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Manuel E., Azeredo Z. (2020) Child sexual abuse in Angola: culture and punishment, Journal of Aging & Innovation, 9 (3): 146- 163 Revisão Bibliográfica Narrativa: Manuel E., Azeredo Z. (2020) Child sexual abuse in Angola: culture and punishment, Journal of Aging & Innovation, 9 (3): 146- 163

 Revisão Bibliográfica Narrativa

Abuso sexual de crianças em Angola: cultura e punição Abuso sexual infantil en Angola: cultura y castigo Child sexual abuse in Angola: culture and punishment

Ernestina Bonguela Candele Manuel1, Zaida Azeredo 2 1

Psicóloga Clínica em Angola, Mestre em Saúde e Intervenção Comunitária; Pós-Graduada em Psicologia Social, Investigadora na RECI (Research Unit in Education and Community Intervention) 2 Médica de Família, Mestre em Gerontologia Social Aplicada, Doutorada em Saúde Comunitária, Coordenadora da RECI/ Piaget

Corresponding Author: ecandele2010@hotmail.com Resumo Este artigo para além de rever o conceito de abuso sexual num contexto geral e procura caracterizar a componente cultural em Angola, através de diversos autores com real interesse na caracterização do abuso sexual, análise de discurso das vítimas com a descrição do perfil característico das mesmas, crenças culturais e práticas abusivas perpetradas por familiares, professores e até mesmo por um agente policial, que no seu papel social lhe é atribuída uma responsabilidade pela ordem pública. Apresenta uma panóplia de conhecimentos sobre a contextualização das práticas tradicionais que acabam por ser descritas como violência sexual, dentre as quais, a rotura mecânica do hímen, o ritual de iniciação que acontece com o surgimento da menarca e atribui aos jovens adolescentes o direito a uma relação matrimonial, assim como o casamento precoce que decorre sempre que houver um ato abusivo. Para além de que muitas vezes tal ação abusiva pode ser resolvida por acordos mútuos como a entrega de dotes independentemente da idade do agressor, sem que, no entanto, estejam envolvidas as autoridades judiciais competentes. Palavras – chave: abuso sexual; crianças/ adolescentes; violência e cultura

Abstract This article describes the concept of sexual abuse in a general context and characterizes the cultural component in Angola, through several authors with real interest in the characterization of sexual abuse, analysis of the victims' discourse with the description of their characteristic profile, cultural beliefs and abusive practices perpetrated by family members, teachers and even a police officer, who in his social role is given a responsibility for public order. It presents a panoply of knowledge about the contextualization of traditional practices that end up being described as sexual violence, such as: the mechanical rupture of the hymen, the ritual of the initialization that happens with the emergence of menarche and attributes to young adolescents the right to a marriage relationship, as well as early marriage that occurs whenever there is an abusive act. In addition, such abusive action can often be resolved by mutual agreements such as the delivery of funds regardless of the age of the aggressor, without the competent judicial authorities being involved, however. Key words: sexual abuse; children/adolescents; violence and culture

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Introdução

O abuso sexual em crianças e adolescentes é um problema mundialmente conhecido. Alguns aspetos culturais condicionam a resolução do problema e dificultam o normal desenvolvimento mental pela natureza do trauma. Em Angola o número de casos de abusos sexuais e violação de menores têm estado a tomar proporções preocupantes. As autoridades políticas, judiciais e as forças da ordem pública desdobram-se para controlar a situação com ações que desestimulem a prática de crimes desta natureza. A Província de Luanda (Capital do País) lidera a lista de casos de violência sexual contra menores, com 178 (26,3%) de um total de 678 casos registados no país de fevereiro de 2018 a Fevereiro de 2019, seguida da província do Bengo, com 145 (21,4%), e Benguela, com 97 (14,3%), revelou em Luanda a Ministra da Acão Social Família e Promoção da Mulher (Jornal de Angola de 1 Março de 2019). A Direção da Maternidade Lucrécia Paim afirmou que “acorrem mensalmente entre 60 a 90 crianças violadas sexualmente por familiares diretos e vizinhos. Os números tendem a crescer de forma exponencial sobretudo neste período em que as famílias estão confinadas devido a covid-19” (jornaldeangola,sapo.ao, de 12 de Setembro de 2020). Segundo a Direção da Maternidade Lucrécia Paim, a forma como são perpetrados os atos abusivos a menores, alguns destes com idades muito precoces (seis meses a um ano) causando destruição total de alguns órgãos genitais, bem como a introdução na vagina de objetos cortantes, demonstram claramente, que a maior parte dos perpetradores apresenta instabilidade emocional, movidos por algum tipo de distúrbio comportamental, desde a pedofilia, sadismo sexual, perversão, e carecem de um acompanhamento por profissionais de saúde mental. Alguns casos de abuso sexual, também são perpetrados por agentes policiais, no passado dia 16 de setembro de 2020, acompanhamos o mediático caso da jovem, que interpelada por agentes da polícia, foi levada para a esquadra policial do bairro Catintón e violada sexualmente (TV Zimbo). Surgem cada vez mais, novos casos exigindo a tomada de medidas preventivas e punitivas, porque o abuso ocorre em grande número no seio familiar. Segundo a Secretária de Estado para Família e Promoção da Mulher Dra. Elsa Barber, a Linha de Receção de Denúncia de Violência contra a criança SOS-Criança, entre o mês de junho e Agosto de 2020, recebeu 575 denúncias de abuso sexual (Jornal observador.pt 2020/08/25). Com o presente trabalho pretendemos divulgar alguns aspetos da cultura tradicional angolana relacionados com violência sexual sobre a criança e que vão contra os direitos universais da criança. JOURNAL OF AGING AND INNOVATION, DEZEMBRO, 2020, 9 (2)  ISSN: 2182-696X  http://journalofagingandinnovation.org/ DOI: 10.36957/jai.2182-696X.v9i3-8

