Fui convidado para trabalhar em Brasília, no período em que a cidade estava ainda sendo construída. A Universidade de Brasília mandou passagem e pagou minha estadia durante algum tempo. Eu gostei e fui ficando.

Meu contrato de professor da UnB requeria tempo integral e dedicação exclusiva. Fui exercer atividades na Faculdade de Medicina, lotado no Hospital de Sobradinho, então denominado Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho. A minha chegada coincidiu com o início do treinamento clínico dos alunos da primeira turma naquele hospital. Meu entrosamento com os estudantes foi excepcional na minha opinião. Em sua maioria, eles permaneciam o dia no hospital, o que facilitava nossa aproximação. Tínhamos atividades juntos em enfermaria, ambulatório e comunidade. Almoçávamos em um mesmo lugar e havia os plantões. Em pouco tempo, eu e os outros professores, sabíamos o nome de cada aluno. O contato continuado com estudantes nos faz permanecer jovens mais tempo e ver o mundo mais cor-de-rosa. Essa aproximação teve muitos reflexos. Um deles foi meu casamento com uma estudante da terceira turma de medicina, Cleire Paniago.

Da primeira turma formada na Faculdade de Medicina da UnB guardo especial carinho. Foi com essa turma que aprendi a ser professor universitário, sem ter sido ensinado para isso. O hospital possuía biblioteca, de acervo excelente e continuadamente renovado. As bibliotecárias sabiam do que eu me interessava e guardavam material de leitura para mim. A gentileza não era só comigo. Fazia parte do modo como incentivavam a leitura e o uso da biblioteca. Coisa rara neste país de poucos leitores e de bibliotecas conservadas como museus, afugentando usuários.

O tempo vivido no Hospital de Sobradinho foi dos mais gratificantes de minha vida e se revestiu de grande aprendizado, tanto intelectualmente como em coisas da vida. Muitos dos meus amigos atuais são dessa época. Pena que o tempo passe tão rapidamente... Quando penso que fui professor da primeira turma da Medicina da UnB durante três anos, que essa turma formou em 1970 e faz agora aniversário de 50 anos de formatura, acho inacreditável ... A passagem do tempo sempre nos intriga. Oscar Niemeyer afirmou aos 104 anos de idade que a vida é um sopro. Pedro Calderón de la Barca, escritor espanhol do século 17, escreveu que a vida é um sonho. Essas lembranças me fazem refletir sobre o sentido da vida. Ainda vou chegar a alguma conclusão.

Continuo frequentando a UnB, como voluntário, onde oriento alunos de pós-graduação. Acho que continuarei a fazê-lo enquanto puder. Os tempos de Sobradinho me marcaram. Sempre trabalhei em tempo integral, o que me sobrou tempo para nutrir o intelecto. Tive recompensas na vida universitária. Após a aposentadoria, a UnB me concedeu o título de Professor Emérito e fui eleito membro titular da Academia Nacional de Medicina, sediada no Rio de Janeiro. Trata-se de instituição quase bicentenária. Fundada em 1829 e, desde sua fundação, os acadêmicos se reúnem cada semana, às quintas-feiras. Essas reuniões constituem motivo para eu estar sempre visitando aquela cidade que tanto marcou meus anos de infância e juventude.

UnB: MEIO SÉCULO DE FORMAÇÃO MÉDICA4

Prof. Dr. Flávio Goulart

Acabo de receber o livro comemorativo do cinquentenário da primeira turma de médicos que se formou na UnB. Material muito bem elaborado, virtual (como, aliás, tudo ou quase tudo hoje deveria ser), organizado pelas mãos competentes de um dos egressos de então, o Dr. Marcus Vinicius Ramos, que também é presidente da Academia de Medicina de Brasília. Não estudei com eles e até conheço algumas pessoas do grupo, mas minha formatura, pela UFMG apenas um ano depois, me autoriza a comentar este evento tão significativo, além de me congratular com estes coetâneos. Meio século de formação e prática médica em outros países, de primeiro mundo, já seria algo muito significativo, mas aqui no Brasil os acontecimentos correspondentes são verdadeiramente alucinantes! Vale a pena se deter sobre o tema, sem maior pretensão de esgotá-lo. Em primeiro lugar, considerações geográficas. A totalidade dos egressos, naturalmente, vinha de fora do DF; um ou outro de Formosa, Luziânia e cidades vizinhas. Será que voltaram, depois de formados, para seus locais de origem? Muito provavelmente, não, pois o país, àquela ocasião, mostrava uma forte tendência de migração da população para os grandes centros. Assim, vir estudar na capital, saído de alguma cidade do interior, como se confirma para boa parte dos egressos, certamente acarretaria, e de forma majoritária, a fixação neste novo ambiente urbano – ou em outro de mesma característica. Nisso, sem dúvida, houve alguma transformação ao longo dessas cinco

