Revista A3:06

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REVISTA DE JORNALISMO CIENTÍFICO E CULTURAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

Nº06

ABRIL A AGOSTO/2014

ISSN 2317-112X

www.ufjf.br/secom/A3

ESPECIAL

A ciência entra em campo PARQUE TECNOLÓGICO

JARDIM BOTÂNICO

Zona da Mata na rota da inovação

Pesquisas revelam riqueza de flora e fauna

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EDITORIA L

Da pesquisa à patente a UFJF inova na geração de conhecimento O “país do futebol” se prepara para a Copa do Mundo. Hoje, mais do que arte, o futebol é conhecimento. Por isso, nos laboratórios da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisadores se esmeram para responder perguntas que estão mudando o perfil e o treinamento dos atletas, além das táticas de jogo. De paixão, mostramos como o futebol se transformou em pauta acadêmica, objeto de estudo das mais diversas áreas, que pesquisam, com rigor científico, o desempenho dos jogadores e o comportamento dos torcedores. E a matéria de capa desta edição ainda traz surpresas que podem abalar a versão, até então incontestável, de o futebol ter chegado às várzeas tupiniquins pelas mãos de Charles Miller, em 1894. Juiz de Fora pode mudar esta história. Para um país que almeja o crescimento com autonomia, uma palavra foi definitivamente incorporada ao repertório das universidades: inovação. Não se pensa mais apenas em ciência, mas em ciência atrelada à geração de tecnologia. De assunto tabu, o desenvolvimento de produtos e processos destinados a gerar recursos e tornar o país mais competitivo, no cenário global, é hoje o diferencial capaz de inserir definitivamente uma instituição no cenário internacional. A UFJF cresce neste setor e inaugura o Parque Científico e Tecnológico, integrado com o governo e os setores privados, e que já nasce com um desafio: ser reconhecido, até 2023, como o melhor ambiente nacional para o desenvolvimento de negócios inovadores. A UFJF inova também ao investir na consolidação do Jardim Botânico, um grande laboratório ao ar livre, no centro da cidade, que já se destaca por abrigar dezenas de pesquisas sobre espécies animais e vegetais, e propiciar a educação ambiental da população do entorno. Os investimentos realizados para obras como o teleférico e o trenó de montanha vão possibilitar à população em geral usufruir de forma sustentável do espaço, criando um novo destino turístico na região.

Esta edição não poderia deixar de pautar o assunto que foi tema de centenas de matérias na mídia nacional: os 50 anos do golpe militar no Brasil. Neste caso, procuramos privilegiar o olhar regional e interpretar os fatos do passado, que colocaram Juiz de Fora no centro das atenções do país, pelos relatos de pesquisadores que ressignificam a memória a partir de um minucioso trabalho investigativo. A história é dinâmica e sua narrativa compreende disputas de sentido que refletem as batalhas de poder. Se, em 1964, as ruas de Juiz de Fora foram tomadas pelas famílias que saudaram e legitimaram o golpe militar, receosas da ameaça comunista, em plena guerra fria, duas décadas depois, as mesmas ruas foram tomadas pela sociedade civil, que clamava pelo reordenamento institucional, nas campanhas das “Diretas Já”. Em belo ensaio de imagens e texto, contemplamos a realidade captada pela sensibilidade do olhar e a tecitura das palavras, ferramentas indispensáveis ao trabalho jornalístico. Este número ainda traz dados reveladores sobre o crescimento do número de depósitos de patentes, que reitera a política inovadora da UFJF e mostra os novos paradigmas que norteiam a pesquisa institucional. Registramos, também, a criação do Laboratório de Estudos sobre Violência, cuja tarefa é pesquisar e atuar na compreensão deste fenômeno, quase naturalizado no cotidiano urbano. E, entre outros muitos assuntos, ainda mostramos o vigor dos trabalhos produzidos nos nossos Programas de Pós-Graduação. No Programa de Ambiente Construído, uma dissertação de mestrado conta como o crescimento da cidade de Juiz de Fora provocou mudanças no traçado e na relação dos habitantes com o rio Paraibuna, uma referência paisagística da cidade. A tese defendida no Programa da Faculdade de Educação demonstra como o desempenho dos alunos é influenciado por uma boa gestão do ambiente escolar, evidenciando a importância da liderança para mobilizar corações e mentes.

Uma ótima leitura! Christina Ferraz Musse (Editora-chefe)

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ÍND ICE

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www.ufjf.br/secom/A3

REVISTA DE JORNALISMO CIENTÍFICO E CULTURAL DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA REITOR Henrique Duque de Miranda Chaves Filho VICE-REITOR José Luiz Resende Pereira CONSELHO EDITORIAL Alexander Moreira (Faculdade de Medicina) Cristhiane Flôr (Faculdade de Educação) Cristiano José Rodrigues (Faculdade de Comunicação) Edimilson de Almeida Pereira (Faculdade de Letras) Heloísa D’Avila (Instituto de Ciências Biológicas) João Queiroz (Instituto de Artes e Design) Marcelo do Carmo (Instituto de Ciências Humanas) Paulo Monteiro Vieira Braga Barone (Instituto de Ciências Exatas) Paulo Nepomuceno (Faculdade de Engenharia) Paulo Roberto Figueira Leal (Faculdade de Comunicação) Robert Willer Farinazzo Vitral (Faculdade de Odontologia) Suzana Quinet (Faculdade de Economia) COMISSÃO EDITORIAL Anne Marie Autissier (Universidade de Paris VIII) Antônio Fernandes de Carvalho (Universidade Federal de Viçosa) Cícero Inácio da Silva (Software Studies no Brasil) Cláudio Soares (Fapemig) Frederic Guerrero-Solé (Universidade Pompeu Fabra-Espanha) Jorge Mtanios Iskandar Arbach (Professor convidado do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFJF) Luiz C. Wrobel (School of Engineering and Design - Brunel University - Middlesex, UK) Luis Felipe Feres Pereira (University of Wyoming – USA) Márcio Simeone Henriques (Universidade Federal de Minas Gerais) Sofia Gaio (Universidade Fernando Pessoa - Portugal) EXPEDIENTE Editora-chefe Christina Ferraz Musse Editora Oseir Cassola Reportagens Bárbara Duque; Carolina Nalon; Fernando Lobo; Flávia Lopes; Fred Belcavello; Raul Mourão; Zilvan Martins Colaboradores Alessandra Brum; Daniella Aguiar; Glauco Moreira de Moura; Haruf Espíndola; Iacyr Anderson Freitas; João Queiroz; Jorge Arbach; Julia Castro Mendes; Márcio de Paiva Delgado; Ricardo Lopes; Rodrigo Barbosa; Valéria Faria Coordenação de Criação Fred Belcavello Fotógrafos Bruno Corrêa Barbosa; Márcio Brigatto; Stefênia Sangi; Natália Ferreira Ilustração Cléber “Kureb” Horta; Raniel Andrade; Zé Zorzan Marketing Valéria Borges Costemalle Projeto Gráfico Cléber “Kureb” Horta Revisão Rafael Costa Marques Produção Juliana Araújo; Taís Marcato

ISSN 2317-112X

REVISTA A3 Rua José Lourenço Kelmer, s/n – Campus Universitário Bairro São Pedro – CEP: 36036-900 - Juiz de Fora - MG Telefones: (32) 2102-3967 / 3968 / 3997 E-mail: revistaa3@secom.ufjf.br Impressão: Gráfica e Editora Brasil Tiragem: 10 mil exemplares

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6 - VOZ DO LEITOR

O Pórtico Norte da UFJF em dia de chuva, do professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Ricardo Lopes, ilustra o espaço destinado aos leitores

7 – PESQUISA

Para conciliar conservação e preservação de recursos naturais com atividades para alunos e população, a UFJF adquiriu, em 2010, 845 mil metros quadrados de vegetação remanescente da Mata Atlântica. Desde então, o Jardim Botânico reúne pesquisadores cujos trabalhos – de flora, fauna e recursos hídricos – traçam panorama geral da mata e servem de base para novas pesquisas e ações a serem implantadas

15 – INOVAÇÃO

A UFJF demonstra com índices o sucesso da diretriz estabelecida de produzir conhecimento de forma conectada com o mercado e com a sociedade. Nos últimos cinco anos, o número de depósitos de patentes saltou de 7 para 74

18 – PESQUISA

Estudos desenvolvidos por pesquisadores da Pós-graduação em Ciências Biológicas mapeiam recursos genéticos da erva cidreira. Principalmente, o gênero Lippia alba, que possui grande riqueza química e farmacológica, sendo uma das espécies medicinais mais utilizadas pela população brasileira

21 – PESQUISA

A disparada dos índices de violência em Juiz de Fora motivou a criação do Laboratório de Estudos sobre Violência, sediado no Centro de Pesquisas Sociais da UFJF. Os trabalhos terão início por meio de um Observatório sobre a Violência que reunirá e analisará os registros de polícias e as informações sobre políticas e serviços públicos do município

24 – TESES

A intensa participação de um diretor no dia a dia da escola é fator crucial para a aprendizagem do aluno. O fato foi comprovado em tese defendida na Pós-graduação em Educação da UFJF por Anderson Córdova Pena. O estudo foi realizado em colégios da rede pública estadual de Minas Gerais


ÍNDICE 28 – MEMÓRIA

Há 50 anos um golpe militar calava o país. O doutor em História Márcio de Paiva Delgado analisa os argumentos utilizados pelos golpistas para a quebra da democracia no Brasil. E o também doutor em História Haruf Espíndola aborda os conflitos em Governador Valadares, que registrou a primeira morte antes mesmo de o golpe ser deflagrado em 31 de março

32 – ESPECIAL

55 – ARTE

Artigo assinado pelo professor do Instituto de Artes e Design João Queiroz e pela pós-doutoranda em Letras Daniella Aguiar aborda a invenção e a descoberta de novos processos de linguagem

56 – LANÇAMENTOS

Confira boas dicas de leitura entre os lançamentos da Editora UFJF

57 – LITERATURA

No artigo “O Holocausto Brasileiro: 60 mil mortes em Barbacena”, o advogado Glauco Moreira de Moura, enfoca a obra da jornalista Daniela Arbex que desvendou o sofrimento de milhares de famílias, colocando em xeque o tratamento psiquiátrico no Brasil

58 – CINEMA

“Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo”, primeiro longa-metragem de ficção do professor do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF, Luís Rocha Melo, é desvendado pela também docente do IAD, Alessandra Brum

59 – ENSAIO FOTOGRÁFICO

No país do futebol e da Copa do Mundo, a ciência também quer dar olé. Professores, alunos e treinadores são escalados para investigar desde o índice de aproveitamento da bola lançada pelo goleiro e o perfil do jovem jogador à influência da maturação biológica na conquista de prêmios. Os estudos integram as mais de 50 produções científicas na UFJF

40 – DESENVOLVIMENTO REGIONAL

O Parque Científico e Tecnológico da UFJF se tornou realidade em 2014 com o início das obras de infraestrutura. Previsto para começar a operar no primeiro trimestre de 2015, colocará a Zona da Mata Mineira no mapa da inovação

46 – ENCONTROS POSSÍVEIS

Em passagem recente pelo Brasil, a chefe do Departamento de Cultura, Mídia e Indústrias Criativas da King’s College de Londres, Anna Reading, conversou com a “A3” e expôs conceitos e pesquisas que fundamentam a discussão acerca da memória na atualidade, em face do contexto digital

Nas ruas de Juiz de Fora (MG) o povo fez história. E na década de 80 explodiu em inúmeras manifestações. O secretário-adjunto de Comunicação da UFJF, Rodrigo Barbosa, revela como o jornalista e poeta da imagem, Humberto Nicoline, registrou estes momentos

66 – LEIA-ME

O poeta, ensaísta e contista Iacyr Anderson Freitas presenteia os leitores com uma de suas obras: “Tamanhos rigores”

50 – DISSERTAÇÕES

Trabalho defendido no Programa de Pós-Graduação em Ambiente Construído da UFJF resgata as modificações realizadas no trajeto do rio Paraibuna através dos séculos

54 – INICIAÇÃO CIENTÍFICA

Para contrariar a máxima de que engenheiros não dominam o português, o Grupo de Educação Tutorial (GET) do curso de Engenharia Sanitária e Ambiental lançou um desafio a seus estudantes: um concurso de Redação. Confira o texto vencedor

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Voz do Leitor

A aquarela sobre papel retrata o Portão Norte da UFJF, criação do professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da instituição, Ricardo Lopes. A obra tem 25cm x 17cm e foi realizada em dezembro de 2013

Esta seção é reservada para ser o seu espaço. Contribua para que aprimoremos a nossa publicação. Envie sugestões, críticas e temas de pesquisas, dissertações e teses que gostaria de ver nas nossas páginas. Também abrimos espaço para trabalhos autorais, desenhos e fotos. Aguardamos a sua contribuição. E-mail: revistaa3@secom.ufjf.br

EXEMPLO EDITORIAL

CONTRIBUIÇÃO

“A revista ‘A3’ é um excelente exemplo editorial de como podemos mesclar jornalismo cultural e científico. Por esta razão, tenho utilizado a revista como material de estudo dentro da disciplina Jornalismo Cultural na UFRJ, mostrando também para os alunos como um produto em suporte tradicional (impresso) migra para a internet de forma inovadora a partir de uma edição que permite as duas visualidades: no impresso e no on-line. Por esta razão, ela é sempre mostrada aos alunos como um bom exemplo de um excelente produto de jornalismo, cultural ou científico não importa, mas sobretudo jornalismo.”

“Agradecemos o envio do exemplar nº 5 e aproveitamos para afirmar que, com certeza, nossa instituição de ensino beneficiou-se da contribuição intelectual dessa prestigiada universidade.”