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Desta forma procuramos sensibilizar o governo e as comunidades angolanas para a necessidade de haver legislação cuja aplicabilidade contribua para o bem-estar da criança que se encontra ainda em desenvolvimento, e para uma sociedade mais justa onde a igualdade de género seja uma realidade.

Abuso Sexual em Crianças O abuso sexual em crianças é de natureza social, tendo em vista que é influenciado de maneira intensa pela cultura e pelo tempo histórico em que ocorre, o que dificulta estabelecer uma definição aceite universalmente. A palavra abuso deriva de abusus, cujo prefixo “ab” indica tanto privação como excesso, e “uso” associa-se ao “aproveitamento de algo conforme seu destino”. Em decorrência desse significado a palavra abuso do ponto de vista jurídico, relaciona-se com aproveitar-se de alguém temporariamente ou de coisas alheias (Libório & Castro 2010; citado por Vasconcelos, 2009). Assim, numa visão de Sanderson, (2005), o abuso sexual em crianças e adolescentes pode ser considerado como o envolvimento de crianças e adolescentes em atividades sexuais com um adulto ou com qualquer pessoa um pouco mais velha ou maior, em que haja uma diferença de idade, de tamanho físico, ou de poder, e em que a criança é usada como objeto sexual para a gratificação das necessidades ou dos desejos de outrem. Nesta situação ela é incapaz de dar um consentimento consciente por causa do desequilíbrio no poder, ou de qualquer incapacidade mental ou física (p.17). Para Stratton (2008), o abuso sexual da criança é uma forma de abuso infantil em que as crianças são envolvidas em atividades sexuais inadequadas, na maioria com adultos, e que é psicologicamente danosa para aquela (p.1). Desta feita, nos lembra outro autor, que o abuso é caracterizado como o envolvimento da criança ou jovem em práticas que visam a gratificação e satisfação sexual do adulto ou jovem mais velho, numa posição de poder ou autoridade sobre aquela (Magalhães, et al. 2010, p.8). Porém, é importante enfatizar, que o abuso sexual infantil não é sinónimo de violação. Raramente o agressor utiliza força física para concretizar a ação, algumas vezes pode-se estabelecer ou preexistir um vínculo de confiança de autoridade ou poder do qual se aproveita para perpetrar a ação (Intebi, 2011, p. 40). Vários autores são unanimes em afirmarem que o abuso sexual baseia-se em uma relação de poder desigual entre o agressor e a vítima configurada em três níveis: o poder exercido pelo grande (protetor) sobre o pequeno (dependente); a confiança que o pequeno tem no grande; e, o uso delinquente da sexualidade, ou seja, o atentado ao direito que o JOURNAL OF AGING AND INNOVATION, DEZEMBRO, 2020, 9 (2)  ISSN: 2182-696X  http://journalofagingandinnovation.org/ DOI: 10.36957/jai.2182-696X.v9i3-8

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individuo tem de propriedade sobre o seu o próprio corpo (Gabel, 1997, citado por Habigzang, L. & Koller, S. 2014, p. 13). Ainda segundo a OMS, o abuso sexual é o envolvimento de crianças e adolescentes, com desenvolvimento biológico, psicológico e socialmente imaturos, logo incapazes de dar um consentimento, em atividades sexuais que não compreendem totalmente e que violam as normas sociais, objetivando a gratificação das demandas e desejos sexuais da pessoa que comete o abuso (Mebarak, Martínez, Herrera & Lorenzo, 2010, citado por Alves, 2015). O abuso sexual também pode ser definido em duas categorias, de acordo com o contexto de ocorrência: o abuso extrafamiliar, que ocorre fora do contexto doméstico, envolve situações de violência na qual o agressor é uma pessoa desconhecida ou não pertencente ao círculo familiar da vítima, e, o abuso em contexto intrafamiliar que na maioria dos casos é abuso sexual contra crianças e adolescentes (Koller, Morais et al, 2005).

Tipologias de Abuso Os abusos podem ser tipificados das mais variadas formas, desde o ambiente familiar ao social. Neste contexto, são consideradas tipologias de abuso as seguintes: •

Abuso físico: qualquer ação não acidental atentada contra terceiros por parte de uma pessoa que exerce um certo poder ou confiança e provoque dano físico na vitima. Pode ainda ser considerado como abuso físico toda ação que envolva o bater, arremessar, sacudir, queimar, etc. podendo ser causadas por um cuidador ou progenitor. Podemos também considerar o “Síndrome de Munchhausen por procuração” ou “doença fictícia por procuração”, que causa danos físicos associados com um fingimento de má saúde por parte da criança a ser deliberado pelos pais ou responsável (Sanderson, 2008, p. 4 in Departamento de Saúde, 2003).

