A Barca #2

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A BARCA número 02 . 2021 . São Paulo, Brasil

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Este número d’A Barca foi elaborado em circunstância bem específica: temos vivido, desde o início de 2020, a pandemia da COVID-19 e, com ela, um isolamento social voluntário e necessário. Some-se a isso a indignação frente ao contexto social e político que se evidenciou, as perdas e os desafios pessoais decorrentes da situação. Contudo, ao nos vermos imersos numa mesma névoa, percebemos uma condição particular para enredar ainda mais nossas buscas artísticas. Foi dessa atmosfera, densa e opaca, que extraímos a matéria-prima para os 19 ensaios – feitos de imagens e textos – que se apresentam parcialmente nesta publicação. Talvez possamos dizer que cada ensaio seja um relato daquilo que experienciamos, individualmente, em meio à opacidade. Uma espécie de sonho que ganha contornos conscientes ao ser narrado. Quando despertamos de um sonho, ou quando conseguimos abrir frestas no tecido da palidez, tentamos trazer a experiência à consciência. Cada ensaio aqui presente é uma das tantas ficções possíveis que fomos capazes de criar a partir do sonho – ou do pesadelo, ou da névoa –, esse material bruto que é o cerne de um segredo, que guarda a realidade do mundo. Há algo de inquietante, mágico e assustador em se perceber em contato com um segredo. Da natureza das paixões, ele nos atrai vorazmente e nos toma a alma, enquanto, inalcançável, escapa-nos a cada tentativa de aproximação. Não saímos ilesos dos pesadelos e das paixões, muito menos de grandes traumas sociais. Reagimos a eles a curto e a longo prazos. Os autores, pessoas

que respondem transformando toda experiência em processo criativo, registram seu testemunho pessoal e social da crise. Nesse campo da criação não existe regra nem régua qualitativa, mas a pertinência de cada criação. Quando nos deixamos invadir e indignar pelas circunstâncias, quando nos deixamos afetar verdadeiramente, quando estamos de fato imersos no grosso caldo da crise, vemos aflorar em nossas almas questões que nem sempre conhecemos. A arte (ou o sonho), nesse momento, pode vir como resposta à experiência. Pode servir para expressar aquilo que passamos a ver em nós. E serve também para expressar simbolicamente o contexto no qual estamos inseridos. E fazemos isso de forma implícita: não teremos o trauma em si como tema, não o explicitaremos em nossas fotografias; antes, usaremos nossas imagens como documentação poética do resultado do que somos em contato com as condições que se apresentam. Nesta edição assumimos – a partir de fragmentos de nossos ensaios individuais – um relato coletivo do ano de 2020. Narramos nosso sonho compartilhado. Artistas d’A Barca: André Cunha, Beatriz Pontes, Bernardo Dorf, Caio Leão, Daniel Monteiro, Fábio Guarda, Fernando Moussalli, Gi Hasson, Giovana Pasquini, Helena Rios, Juliana Corsi, Leo Tumonis, Lucas B. Pacífico, Marcelo Greco, Márcio Távora, Paola Vianna, Rafael Define, Re’gis de Gasperi, Ricardo Almeida Prado e Leco Jucah (artista convidado para esta edição). Helena Rios e Marcelo Greco

Fevereiro de 2021

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Fotografias que não fiz

Um retrato do meu pai com a mão em frente à boca. Seu olhar, doce e firme, estaria voltado para algo que não seria visto na imagem. A luz suave seria a mesma que iluminava o rosto da minha avó naquela primeira imagem, e talvez percebêssemos alguma semelhança no desenho dos ossos do nariz e da face deles. A mesma beleza. Minha avó, ainda de olhos fechados, apareceria, neste novo retrato, com uma mão masculina sobre sua testa. Os dedos estariam apoiados com a firmeza necessária para sentir sua pele e seus cabelos. O rosto pareceria pequeno quando visto junto àquela mão. Saberíamos de quem seria a mão? Eu mesma não sei. Veríamos o contato físico, a mão que protege, que sente, que conduz. Talvez fossem eles dois ali naquele retrato, minha avó e meu tio, o tio que não estava. Mas só eu saberia dessa ausência presente na imagem. Se tivesse feito este retrato, seria ele a melhor imagem que eu teria feito da morte do meu tio. Talvez me salvasse de todas as outras imagens que fiz da morte dele.