Marialva Barbosa (professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ)

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A3 - AbrilaaAgosto/2014 A3-Abril Agosto/2014

Toivi Masih Neto (diretor geral do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará Campus de Acaraú)

A fotomontagem digital, que ilustra a 4ª Capa, é criação da fotógrafa, artista plástica e docente do Instituto de Artes e Design da UFJF, Valéria Faria. A inspiração é uma janela do Forum da Cultura, importante espaço cultural da instituição


PES QUISA

Pesquisas revelam riqueza de flora e fauna

Diretrizes do espaço preveem apoio a atividades de ensino e extensão, conservação de espécies ameaçadas de extinção e promoção de ações de educação ambiental

Foto: Roberto Dornelas

Flávia Lopes Repórter

Com 845 mil metros quadrados e considerado um dos fragmentos urbanos da Mata Atlântica de maior dimensão, o Jardim Botânico foi adquirido pela Universidade em 2010

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ma das principais reservas com vegetação remanescente da Mata Atlântica da região, o Jardim Botânico tem sido alvo de relevantes estudos realizados por alunos e pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) na tentativa de mapear o espaço e conhecer um pouco mais sobre a diversidade da área, localizada na região central de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Com 845 mil metros quadrados e considerado um dos fragmentos urbanos de maior dimensão, foi adquirido pela Universidade em 2010, com a proposta de conciliar conservação e preservação dos recursos naturais com atividades lúdicocientíficas para alunos e para toda a população. Desde então, esse laboratório vivo tem reunido inúmeros pesquisadores cujos trabalhos iniciais que contemplam flora, fauna e recursos hídricos - traçam um panorama geral da mata e servem de base para novas pesquisas e ações a serem implantadas. Dezenas de estudos já foram

desenvolvidos por pesquisadores vinculados à UFJF e alguns deles podem ser conferidos nesta reportagem. Segundo a pró-reitora de Pesquisa da UFJF, Marta D’Agosto, trata-se de uma Área de Especial Interesse Ambiental que poderá ser amplamente estudada. “A grande diferença entre um jardim botânico e um parque é que o jardim botânico é um local de estudo. Todas as unidades poderão desenvolver atividades importantes lá, não apenas as ligadas às ciências biológicas.” Ainda de acordo com a pró-reitora, as diretrizes do espaço preveem a realização de estudos e pesquisas sobre flora e fauna, apoio a atividades de ensino, pesquisa e extensão e conservação de espécies ameaçadas de extinção, além de promoção de ações de educação ambiental. “É um grande laboratório ao ar livre.” Para a professora do Departamento de Botânica da UFJF, Fátima Salimena, os estudantes serão os maiores beneficiados, principalmente os da

graduação ou da pós-graduação envolvidos com trabalho de campo e atividades reais em meio à natureza. “Os alunos poderão contar com um campo real de estudo, ampliando, assim, sua grade curricular.” O envolvimento da comunidade do entorno é a principal aposta do também professor do Departamento de Botânica da UFJF, Daniel Pimenta, para a preservação. “Acredito que o melhor segurança será aquele que foi conscientizado. Acho, inclusive, que esse é o principal motivo da implantação do Jardim Botânico: contribuir com a mudança de cultura de explorativa/consumista para a preservacionista/integrativa. Temos que mostrar à comunidade universitária e a toda a população que ali não é um parque, e sim uma área de aprendizado. Temos que estar conscientes de como conciliar desenvolvimento tecnológico com preservação da natureza.”

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P E S Q UI SA

LAZER E EDUCAÇÃO AMBIENTAL O interesse por parte da Universidade em adquirir a área veio em função do envolvimento de vários setores da sociedade civil organizada, juntamente com ambientalistas, que lutavam contra a instalação de um empreendimento imobiliário no local. Segundo o reitor Henrique Duque, com a aquisição do Jardim Botânico, a UFJF possibilitará o melhor aproveitamento do espaço por toda a comunidade. ”Nosso papel foi resgatar esse local que é considerado o pulmão de nossa cidade. Além das atividades de pesquisa e extensão, esperamos criar uma importante área de turismo e lazer no município.” A partir da aquisição, um amplo trabalho para traçar diretrizes de intervenção e adequação da infraestrutura do Jardim Botânico começou a ser executado. Recentemente, recursos de R$ 36 milhões foram anunciados pelo reitor para contemplar obras e transformar o espaço em

CAMALEÃO, JARARACA E FALSA CORAL Há relatos de que os antigos donos do Sítio Malícia, área onde está situado hoje o Jardim Botânico, encomendaram da África dezenas de serpentes conhecidas como mambas negras para assustar e espantar eventuais indivíduos que invadiam o espaço para caçar, pescar ou retirar a vegetação do local. Lenda ou não, o fato é que os donos do imóvel não precisariam buscar os animais tão longe. Segundo estudo desenvolvido pela então bolsista de iniciação científica do Departamento de Zooologia da UFJF e hoje mestranda em Ecologia pela mesma instituição, Pilar Cozendey, há no Jardim Botânico pelo menos quatro espécies de serpente, como jararaca, cobra cipó, falsa coral e cobra d’água, encontradas durante estudo realizado entre 2010 e 2011. Orientada pela professora do Departamento de Zoologia da UFJF, Bernadete Maria de Sousa, a estudante buscou, em sua pesquisa, inventariar a fauna de répteis presentes no Jardim Botânico a fim de criar um mapa de distribuição de espécies na área. Mam-

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uma grande área de estudo e lazer, estimulando o turismo regional. Além de obras civis, que incluem criação da casa autossustentável, laboratórios, restaurante e todo o paisagismo do local, os investimentos também preveem a instalação de um teleférico, que conduzirá ao mirante e de um trenó de montanha, que percorrerá a área preservada, possibilitando o acesso de visitantes e facilitando o trânsito de pesquisadores. Os recursos foram aplicados na recuperação de uma área de degradação existente no local (voçoroca), cujos trabalhos já foram concluídos. Segundo a pró-reitora de Pesquisa, Marta D’Agosto, também está prevista a construção de borboletário, sauvópolis (permitirá a visualização de colônias de formigas), bromeliário, orquidário, deque na margem do lago, viveiro de mudas, salas de aula e quiosques. “Com a aqui-

sição, a UFJF garante a utilização do espaço para toda a comunidade para lazer, cultura e educação ambiental.” Um dos arquitetos responsáveis pela elaboração do projeto, o professor do curso de Arquitetura e Urbanismo, Klaus Chaves Alberto, explica que todas as intervenções buscaram conciliar as demandas da visitação à necessidade de preservação do meio ambiente. “Ao buscarmos um trajeto para o teleférico, optamos por aquele que causaria o menor impacto ambiental possível. No caso do trenó de montanha, o baixo impacto ao meio ambiente se dá pela flexibilidade do meio de transporte, que acompanha a topografia local e não pede intervenções no terreno. O trenó também não utiliza combustíveis fósseis, o que é importante.” O espaço tem projeto paisagístico do escritório Burle Marx.

bas negras, no entanto, não foram encontradas. Durante as coletas, Pilar reuniu 19 exemplares de répteis. Entre os lagartos foram capturados oito de camaleão (ou lagarto-verde) e um de lagarto. As coletas foram realizadas semanalmente e as capturas foram possíveis por meio de de três conjuntos de armadilhas instalados em pontos estratégicos no Jardim Botânico: lago central, ponto intermediário da mata e ponto mais alto do sítio. “Curiosamente, o local onde encontramos mais espécies foram nas duas áreas mais próximas da casa. Como o Jardim Botânico será aberto à visitação pública, estes dados já podem configurar como base para elaboração de estratégias educativas e subsidiar novas pesquisas sobre a área e região e sobre as espécies que se destacarem no estudo.”

florestal do espaço já está rendendo frutos. Mais de oito mil árvores estão catalogadas e são monitoradas permanentemente por um grupo de pesquisadores liderado pelo professor do Departamento de Botânica, Fabrício Alvim Carvalho. Segundo ele, os trabalhos na mata começaram em 2010 e, neste período, foram reconhecidas mais de 300 espécies. No levantamento, o que causou maior curiosidade foi o fato de a espécie com maior predominância ser a do palmitojuçara, ameaçada de extinção e uma das mais valorizadas no mercado. Foram contabilizados quase mil pés. Além disso, há uma grande área com presença de pés de café sob a floresta, várias espécies de madeira de lei e pelo menos seis ameaçadas, como jequitibá, jacarandá da Bahia, ipê amarelo, canela, braúna e cedro. “O que verificamos nessa vegetação foi um grande potencial de regeneração da Mata Atlântica nos últimos 80 anos. O número de espécies encontradas é considerável se pensarmos no fato de este fragmento florestal estar localizado na área urbana de Juiz de Fora e já ter sido explorado.” Ainda conforme Carvalho, a tendência no local é de avanço da floresta. Ele também estuda a possibilidade de criação de um horto, para ampliar o plantio de vegetação nativa na região.

MAIS DE OITO MIL ÁRVORES CATALOGADAS Um estudo que procura investigar a estrutura e a diversidade da flora do Jardim Botânico como subsídio para restauração e conservação


PES QUISA

Das espécies capturadas pelo pesquisador Michel Carneiro Delgado, cinco são raras na Mata Atlântica

DEZ ESPÉCIES DE MAMÍFEROS Mensurar a comunidade de pequenos mamíferos não voadores presentes no Jardim Botânico foi o objetivo do estudante Michel Carneiro Delgado, orientado pelo professor do Departamento de Ciências Naturais da UFJF, Pedro Henrique Nobre. Entre junho de 2012 e julho de 2013, o pesquisador realizou, para o levantamento, 48 dias de coleta. Ao todo, foram capturados 87 pequenos mamíferos distribuídos em dez espécies, sendo seis delas de roedores de pequeno porte. Mas também foram encontrados cachorro-do-mato, lobo-guará, furão-grande, lontra, quati, gato-mourisco, bugio, micoestrela, sauá, porquinho-da-Índia, capivara, paca e cutia. Segundo o pesquisador, cinco destas espécies são sabidamente raras na Mata Atlântica e também se mostraram raras no Jardim Botânico, como a cuíca-de-três-listras (Monodelphis) e o rato-do-mato-ruivo (Rhagomys rufescens). Além disso, a presença de algumas espécies de mamíferos de médio e grande porte ameaçadas destaca a importância da preservação do fragmento do Jardim Botânico, como lontra, bugio,

paca e cutia. “O rato-do-mato (Akondon) foi a espécie mais abundante neste estudo, representando 68% do total de animais capturados.” Ainda de acordo com Delgado, por serem muito dependentes de micro-habitats específicos, as espécies de pequenos mamíferos não voadores são sensíveis a pequenas mudanças no ambiente natural, sendo assim boas indicadoras da qualidade dos habitats remanescentes. A pesquisa, defendida em fevereiro deste ano, apontou ainda que este padrão de preponderância de pequenos roedores pode ser consequência da ação antrópica dentro do fragmento. Como medidas de preservação, o graduado propõe ações de educação ambiental com a população do entorno e o estabelecimento de um corredor ecológico entre fragmentos vizinhos. “Esses animais compõem a base da cadeia alimentar dos vertebrados de maior porte. Há estudos que mostram que cães são responsáveis pelo extermínio de cerca de 70% da fauna de fragmentos florestais. Há muitas residências no entorno do Jardim Botânico, e foi constatada a presença de cães e gatos invadindo a área do estudo. Ainda conforme o pesquisador, é preciso uma estratégia imediata de ação junto à comunidade do entorno do Jardim Botânico. “Temos que minimizar o número de animais domésticos circulando dentro da floresta e estabelecer uma parceria com o Centro de Controle de Zoonoses para conter e capturar cães que sejam encontrados.” A pesquisa foi financiada pela empresa Hiperroll Embalagens, por meio de passivo ambiental.

CONHECIMENTO POPULAR E PRESERVAÇÃO Aliar conhecimento popular e educação ambiental e integrar a população do entorno do Jardim Botânico para ajudar a preservar a área foi justamente o objetivo do estudo desenvolvido pelo atual doutorando em Ecologia pela UFJF, Bruno Esteves Conde, sob orientação do professor do Departamento de Botânica da UFJF, Daniel Pimenta. A partir dos preceitos da etnofarmacologia - ciência que estuda o conhecimento popular sobre as plantas medicinais -, o pesquisador realizou um trabalho de aproximação com os moradores dos bairros Santa Terezinha, Nossa Senhora das Graças, Eldorado, Alto Eldorado e Vista Alegre, na Zona Leste de Juiz de Fora e que integram o entorno no Jardim Botânico, a fim de averiguar se o conhecimento cultural coincidia com o científico em relação a determinadas plantas. O trabalho também procurou mensurar o interesse da população em participar de projetos no espaço. A3 - Abril a Agosto/2014

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foto: Bruno CBarbosa

P E S QUISA

Trinta e cinco espécies de vespas sociais foram catalogadas pelo pesquisador Bruno Corrêa Barbosa

O pesquisador visitou 303 casas na região e procurou, com a pessoa mais velha de cada residência (e capaz de influenciar os demais membros da família) que as plantas medicinais utilizava e em quais situações, e se haveria interesse em participar de um horto medicinal no Jardim Botânico. “Constatamos que 90% dos entrevistados utilizam plantas medicinais, mas percebemos que esse tipo de conhecimento sobre o uso de plantas terapêuticas muitas vezes vem deixando de ser repassado.” A pesquisa levantou 103 plantas do conhecimento popular, mas três delas foram citadas por todos os entrevistados e foram estudadas mais a fundo: hortelã, assapeixe e algodão. “Ao compararmos com a literatura científica, algumas pessoas faziam o uso incorreto da hortelã, por exemplo, ao administrá-la como calmante (a planta é estimulante).” O pesquisador também constatou o grande interesse da população em participar da implantação e da manutenção do horto. “Ele poderá funcionar como fonte de plantas medicinais e de resgate cultural, ao mesmo tempo em que tornará possível a disseminação de educação ambiental e conservação do espaço.”

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VARIEDADE DE INSETOS SURPREENDE O Jardim Botânico da UFJF abriga pelo menos 35 diferentes espécies de vespas sociais. Isso é o que apontou um dos estudos desenvolvidos no âmbito do mestrado em Ciências Biológicas Comportamento e Biologia Animal, desenvolvido pelo pesquisador Bruno Corrêa Barbosa. O número foi considerado grande na comparação com outros parques de Minas Gerais, com a diferença de que o Jardim Botânico é um fragmento relativamente pequeno e situado em área urbana, mais suscetível à ação antrópica. O maior número de espécies registrada em estudos em Minas Gerais foi de 43 no Parque Estadual do Rio Doce, no Vale do Aço, próximo a Timóteo, e 42 na Mata do Baú, em Barroso, em área rural. O trabalho foi realizado entre 2011 e 2013 e foram identificadas mais de 300 colônias de

vespas. As coletas foram realizadas uma vez por mês com diferentes metodologias. A partir do estudo, o aluno está identificando as preferências de nidificação (construção de ninhos) das vespas no ambiente, pretendendo saber se há uma preferência entre as vespas e as plantas. “Para fragmentos urbanos, o que encontramos no Jardim Botânico foi o maior registro de espécies”, explica Barbosa. Entre os mais frequentes no local estão os marimbondos tatu, chapéu, chumbinho, caboclo e cavalo. “Além de relatar a riqueza de espécies do local e hábitos de nidificação, minha dissertação discutirá a diferença de espécies que habitam alturas diferentes da floresta, onde comparo o sub-bosque e dossel (resultado das sobreposição de galhos e folhas das árvores).” Outro estudo, que está sendo desenvolvido pela estudante Tatiane Tagliatti em sua graduação, mapeou borboletas e mariposas. Em cinco coletas, recolheu 142 borboletas e mariposas, totalizando 60 morfotipos diferentes que serão analisados posteriormente. “Em trabalhos similares, em Belo Horizonte (MG), foram encontradas 50 espécies incluindo borboletas e mariposas. Espero que o número encontrado no Jardim Botânico seja bem significativo.” O traba-


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lho de Tatiane estava previsto para terminar em março de 2014 e dará origem ao seu projeto de mestrado. Interação entre vespas sociais e bromélias foi o tema da pesquisa da aluna Marcelle Leandro Dias que cursa mestrado em Comportamento Animal na UFJF. A ideia de estudar o tema surgiu a partir de sua monografia de conclusão do curso de Ciências Biológicas também na UFJF. “Encontrei muita nidificação de vespas embaixo das folhas das bromélias e procurei aprofundar para ver se essas vespas utilizavam os recursos florais das bromélias.” A estudante encontrou três espécies de vespas e outros três registros fotográficos de diferentes espécies em três tipos de bromélias diferentes (portea e uma espécie noturna cuja floração só ocorre à noite). Segundo a mestranda, a maior parte foi encontrada nas folhas secas da bromélia, já que pássaros e outras espécies de animais utilizam a água para se alimentar e acabam predando as larvas. Mas ela também descobriu uma espécie mimetizando folhas verdes o que causou surpresa. “É possível que tenham desenvolvido esse mimetismo devido à maior resistência das folhas verdes.”