Abuso sexual: envolvimento da criança com jovem ou adulto que vise a gratificação sexual do mesmo. Forçar ou incitar uma criança ou adolescente a tomar parte de atividades sexuais que visam a satisfação de um adulto, estejam elas cientes ou não sobre o ato. Podem envolver atos penetrantes (como por exemplo o estupro ou sodomia) ou não penetrantes e ainda pode incluir atividades sem contacto tais como, levar a criança a olhar ou a produzir material pornográfico (Ibidem, p. 5).

Negligência: comportamento regular de omissão, relativamente aos cuidados a ter com as crianças e jovens (Ibidem).

Abuso emocional: ato de natureza intencional caracterizado pela ausência ou pela falha, persistente ou significativa, ativa ou passiva, de suporte afetivo e de reconhecimento das necessidades emocionais da criança ou jovens, de que resultam efeitos adversos no seu desenvolvimento (físico, mental, emocional, moral ou social)

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e na estabilidade das competências emocionais e sociais, que diminuem a sua autoestima (Magalhães T, 2005; 2010, p. 9). Perfil da Criança/Adolescente Sexualmente Abusada As crianças vítimas de abuso sexual apresentam alterações que condicionam o seu padrão normal de desenvolvimento com alterações significativas de âmbito físico e psicológico. A elas estão associados: sentimentos de tristeza, apatia, medo, linguagem agressiva, regressão como mecanismo de defesa do ego (enurese, encoperese), fugas de casa contantes, postura sedutora, etc. Frequentemente, na consulta de psicologia, deparamo-nos com vários sintomas psico- emocionais associados a abuso sexual. As vítimas passam por vários conflitos, desde identidade de género à repetição da cena traumática redirecionada a outro alvo sexual, como forma de compensação para as suas defesas inconscientes, como é documentado em três testemunhos ouvidos na consulta da Autora: Testemunho1 “Cabetula (nome fictício) foi a consulta de psicologia a pedido do namorado, que a seu ver, alguma coisa não ia bem com a namorada grávida de 17 anos de idade, a mesma apresentava constantemente alterações de humor, evita manter relações sexuais de uma forma brusca mesmo quando as preliminares tenham sido exitosas, segundo ele “na hora H ela dava um chute e não sei porquê”. Na primeira sessão foram avaliadas as motivações conscientes e inconscientes inerentes ao comportamento da vítima, quando surpreendentemente houve um acting out, aconteceu o esperado, a jovem Cabetula começou a relatar como foi o seu percurso infantil na presença de um pai incestuoso. O mais doloroso para a vítima é o facto de saber que a mãe sabia que o pai abusava das filhas e nada fazia para as defender. Cabetula começou a ser abusada pelo pai aos 8 anos, diz que inicialmente o pai apenas pedia para ela mostrar as partes íntimas; de seguida dava-lhe 10 kwanzas para comprar sambapito. Várias vezes invadiu a casa de banho que tem apenas como “porta” um cortinado, para a observar no banho ela e a irmã. Ficava parado a apreciar sem ligar ao constrangimento que estava a causar. Posteriormente, passou a esfregar o seu membro viril na filha durante algum tempo, como sempre, de seguida a compensava com dez kwanzas para o sambapito. Aos 12 anos, o pai esforçou a penetração que acabou por ser desagradável, ela gritou e ele parou. Passado algum tempo, repetiu até conseguir introduzir tudo. Fez o mesmo com a irmã mais pequena. Aos 14 anos, descobriu que se tratava de abuso ao ser noticiado um caso semelhante pela

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televisão, aproveitando a notícia para reclamar alto, dizendo que estes pais que abusam sexualmente das filhas, deveriam morrer tendo também a concordância da irmã. Ambas saíram da sala como protesto e mesmo assim, a mãe nada fez para as proteger. A partir daí deixou de se submeter aos caprichos do seu pai. Aos 15 anos passou a levar uma vida promíscua com mais do que um namorado sem ter qualquer sentimento afetivo o que a levava a trocar várias vezes de parceiros. Não se sentia satisfeita e aos 16 anos passou a envolver-se com mulheres, e ela assumia o papel de domadora o que durou aproximadamente 1 ano. Aos 17 anos conheceu o atual namorado. Embora o seu passado a ensombre muito, não teve coragem de contar tudo que aconteceu ao seu namorado. Esta adolescente apresentou conflitos de identidade de género segundo o DSM-IV, ao acionar o seu mecanismo de defesa “sair da posição de vítima para a de domadora”, humor instável, inapetência sexual, dentre outros sintomas que a mesma referenciou tais como: arrependimento, sentimento de culpa, falta de concentração e insónias. Segundo o DSM-V, trata-se de disforia de género que é um mal-estar que pode acompanhar a incongruência entre o género experimentado ou expresso e o género atribuído ao individuo. No adolescente e adulto manifesta-se pelas seguintes características clinicas:

Uma marcada incongruência entre o género experienciado/expresso e as características sexuais primárias e/ou secundárias;

Um forte desejo de se libertar das suas características sexuais primárias;