4 A Saúde no Distrito Federal tem jeito, 2020. Disponível em <https:// saúdenodfblog. wordpress.com/2020/10/22unb-meio-seculo-de-formacao-medica/ >. Acesso em: 22 de outubro de 2021.

décadas, porque aquela tão badalada “interiorização da medicina”, que ainda era uma preocupação e uma palavra de ordem nos anos 70, bem ou mal aconteceu desde lá, até mesmo pelo massivo incremento da formação médica que ocorreu nas décadas posteriores. Criaram-se, inclusive, polos regionais médicos importantes no Brasil, distintos das capitais, como é o caso, por exemplo, de Anápolis, Ceres ou Paracatu, só para citar exemplos próximos à Capital Federal. Mas que não se esqueça que ainda existem cidades bem próximas aos grandes centros urbanos do país, daqui de Brasília, inclusive, que por razões materiais, políticas ou culturais, não dispõem sequer de um profissional de saúde entre seus habitantes.

O fato é que, em termos de mercado de trabalho, aqueles egressos de 1970 encontraram um vasto território totalmente livre e aberto para quem estivesse disposto a nele se aventurar. Com efeito, o Brasil contava, na época, com cerca de 58 mil médicos ativos; hoje são quase 500 mil. A população, que pouco passava dos 90 milhões (“em ação”, como dizia a marchinha festiva da Copa do Mundo, propagada pelo triunfalismo da ditadura militar), hoje ultrapassa os 207 milhões. Ou seja, enquanto a população do país dobrou, o número de médicos foi multiplicado por seis ou sete e isso fez com que a razão de médicos por mil habitantes passasse de algo em torno de 1,0 (1,15 é o dado para 1980) para um pouco mais de 2,0 atualmente, mas em crescimento progressivo. Só nas últimas duas décadas, o número anual de registros de novos médicos praticamente triplicou, passando de 8,5 mil para algo acima de 22,5 mil. Tais cifras, naturalmente, devem ter algum significado.

Quando ao número de escolas médicas, na época em que se formaram os felizardos aqui em foco, elas não passavam de 50 no Brasil, com um ritmo de crescimento bastante lento, boa parte delas situadas nas capitais e cidades de grande porte. Hoje são alguma coisa em torno de 300, pois as estatísticas divergem. Estão presentes não só nas capitais mas em muitas outras cidades menores. Só para uma comparação, nos EUA as faculdades de medicina são 184, na China 158

e na Índia 392. É bom lembrar que estes dois últimos países possuem população cinco a sete vezes maior do que a do Brasil, respectivamente. Na época que nossos colegas cinquentenários fizeram vestibular na UnB, o Brasil inteiro oferecia nada mais do que cinco mil vagas para os cursos de medicina; hoje elas são quase 30 mil no país.

E do ponto de vista das tecnologias disponíveis para a medicina, qual seria a realidade com que aqueles recém-formados de 1970 lidaram ao longo de suas carreiras? Só para se ter uma ideia, dou um depoimento pessoal. Tive três filhos em meados dos anos 70 e em nenhum deles a gravidez de minha mulher foi acompanhada por ultrassom, pois isso simplesmente não era uma tecnologia disponível no pais de então. Da mesma forma, coronariografias, cintilogramas de diversas naturezas, exames tomográficos, dosagens de substâncias diversas no sangue – para não falar da internet. Foi, portanto, nesta nossa geração de médicos, no auge de nossas carreiras, aliás, que tudo isso passou a fazer parte da rotina da assistência. Digamos que esta turma teve que se esforçar de verdade para aprender muita coisa nova, enquanto trabalhava duramente.

Hoje se sabe que dos médicos em atividade no País, 62,5% têm um ou mais títulos de especialista, enquanto 37,5% não têm título algum, podendo então serem considerados, embora de forma aproximada apenas, como generalistas. Certamente a realidade era, nos anos 70, bem diferente. Uma parte daqueles egressos da UnB deve ter se dedicado às grandes especialidades (Clínica Médica, Pediatria, Gineco-obstetrícia ou Cirurgia); outra parte, possivelmente menor, foi procurar diretamente uma formação mais profunda em alguma especialidade ou subespecialidade; outro tanto (quantos?) teve que cair na vida com a cara e a coragem, como generalistas de fato. Era assim que as coisas funcionavam. Muitos certamente fizeram mudanças substantivas em seu perfil profissional ao longo da vida, mas é provável que a maioria tenha tido diante de si duas opções principais: ir direto para a prática médica geral ou fazer residência em uma das quatro grandes áreas, para só então tomar outro rumo. A opção por

uma subespecialidade de forte substrato tecnológico era algo então muito incipiente no Brasil. Os que aí chegaram provavelmente o fizeram após trajetórias de duração variável em ramos mais clássicos da profissão. Mais uma comprovação do que se trata de uma trajetória especial a dessas pessoas, cheia de aventuras e desafios.