“A grande diferença entre um jardim botânico e um parque é que o jardim botânico é um local de estudo. Todas as unidades poderão desenvolver atividades importantes lá” (Marta D’Agosto, pró-reitora de Pesquisa)

ABELHA SOLITÁRIA

Tatiane Tagliati recolheu 142 borboletas e mariposas em cinco coletas, totalizando 60 morfotipos diferentes que serão analisados posteriormente

Avaliar as abelhas e seu processo de construção de ninhos foi o objetivo da mestranda em Comportamento Animal Karine Munck, cuja pesquisa também se encontra em andamento. O plano é examinar diversidade e abundância das espécies de abelhas e vespas que nidificam (constroem seus ninhos) em ninhos armadilha (construídos pela pesquisadora em bambus e garrafas PET) e abelhas em ninhos naturais em ambiente mais e menos influenciados pela atividade humana. Para isso, foram pesquisados diferentes espaços A3 - Abril a Agosto/2014

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P E SQUI SA

Marconi Fonseca de Moraes e Renata de Oliveira Pereira em um primeiro momento, analisaram as características físicas do lago para identificar quais seriam os pontos importantes para o estudo qualitativo e quantitativo da água

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PES QUISA

no Jardim Botânico: a área de visitação, que conta com construções e atividade de pessoas e veículos, e a trilha no interior da mata, com grande variedade de árvores de médio e grande porte, sem interferência humana relevante. Até fevereiro de 2014, foram retirados 33 ninhos armadilha, sendo que, dentre esses, 16 tiveram insetos emergentes e 17 permanecem fechados, dentro de garrafas PET. Foi localizado apenas um ninho de abelha solitária, da tribo Euglossinae (Hymenoptera, Apidae), que nidificou em tubo de bambu. Já nos ninhos naturais, a mestranda encontrou 28 ativos, 19 em ambiente antrópico (11 em muro de pedra, cinco em cimento, dois em árvores, um em barranco). Os outros dez localizados dentro de trilhas mais preservadas, todos em troncos de árvores. “O fato de os ninhos de abelhas terem sido encontrados em maior número, perto da área mais antrópica fugiu um pouco do esperado, pois achava que ia encontrar mais nas trilhas de mata fechada.” Segundo Karine, o fenômeno é compreensível e ela aponta algumas hipóteses. “Pode estar relacionado à disponibilidade de substratos adequados à nidificação nesses ambientes, como parede, muro de pedra. Além disso, os locais mais preservados são mais fechados, sendo que as abelhas preferem lugares mais descampados para realizar seus voos.” Conforme o professor do Departamento de Zoologia e coordenador das pesquisas acima, Fábio Prezoto, os estudos começaram há três anos e foram conduzidos no sentido de conhecer o cenário na mata a fim de nortear melhor os estudos na área. De acordo com ele, para qualquer um dos grupos existe grande representação na área do Jardim Botânico. “Fazemos um trabalho de monitoramento constante para identificar, convergir os estudos para o conhecimento da população e ajudar a divulgar o espaço. O Jardim Botânico abre possibilidades para muitas outras áreas e são fundamentais para pesquisas: todos os trabalhos darão origem a dissertações.”

“Temos que estar conscientes de como conciliar desenvolvimento tecnológico com preservação da natureza” (Daniel Pimenta, professor do Instituto de Ciências Biológicas)

QUALIDADE DA ÁGUA DOS LAGOS Monitorar qualitativamente e quantitativamente os recursos hídricos disponíveis no Jardim Botânico e incentivar o planejamento conservacionista do local é o que pretendem os pesquisadores do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFJF, Marconi Fonseca de Moraes e Renata de Oliveira Pereira, contribuindo para a gestão sustentável do espaço. O lago do Jardim Botânico é um importante recurso hídrico da região por ser afluente à margem esquerda do rio Paraibuna, que por sua vez é afluente, também à margem esquerda, do rio Paraíba do Sul. Segundo Moraes, em um primeiro momento, o estudo analisou as características físicas do lago e do seu entorno para identificar quais seriam os pontos importantes para o estudo qualitativo e quantitativo da água. “Acreditamos que realizar esse monitoramento é essencial para o controle dos recursos hídricos do espaço.” Ainda conforme o pesquisador, quantitativamente foram analisadas as vazões do vertedouro (estrutura utilizada para medição de vazão). Qualitativamente foram definidos seis pontos em locais diferentes no lago para coletas mensais de água, com as quais foram analisados parâmetros de temperatura; oxigênio dissolvido; potencial hidrogeniônico (pH); cor; turbidez; condutividade elétrica; e demanda bioquímica de oxigênio. Já para mensurar a vazão do lago foram efetuadas medições diárias, de segunda-feira a sábado, no mesmo período. Segundo os resultados do estudo, apesar de não se ter observado fonte de poluição antrópica durante o período de monitoramento, ao comparar os resultados com o padrão do grupo das águas doces (de classe 1) estabelecido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama 357/05), é possível perceber que alguns parâmetros não atenderam a todas as exigências. De acordo com Renata, os níveis foram satisfatórios em certos períodos do ano e em certos pontos do lago. Em uma determinada parte do lago monitorada na pesquisa,os parâmetros oxigênio dissolvido e a demanda bioquímica de oxigênio não se encontravam de acordo com os padrões estabelecidos na referida norma. O oxigênio dissolvido é essencial para a sobrevivência das espécies aquáticas. Já a demanda bioquímica de oxigênio é a quantidade de oxigênio necessária para oxidar a matéria orgânica biodegradável presente na água. Contudo, segundo o estudo, com a aeração que ocorre na saída do lago, o oxigênio dissolvido es-

taria dentro dos padrões em 60% das amostras. Os elevados valores de demanda bioquímica de oxigênio encontrados são provenientes de material orgânico de origem vegetal e não de origem antrópica. “Muitas alterações ocorreram em função da condição de estagnação da água. Vamos continuar os estudos para verificar se com a ação antrópica no local teremos alguma mudança”, explica Renata. Já a vazão média total variou, segundo Moraes, com o aumento e a diminuição da precipitação (intensidade de chuva) apenas nos 90 dias iniciais de análise. “Isso não pode ser verificado nos outros meses, pois foi feita apenas uma medida a cada dia no período de segunda a sábado, e nem sempre feitas após a precipitação.”

“Os alunos poderão contar com um campo real de estudo, ampliando, assim, sua grade curricular” (Fátima Salimena, professora do Instituto de Ciências Biológicas)

CONTROLE DE CARRAPATOS Outro estudo, liderado por pesquisadores Erik Deamon e Marta D’Agosto, do Departamento de Zoologia, realiza um biomonitoramento de carrapatos. Segundo Daemon, havia uma indicação prévia de que tinha uma quantidade grande desses animais atacando as pessoas que frequentavam o espaço. Situação que poderia significar um risco, já que existe uma fauna muito grande de capivaras, que são reservatório do agente causador da febre maculosa. “O carrapato pode transmitir a doença ao humano, se estiver infectado.” Diante desse cenário, os pesquisadores propõem ações preventivas para formular a proposta de controle dessa população. Iniciado em agosto de 2013, o trabalho ainda está em andamento. O objetivo é realizar dois anos de coletas mensais no entorno do lago, onde se concentra a maior população de capivaras. “Conforme esperado, estamos encontrando uma quantidade bem significativa de carrapatos. Uma análise preliminar indica que há predominância da espécie que pode transmitir a bactéria causadora A3 - Abril a Agosto/2014

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INOVAÇÃO

da febre maculosa, o carrapato-estrela. Mas os estudos ainda são bastante iniciais.” A partir dos resultados, a intenção é propor medidas de controle. Atuam no projeto três alunos de doutorado de Ciências Veterinárias da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), parceria da UFJF neste estudo. Além de dois alunos de graduação da UFJF. “A febre maculosa não é uma doença com altas taxas de mortalidade, mas o diagnóstico impreciso pode levar a sérias complicações para humanos”, ressalta Daemon.

“Caso haja uma diminuição da população dos polinizadores, os beija-flores, as espécies de bromélias também podem estar ameaçadas” (Ana Paula Gelli, professora do Departamento de Botânica)

REPRODUÇÃO DE BROMÉLIAS

Entre 2011 e 2013, foram identificadas mais de 300 colônias de vespas

MAIS Regimento do Jardim Botânico bit.ly/A3_RegimentoJB Vídeos do projeto Etnofarmacologia no Jardim Botânico Bit.Ly//enotofarmacologiampicb

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Estudo liderado pela pesquisadora do Departamento de Botânica, Ana Paula Gelli, pretende identificar o mecanismo de reprodução de diferentes espécies de bromélias. Para isso, a professora buscou a observação de diferentes ações antrópicas como influenciadores nos mecanismos reprodutivos das espécies e se as áreas preservadas tinham um maior sucesso reprodutivo.

Ao procurar o tipo de sistema reprodutivo de cada uma das espécies, verificou quais necessitam de animal polinizador e se em áreas menos conservadas haveria mudança nesse quadro. O levantamento, que teve início em 2010, apontou que a maior parte das espécies pesquisadas precisam de um polinizador, e o beija-flor é o principal agente. Essa característica foi verificada entre dez espécies de bromélias pesquisadas. A única espécie que se mostrou diferente foi aquela cuja floração ocorre à noite, sendo a polinização realizada por morcegos. “Esses resultados apontam um importante quadro, pois caso haja uma diminuição da população dos polinizadores, os beija-flores, as espécies de bromélias também podem estar ameaçadas.” Além disso, ela verificou que cada espécie possui uma época de floração diferente ao longo do ano, o que é essencial para a manutenção das aves no local. “É garantia de alimento para esses animais.”

DESCOBERTA DE UM GÊNERO NOVO Conhecer as espécies de microorganismos protistas ciliados que vivem no tanque (na área que acumula água) das bromélias foi o objetivo do pesquisador Roberto Júnio Pedroso Dias, orientado pela professora Marta D’Agosto. Durante o estudo, iniciado em 2010, o pesquisador encontrou cerca de 30 espécies diferentes de protozoário e um gênero novo, que ainda será publicado em artigo. Posteriormente, ele pretende comparar a biodiversidade das espécies encontradas nas bromélias com a do lago do Jardim Botânico. O trabalho foi realizado em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


Depósito de patentes aumenta mil por cento em cinco anos

INOVAÇÃO

Assim como as mais renomadas instituições de pesquisas do mundo, a Universidade demonstra com índices o sucesso da diretriz estabelecida de produzir conhecimento de forma conectada com a sociedade e o mercado Bárbara Duque Repórter

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roduzir e disseminar conhecimento estão no cerne do propósito primeiro da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) desde sua criação, em 1961. Nesses 53 anos de história, muitos avanços foram conquistados. Em consonância com as mais renomadas instituições de pesquisas do mundo, a UFJF demonstra com índices o sucesso da diretriz estabelecida de produzir conhecimento de forma conectada com a sociedade e o mercado. Um dos demonstrativos dessa aposta foi o crescimento do número de depósitos de patentes nos últimos cinco anos, revelando uma mudança de comportamento dos pesquisadores que hoje vislumbram de forma objetiva a possibilidade de contribuir mais efetivamente com o setor produtivo. Até 2008, a UFJF havia depositado sete patentes, entre invenção (PI) e modelo de utilidade (MU), de lá até 2013 esse número saltou para 74. A tríplice base que alicerça as universidades - ensino, pesquisa e extensão - ganhou novo vértice: a inovação. Não é possível hoje pensar o conhecimento sem que ele esteja atrelado ao desenvolvimento econômico e social e à solução de problemas. Mesmo as pesquisas chamadas de base, sem fins imediatos, fornecem conhecimento científico que subsidia de forma fundamental a inovação. Para uma invenção ganhar o título de patente é preciso ser uma novidade. Não pode haver depósito igual em qualquer banco de dados

internacional. E, mesmo que não haja depósito, não pode o produto ou processo ser de conhecimento público. Outro ponto fundamental é ser uma atividade inventiva, criativa, que fuja do óbvio mesmo para especialistas e, por fim, que tenha aplicação industrial, com possibilidades fortes de inserção no mercado, sendo viável sua produção em escala. No Brasil, o responsável pela concessão e garantia dos direitos à propriedade intelectual é o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). Trata-se de uma autarquia federal que recebe e avalia os pedidos de patentes. Após 18 meses da apresentação das exigências estabelecidas ao Inpi, o pedido é publicado na “Revista da Propriedade Industrial” (RPI), tornando a ideia acessível. Esse título de propriedade temporário, concedido pelo Governo aos inventores, é uma maneira de recompensar o pesquisador pela dedicação àquela criação, possibilitando-lhe alcançar ganhos com sua industrialização ou com a transferência dos direitos a terceiros. Uma patente tem duração de 20 anos (PI) e 15 anos (MU) a partir da data de seu depósito. Após esse período, o conhecimento se torna de domínio público. A invenção pode ser um produto, um processo ou um aperfeiçoamento de produtos e processos de fabricação já desenvolvidos.