Um forte desejo pelas características sexuais primárias e ou secundárias de outro género. Testemunho 2 “Sungura (nome fictício), com 19 anos de idade, saiu do seu local de trabalho em direção ao Centro do Kilamba por volta das 20h, quando foi interpelada por 4 jovens que a violentaram sexualmente usando todos os seus orifícios e de forma desprotegida, foi deixada enojada, à sua própria sorte e socorrida por um transeunte que escutou os gritos de socorro provindos do matagal, e teve a coragem de aí penetrar para a socorrer. O mesmo aconselhou-a a participar à polícia e se dirigir a uma unidade hospitalar para realizar uma consulta. A vítima cumpriu com todas as orientações e iniciou um cocktail de antirretrovirais (prescritos no hospital), com todos os seus efeitos colaterais. Contou ao namorado, que a deixou de seguida; a sua prima jogou-lhe toda a culpa pelo incidente, acreditando que ela deveria ser

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mais cuidadosa. Ao pensar na condição de saúde da mãe com problemas cardíacos, sem poder partilhar com ela a sua tristeza e sobrecarga emocional acrescida de a culpabilizarem, desenvolveu, então grande sentimento de culpa, abandonou o emprego. A tia expulsou-a de casa, tendo feito uma tentativa de suicídio. Passou a ter comportamentos compulsivos e obsessivos pela higiene corporal, tomando banho com uma frequência mínima de cinco vezes por dia. Com o início das sessões de psicoterapia, reduziu gradualmente estes comportamentos. Podemos observar, que nestes dois casos prevalece um sentimento de culpa e arrependimento quando são apenas vítimas. Durante a aplicação do inquérito, apercebemo-nos que a maioria dos jovens sentem necessidade de dialogar com alguém e partilhar segredos, porém não sabem com quem ou em quem confiar. A jovem do 2º caso apresenta fortes indícios de transtornos obsessivos compulsivos, segundo os critérios de diagnóstico da DSM-V. Estão presentes pensamentos, impulsos ou imagens recorrentes e persistentes que causam malestar. O individuo tenta suprimir tais pensamentos ou impulsos ou, neutralizá-los com outro pensamento ou ação. Assim a jovem do 2º caso, sussurrava as mesmas palavras múltiplas vezes ao dia. Para além dos banhos, lavava constantemente as mãos. Quanto ao risco de suicídio, em cerca de metade dos indivíduos com POC/TOC ocorrem em algum momento pensamentos suicidas potenciados pela presença de perturbações depressivas major co-mórbidas. Testemunho 3 “Kwassa Kwassa (nome fictício), de apenas 12 anos, foi vítima de abuso sexual pelo marido da irmã da mãe, que na primeira vez, isto na ausência da tia, ele a convidou para beber um refrigerante, adormeceu e quando despertou, estava sob a cama da tia com muita dor no baixo-ventre e sangramento. Após o desfloramento completo, seguiram-se novas penetrações já com ela consciente, que ocorriam com alguma regularidade quer em casa num anexo em obras ou durante a noite, na sala onde a adolescente dormia, avançando com a promessa de a transformar numa futura esposa. Após vários encontros amorosos, a tia foi surpreendida com o aumento de volume do abdómem da adolescente, e levou-a a uma consulta no centro de saúde onde foi confirmada uma gravidez, tendo o tio sido notificado e preso. A tia enfurecida com a situação, acusava a menina de ser a causadora de tamanha desgraça e por outro lado, defendendo também que o seu marido não deveria continuar preso, pois ela precisava dele em casa. Afirmava que se a menina aceitou é porque gostou, logo ela é culpada. JOURNAL OF AGING AND INNOVATION, DEZEMBRO, 2020, 9 (2)  ISSN: 2182-696X  http://journalofagingandinnovation.org/ DOI: 10.36957/jai.2182-696X.v9i3-8

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Este testemunho descreve-nos, um fenômeno bastante comum em Angola, que é a “preservação do lar em detrimento de todas as acusações impostas ao cônjuge”. Quanto á vítima, esta assume toda a culpa, sem se ter em conta a diferença de idade entre ela e o suposto agressor.

Consequências do Abuso Sexual As consequências do abuso sexual são múltiplas, sendo que seus efeitos físicos e psicológicos podem ser devastadores e perpétuos (Kaplan & Sadock, 1990, citado por Blanchard, 1996). O abuso sexual infantil pode gerar consequências físicas, emocionais, sexuais e sociais para as vítimas. Essas consequências podem se manifestar de múltiplas maneiras e podem ser devastadoras e definitivas (Amazarray & Koller, 1998; Echeburúa & Corral, 2006). -

Físicas

As consequências físicas decorrem da agressão que a (o) adolescente sofreu e podem ser de vária ordem. A sua gravidade vária de acordo com a forma como o acto foi perpetrado, número de agressores e zonas corporais. Porém, podemos referenciar algumas consequências físicas tais como: inibição do crescimento, lacerações vaginais, anais e uterinas levando por vezes à histerectomia que pode ser total ou parcial, passar a sofrer de dispareunia, dores no baixo-ventre, e/ou frigidez. O desenvolvimento sexual da criança é afetado pelo abuso e ela pode apresentar comportamentos sexuais atípicos para a sua idade. Tais comportamentos incluem brincadeiras sexualizadas, com bonecas, introduzir objetos ou dedos no ânus ou na vagina, masturbação excessiva e em público, conhecimento sexual inapropriado para a idade e pedido a adultos ou a outras crianças de estimulação sexual (Amazarray & Koller 1998; Habigzang & Koller, 2014, p. 22).