Aliás, o próprio Luiz Carlos Lobo, coordenador das atividades didáticas à época, em seu texto no livro em pauta, chama atenção para o conflito entre a prática especializada e a generalista, já existente no âmbito do Hospital Universitário da UnB, por ocasião da formatura da turma de 1970.

Como teria sido a formação médica que esta turma de seventies receberam na UnB? Posso dizer que tiveram mais sorte do que eu, pois na minha UFMG o currículo era o mais conservador e careta possível: dois anos de ciclo básico e depois três de clínica, mas de forma totalmente desintegrada. Como disse o meu professor João Amílcar Salgado, o jovem procurava a Faculdade de Medicina para ter contato com gente, mas lhe ofereciam, sequencialmente, cadáveres, lâminas, secreções corporais, chapas, papeletas… Gente, de carne e osso mesmo, só a partir do terceiro ou quarto ano e assim mesmo intermediada por um professor…

A Medicina da UnB já começou bem diferente. Primeiro porque trouxe de fora pessoas jovens e conhecedoras do ensino médico mais atualizado, em termos mundiais, como foi o caso dos professores Luiz Carlos Lobo e José Roberto Ferreira. E a proposta, realmente, virava de ponta cabeça a maneira tradicional de ensinar medicina. Entre seus postulados estava a interdisciplinaridade; o ensino em blocos integrados entre o básico e o clínico; o contato precoce do aluno com os serviços de saúde; a responsabilidade social da assistência prestada pela Faculdade; a inclusão de conteúdos de ciências sociais, entre outros, de fazer inveja a uma universidade americana ou europeia de então. Tais coisas só vieram a contaminar a minha velha Faculdade da Avenida Alfredo Balena, em BH, cerca de 10 anos depois. Funcionou na UnB?

Se tivesse prosseguido o projeto, com certeza teria funcionado. Mas entre outros prejuízos que a ditadura trouxe ao país está mais este: o de ter expulsado professores e aniquilado esperanças, já na década de 70, desestruturando o avanço que vinha sendo construído. Hoje pouco sobrou disso tudo e a vanguarda do ensino médico no DF já não reside na UnB, mas sim na Escola Superior de Ciências da Saúde, abrigada na SES-DF. Menos mal.

Mas na verdade, estes 50 anos foram marcados mesmo pelas enormes transformações sociais pelas quais passou o país como um todo, não apenas a formação ou a profissão médica. Com efeito, atravessamos toda uma ditadura, a Democracia foi reconstruída, para depois se ver profundamente ameaçada, como agora. O antigo país rural, extrativista gradualmente adentrou ao mundo urbano industrial. O velho sistema de saúde fragmentado e ineficaz pelo menos foi unificado, embora persistam muitas desigualdades. Mais e mais pessoas passaram a ter acesso à educação, inclusive superior, com a notável presença de pessoas menos favorecidas neste segmento. Novas formas de prestação de serviços médicos se instalaram no cenário, deixando para trás a tradicional polarização entre clínica particular e serviço público/INPS, com o advento da nova realidade dos planos de seguro em saúde. A tecnologia na área médica se tornou indispensável e mesmo dominante. As doenças que matavam antes, tais como as infecciosas e parasitárias e as deficiências nutricionais perderam a vez para as cardiovasculares, as violências e aquelas dependentes dos hábitos de vida.

Mas talvez as mudanças mais significativas foram de índole cultural. Os médicos começaram a serem vistos (e se verem, embora com restrições) como trabalhadores assalariados, percebendo-se na contingência de se organizar para lutar por melhores condições de trabalho e melhor prestação de serviços ao público, não apenas por atributos corporativos. Os pacientes começaram a perceber que a prestação de serviços de saúde não era apenas um favor do Estado ou algo a se comprar no Mercado, mas sim um direito social verdadeiro.

A turma de 1970 (e adjacências) não dispôs de um mar calmo para navegar em sua vida profissional, com certeza. Penso que nós, estes médicos hoje cinquentenários na profissão, representamos, de fato, um marco geracional sui generis: entramos na faculdade numa era ainda antiga, saímos com as coisas já muito alteradas e enfrentamos muitas outras profundas mudanças ao longo de nossa vida profissional. Se não conseguimos grandes vitórias – embora pense que também não tenhamos passado pela vida profissional e de cidadãos em nuvens totalmente brancas – certamente podemos ser reconhecidos como abridores de caminhos. É claro que muitos de nós se perderam e alguns como eu, desistiram da clínica – e nem seria fácil alguém fazer tal viagem sem se perder ou desviar de rumo – mas com certeza temos um testemunho a dar. A medicina não é mais a mesma, o mundo já mudou muito e nós também já não somos aqueles que um dia fomos. Resta saber quantos de nós aprendemos as lições, ou, pelo menos, se fomos capazes de reconhecer que há lições a aprender, nesta acidentada trajetória.

E o futuro? Este já não nos pertence…

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