DIÁLOGO ABERTO A possibilidade de tirar da bancada do pesquisador o resultado de seus estudos e transferi-lo para a indústria, fazendo com que aquela nova tecnologia gere ganhos para a empresa, transformando uma pesquisa em desenvolvimento, é o que vem estimulando os gestores públicos a incentivarem cada vez mais a inovação. Vivemos em uma economia na qual o negócio que não se mantiver na fronteira do conhecimento, investindo constantemente em novas tecnologias e mecanismos, perderá rapidamente a competitividade no mercado. Criada em 2004, a Lei de Inovação foi um fator que revolucionou o mercado, deixando- o mais favorável ao desenvolvimento de propostas inovadoras em todo o país. A partir da lei foram criados mecanismos de apoio e estímulo à constituição de alianças estratégicas e ao desenvolvimento de projetos cooperativos entre universidades, institutos tecnológicos A3 - Abril a Agosto/2014

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INOVAÇÃO

Pedro Paulo Oliveira Maia, Kizzi Stigert Orlando, Albertina Souza e Renan Porcaro de Bretas compõem a equipe do Setor de Proteção do Conhecimento do Núcleo de Inovação Tecnológica da UFJF que assessora os pesquisadores em todas as etapas para a obtenção de patente

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e empresas nacionais como: estruturação de redes e projetos internacionais de pesquisa tecnológica; ações de empreendedorismo tecnológico; e criação de incubadoras e parques tecnológicos. Outro incentivo ao desenvolvimento de parcerias entre a academia e a indústria foram os Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs) nas universidades, também previstos na Lei de Inovação. “No NIT da UFJF, orientamos e damos assessoria para o pesquisador que deseja proteger seu conhecimento. O ideal é que o ele nos procure no início da pesquisa, para que façamos uma busca criteriosa para nos certificar de que aquela ideia é realmente nova e, ao concluir o invento, verificamos se a proposta é patenteável, pois pode ser inovadora e não se enquadrar nas regras de patente. O próximo passo é fazer uma boa redação para o pedido de registro e enviá-la ao Inpi. Assessoramos o pesquisador em todas as fases. Depois de registrado, o processo é acompanhado pela nossa equipe semanalmente para que nenhuma parte do trâmite seja perdida e prejudique o resultado. Consideramos que esse crescimento apresentado pela Universidade é fruto de muito trabalho, investimento do Governo e mudança de atitude dos pesquisadores”, avalia a secretária executiva do Setor de Proteção do Conhecimento do NIT/UFJF, Albertina Souza. O NIT é um dos setores do Centro Regional de Inovação e Transferência de Tecnologia (Critt) da UFJF, criado em 1995 e vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Tecnológico (Sedetec). É de responsabilidade do Critt gerenciar as diretrizes da política de inovação da instituição. Um dos pesquisadores da UFJF com maior número de patentes registradas pela instituição, o professor do Departamento de Engenharia Elétrica, Moisés Vidal, ressalta que um dos fatores determinantes para a formação desta cultura de diálogo com o setor produtivo dentro da instituição é a incubadora de empresas, também mantida pelo Critt. “Sou ex-aluno da Universidade e na graduação fui bolsista da primeira geração do Critt. Isso fez muita diferença no meu comportamento como pesquisador. Fui formado pensando em desenvolver trabalhos para atender às demandas do setor produtivo. Penso o tempo todo em solucionar lacunas que nem o próprio empresário vislumbra. A solução pode estar

em incrementar o que já existe na empresa ou fazer o que chamamos de inovação de ruptura, implantar algo totalmente novo.” Para o secretário de Desenvolvimento Tecnológico da UFJF, Paulo Nepomuceno, a partir das leis de incentivo à inovação e das políticas definidas pela UFJF houve uma “transformação cultural”. Antes disso havia iniciativas pontuais de interação com a indústria, mas nada sistêmico. De uns anos para cá foi criado um ambiente propício à inovação dentro da Universidade. Iniciativas bem estruturadas foram fundamentais, como o Programa de Incentivo à Inovação (PII), criado pela Secretaria Estadual de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que teve duas versões desenvolvidas pela UFJF com muito sucesso, visto o elevado número de propostas apresentadas, todas muito bem fundamentadas. “O objetivo do PII era basicamente transformar pesquisa em inovação. Para isso, foi investida uma quantia significativa nos melhores projetos de P&D. O programa foi tão bem estruturado que enraizou na comunidade acadêmica a cultura da inovação, mostrando um formato arrojado, bem aceito entre a academia e o setor empresarial. Agora, estamos preparando a terceira versão do PII.” Outra pesquisadora que se destaca pela produtividade e proximidade com o mercado é a professora da Faculdade de Farmácia, Nádia Raposo, para quem o PII foi realmente um divisor de águas dentro da Universidade. Segundo ela, o programa não beneficiou somente pela visibilidade que deu aos projetos. O principal ganho foi despertar nos pesquisadores a possibilidade de transformar a pesquisa em negócio. “O próprio pesquisador hoje consegue inscrever seus projetos em concursos internacionais de inovação, dialogar com as empresas para negociar seus produtos ou detectar demandas. Estamos preparados para esse ambiente de transformação da pesquisa em riqueza. O elevado número de patentes registradas é um indicador de qualidade de grande relevância para mostrar o patamar em que se encontra nossa Universidade. Somente com essas prerrogativas é que foi possível gerar um Parque Tecnológico. Hoje podemos oferecer para as empresas interessadas em se instalar em Juiz de Fora uma pesquisa sofisticada, inovadora.”

MASSA CRÍTICA DE ALTO VALOR DE MERCADO O mais importante fruto colhido de todo este investimento são os chamados habitat de inovação. Ambientes que concentram massa crítica de alto valor de mercado. As maiores riquezas de uma universidade são não só os professores pesquisadores, que alimentam com a ciência que produzem as possibilidades de uma vida melhor para toda a sociedade, como também os milhares de alunos envolvidos nesse processo, que respiram ciência. “Nossos alunos leem papers com tranquilidade, realizam pesquisas complexas, estão habituados com termos como propriedade intelectual, sigilo, ética. Eles têm um olhar transformador, já pensam na pesquisa visualizando o produto. Isso gera maior empregabilidade, pois têm uma mentalidade diferenciada, são mais proativos”, afirma Nádia. Vidal acrescenta que todos os trabalhos que coordena na Universidade envolvem dezenas de alunos. “Possuo muitas parcerias com a iniciativa privada, além de ter desenvolvido e incubado minha empresa no Critt. Em todos esses projetos, inclusive na empresa, envolvo meus alunos. O ambiente acadêmico em que vivemos é esse. Os pesquisadores também precisam de alunos bem treinados, bons profissionais. Nos laboratórios que montamos na UFJF, os quais estão sob minha responsabilidade, não existe moleza, cobro muita dedicação e trabalho, e o retorno para todos é imediato.” Outra vantagem para os alunos de conviverem neste ambiente inovador é estimular o espírito empreendedor. Muitos desenvolvem projetos e protótipos na área tecnológica, que geram renda por meio da criação de empresas chamadas spin-offs - nova empresa que nasceu a partir de um grupo de pesquisa - universitárias. É essa riqueza de recursos humanos que alimenta o setor produtivo e contribui para estimular o mercado nacional a romper barreiras culturais e ganhar competitividade entre os países líderes em inovação e desenvolvimento humano e econômico.

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Estudos mapeiam recursos genéticos da erva cidreira Bárbara Duque Repórter

Riqueza química e farmacológica do gênero Lippia estimulou pesquisadores a desenvolverem estudos sobre a Lippia alba e subsidiar pesquisas que visem aumentar o teor de princípios ativos de uma das espécies medicinais mais utilizadas pela população

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diversidade biológica constitui um patrimônio de difícil mensuração e que, em função da sua importância, é foco de inúmeras ações que contribuem para sua conservação. Uma das razões para o estudo de nossa biodiversidade se origina no fato de que ela representa imenso potencial de uso econômico. Subsidiar estratégias de uso e conservação deste essencial grupo de recursos genéticos foi o grande motivador dos trabalhos desenvolvidos desde 2003 por pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). O líder do grupo e também coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências Biológicas, Lyderson Viccini, ressalta que a ocorrência de várias espécies com interesse medicinal e muitas delas com amplo uso pela população chamou atenção dos pesquisadores que decidiram investir tempo e recursos nesta investigação. O gênero Lippia possui cerca de 200 espécies distribuídas, principalmente, nos trópicos, com três grandes centros de diversidade: Brasil – o maior

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deles, com 111 –, México e Argentina. As primeiras ações para estudar o gênero resultaram de coletas realizadas na parte mineira da Serra do Espinhaço (cadeia montanhosa que estende também pela Bahia). Outras foram coletadas desde a região da Serra do Cipó até a região de Grão Mogol (MG) além das mantidas na Estação Experimental de Cultivo e Manutenção de Plantas e no Laboratório de Fisiologia Vegetal do Departamento de Botânica, ambos da UFJF. Desde os trabalhos iniciais, uma abordagem multidisciplinar foi estabelecida e diversos colaboradores, inclusive de outras instituições, fazem parte do processo. Entre as espécies do gênero, uma delas chamou a atenção, pela existência de variados tipos químicos e morfológicos, uma peculiaridade desta espécie. “Já trabalhava com o gênero Lippia, quando uma pesquisadora parceira da Universidade Federal do Rio de Janeiro me enviou três indivíduos da espécie L. alba para que eu analisasse o número de cromossomos.

Foi quando percebi que cada uma apresentava um tamanho de genoma diferente. Estava diante ou de uma incrível coincidência ou de uma riqueza genética que poderia ser ainda maior. Para nossa satisfação, foi a segunda opção.” A partir de então, o grupo de pesquisa Genética, Biotecnologia e Biodiversidade Vegetal se debruçou em analisar as particularidades daquela espécie. A característica que mais chamou atenção foi a incidência da chamada poliploidia, variados tamanhos de genoma, contrariando antigos registros que descreviam um único tamanho dentro da mesma espécie (diploides). Até hoje o grupo identificou cinco, constatando a existência de uma série poliploide. Dentre as amostras analisadas na UFJF, algumas cedidas pela Embrapa ou pela Escola Superior de Agricultura Luiz Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-Usp) e outros coletados pelo grupo, existem cerca de 60% de indivíduos que são de fato diploides e no restante há vasta variação. O grupo foi responsável pelo primeiro relato


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sobre a existência de variação no tamanho de genoma para esse grupo de plantas. A descoberta era sinal de dezenas de possibilidades que deveriam ser pesquisadas e poderiam render excelentes frutos para a ciência. Aquela diversidade biológica constituía patrimônio potencial de uso, inclusive econômico. Um dos desafios foi focar os trabalhos no entendimento da poliploidia, considerada como um dos principais fatores de evolução em plantas. Com poucos estudos sobre isso nas regiões tropicais, foi fundamental a inserção em grupos internacionais de pesquisa. “Em função disso, permaneci durante aproximadamente um ano e meio nos Estados Unidos com um grupo de especialistas no assunto. Eu já possuía informações importantes sobre aquele grupo de plantas e pude desenvolver outras abordagens em parceria. O estudo vem rendendo belos resultados”, ressalta Viccini.

O grupo (de pesquisadores) conta com mais de cem acessos a amostras da espécie Lippia alba e é possivelmente um dos maiores depositários da espécie no Brasil. Ao longo dos anos o grupo vem se tornando uma referência para o estudo do gênero Lippia no país” (Nádia Raposo, professora da Faculdade de Farmácia)

LIPPIA ALBA

Lyderson Viccini: “Permaneci durante aproximadamente um ano e meio nos Estados Unidos com um grupo de especialistas no assunto. Eu já possuía informações importantes sobre aquele grupo de plantas e pude desenvolver outras abordagens em parceria. O estudo vem rendendo belos resultados”

Entre as espécies do gênero Lippia, L. alba se destaca por apresentar características importantes do ponto de vista econômico. L. alba (Mill.) N. E. Br. ex Britton & P. Wilson é uma espécie amplamente distribuída nas Américas. Ocorrendo em praticamente todos os tipos de ambientes, desde florestas, brejos e campos até em beira de estradas, recebe destaque devido às inúmeras propriedades medicinais. Conforme as análises morfológicas realizadas a partir do material examinado, fica evidente que a L. alba apresenta grande variação nos caracteres morfoA3 A3-Abril - Abril a Agosto/2014

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lógicos, o que muitas vezes dificulta a identificação correta do tipo químico. Tal fato ganha extrema importância ao considerarmos que L. alba apresenta extenso uso na medicina popular, necessitando ser corretamente identificada para preparação do produto. A espécie é conhecida por vários nomes populares, como erva cidreira, falsa melissa, chá de tabuleiro, erva cidreira do campo, salva do Brasil, salva-limão e erva cidreira brava. Diferentes atividades farmacológicas são atribuídas aos componentes presentes no óleo essencial extraído da espécie tais como atividade analgésica; antitérmica; bactericida; fungicida; anticonvulsivante; anti-inflamatória, e também de efeitos sedativos entre outros. Lippia alba ou erva cidreira é uma das espécies medicinais mais utilizadas pela população brasileira. Esse é um forte motivador da pesquisa por ser um dos principais interesses da equipe. Apesar de ser uma investigação de base, o estudo subsidia outros trabalhos que utilizam esses princípios ativos. A enorme plasticidade fenotípica da erva cidreira se reflete nos inúmeros tipos químicos descritos, o que dificulta a correta identificação da planta. O desafio que o grupo assumiu foi tentar entender a origem da variação morfológica descrita para a espécie e tentar relacionar esta variação aos seus componentes químicos que em última análise estão relacionados a diferentes ações biológicas.

INFLUÊNCIA NA EVOLUÇÃO DE ESPÉCIES A poliploidia é, de modo geral, a variação natural ou induzida no número de cromossomos. Comumente assume-se que o número de cromossomos de um grupo de indivíduos de uma mesma espécie é o mesmo. Essa situação é a mais esperada, pois as espécies são, via de regra, razoavelmente constantes nesse aspecto. Com o passar dos anos, a variação cromossômica pode levar à formação de novas espécies espe-

cialmente em plantas. Outra questão estudada é de que os poliploides em geral podem habitar lugares nos quais os ancestrais diploides não são bem-sucedidos. É relativamente comum os poliploides apresentarem uma capacidade maior de adaptação comparada aos ancestrais diploides. O número de cromossomos de uma espécie é um dado biológico significativo e normalmente invariável dentro de uma espécie, mas podem mudar ao longo do tempo, assim como os genes, sofrendo perda ou adição. O processo é esporádico, pois as divisões celulares e cromossômicas são fenômenos regulares. Contudo, ocorrem variações, que, por vezes, são perpetuadas a fim de dar origem a novas espécies vegetais.

CONTRIBUIÇÕES CIENTÍFICAS Um dos principais resultados do trabalho até hoje foi constatar que há variação genética em larga escala dentro de uma única espécie (no caso a Lippia alba) e que há possível associação entre essa variação e o “tipo químico”. O produto químico produzido pela planta pode estar diretamente relacionado ao tamanho do seu genoma. Durante a pesquisa já foram relatados pelo menos três tipos químicos diferentes em maior frequência. O desafio deste trabalho é relacionar essa variação genética com os quimiotipos existentes, e o estudo se propõe, entre outras ações, a interação entre pesquisadores tanto de outros setores da Universidade como interinstitucional. Outra preocupação do grupo é contribuir para o uso racional da espécie, por meio de identificação mais precisa dos quimiotipos, subsidiando diversas investigações com o intuito de aumentar o teor de princípio ativo dos acessos estudados por meio de ferramentas clássicas e biotecnológicas. Para a pesquisadora parceira do grupo, a farmacêutica e chefe do laboratório Núcleo de Identificação e Quantificação Analítica (Niqua) da UFJF, Nádia Raposo, o trabalho liderado por Viccini é fantástico. “Para quem atua com a pesquisa aplicada, é fundamental contar com a

colaboração da investigação básica. Desenvolvemos parcerias com eles em diversos estudos. Trabalhamos no laboratório com muitos compostos químicos e o apoio em diferenciar os cariótipos e as potencialidades biológicas de cada composto é absolutamente complementar ao que fazemos aqui, além de nos auxiliarem na correta utilização do material, ou seja, no conhecimento taxonômico das famílias de plantas. O grupo conta com mais de cem acessos a amostras da espécie Lippia alba e é possivelmente um dos maiores depositários da espécie no Brasil. Ao longo dos anos o grupo vem se tornando referência para o estudo do gênero Lippia no país”, completa Nádia. Já foram desenvolvidas cinco dissertações e duas teses, produzindo informações inéditas sobre a espécie além de levantarem a questão mais importante no que diz respeito à ocorrência de números cromossômicos diferentes dentro da espécie, provavelmente oriundos de poliploidia. O grupo vem dando continuidade a esta investigação, avaliando as amostras por meio da contagem cromossômica, estimativa da quantidade de DNA, análises morfológicas e também por meio de marcadores moleculares. Outra frente de estudo pretende identificar genes relacionados à produção de princípios ativos de interesse, possibilitando não somente a compreensão de como estes compostos são formados, assim como a manipulação destas vias com vistas ao aumento destes componentes químicos de interesse. “A formação de recursos humanos nas áreas de genética/citogenética, taxonomia, genética molecular, propagação de plantas e fitoquímica é uma das questões mais importantes para o grupo. Pretendemos, ainda, criar maior integração entre departamentos da UFJF e reforçar a parceria que já existe com a Universidade Federal de Viçosa e a Embrapa” conclui Viccini.