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Económicas e sociais

Num estudo realizado por Daignault & Hébert (2009), foi concluído que o baixo rendimento escolar e dificuldades de relacionamento estiveram presentes em 54% das cem meninas entre sete e doze anos submetidas a avaliação (p.22). Partindo do princípio de que os aspetos sociais estão sincronizados aos económicos, acreditamos que o abuso sexual, acarreta inúmeras consequências não só para a vítima, mas também para a família e para a sociedade, aumentando a procura por especialistas,

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baixando a produtividade ou rendimento escolar e podendo até precipitar os adolescentes a adotarem comportamentos de risco. Assim e a título de exemplo o aumento de casos de pacientes portadores de VIH, decorrentes da transmissão dolosa em vítimas de abuso, incidirá sobre o número de retrovirais necessários para acudir á demanda. O abandono de menores levará o Estado a duplicar as verbas para centros de acolhimento e para contratar mais recursos humanos para o efeito. As implicações familiares, também podem ser inúmeras, desde a sua disrupção até uma gravidez indesejada havendo múltiplas hipóteses que deixam marcas permanentes não só na vítima, mas também na família e na sociedade.

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Psicológicas

Toda criança que foi submetida a um abuso intrafamiliar crónico sofre um dano psíquico e por conseguinte, estruturará o seu psíquico de uma maneira particular que a leva a ter um determinado comportamento com distorções percetivas que dificultam um adaptado e evolutivo desenvolvimento pessoal (Colombo, 2013, p. 16). O dano psíquico pode ser compreendido como: uma degradação, disfunção, distúrbio ou transtorno do desenvolvimento psicogénico, que compromete as esferas afetivas e intelectuais, que causa limitações na sua capacidade individual, familiar, social e recreativa (Mariano Castex 1985, citado por Colombo, 2013). O dano psíquico aparece então como uma conotação de tal envergadura que, bloqueando o esperado desenvolvimento evolutivo, leva a criança a um deficiente crescimento que involucra tanto transtornos de comportamento, como cognitivos, físicos, sociais e afetivos. Segundo Freud, o inconsciente abriga uma grande quantidade de forças conflituantes. Além da força das pulsões de vida e de morte, há também a intensidade das memórias das emoções recalcadas, bem como contradições inerentes à nossa compreensão da realidade reprimida. O conflito psicológico surge em função destas forças contraditórias subjacentes a todo o sofrimento humano (Hermeto & Mateus, 2012). As relações interpessoais da primeira infância desempenham um papel construtivo radical, assumindo o carácter de relações constitutivas da personalidade; ausência ou privação delas, suas deformações, obstáculos ou deficiências, provocando diversas perturbações: regressões, fixações, bloqueios, ou paragem no desenvolvimento global da personalidade (Abreu, 2002, p. 43).

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Todavia, como nos lembra Pontes, a sexualidade é um aspeto central do ser humano ao longo da vida e inclui o sexo, género, identidades e papéis, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução. A sexualidade é influenciada pela interação de fatores biológicos, psicológicos, sociais, económicos, políticos, culturais, éticos, legais, históricos, religiosos e espirituais (Pontes, A. F. 2011, pág. 23-24). Na perspetiva relacional ou integracionista do comportamento, podemos definir os motivos ou necessidades como esquemas ou esboços de relações entre o organismo e o mundo, indispensáveis ao funcionamento e crescimento do primeiro, constituindo assim fatores dinâmicos fundamentais da personalidade, enquanto estrutura funcional do sujeito (Abreu, 2002, p. 51). Para dar melhor entendimento às conceptualizações propostas por Wolf (1984) e Finkelhor (1986), Sullivan desenvolveu o conceito de “espiral do abuso sexual”, que retrata com clareza o desenvolvimento do abuso rumo à motivação para a violência sexual efetiva incorporando o papel da excitação sexual ilícita, da culpa do medo e das consequências, das distorções cognitivas refinadas e da preparação para o abuso (Sanderson, 2005, p. 61). Segundo Pimenta (2016), os eventos traumáticos decorrentes do abuso sexual, acarretam consequências com desenvolvimento de emoções negativas dentre as quais citamos: sentimentos de culpa, frigidez no ato sexual com o cônjuge, sadomasoquismo, desonestidade, etc. A autora ainda faz referência de que, a vítima não consegue ter uma relação afetiva honesta, arranjando sempre desculpas para evitar estabelecer contacto afetivo, tendo pensamentos negativos em torno dos envolvimentos sexuais descritos por agressividade e violência para o cônjuge sem razão aparente e consequente síndrome do Estocolmo (Ibidem, p. 95). São várias as manifestações sintomáticas que as adolescentes vítimas de abuso sexual apresentam. Da nossa experiência e do relato das vítimas destacam-se as seguintes perturbações (critérios de diagnóstico do DSM-V): a) Perturbação de ansiedade generalizada: ansiedades e preocupações excessivas; irritabilidade, perturbações de sono caracterizadas por dificuldade em adormecer, permanecer a dormir ou sono insatisfeito; b) Perturbações de estresse pós-traumático: por exposição direta a acontecimentos traumáticos ou testemunho, tentando evitar memórias, pensamentos ou emoções que causem mal-estar e evitamento ou esforço para evitar estímulos externos (pessoas, lugares, conversas, atividades, objetos, situações), que despertem memórias, ou emoções que causem mal-estar acerca dos acontecimentos traumáticos; JOURNAL OF AGING AND INNOVATION, DEZEMBRO, 2020, 9 (2)  ISSN: 2182-696X  http://journalofagingandinnovation.org/ DOI: 10.36957/jai.2182-696X.v9i3-8