Na primeira, um retrato, minha avó apareceria deitada de olhos fechados, tranquila. Repararíamos em seu nariz, tão bonito. Os ossos do rosto, bem marcados, apareceriam desenhados por uma luz leve, vinda da esquerda. Veríamos um brilho suave nas linhas do maxilar, uma pincelada precisa e mais clara. Ela não estaria sorrindo, teria a boca relaxada. Os cabelos estariam presos para trás, brancos e fortes. Em volta do rosto haveria muitas flores: rosas claras e flores do ipê da casa da minha tia. Talvez percebêssemos na fotografia a textura das pétalas e da pele clara. Vi neste retrato tanta beleza. Era perturbador que a morte pudesse ser tão bonita.

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Meu tio, o tio que estava lá, apareceria imitando o gesto do meu pai. Traria uma das mãos à frente da boca, mas fecharia os olhos. Não sei se perceberíamos neste retrato seu leve sorriso nos cantos dos olhos, um sorriso triste, uma tristeza silenciosa. Os olhos do meu tio sempre sorriem, acho que para não vermos a tristeza. Ele levaria a mão sobre a testa da minha avó. Nas fotografias, como não poderia ser diferente, os gestos se prolongam, as mãos ficam, os beijos ficam.

O último retrato – o rosto da minha avó coberto com um véu – seria o mais importante. O último retrato. Veríamos os pequenos brilhos do véu sobre a pele e sobre as flores. Não alcançaríamos com precisão as formas do rosto por trás da imprecisão. O mistério faria com que misturássemos, ao ver o retrato, aquilo que está dentro de nossos olhos com aquilo que aparece de fato diante deles. Talvez eu transferisse a decisão sobre o que se enxerga para quem visse a imagem. Aquela imensa beleza não seria mais responsabilidade minha. Tivesse feito este último retrato e tal violenta beleza não mais me atingiria.

Beleza que não consegui.

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--- box of illusions

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minha casa são minhas memórias são meus retratos elogios memória e razão

não minha razão

--- desacordo

um palco

illusions and dance so well you dance so well you dance so well the blaze*

-- F. Kafka // então o mundo se apresentará desmascarado

yearning __ beloved /

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RG 2020-06-#254 +3 hc

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Ela é tão envolvente. Aquela delicadeza ao se mover faz meus olhos caminharem para descrevê-la. Pela manhã me cobre o corpo, sobe desde os pés. É para me deixar na boca uns versos poucos, sentir a pele e um sussurro rouco. No meio do dia ela se esquiva entre as cortinas sem nenhuma covardia, como se não quisesse se soltar de mim. Emana radiante por toda a sala um desejo que me encoraja. Dali ela não quer sair, mas isso ela não controla. Mesmo no fim do dia, fazendo mistério ao se esconder por ali e por lá, ela me acompanha entre as paredes até a hora que me deito. As cortinas, nem baixo mais. Para que saiba que suas visitas são essenciais. Que amanheça logo para eu te encontrar.

Aquele jeito que você me toca. Como penso nos seus olhos timidamente me encarando logo ao acordar. Sentado aqui do sofá vejo você movimentando o ar mais que o vento vindo da janela. Os pés se trocam, o corpo balanceia, que leveza. Isso, dance, continue. Os pássaros que antes passavam desapercebidos agora nos acompanham com sua trilha musical. Me convide para dançar. Cruzo de um canto a outro a casa. As janelas estão todas abertas como se ninguém pudesse olhar. As sacadas viraram os olhos pro mundo. Alguém lá de longe também começa a dançar. Já podemos nos encontrar? Presente você sempre está. Logo mais vou te convidar para dançar.