MAIS Lyderson Facio Viccini Pós-doutor pelo Laboratory of Molecular Systematic and Evolutionary Genetics, Florida Museum of Natural History, University of Florida, EUA; doutor em Genética e Melhoramento pela Universidade Federal de Viçosa Atualmente é professor associado IV da UFJF e coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências Biológicas. lyderson.viccini@gmail.com http://www.ufjf.br/pgcbio/ http://lattes.cnpq.br/0633665122312619

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A busca por respostas sobre a violência Carolina Nalon Repórter

Laboratório de Estudos sobre Violência, criado em 2013, visa encontrar alternativas para combater os altos índices de crimes em Juiz de Fora (MG). Somente no ano passado, foram registradas 139 mortes violentas, uma média de 11 assassinatos a cada mês.

Paulo César Fraga (no Laboratório de Estudos sobre Violência): “É muito importante essa indignação das pessoas com o aumento dos homicídios. Não é possível conviver mais com o crescimento das taxas de violência sem buscar alternativas para diminuí-las”

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o ano de 2013, 139 pessoas foram vítimas de mortes violentas em Juiz de Fora (MG), uma média de 11 assassinatos a cada mês. Número 40% maior do que o registrado em 2012 e bem superior ao de 2011, quando ocorreram 52 homicídios. O quadro pode se agravar, já que outros 45 casos foram noticiados nos primeiros três meses do ano pelo jornal “Tribuna de Minas”. Os assaltos também se tornaram mais frequentes e a nova realidade da cidade de meio milhão de habitantes tem mobilizado a sociedade na busca por medidas imediatas e efetivas junto aos governos municipal e estadual. O debate envolve, ainda, pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e motivou a criação do Laboratório de Estudos sobre Violência. A intenção do laboratório é, portanto, atender a uma expectativa da própria sociedade, ávida por respostas sobre a disparada dos índices. Para o diretor do Centro de Pesquisas Sociais (CPS) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), professor Paulo César Pontes Fraga, “é muitoo importante essa indignação das pessoas com o

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aumento dos homicídios. Apesar de não existir sociedade sem crime, como observou Durkheim, não é possível conviver mais com o crescimento das taxas de violência sem buscar alternativas para diminuí-las”. Segundo ele, grupos de pesquisa de destaque já tratam do assunto dentro da Universidade, mas, até então, ainda não havia se firmado uma proposta de trabalho em conjunto da academia com instituições públicas municipais e estaduais voltada especificamente para os problemas de violência em Juiz de Fora. A previsão é iniciar os trabalhos por meio de um Observatório sobre a Violência, até que as fontes de recursos para pesquisas em maior profundidade sejam obtidas, possivelmente por editais de agências de fomento. O observatório reunirá e analisará os registros de polícias e as informações sobre políticas e serviços públicos do município, com o aval das instituições, que repassarão os dados. “Pesquisas apontam caminhos, avaliam situações, mas não criam políticas públicas, por isso, o envolvimento desses atores faz toda diferença.”

Fraga ressalta que o observatório funcionará a curto e médio prazo com equipe reduzida de profissionais e estudantes. “Queremos saber, por exemplo, se há relação na incidência de crimes em determinados bairros ou regiões da cidade onde há menos serviços voltados ao cidadão, como educação, lazer e esporte.” Esse cruzamento de dados será fundamental para traçar, inclusive, um caminho para as pesquisas de campo do laboratório. “Questão fundamental, também, são as violações de direitos humanos. Uma política democrática de segurança precisa ter como prioridade o respeito aos direitos humanos, pois o combate à criminalidade não pode ser justificativa para desrespeitar direitos fundamentais.” A ideia é abordar todos os tipos de crime, não só os violentos, e tratar o tema de modo a considerar autores, vítimas e “sobreviventes dos homicídios”. O termo se aplica às pessoas, principalmente familiares, que conviviam com a vítima assassinada. A abordagem ampla é importante para uma avaliação mais profunda e verdadeira sobre a violência. Isso porque,


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de acordo com Fraga, os registros ainda são superficiais ou consideram apenas um dos lados dos conflitos. No caso do DataSUS, por exemplo, – banco de dados do Sistema Único de Saúde (SUS) no qual é possível acessar registros de mortes por homicídio –, trabalha-se apenas com dados da vítima. Outra vertente importante são as análises sobre os crimes contra os direitos humanos, grupos vulneráveis e estigmatizados, muitas vezes negligenciados.

É fundamental que as pesquisas tenham relevância e que sejam úteis para a sociedade, e é por meio delas que é possível conhecer as expectativas dos grupos sociais” (Frederico Couto Marinho, pesquisador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública- UFMG)

OUTRAS EXPERIÊNCIAS Diversas universidades do país têm ido além de sua contribuição científica quando se trata de violência, principalmente, nos grandes centros. São referências na articulação entre pesquisas e políticas públicas, os núcleos de estudos da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). De acordo com o pesquisador do Crisp, Frederico Couto Marinho, finalizado o estudo, há uma segunda etapa de trabalho que exige bastante esforço da equipe, a de convencimento das autoridades. “É preciso debater os resultados, apresentar o embasamento teórico e metodológico e também pesquisas semelhantes realizadas em outros países, traçando um paralelo sobre o que acontece em outros lugares.” Os dados apresentados podem levar a outras pesquisas, a realização de treinamentos, ao desenvolvimento de softwares e, o mais importante, a novas políticas públicas. Em Minas Gerais, os programas “Fica Vivo”, da Secretaria do Estado de Defesa Social, e “Escola Viva, Comunidade Ativa”, da Secretaria Estadual de Educação, foram implantados após trabalhos publicados pelo Crisp. No “Fica Vivo”, oficinas de esporte, arte e cultura, destinadas a jovens em situação de risco social, conseguiram reduzir

taxas de homicídios em áreas com alto índice de criminalidade violenta. Já a pesquisa feita na rede estadual de ensino, ouviu alunos e professores, apontando as fontes de conflitos.

“Queremos saber, por exemplo, se há uma relação na incidência de crimes em determinados bairros ou regiões da cidade onde há menos serviços voltados ao cidadão, como educação, lazer e esporte” (Paulo César Fraga, diretor do Centro de Pesquisas Sociais-UFJF)

Os dados fizeram com que o governo investisse mais na infraestrutura das escolas participantes e incentivasse ações de envolvimento da comunidade. “Para nós, é fundamental que as pesquisas tenham relevância e que sejam úteis para a sociedade, e é por meio delas que é possível conhecer as expectativas dos grupos sociais”, avalia Marinho.

MAIS Centro de Pesquisas Sociais (CPS) Atua como uma unidade investigativa com a missão de desenvolver pesquisas aplicadas a partir de aportes teóricos e metodológicos das Ciências Sociais, tanto de cunho qualitativo quanto quantitativo. Além de atender demandas de pesquisas da UFJF, presta serviços em parcerias com prefeituras, outros centros de pesquisa, empresas, associações, autarquias e entidades http://www.cps.ufjf.br/ pesquisa.cps@ufjf.edu.br

Paulo Cesar Pontes Fraga Doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo e pós-doutor pela École de Criminologie da Université de Montréal, Canadá. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde atua como professor efetivo do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais; diretor do Centro de Pesquisas Sociais http://lattes.cnpq.br/0477617276709551 paulo.fraga@ufjf.edu.br

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TE S ES

O diretor e os desafios da liderança escolar transformadora Estudo mostra impacto do trabalho do diretor como líder em escola e o quanto interfere na aprendizagem do aluno Raul Mourão Repórter

A Anderson Córdova Pena (autor da tese): “Ele (o diretor) se torna um criador de líderes na escola, é aquele que detém as maiores possibilidades de maximizar o potencial das lideranças e canalizá-los em direção a objetivos coletivos”

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cena típica do aluno entregando maçã ao professor também poderia ocorrer com outro profissional da escola retratado, de forma estereotipada, como enérgica, distante e repressora: o diretor. O papel do dirigente pode ser crucial para a aprendizagem do estudante. “Em geral, o efeito do professor sobre o desempenho, apesar de ser o fator de mais importância para a aprendizagem, tende a ficar restrito à turma, enquanto o efeito da gestão escolar, mesmo sendo menor que o provocado pelo docente,

tende a se estender a todos os alunos da escola, o que lhe confere mais possibilidades de redução das desigualdades educacionais”, argumenta o educador Anderson Córdova Pena, autor da tese de doutorado sobre liderança escolar, defendida no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). O pesquisador foi buscar entender afinal quais eram as habilidades que poderiam descrever uma liderança escolar transformadora


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(conheça nove habilidades na arte abaixo). O foco foram as escolas da rede pública estadual de Minas Gerais. Pena revisou estudos sobre a área, competências esperadas para o cargo e ouviu 1.486 diretores por meio de questionário on-line. Para saber se, de fato, a liderança interfere na aprendizagem do aluno, o educador comparou as respostas, realizando análises estatísticas, com os resultados das provas de Língua Portuguesa e Matemática do Programa de Avaliação da Rede Pública de Educação Básica (Proeb), aplicado pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (ver arte na página 26). Se a maçã entregue ao diretor pode alegrar o dia do profissional, as ações do líder escolar, conforme resultados da pesquisa, podem sim melhorar os indicadores, ou seja, contribuir para que o aluno saiba ler e interpretar melhor o texto ou lidar com tarefas de matemática. E mais: quando o dirigente não cumpre parte das habilidades esperadas, como o controle de presença de professores, o resultado pode ser pior. “Só o fato de o diretor pensar que isso não é responsabilidade dele os índices de desempenho podem ser jogados para baixo.” E o que mais interfere na concepção de liderança escolar segundo o estudo? Quatro fatores: comunicação, foco na aprendizagem, práticas administrativas e atitudes contrárias à própria liderança, isto é, aquelas que não são esperadas de um diretor, como desconhecer índices de evasão escolar. Assim, Pena chegou a este conceito: “Liderança escolar é um exercício de gestão democrática, coordenado pelo diretor e executado de forma compartilhada na escola. Seu objetivo é o incremento da qualidade da educação e a promoção da equidade. Para tanto são necessários: o permanente foco na apren-

dizagem; a adoção de ações de comunicação efetiva; de práticas administrativas eficientes; e de atitudes positivas do diretor em relação à sua capacidade de liderança.” Identificar e avaliar com precisão quais medidas das diversas dimensões da gestão escolar, como a liderança, interferem mesmo na aprendizagem ainda é um desafio. Para isso, são imprescindíveis mais pesquisas e novos modelos. A tese já é um avanço nessa direção, conforme o orientador do trabalho e professor do Departamento de Estatística da UFJF, Tufi Machado Soares. “O estudo consegue mostrar de forma interessante a relação entre liderança e proficiência. Isso é razoavelmente inédito. Antes os estudos na área não foram tão bem-sucedidos”, afirma o orientador.

“O diretor precisa ser um habilidoso comunicador. Como gestor de uma instituição pública, ele deve ser capaz de construir consensos, agir mais pelo convencimento e pela exposição de ideias do que pela coerção, o que requer também um trabalho de coordenação política” (Anderson Córdova Pena, educador e autor da tese)

QUEM NÃO COMUNICA, NÃO LIDERA Um dos fatores que tiveram mais alto grau de concordância com baixa variação entre as respostas está relacionado às habilidades comunicativas. A maioria concorda que é preciso se comunicar bem. “Em síntese, o diretor precisa ser um habilidoso comunicador. Como gestor de uma instituição pública, deve ser capaz de construir consensos, agir mais pelo convencimento e pela exposição de ideias do que pela coerção, o que requer, também, um trabalho de coordenação política. É preciso mostrar confiança, clareza e firmeza nos projetos que defende com a comunidade. Estando em instituição pública, ele possui limitações quanto à gestão de salários, transferência de profissionais”, atesta o autor do trabalho. A liderança, portanto, é para ser compartilhada, expandindo a responsabilidade e a tomada de decisões para funcionários, alunos, professores e pais. De acordo com o pesquisador, seria utopia pensar que todas as soluções para o ambiente escolar cabem ao diretor. “Ele se torna um criador de líderes na escola, é aquele que detém as maiores possibilidades de maximizar o potencial das lideranças e canalizá-los em direção a objetivos coletivos.” Como enfatiza a diretora da Escola Estadual Professor José Eutrópio, em Juiz de Fora, Celene Abry, ser diretor é ser um mediador.

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FORÇA, FÉ E FOCO NA APRENDIZAGEM Os resultados da pesquisa mostram que, quando o diretor mantém o foco na aprendizagem do aluno, ele influencia positivamente nos resultados do desempenho do quinto e do nono anos do ensino fundamental. O resultado foi aferido por meio da nota no Proeb. Manter o foco na aprendizagem inclui cumprir o conteúdo programático, ter atividades extraclasses, projetos multidisciplinares e verificar o desempenho dos alunos de forma sistemática. “Parece óbvio dizer que o diretor precisa ter o foco na aprendizagem, mas muitos deles, quando assumem o cargo, perdem um pouco esse ponto central porque são tantas atividades administrativas na secretaria que vão minando essa competência”, explica Pena.