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c) Perturbação do sono: vários adolescentes que foram vítimas de abuso apresentam dificuldades em manter o sono, caracterizada por despertares frequentes ou problemas em voltar a adormecer o que provoca mal-estar clinicamente significativo, podendo provocar falta de concentração e de assimilação na resolução de tarefas; No quadro das parassónias, alguns já experienciaram terrores de sono, com despertares abruptos por terrores durante o sono.

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Penalização do Abuso Sexual em Angola A Carta Africana sobre os Direitos e bem-estar da criança no seu Artigo 16º, realça a proteção contra abusos e torturas da criança. Os Estados-Membros (no qual se inclui Angola) assumiram na presente carta que tomarão medidas específicas, legislativas, administrativas, sociais e educacionais para proteger a criança contra todas as formas de tortura, danos físicos e mentais, negligência ou maus tratos, incluindo o abuso sexual (p. 38). Quanto às disposições legais sobre a proteção contra práticas sociais e culturais negativas (Artigo 21º), ficou também acordado que os Estados tomarão todas as medidas apropriadas para abolir os costumes e as práticas negativas, com especial atenção para a saúde, “o casamento de crianças e a promessa de casamentos de meninas e rapazes são proibidas e medidas legais serão tomadas, considera-se que a idade mínima para contrair o matrimónio seja de 18 anos (Ibidem, p.41). Em Angola a única versão válida do Anteprojeto de Código Penal, já prevê as penalizações sobre os mais variados crimes de natureza sexual. O Artigo 168 - Define como crimes sexuais

a) “Ato sexual”, todo o ato praticado para a libertação ou para a satisfação do instinto sexual;

b) “Agressão sexual”, todo o ato sexual realizado por meio de violência, coação, ameaça ou colocação da vítima em situação de inconsciência ou de impossibilidade de resistir;

c) “Penetração sexual”, a cópula, o coito anal ou oral e a penetração vaginal ou anal com os dedos ou objetos utilizados em circunstâncias de envolvimento sexual. O referido Código Penal, na Secção IV sobre as Disposições Comuns, ressalta que existem agravamentos na pena quando se avaliam os laços de consanguinidade, ascendente ou descendente, parente ou afim, até o terceiro grau da linha colateral, quando se encontra uma relação de dependência hierárquica, económica ou de

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trabalho. Existe também agravamento da pena, quando o agente é portador de doença sexualmente transmissível, quando dele resultar uma gravidez, suicídio ou morte da vítima, ofensa grave a sua integridade física, ou transmissão de doença incurável que coloque em perigo a vida da vítima. Para um delito de abuso sexual estabelece a pena de prisão de um a três anos. Se existir uma relação de parentesco entre o imputado e a vítima, produzem-se agravantes (a pena é maior), devendo, nestes casos, prever-se um risco iminente para a segurança das vítimas (Alcântara, 2019, p. 133). No entanto poucos são os casos que chegam aos órgãos de justiça, pois grande parte deles são “resolvidos” em contexto familiar; noutros o abuso sexual apenas se converte em multa por parte do agressor e por vezes, a vítima ainda é coagida a colaborar com o agressor com consequências nefastas para esta, nomeadamente de foro psicológico. Quanto à idade legal para consentimento sexual, considera-se que os 12 anos é a idade suficiente para dar o seu consentimento relativamente às relações sexuais. Ao estabelecer como idade mínima para consentimento sexual os 12 anos, a República de Angola coloca-se no extremo inferior de uma lista em que constam quase todos os países do mundo. Esta situação também indica uma falha grave no seu quadro legal de proteção da criança. Na verdade, só se considerará violação se a criança vítima tiver menos de 12 anos de idade. Nos casos em que a criança vítima tenha 12 anos ou mais, esta terá de comprovar a inexistência de consentimento. Quando comprovado é possível haver acusação por abuso sexual, mas as penas são mais leves (RSJCA, 2016, P.44).