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“Sobre a beleza meu pai sempre explicava: só existe a beleza que se diz. Só existe a beleza se existir interlocutor. A beleza da lagoa é sempre alguém. Porque a beleza da lagoa só acontece porque a posso partilhar. Se não houver ninguém, nem a necessidade de encontrar a beleza existe nem a lagoa será bela.

A beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião com o outro. [...] Todas as lagoas do mundo dependem de sermos ao menos dois. Para que um veja e o outro ouça. Sem um diálogo não há beleza e não há lagoa.”

Valter Hugo Mãe, em A Desumanização, Biblioteca Azul, 2017, p.40 70


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49 - 51

Marcelo Greco - À margem da solidão www.marcelogreco.com

www.fabioguarda.photography

foto@marcelogreco.com 06 - 09

photo@fabioguarda.com

@marcelofotogreco

52 - 53

Leonardo Tumonis - Porto www.tumonis.com

www.vimeo.com/tavora

@leotumonis

marciotavora@hotmail.com

Caio Leão

54 - 56

www.caioleao.com

caioleaoprado@gmail.com 14 -15

bdorf@uol.com.br

André Cunha - Mazemist

58 - 59

at.andrecunha@gmail.com @andrecunhaphoto

jopasquini@gmail.com

Beatriz Pontes

60 - 64

@beatrizpontesimagens

66 - 69

rdefine@gmail.com

Juliana Corsi

@jucorsidias

Leco Jucah

lecojucah75@gmail.com

@rdefine

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Helena Rios - Fotografias que não fiz www.helenarios.com

@lecojucah

Marcelo Greco - À margem da solidão Daniel Monteiro, integrante d’A Barca, não apresentou ensaio nesta edição.

helena.g.rios@gmail.com 26 - 29

@giovanapasquini

jucorsidias@gmail.com

Rafael Define

www.rafaeldefine.com

24 - 25

@bernardodorf

Giovana Pasquini - Metonímia do tempo www.giovanapasquini.com

belatrizpontes@gmail.com

19 - 23

@marciotavora | @estudiotavora

Bernardo Dorf

www.bernardodorf.com

@caioleao

www.andrecunhaphoto.com

16 - 17

@fmguarda | @fabioguardaphotography

Márcio Távora

www.flickr.com/marciotavora

tumonis@gmail.com 10 -13

Fabio Guarda

@helena.g.rios

danielmonteirox@gmail.com

Re’gis de Gasperi - Box of illusions

@danielmonteiro5682

www.regisdegasperi.com regasper@live.com

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@regisdegasperi

A Barca é uma publicação de fotografia, elaborada e distribuída de forma independente. Os fotógrafos d’A Barca são orientados por Marcelo Greco em grupo de estudo sobre Fotografia Autoral.

Giovana Pasquini - Metonímia do tempo www.giovanapasquini.com jopasquini@gmail.com

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@giovanapasquini

Lucas B. Pacífico

@a_barca_fotografia

www.lucaspacifico.fot.br

projeto gráfico e produção gráfica: rios.greco texto p.5: Helena Rios e Marcelo Greco revisão dos textos: Sumaya Lima impressão e acabamento: Coktail Gráfica tiragem: 700 exemplares ISBN: 978-65-992520-1-3 impressão sobre papel Chambril Avena 90gsm

lucaspacifico@gmail.com 36 - 39

@lucaspacifico

Paola Vianna

www.paolavianna.com.br

paola@paolavianna.com.br 40 - 41

@paolavianna

Impresso em São Paulo, BR, em mar/2021

Fernando Moussalli - Cativeiro femoussalli@hotmail.com

42 - 43

parceria para distribuição:

@fernando_moussalli

Gi Hasson

gihasson@icloud.com

44 - 47

@gihasson

Ricardo Almeida Prado - Aspas rcaprado@uol.com.br

@ricardoalmeidaprado

riosgreco.com • @rios.greco.fotografia

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