“O estudo consegue mostrar de forma interessante a relação entre liderança e proficiência. Isso é razoavelmente inédito. Antes os estudos na área não foram tão bem-sucedidos” (Tufi Machado Soares, professor da UFJF e orientador da tese)

Situações corriqueiras contribuem para manter a atenção no âmbito pedagógico. “Só o simples fato de o diretor ir à sala de aula, conversar com o aluno e com o professor para perguntar-lhes como está o andamento de uma disciplina faz diferença. A hipótese é que o estudante percebe que o coordenador geral está se preocupando com ele; e o professor pode se sentir acolhido”, certifica. Na Escola Estadual Álvaro Giesta, em São Geraldo, na Zona da Mata Mineira, cada um dos mais de 700 alunos são cumprimentados pelo diretor e pela equipe na entrada ou na saída dos três turnos de funcionamento. “Você se sente mais bem recebido”, diz a estudante Luanna Batalha da Costa, 17 anos. “Não quero que os meninos e as meninas tenham medo de mim, mas respeito”, ressalta o diretor do colégio,

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Tiago Sartori, que também retirou os móveis que poderiam ser obstáculos no caminho até a sala dele. Outra medida incentivada pelo dirigente foi realizar anualmente um diagnóstico de aprendizagem. Os professores aplicam prova no início do ano letivo para identificar o desempenho dos estudantes sobre o conteúdo ofertado no período anterior. Caso seja constatada dificuldade, novos tópicos são ensinados apenas se as dúvidas forem sanadas. A partir desse diagnóstico e da prova estadual, o colégio implantou o Momento de Leitura, em que cada docente, toda semana, precisa dedicar uma aula para compreensão de textos, cujos resultados foram percebidos em exames internos. O diretor orgulha-se ainda de mostrar muros, paredes e quadros pintados pelos estudantes, comemora a redução dos índices de evasão (5,9% em 2013 contra 19,7% em 2011) e de reprovação (3,7% em 2013 ante 6,6% em 2011) no ensino médio, e o envolvimento da comunidade em projetos como Alimentação Saudável. Em Juiz de Fora (MG), a Escola Estadual Professor José Eutrópio, no bairro Santa Terezinha, conquistou o primeiro lugar entre colégios públicos estaduais e municipais da cidade no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) 2011, ao lado do Colégio Tiradentes, com a nota 7 – acima da meta estipulada (6,6) para a escola no quinto ano do ensino fundamental. A diretora Celene Abry atribui o título de “escola de excelência” à gestão baseada em decisões colegiadas, dedicação de professores, reuniões para trocas de experiências, planejamento e intervenção pedagógica (o reforço escolar). “O que o Estado nos pede agora para fazermos, como a intervenção pedagógica, já implantamos há mais tempo.”

ADMINISTRAR PARA EDUCAR Ainda que a pesquisa revele a necessidade de manter o foco no projeto pedagógico, o líder deve encontrar meios de conciliar a função com as responsabilidades e as atribuições da gestão, o que envolve as atividades administrativas, burocráticas. A lista é imensa, haja fôlego: é preciso planejar; controlar materiais; lidar com a compra de equipamentos; conhecer regras de licitação; organizar documentos; responder formulários; prestar contas; coordenar a manutenção e a conservação do espaço físico; monitorar e avaliar o trabalho escolar; gerenciar pessoal; e normatizar o cotidiano escolar. A atuação do diretor na área administrativa,


Foto: Stefânia Sangi

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O diretor da Escola Estadual Álvaro Giesta, Tiago Sartori - que cumprimenta cada um dos seus 700 alunos na entrada ou na saída das aulas e retirou móveis para facilitar o acesso dos estudantes à sua sala -, comemora a redução dos índices de evasão e reprovação e o envolvimento da comunidade em projetos como Alimentação Saudável

como gestor, surte mais resultados na aprendizagem no ensino médio, conforme a pesquisa. A possível explicação, segundo Anderson Córdova Pena, é que essa fase escolar possui currículo extenso, mais disciplinas e professores, que atuam em diversos estabelecimentos, o que reduz a possibilidade de criação de vínculo mais forte com a escola, exigindo mais monitoramento por parte do dirigente no cumprimento do currículo, da carga horária e da disciplina dos estudantes.

ESCOLA E EXCLUSÃO Reduzir o índice de evasão no ensino médio é um dos principais desafios da liderança escolar e das políticas públicas de educação. Dos 17 milhões de jovens brasileiros entre 15 a 19 anos que deveriam estar na escola, mais de 5 milhões (32%) não estão nas salas de aula. E a taxa de abandono é de 34,5%. No Chile, fica em 2,9%.

Entre os que conseguem concluir essa etapa da vida escolar, apenas 10% aprendem o necessário de matemática, conforme o Sistema de Avaliação de Educação Básica (Saeb) do Ministério da Educação (MEC). A relação entre baixa escolaridade e criminalidade não é direta, mas é possível verificar que o perfil do preso no Brasil é aquele que, em sua maioria (77%), não possui ou não concluiu o ensino médio. “São negros, pobres, jovens. É esse o perfil que a escola brasileira historicamente e silenciosamente exclui. A culpa não é do aluno. O professor em sala de aula consegue fazer uma ação inclusiva. Mas essa função, em toda a escola, é de responsabilidade do diretor”, destaca Pena, que trabalha no Programa ensino médio Inovador/Jovem de Futuro em parceria com o MEC, que visa reestruturar o currículo do ensino médio. E quando o diretor concorda com nove atitudes que não condizem com o perfil profissional

de liderança escolar, elas podem contribuir para a queda do desempenho escolar. Entre as atitudes, estão considerar que não é prioridade do gestor monitorar as faltas e os atrasos de professores e funcionários, que as avaliações de sala de aula não conseguem medir com eficácia a aprendizagem e que encontra dificuldade em saber quantos alunos foram reprovados ou evadiram no último ano. “Quanto mais atitudes contrárias por parte do diretor, mais baixa é a proficiência esperada. A interferência negativa sobre o desempenho é percebida principalmente no Ensino Médio”, diz o pesquisador. “A liderança escolar, medida pelo instrumento proposto pareceu exercer, portanto, impacto moderado sobre a proficiência das escolas medidas pelo Proeb. Assumindo o papel de articuladora, a liderança pode contribuir para a construção e a efetivação de uma escola pública, de fato, democrática.”

MAIS Anderson Córdova Pena

Tufi Machado Soares

Doutor em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (UFJF) bit.ly/lattes_Anderson

Doutor em Engenharia Elétrica e coordenador de Pesquisa do Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd/UFJF); professor do Departamento de Estatística da UFJF bit.ly/lattes_Tufi

Leia a tese “Um conceito para liderança escolar: estudo realizado com diretores de escolas da rede pública estadual de Minas Gerais”, defendida em novembro de 2013: bit.ly/teseAnderson

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M E MĂ“RI A

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MEMÓRIA

Há 50 anos os militares calavam o país Márcio de Paiva Delgado*

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primeira dúvida que me ocorreu quando fui convidado a escrever esse texto, foi qual seria a sua abordagem. Uma descrição cronológica, didática e resumida sobre os principais acontecimentos entre 1964 e 1985? Um levantamento historiográfico das principais pesquisas feitas nas últimas décadas? Por entender que este não é um texto voltado para o público acadêmico, que retrospectivas factuais são facilmente encontradas em livros didáticos e pela consciência de que a Ditadura Militar ainda é um tema em disputa na memória brasileira recente, preferi abordar, brevemente, os argumentos usados pelos golpistas para a quebra da democracia em 1964. Não é de hoje que a Democracia que está em constante construção e aprimoramento - atingiu status de “valor universal”, a ponto de ser invocada até mesmo por aqueles que lutam contra o seu estabelecimento. Assim como era em 1964, ainda o é no país que convive no meio político e midiático com indivíduos sem qualquer compromisso com a democracia: a vontade da maioria, resguardando os direitos e proteção às minorias, a liberdade de expressão e associação, o respeito aos direitos humanos e o compromisso com a justiça social.

Voltemos a 1964. Segundo os golpistas, o presidente João Goulart fora derrubado em nome da Democracia. Para a maioria dos defensores do golpe, Jango estava colocando o Brasil rumo ao “comunismo ateu contrário à família brasileira” por meio de suas autodenominadas Reformas de Base. Também estaria colocando “brasileiros contra brasileiros” ao estimular a “luta de classes” e promovendo a “desordem e a quebra da hierarquia” dentro das Forças Armadas. Tais argumentos e acusações, que ainda hoje ecoam em publicações de colunistas da dita “grande imprensa”, não resistem sequer a uma superficial análise dos fatos históricos. Goulart, por meio da proposta das Reformas de Base, buscava promover mudanças estruturais na sociedade brasileira dentro da normalidade Constitucional. Destacavam-se a Reforma Agrária, Educacional, Política e Urbana. Todas teriam que passar pelo Congresso Nacional, notadamente conservador, apesar do crescimento do PTB nas eleições de 1962. Nas ruas, o período era de radicalização. Para cada cartaz “Reformas na Lei ou na Marra”, havia uma senhora com um rosário à mão orando contra os “comedores de criancinhas” e “incendiários

Para cada cartaz “Reformas na Lei ou na Marra”, havia uma senhora com um rosário à mão orando contra os “comedores de criancinhas” e “incendiários de Igreja”

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ME M ÓRIA

de Igreja”. Verborragia comum entre militantes em momentos de catarse, mas que nas palavras e ações de lideranças políticas e militares sempre se mostram explosivas e geradoras de violências. Apesar da defesa das Reformas, ainda hoje necessárias no Brasil, Jango nunca adotou tal discurso radical. Os decretos de desapropriação de terras assinados durante o Comício das Reformas em março de 1964 tinham um caráter mais simbólico (e espetaculoso) do que efetivo para a realização da Reforma Agrária. Sobre o “perigo vermelho”, artificialmente fomentado com ajuda de setores conservadores da Igreja Católica, do empresariado e da mesma grande imprensa, na realidade não havia absolutamente nada no projeto da presidência que pudesse ser identificado com a implantação do comunismo, muito menos a defesa do “fim da religiosidade” e do “fim da família brasileira”. Falácias absurdas usadas para amedrontar a população a fim de conquistar a opinião pública para evitar tais Reformas e justificar o golpe em fase de conspiração que já havia sido tentado em agosto de 1961, ou seja, antes de qualquer ação “desestabilizadora” de Jango. O argumento de que Jango estaria colocando “brasileiros contra brasileiros” é novamente fruto da falta de compromisso com a democracia por parte de seus detratores. Durante seu governo, o movimento operário, estudantil e camponês, encontrava-se em franco desenvolvimento e mobilização,

abandonada pelo PCB desde o final da Segunda Guerra Mundial e reafirmada em resoluções oficiais para a militância durante a década de 1950. A exceção de um número ínfimo de pessoas que haviam se dirigido a Cuba para fazer “treinamento guerrilheiro” (desbaratado pelo próprio Governo Goulart em 1962), não havia qualquer guerrilha no Brasil antes do golpe de 1964. Sobre a quebra de hierarquia, uma vez mais o argumento não se sustenta, além de expor seu caráter elitista. Juscelino Kubistchek, presidente, sofreu duas quarteladas contra o seu governo, além de uma conspiração em 1955 contra a sua posse. Em todos os casos - envolvendo oficiais de alta e média patente - houve anistia. O mesmo aconteceu com os militares promotores da tentativa de impedir a posse de Goulart em agosto de 1961. Não se ouviu palavra sobre quebra de hierarquia quando a presidência, conciliatoriamente, perdoou os revoltosos. Entretanto, quando Jango anistiou sargentos e marinheiros revoltosos - que não queriam derrubar governo algum e sim garantir direitos e melhorias nas condições de trabalho - todo o alto oficialato bradou contra tal ato de “desordem”. Com o golpe, rasga-se a Constituição de 1946. Em nome da “operação limpeza” nos quadros políticos, sindicais, estudantis e militares, o Executivo passa a governar sem contestação por parte dos outros dois Poderes e a não admitir qualquer oposição na sociedade civil. Com o pretexto de salvar

Com o golpe, rasga-se a Constituição de 1946. Em nome da “operação limpeza” nos quadros políticos, sindicais, estudantis e militares, o Executivo passa a governar sem contestação por parte dos outros dois Poderes e a não admitir qualquer oposição na sociedade civil

que vinha desde os anos 1950, principalmente sob o Governo de Juscelino Kubistchek, o qual lhes garantira liberdade. É inegável a influência dos comunistas nesses movimentos, ainda mais em contexto de Guerra Fria, mas estes não eram os únicos e suas demandas sequer faziam parte de seu monopólio ideológico: educação pública e de qualidade, reforma agrária e fim do latifúndio, soberania nacional e desenvolvimento nacional, salários justos e diminuição das desigualdades sociais. Eram essas as bandeiras daqueles que, segundo os golpistas, estavam colocando a nação brasileira para fora do rumo da “ordem” e do “progresso”. E o desejo “revolucionário” sempre existiu, mas qualquer forma de luta armada no pré 1964 já havia sido

a Democracia, fecharam-se partidos políticos e cassaram-se mandatos e carreiras, interviram no STF, proibiram sindicatos e entidades estudantis, censuraram a informação, as artes e as ideias, praticaram prisões arbitrárias, seguidas de torturas e outras formas de intimidação. Isso tudo, é importante que se diga, antes de qualquer movimento de guerrilha e bem anterior ao Ato Institucional nº 5 de dezembro 1968, que até hoje é considerado por muitos, de maneira errada, como o início dos “Anos de Chumbo”.