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Repercussões Sociais do Abuso Sexual em Angola

Segundo Pimenta (2016), estamos diante de um novo fenómeno, designado por a “parafilia coletiva ou doença mental-sexual coletiva. A Globalização trouxe mal-estar aos africanos desde o incremento das violações sexuais que não poupam crianças inocentes e indefesas, adolescentes e idosas, assim como o aumento de gravidezes indesejadas decorrentes do abuso sexual” (p. 20-21). Relativamente ao fenómeno de abuso sexual salienta a autora, que as muitas vítimas são tidas como culpadas do seu próprio infortúnio. São raros os familiares que prestam apoio a uma vítima de abuso sexual, sendo a expressão que na maioria das vezes soa para com a vítima é de que, se não te assanhasses muito o teu pai não te violaria, se não

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trajasses tão escandalosamente ou andasses fora de horas não serias vítima de violação sexual por parte do vizinho (Ibidem, p.45). De acordo com o relatório sobre o sistema de justiça para as crianças em Angola (RSJCA), existe um contexto tradicional, onde a violência sexual é muitas vezes considerada como um “assunto pessoal” que deve ser tratado dentro da família e não no sistema jurídico (RSJCA, 2016, p, 25-26). Mais de 600 menores a nível do país foram vítimas de abusos sexuais em 2018, muitas das quais ocorreram no seio familiar, revelou ao Jornal de Angola o Diretor do Instituto Nacional da Criança (INAC) Dr. Paulo Kalessi. “Muitos destes casos que acontecem no seio familiar são praticados por um tio, primo e, por vezes, pelo próprio progenitor”. O assunto acaba por não ser denunciado às autoridades, o que é mau”, precisou o responsável (Jornal de Angola.sapo.ao 16/04/19). Segundo a mesma fonte, de Janeiro a Outubro do ano de 2019, foram atendidas no INAC um total de 150 crianças do sexo feminino crianças abusadas sexualmente e 1 do sexo masculino (Base de dados do INAC 2019). Na visão de Alcântara Costa (2019), vários têm sido os casos identificados, porém dos registados no INAC neste período, houve apenas um do sexo masculino o que nos leva a interrogar se não haverá aqui algum fator cultural.

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Práticas Culturais Vinculadas ao Abuso Sexual

Segundo a OMS, também é considerado como abuso todos os casos em que a criança é vista como cúmplice em situações de violência sexual perpetrados contra ela, a violência sexual nas relações de intimidade, o casamento infantil e, ainda, as práticas culturais danosas, como a mutilação genital (WHO, 2006, citado por Magalhães et al, 2010, p.8). Na perspetiva de Imbamba (2010) a cultura é um pouco como o ar que respiramos: não nos apercebemos da sua existência nem mesmo da sua importância desde que seja sã e exista o suficiente para todos; mas se cheira mal ou começa a escassear, rendemo-nos conta subitamente, da sua importância e necessidade” (p. 113). Na cultura tradicional Bantu, existe a chamada iniciação à vida comunitária que vai dos ritos da puberdade ao simbolismo eficaz da iniciação. Neste caso a iniciação parece-se em muitos aspetos com um sacramento que põe o homem em contacto com o transcendente quer por lhe revelar parte do sagrado, quer porque sacraliza o homem (Altuna, 2014, p. 207). Em muitos grupos, a iniciação feminina faz-se no final da idade infantil. A jovem é desflorada e a rotura do hímen é uma prova da feminidade adulta (Ibidem, p. 296).

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Noutros grupos bantus, a prática de desfloramento mecânica é feita por uma mulher idosa com os dedos ou utilizando um pequeno instrumento. Na Costa ocidental de Africa, as jovens são desfloradas com ajuda de um bambu que conservam dependurado da vagina cerca de três meses. Á volta da vulva, colocam formigas que devoram as ninfas e o clitóris (Ibidem, p. 299). A mutilação genital também é uma realidade entre outros grupos bantus. Na iniciação feminina nandi, acredita-se que o ritual da maturidade, é o limite da infância e a incorporação no estado adulto, acreditam que o órgão sexual é símbolo da vida: cortá-lo é como abrir as comportas da vida para que o seu caudal possa ter livre curso (Ibidem, p. 298). Por conseguinte, o mesmo autor realça que, é o ritual da adolescência que garante a maturação social, “a iniciação é uma escola para a vida, comporta geralmente uma tríplice revelação: do sagrado, da morte e da sexualidade…o iniciado conhece-as, assume-as e integra-as na sua nova personalidade” (Altuna, 2014, p.289). O mesmo autor reforça dizendo que “para os povos bantos, o estupro e o incesto, são nefandos, assim como a fornicação antes da puberdade” (Ibidem p.508). Pimenta (2016) refere que na cultura africana em particular em Angola, o Ngombiri (abusador sexual sobretudo de crianças e jovens), recebe mensagens satânicas para Ngombelar (violar) crianças ou a sua própria mãe, a fim de obter tudo o que pretende, sobretudo meios monetários (p. 27). Segundo a autora, muitos adultos pagam à família o conhecido alambamento, só para obter uma criança que lhe satisfaça os seus caprichos sexuais, mesmo que já tenham uma ou mais esposas adultas, contudo, as crianças “compradas” às famílias não passam de meras vítimas de um sádico-paralítico, um pedófilo liberal, mimado pela lei e muito querido e amado pela cultura (Ibidem, p. 36). Ainda sobre os fatores culturais, alguns estão associados ao desejo de um enriquecimento com recursos a forças mágicas, “um pai sádico resolve ficar rico do dia para a noite, resolvendo então recorrer a um bruxo, que por sinal é outro sádico, para além de cobrar uma quantia monetária, instruir o mesmo a violar o seu próprio filho do sexo masculino, de forma continuada proibindo-o de ir à escola e de contar a quem quer que fosse sob pena de ser morto” (Pimenta, 2016, p. 70). Na cultura africana ainda prevalece a ideia de pagar o kituxi (pagar a multa), quando se pratica atos do género, sobretudo quando se trata de abuso sexual com menores indefesos. Este fenómeno tem sido tão comum e normal que encoraja a práticas de abuso sexual (culturalmente e/ou socialmente impunes) podendo, mesmo em alguns casos, as vítimas sucumbir (Ibidem). JOURNAL OF AGING AND INNOVATION, DEZEMBRO, 2020, 9 (2)  ISSN: 2182-696X  http://journalofagingandinnovation.org/ DOI: 10.36957/jai.2182-696X.v9i3-8