* Doutor em História pela UFMG; mestre e graduado pela UFJF; professor do Instituto Federal de Educação (Ifet) Sudeste de Minas Gerais, campi de Juiz de Fora e Santos Dumont. marcio.delgado@ifsudestemg.edu.br

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MEMÓRIA

O “CHEIRO” DE PÓLVORA E CHUMBO EM GOVERNADOR VALADARES

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ano de 1964 “cheirava” a pólvora e chumbo em Governador Valadares e no Vale do Rio Doce, com pistoleiros atuando a serviço dos poderosos. O semanário “O Combate”, criado pelo jornalista Carlos Olavo da Cunha Pereira, tornou-se veiculo de defesa da justiça e da luta dos posseiros pela terra que ocupavam. A mobilização de fazendeiros e seus jagunços não intimidaram os camponeses - apoiados pelo PCB - que, coordenados pelo partido, fundaram o Sindicado dos Trabalhadores Rurais (STR) como instrumento de luta contra os despejos rurais e pela reforma agrária. Em 1962, liderado por Francisco Raimundo da Paixão (Chicão), o sindicato deixou a orientação dos comunistas e aderiu às Ligas Camponesas, após o Primeiro Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, em Belo Horizonte, em novembro de 1961. As lideranças dos fazendeiros consideravam a situação intolerável e, em resposta, formaram milícia armada para enfrentar o que denominavam de invasões de fazendas no Vale do Rio Doce. Governador Valadares se tornou ponto de condensação dos acontecimentos de 1964. A cidade estava dividida, com fazendeiros e familiares, Igreja e poder público local de um lado; de outro, os quase dois mil membros do STR, constituído não só por meeiros, parceiros e assalariados do campo, mas por moradores de favelas de Governador Valadares, egressos das áreas rurais. Em Governador Valadares, em 30 de março de 1964, fazendeiros e jagunços tentaram invadir o STR, houve resistência, feridos e um morto (Paschoal de Souza Lima, genro do delegado de polícia da cidade, Cel. Pedro Ferreira). O Golpe Militar de 31 de março marcou o fim da luta dos posseiros e consolidou uma estrutura fundiária assentada na grande propriedade. Nesse mesmo dia, Carlos Olavo e Chicão foram levados em segurança para Belo Horizonte, por ordem do Governador Magalhães Pinto, de onde foram para o exílio. No dia seguinte, o clima entre fazendeiros era de mobilização e vingança. Em 1º de abril, logo pela manhã, houve o atentado a Otávio Soares Ferreira da Cunha e aos filhos Augusto e Wilson. Augusto morreu no dia 1º de abril, e o pai, três dias depois. Wilson, apesar de gravemente ferido, sobreviveu. O atentado foi praticado pelos fazendeiros Maurílio Avelino de Oliveira, Lindolfo Rodrigues Coelho e Wander Campos. Conforme o processo nº

Haruf Espíndola*

35.679, do Superior Tribunal Militar (STM), o tenente coronel delegado de Polícia em Governador Valadares declarou que eles estavam investidos da condição de polícia para “prestarem serviços localizando e interceptando elementos comunistas e conduzindo-os à Delegacia, em virtude do ‘Estado de Guerra’...” A “convocação” dos três fazendeiros para prestar serviços de natureza policial pelo delegado teria ocorrido às 8h, uma hora antes da ocorrência criminosa, cabendo deixar em aberto, portanto, a possibilidade de essa convocação ter sido um expediente formal forjado a posteriori. Segundo o testemunho, às 9h, Maurílio aproximou-se dos três ocupantes de um Jeep Land Rover – Otávio e os filhos Augusto e Wilson – fazendo-se passar por amigo. Após retirarem a chave do jipe, os fazendeiros atiraram. Augusto teve morte imediata. O pai, Otávio, 70 anos, já alvejado, ainda conseguiu sair do veículo, engatinhou tentando refugiar-se no interior da casa, mas foi perseguido por Lindolfo, que o atingiu no rosto. Os assassinos ainda foram ao hospital procurar o outro filho de Otávio, o médico Milton Soares, que foi protegido por médicos e enfermeiros. Otávio foi o segundo farmacêutico a se instalar em Governador Valadares, na época em que era o distrito de Figueira, pertencente ao município de Peçanha. Uma das lideranças mais destacadas e queridas da cidade, foi um dos líderes do partido da emancipação do município, na década de 1930. Os fazendeiros não perdoavam o fato de seu filho Wilson ter levado pessoalmente os empregados e agregados da sua fazenda para se filiarem ao sindicato nem o apoio que davam à luta dos camponeses em defesa de suas terras, principalmente que também eram fazendeiros. Em Governador Valadares, havia sido oferecida denúncia contra os assassinos em 17 de maio de 1965. Os réus obtiveram no STF habeas-corpus recolhendo os mandados de prisão. Após várias tramitações judiciais, o STM, em 11 de janeiro 1967, condenou os três criminosos a 17 anos e meio de reclusão, por unanimidade. Entretanto, eles foram indultados. Em 1997, a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos votou pela motivação política dos crimes. O fato é que duas pessoas foram mortas - com tiros pelas costas -, e uma ferida. Todas desarmadas.

*Doutor em História Econômica pela USP; mestre em História pela UnB; graduado em História pela UFMG; professor titular da Universidade Vale do Rio Doce A3 - Abril a Agosto/2014

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E S P ECI AL

No país da Copa, o futebol como ciência Pesquisas desenvolvidas na UFJF contribuem para entender o perfil de jovens jogadores, treinar goleiros e compreender a identidade do futebol brasileiro Raul Mourão Repórter

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oooool! A regra é clara: na ciência, um gol não é apenas um gol. Na tentativa de encontrar explicações para quase tudo, pesquisadores investigam desde o aproveitamento da bola lançada pelo goleiro, o perfil do jovem jogador à influência da profissionalização na conquista de prêmios e as relações entre o trimestre de nascimento do atleta e seu desempenho. Se você é torcedor, também está sendo observado por músicos e comunicadores sociais, ainda mais quando entoa hinos ou adapta canções. Na área de tecnologia, prepare-se para a Copa do chip na bola, ou footbyte. Na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), mais de 50 livros, artigos, monografias, dissertações e teses já foram elaborados sobre futebol. É uma amostra de que ciência e esporte querem jogar no mesmo time, principalmente em ano de Copa do Mundo, no Brasil, que pode oferecer novas fontes de interesse para os estudos. Se a pergunta “Quem vai ganhar o mundial?” perpassa as 32 seleções do campeonato, várias outras movem os pesquisadores. Conheça-as.

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O PAI DO FUTEBOL? Os questionamentos começam pela própria história do futebol no Brasil que pode ser reescrita. Juiz de Fora (MG) pode ter sido o berço desse esporte e de muitos outros no país, considerando os registros de partidas realizadas, na cidade, no Instituto Metodista Granbery. A versão mais aceita atualmente é a de que o futebol chegou ao solo tupiniquim em 1894 pelo brasileiro Charles Miller. Em abril de 1895, foi registrada a primeira partida oficial, em São Paulo, entre funcionários da São Paulo Gás Company e da São Paulo Railway. No entanto, os registros do Arquivo Histórico do colégio, em Juiz de Fora (ver foto na página

34), mostram que a bola teria rolado primeiro no campo mineiro em 1893 entre Gregos e Troianos. Há duas anotações nesse ano no livro “Registro de Notas e Matrículas do Granbery – 1890 a 1897”. A primeira, de 10 de março, informa simplesmente: “Inaugurou foot-ball and tennis”. A segunda, de 24 de junho, traz relato de competições, como salto em distância e em altura. “Houve também Indian Club; Tennis, Patecca e Foot-ball entre Gregos e Troianos. Muitos


ES PECIA L

Alvo de pesquisa: jogadores do Bonsucesso Futebol Clube, no Bairro Industrial, Zona Norte de Juiz de Fora, em mais um dia de treino. O clube reúne cerca de 200 meninos, entre 5 e 17 anos, da cidade e também de Matias Barbosa (MG), há 19 anos

amigos assistiram, o Collegio Mineiro brilhantou (sic) a ocasião. Teve foguetes, bandeiras etc. Serviu-se lunch na varanda.” A mescla de português com erros de grafia e inglês nas anotações feitas à mão são do americano John McPhearson Lander, o primeiro reitor do Instituto. Ou podemos chamá-lo do pai do futebol no Brasil em vez de Charles Miller? O coordenador do Arquivo Histórico e do Museu do Granbery, Ernesto Giudice Filho, prefere não entrar na polêmica, mas lista mais uma evidência do pioneirismo juiz-forano. “Existe uma carta, datada de 1892, escrita pela filha de Lander, que diz que o pai havia retornado da Inglaterra nesse ano com um livro de regras, um par de calçados e uma bola. Suponho que os calçados tenham sido parecidos com as chuteiras”, afirma o documentalista. Apesar de ter o registro, poucas publicações abordam os jogos em Juiz de Fora. Uma delas é o Atlas do Esporte no Brasil on-line, no capítulo sobre o esporte na cidade, escrito

pelos professores da Faculdade de Educação Física e Desportos (Faefid) da UFJF, Maurício Bara, Marcelo Matta, José Augusto Pereira, José Marques Novo Júnior e Renato Miranda. No caso da paternidade do futebol no Brasil, o meio de campo embola quando surgem mais versões sobre a origem desse esporte no país. Há quem reivindique a introdução na cidade do Rio de Janeiro, no campo do Paissandu, entre 1875 e 1876, ou em Jundiaí, na região metropolitana de São Paulo, em 1882, por Mr. Hugh. De fato, o futebol foi mais bem promovido fora das escolas e clubes pelo empenho de Charles Miller, conforme o pesquisador Ronaldo Helal, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Nessa história, John Lander só não pode ficar esquecido no banco de reserva. Enquanto isso, a bola rola. Ou melhor, outras pesquisas são elaboradas. Uma delas é sobre características de jogadores brasileiros.

PERFIL DE JOVENS ATLETAS Imagine-se como o responsável por escalar um time de garotos de 13 e 14 anos (categoria sub15) e outro de 15 e 16 anos (sub-17) para um clube tradicional em busca de novos talentos. Entre eles há dois tipos de perfis: aqueles com alto desempenho físico, robustos, altos e outros com performance física, estatura e massa corporal medianas. Quais biotipos escolheria para compor os times? Um detalhe: as habilidades para conduzir a bola são similares. Lembre-se de que grandes atletas começaram cedo até serem convocados para times profissionais: Neymar, Ronaldo, Messi, Cristiano Ronaldo. A boa escolha é importante. Questões como essa estimularam o professor da Faefid da UFJF, Marcelo Matta, a desenvolver pesquisa de doutorado, defendida A3 A3-Abril - Abril a Agosto/2014

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Foto: Natália Ferreira

Professor da UFJF, Marcelo Matta, defendeu pesquisa de doutorado na Universidade do Porto (Portugal), sobre o efeito da maturação biológica no desempenho do atleta

Documento do Arquivo Histórico do Granbery (A.F.T.): Juiz de Fora pode ter sido o berço do futebol no Brasil

em março de 2014, na Universidade do Porto (Portugal). O estudo foca o efeito da maturação biológica no desempenho do atleta. “Jovens que nasceram no dia 1º de janeiro competem com outros nascidos em 31 de dezembro do mesmo ano. São 12 meses de diferença – em adulto isso não apresenta problema, mas em crianças e adolescentes sim. Torna-se mais preocupante se considerarmos que uma faixa etária (sub-15, por exemplo) é composta por futebolistas de dois períodos de nascimento, de 13 e 14 anos. Esse fenômeno, muito observado no futebol, mostra que a maioria dos futebolistas das equipes de formação nasceu no primeiro quartil do ano (janeiro, fevereiro e março), fato explicado pela influência da maturação.” São aqueles em que a idade cronológica, marcada na carteira de identidade, não condiz exatamente com o aporte

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físico, parecem garotos mais velhos, desenvolvidos fisicamente. Nesse chamado efeito da idade relativa, adolescentes com desenvolvimento biológico mais avançado costumam ter melhor desempenho físico e serem escolhidos pelos clubes, mas pouco se sabia a respeito da influência da maturação nas habilidades técnicas e motoras de jovens jogadores brasileiros, como o controle e a condução da bola. Para auxiliar nessa descoberta, o docente avaliou 245 garotos, de 13 a 16 anos, das categorias infantil e juvenil (sub-15 e sub-17), em Juiz de Fora (ver arte na página 35). É um estudo inédito no Brasil – nenhuma pesquisa com esses objetivos havia sido aceita em publicações científicas internacionais qualificadas, segundo Matta.

CRITÉRIOS EM XEQUE O professor analisou os índices obtidos nos testes de cada categoria separadamente (sub-15 e sub-17), descrevendo suas características, e, em seguida, comparou os dados entre as duas. Os resultados da pesquisa apontam para possível supervalorização dos efeitos da maturação biológica dos futebolistas quando ela é utilizada como um dos principais critérios para selecionar jogadores. Isso porque, como já era esperado, os jovens de 15 e 16 anos “são mais altos e pesados, apresentaram desempenho físico superior nas provas funcionais que avaliam a força explosiva, resistência e potência”, afirma o professor. Mas, em relação à habilidade com a pelota, como


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domínio da bola e precisão do chute, os mais velhos não mostraram desempenho significativamente superior aos adolescentes mais novos, da categoria sub-15. A influência da maturação somente foi mais evidente quando os adolescentes de 13 e 14 anos são comparados entre si. Os garotos com sinais biológicos avançados mostraram mais força e potência. Novamente, no quesito habilidade técnica, todos apresentaram índices semelhantes, independentemente de terem nascidos em janeiro ou em dezembro de um mesmo ano. “Sendo assim, treinadores de futebol devem estar atentos às possíveis influências da maturação no desempenho de seus atletas na categoria sub-15, pois os mais avançados maturacionalmente podem evidenciar maiores dimensões somáticas (altura e peso) e um superior desempenho funcional (velocidade, agilidade e capacidade aeróbia) em relação aos seus pares classificados como normomaturos”, explica o docente. Considerando esses aspectos, em princípio, garotos mais amadurecidos fisicamente teriam vantagens em competições somente dessa faixa etária. Na comparação restrita aos jovens da categoria sub-17 (de 15 e 16 anos), o desenvolvimento biológico avançado não é significativo estatisticamente nem mesmo em relação à performance física. Ou seja, o adolescente pode ter traços maturacionais, como ser mais alto, forte e robusto, mas que não garantem boa atividade em campo. “Nesse caso, portanto, treinadores precisam considerar estratégias para aqueles garotos que desenvolvem suas habilidades no ‘tempo normal’, pois a pesquisa, assim como outros estudos, mostra que pode haver exagero em valorizar demais o desenvolvimento físico do garoto. O desempenho esportivo resulta da interação de diferentes variáveis”, alerta Matta. O garoto robusto e peça-chave do time sub-15, nascido geralmente nos primeiros meses do ano da sua categoria, pode não ser a estrela em ascensão amanhã, uma vez que os efeitos da idade relativa podem ser minimizados ao longo do tempo e as habilidades motoras melhoram com a idade e a prática, conforme outras pesquisas realizadas pelo professor. O sucesso, nesse caso, é um processo de longo prazo, adequando os níveis de exigência competitiva e treinos com as características de crescimento, maturação e desenvolvimento dos praticantes, conforme Matta (ver arte do estudo sobre a influência da profissionalização na obtenção de prêmios na página 36) . Logo, se no início desta seção você, leitor, escolheu jovens com desenvolvimento físico mais avançado para compor seu time de garotos de 13 e 14 anos, a princípio, acertou, pois poderá preci-

sar de adolescentes fortes e velozes. Mas errou caso tenha apostado somente nesse biotipo para formar o time de 15 e 16 anos, uma vez que o desempenho físico e a habilidade técnica são semelhantes entre os mais desenvolvidos e os normomaturos. Em se tratando de grandes clubes, a escolha inadequada do jogador de futebol pode significar o investimento a mais de recursos nas categorias de base, desgaste do jovem jogador entre outras consequências. Há o risco de deixar de fora novos Neymar ou Messi. Nesse caso, a ciência trabalha para otimizar os critérios de escolhas. “Nem sempre isso é possível, o ser

humano é uma ‘caixinha de surpresas’, não dá para precisar com exatidão seu potencial.”

FUTEBOL PARA EXPORTAÇÃO Entre os adolescentes pesquisados pelo professor, estão jogadores do Bonsucesso Futebol Clube, no Bairro Industrial, na Zona Norte de Juiz de Fora (MG), que reúne cerca de 200 meninos entre 5 e 17 anos de bairros da cidade e de A3 - Abril a Agosto/2014

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Matias Barbosa (MG) há 19 anos. O artilheiro de um campeonato local, em 2013, com seis gols, Wendell Santos Oliveira, 16, está há mais de dois anos no projeto e sinaliza desenvolvimento funcional e técnico ao longo do tempo. “Melhorei o condicionamento físico com a preparação daqui e sou incentivado a fazer virada de jogo, treinar com um toque só e fazer finalizações”, lista o jovem atleta.