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Em Angola, a iniciação feminina é praticada por vários grupos: Ganguela Tshokwe, Nhaneka-Humbe, Ambó. A rapariga deve ser iniciada quando lhe aparece a primeira menstruação, mas, nalguns grupos são iniciadas antes e noutros só passados dois anos ou mais, ou então associam-nas a um contrato matrimonial. Após a iniciação a rapariga fica apta para o casamento, para a sua missão fundamental: ser mãe. Os rituais da puberdade definem, oficial e publicamente sua capacidade, valor e estima como procriadora-vivificadora porque se transformou (Altuna, 2014, p. 294-296). Com base nesta perspetiva, uma vez que a menarca (primeira menstruação) surge por volta dos 10, 12 ou 14 anos, estaríamos diante de um casamento precoce, cujas responsabilidades impostas, que vão desde a maternidade ao ser dona de casa. O casamento precoce também pode surgir em situações em que houve um abuso sexual, famílias tidas como tradicionais, não admitem que se manche a honra, logo não importa a diferença de idade entre ambos, pois, o casamento seria a resolução para todas as possíveis falácias e julgamento popular. Orientados pelo clã ou soba, a família ora lesada recebe a multa ou dote e entrega a sua filha. Na província de Cabinda, de onde também é típico o povo Bantu, pratica-se o tchikumbi como iniciação feminina de preparação moral, social, cultural e sexual imediatamente após a primeira menstruação, ou seja, entre os 12 e os 15 anos que pode durar de uma semana a três meses (Buza, Canga, António, Sita, Padi, & Buza, 2011 citado por Alves, 2015). Na visão da autora, “existe um costume que prevalece aos olhos de todos e com o consentimento de todos e que é uma prática milenar, e hoje tal como outrora, sem qualquer julgamento ou outro impedimento social: os machistas agarram-se a um casamento fictício para justificar a venda e o tráfico das filhas em troca de dote, o tão conhecido alambamento” (Pimenta, 2016, p. 33). O surgimento de danças tradicionais com estilos sexualizados/eróticos que determinadas crianças aprendem e executam como a conhecida “tarraxinha” ou mais recente o “ pintin”, sem nos esquecermos do famoso “cú duro”, onde a condição cine qua non da dança é a sobrevalorização do “C duro” enaltecido por uma boa gingada, apreciada pelos pais e premiada com aplausos e elogios “o meu filho ou filha remexe bem”, exibidos na maioria das vezes em encontros familiares, pode despoletar na criança um amadurecimento precoce dos estímulos sexuais e favorecer os olhares perversos de predadores.

Considerações finais Por conseguinte, a incidência do abuso sexual em crianças e adolescentes em Luanda sem desprimor ao género e a idade, praticada por pessoas perversas e/ou sádicas, levamJOURNAL OF AGING AND INNOVATION, DEZEMBRO, 2020, 9 (2)  ISSN: 2182-696X  http://journalofagingandinnovation.org/ DOI: 10.36957/jai.2182-696X.v9i3-8

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nos a crer que, é urgente que se faça uma revisão do nosso sistema de Proteção Social e Penal, assim como a responsabilidade parental a imputar. O casamento precoce, algumas vezes é decorrente de um abuso sexual, partindo do princípio de que muitas famílias quando se apercebem de que a menina foi vítima de abuso por um perpetrador identificado, obrigam-na a casar com ele sem ter em conta a idade da menor a sua opinião/preferência e a diferença de idades entre a vítima e o agressor. Logo, a união que se estabelece, acarretará outros danos uma vez que após a conceção do matrimónio estão abertas as portas para a procriação. Como já é sabido, a gravidez na adolescência acarreta inúmeras consequências. Vários estudos já comprovaram que a mesma constitui um risco para a saúde do adolescente e do futuro bebé, assim como vários comprometimentos ao nível psicológico e social. A vítima de abuso sexual precisa de apoio psicológico, médico e jurídico. Por vezes perde-se mais tempo em criminalizar ou culpabilizar, do que em garantir a proteção contra as doenças sexualmente transmissíveis dentre elas o VIH/SIDA, tão frequente em Africa. É também fundamental garantir todo o suporte psicológico ou psiquiátrico aos predadores sexuais com vista a serem reabilitados e reduzirem ao máximo tais práticas. Ter também em atenção que a superproteção da vítima, pode gerar um clima de medo e pânico permanente que acabam por ser prejudiciais a sua saúde mental.

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