“Estamos vivendo um momento em que a tecnologia assume, em boa parte das vezes, instância majoritária para a compreensão e tomadas de decisões no jogo” (Ricardo Bedendo, professor da Faculdade de Comunicação) Além dos reflexos sociais, o projeto é pelo terceiro ano consecutivo o que mais conquista prêmios em Juiz de Fora e em campeonatos regionais. “Atribuímos as vitórias à experiência obtida ao longo do tempo. A maioria joga há quatro ou cinco anos aqui. E somos a única escola da cidade a aceitar garotos de 5 anos”, afirma um dos treinadores do time, Bruno Garcia Motta (Piuí), especialista em futebol. Esse aprendizado desde cedo com a bola, as conquistas da seleção brasileira, o “jogo bonito” ou mesmo o gingado brasileiro em campo explicam o interesse de clubes e escolas americanas em conhecer a técnica brasileira. Pelo terceiro ano, Piuí irá aos Estados Unidos com outros treinadores repassar conhecimentos para técnicos de lá. “Ficarei dez semanas, uma em cada cidade, trabalhando seis horas por dia. É preciso elaborar e justificar aos treinadores entre 120 a 200 exercícios técnicos que passamos para os garotos de 14 a 17 anos. É uma série diferente a cada 20 a 30 minutos”, explica. Na bagagem de volta, ele também traz informações sobre preparação física, área em que os americanos possuem mais expertise. A vivência do profissional é levada aos encontros semanais do Grupo de Estudos em Futebol da UFJF, coordenado pelo professor Marcelo Matta, que conta com a presença de mais treinadores locais e estudantes. O objetivo é estreitar a relação entre a academia e os profissionais, ser referência na pesquisa sobre futebol no país, criar equipes de treinamento para jovens e desenvolver um currículo com o conteúdo teórico, técnico e tático para ser ofertado na formação de futebolistas no Brasil.

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BASE SÓLIDA

TIME DO FUNIL Os milhares de atletas adolescentes de Juiz de Fora ou de qualquer cidade ou país com tradição no futebol precisam lidar com uma situação frustrante ou, às vezes, positiva: a temida peneira para ingressar nos times profissionais. Não há pesquisas que indicam qual é o percentual de aproveitamento dos jovens em clubes tradicionais e raros são aqueles que divulgam seus percentuais quando possuem. Saber qual é o índice de aproveitamento dos jovens esportistas nas equipes adultas é importante para, entre outros motivos, “verificar se a metodologia implantada no processo de formação de seus futebolistas apresenta resultados significativos”, afirmam os bacharéis em Educação Física pela UFJF Sebastião Salgueiro Júnior e Leonardo Lima Dias. Diante da realidade desse funil no futebol e da

falta de estudos e dados sobre o tema, os dois estudantes conseguiram verificar que apenas 25,4% dos 1.304 jogadores de todas as 46 seleções da Copa do Mundo de 2006 e de 2010 também atuaram em algum dos mundiais das categorias sub-17 e sub-20 ou somente em um deles. A dupla vasculhou informações em sites de confederações e cruzou dados dos mundiais juvenis desde 1977. Após essa etapa árdua, foi buscar possíveis razões para os percentuais de cada continente e de algumas seleções (ver arte acima) O índice baixo de aproveitamento dos jovens – somente um em cada quatro jogadores na média mundial – pode indicar que poucos ascenderam à mais alta competição por métodos inadequados de treinamento, pressão para descobrir novos talentos, concorrência com jogadores mais velhos, lesões, interesses externos ao futebol, entre outros fatores, explica Leonardo Dias.

Ainda conforme o estudo, o resultado obtido pelas seleções juvenis pode ter influenciado na escolha da seleção adulta. Uma das campeãs dos mundiais sub-17 e sub-20, a Argentina aproveitou 55% das suas equipes iniciantes. Na Austrália, o percentual chega a 69%, “talvez pela pouca tradição do esporte no país e concorrência”, supõem os autores. Na lanterna, aparecem países como Dinamarca, Suécia, Grécia, Eslovênia e Sérvia com nenhum jogador aproveitado. Entre os brasileiros, o índice foi acima da média: 13 jogadores, ou 34% dos 38 selecionados nos mundiais da Alemanha e da África do Sul atuaram em alguma das disputas sub-17 e sub-20, como os laterais-direito Daniel Alves e Maicon e o atacante Ronaldinho Gaúcho. Para manter esses jovens no país, é preciso oferecer melhor estrutura. Parte deles “vai tentar sucesso na Europa, mesmo com um processo de formação ainda incompleto e, em alguns casos, jogam em times inferiores e países fracos no futebol”, explica Leonardo Dias. O profissional chama atenção para o fato de a Espanha, campeã da Copa de 2010 e colecionadora de outros títulos recentes, ter aproveitado mais da metade dos seus jovens e ressalva o caso da Itália, campeã em 2006, mas com apenas 5% de reingresso. “A Espanha, no final da década de 1990, criou um plano de desenvolvimento de futebol que consistia na formação de treinadores extremamente qualificados para implantar metodologias de trabalho com jogadores jovens desde os 5 anos de idade. E os clubes alemães de primeira e segunda divisões foram obrigados a criar academias de futebol para a formação de jovens jogadores”, afirmam Sebastião Júnior e Leornado Dias, que foram orientados pelos professores Marcelo Matta, da UFJF, e Francisco Zacaron Werneck, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Quando comparadas as seleções de cinco continentes, a Europa apresenta o percentual mais baixo (16,4%) de reaproveitamento dos jogadores, enquanto a Ásia o maior (39,9%).

SOCIEDADE FUTEBOL CLUBE O futebol também é o foco de estudos no Núcleo de Pesquisa em Comunicação, Esporte e Cultura da UFJF (Nupescec), coordenado pelo professor Márcio Guerra, que possui investigações sobre identidade do futebol brasileiro, narração e jornalismo esportivos, entre outros temas. A3 - Abril a Agosto/2014

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GOLEIRO, OLHO NO LANCE!

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odos sabem que uma boa defesa para o goleiro é fundamental, mas a bola lançada por ele também faz diferença em um campeonato. Na série A do Brasileirão de 2011, a influência foi negativa… O bacharel em Educação Física pela UFJF Fernando Corrêa encontrou, em pesquisa inédita, percentual alto de erros nos lançamentos realizados pelos goleiros em centenas de partidas de todas as 38 rodadas do campeonato e de todos os 20 times participantes. Do total de bolas lançadas pelo camisa 1, entre 48% e 75% não chegavam ao jogador-alvo ou ele não a dominava. Os acertos ficaram na faixa entre 25% e 52%. “Em se tratando de atletas profissionais que disputam o principal campeonato nacional,

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este fato torna-se preocupante, pois apenas um dos goleiros analisados (Rogério Ceni, do São Paulo), de um total de 24, apresentou valores de acertos (52%) maiores em relação aos erros (48%)”, afirma Corrêa, que é treinador de goleiros. No estudo, entre todos os lances dos 11 jogadores até um terço foi executado pelo defensor do gol. A partir desses dados, a pesquisa utilizou métodos estatísticos para correlacionar a quantidade de acertos e erros do goleiro com a pontuação obtida pelos times. Os lances certeiros ou equivocados não são determinantes para a vitória, pois precisam vir acompanhados do desempenho dos outros dez jogadores. No entanto, a pesquisa mostra que “o lançamento correto tem uma influência negativa menor em

relação ao errado, o que faz refletir sobre a integração do goleiro no modelo de jogo da equipe”, diz Corrêa. “O resultado indica que o goleiro tem uma parcela de participação relevante na fase ofensiva. O tiro de meta assim como os outros meios de reposição de bola feitos pelo goleiro podem se tornar uma importante forma de começar um momento ofensivo quando explorados corretamente.” Ou seja, pode estar havendo algo errado em priorizar demais o trabalho de defesa, minimizando a prática de lançamentos. “A maioria do treinamento existente e aplicado aos goleiros não oferece esse treino de características ofensivas”, afirma o profissional, cuja pesquisa pode ser referência para treinos.


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O professor defende, ao lado de outros pesquisadores e escritores, como Roberto DaMatta e Nelson Rodrigues (1912-1980), que o futebol, apesar de ter nascido na Inglaterra, ganhou identidade brasileira e ainda se mantém como expressão da cultura nacional. “Percebemos isso claramente. O cotidiano e o comportamento do brasileiro são como um jogo para driblar as adversidades. E a imprevisibilidade do futebol, em que o fraco pode vencer o forte, é o nosso jeitinho brasileiro, de contornar aqui e ali. É da nossa ginga no dia a dia ao gingado em campo”, afirma. O esporte com sua mistura étnica, cultural e de classes sociais, seria, conforme o pesquisador, um retrato com o qual o brasileiro consegue se identificar. E essas características são reforçadas pelos meios de comunicação, que também precisam manter o espetáculo vivo para obter audiência. Por isso, não é somente quando a seleção está em fase ruim, perdendo jogos, que há afastamento do público. O desconforto ainda vem a partir dos momentos em que a equipe enfatiza demais a técnica e os resultados, em jogos frios, como na Copa de 2010, distante do perfil do brasileiro médio. “O patrocínio de uma multinacional para a seleção levou o time para jogar no exterior, longe do torcedor, criando também distanciamento”, acrescenta o professor. Oportunidades de reaproximação aconteceram com a Copa das Confederações, em 2013, e novas devem surgir com o Mundial neste ano no Brasil, de acordo com Márcio Guerra. O evento ainda traz a chance de aferir a validade do “complexo de vira-latas” do brasileiro, 64 anos após a derrota na final da Copa de 1950. A expressão,

criada na época por Nelson Rodrigues, remete ao hábito da população em se posicionar de modo inferior diante dos outros povos. E as mudanças ocorridas na sociedade, ao longo da última década, foram sendo incorporadas ao campo de futebol, que também exporta referências para o público, a exemplo da valorização da estética e o culto ao corpo pelo brasileiro. Esses aspectos podem ser detectados no esporte por meio do fortalecimento do cuidado com a imagem do atleta, como nos casos de Kaká e Neymar, transformados em fenômenos midiáticos. “Sobre Neymar recai mais do que uma esperança no futebol; o povo brasileiro se identifica com o seu jeito moleque, seu corte de cabelo e ‘dancinhas’ para comemorar os gols”, afirma Guerra. Outro indício do par sociedadefutebol é o crescimento de 61% na quantidade de evangélicos no Brasil, na última década, representando 22,2% dos brasileiros. A mudança pode ser percebida no gramado. “O futebol continuou sendo um espaço de conquista de diversas manifestações religiosas, especialmente dos evangélicos, com jogadores misturando, nos discursos e gestos, religião e esporte.” Um dos traços marcantes do brasileiro, dentro e fora do campo, é sua relação com a música, desde o grito de torcida e hinos às produções no samba e pop.

FOOTBYTE Que tal em um domingo ensolarado jogar footbyte? Não é nova opção em video game ou mudança no nome do esporte. É a expressão usada pelo professor da Faculdade de Comuni-

cação, Ricardo Bedendo, para demarcar fortes mudanças tecnológicas que vêm ocorrendo dentro e fora dos estádios de football, em inglês. “Estamos vivendo um momento em que a tecnologia assume, em boa parte das vezes, instância majoritária para a compreensão e tomadas de decisões no jogo, seja por meio de telões, lentes potentes, recursos gráficos e mais recentemente a inserção de chip na bola, ou byte na ball. Na Copa do Mundo, no Brasil, a inclusão do chip terá seu teste maior”, ressalta o professor. O novo recurso poderá indicar, por exemplo, se a bola passou pela linha de gol em lances duvidosos. Bedendo discute as mudanças nas formas de vivenciar o futebol, pautadas pelos avanços tecnológicos e comunicacionais no que considera novas “arquiteturas da experiência e do olhar”, a exemplo de estádios que privilegiam um espetáculo para ser visto. Experimente acompanhar um jogo de times desconhecidos somente pelo rádio e a reprise da partida na internet ou na TV para sentir as diferenças de percepção. Como ouvinte, sua imaginação, capacidade de abstração e o locutor ajudam. Apesar de, na TV, a narração ser semelhante à radiofônica, a câmera pode colaborar até quando recupera um lance e mostra detalhes do jogo. As tecnologias comunicacionais e os bytes ampliam a visão do telespectador, em um “hiper olhar” e “hiper viver” cada segundo de informação, segundo Bedendo. “A partir desses avanços, o torcedor tem mais possibilidades de interferir nas decisões dos clubes, árbitros, jogadores e da própria imprensa, pois tem acesso a essas tecnologias, pode se manifestar pelas redes sociais, ter mais subsídios para opinar.”

MAIS Marcelo de Oliveira Matta Doutor em Ciências do Desporto pela Universidade do Porto (Portugal); professor da Faculdade de Educação Física da UFJF bit.ly/marcelomatta

Márcio de Oliveira Guerra Doutor em Comunicação (UFRJ); professor da Faculdade de Comunicação da UFJF bit.ly/marcioguerra www.ufjf.br/marcio_guerra

Ricardo Bedendo Mestre em Ciências Sociais (UFJF); professor da Faculdade de Comunicação da UFJF bit.ly/ricardobedendo

Núcleo de Pesquisa Comunicação, Esporte e Cultura da UFJF www.ufjf.br/nupescec

Revista Brasileira de Futebol www.rbfutebol.com.br

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Parque Tecnológico coloca a Zona da Mata no mapa da inovação Empreendimento facilitará o desenvolvimento de negócios inovadores que dinamizem a economia regional e beneficiem a sociedade por meio da promoção de um ambiente de integração entre instituições de ensino e pesquisa, empresas e governo Zilvan Martins Repórter

C

om a proposta de consolidar na Zona da Mata Mineira a formação de uma forte e competitiva indústria baseada no conhecimento, o Parque Científico e Tecnológico da Universidade Federal de Juiz de Fora se torna realidade em 2014 com o início das suas obras de infraestrutura. Depois que for erguido, sua missão será facilitar o desenvolvimento de negócios inovadores que dinamizem a economia regional e beneficiem a sociedade por meio da promoção de um ambiente de integração entre instituições de ensino e pesquisa, empresas e governo. E a

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meta, segundo o secretário de Desenvolvimento Tecnológico da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e um dos responsáveis pelo projeto, Paulo Garcia Nepomuceno, é ser reconhecido, até 2023, como o melhor ambiente nacional para o desenvolvimento de negócios inovadores. O primeiro parque tecnológico do mundo surgiu nos Estados Unidos, há mais de seis décadas. O modelo começou a se consolidar no Brasil nos anos 90. O país abriga hoje, segundo o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), 94 parques, sendo 28 em operação, 28 em

implantação e 38 em fase de planejamento, a maioria nas regiões Sul e Sudeste. A ideia de um parque tecnológico em Juiz de Fora (MG) surgiu na última década do século passado. Contudo, o atual projeto começou em 2006 quando a UFJF estabeleceu como meta intensificar o relacionamento da instituição com os mais diversos setores da sociedade. A partir daí, começaram os estudos para identificar mecanismos que propiciassem à Universidade externalizar suas competências e, ao mesmo tempo, enxergar as demandas existentes na sociedade. As pesqui-


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Reprodução do projeto arquitetônico do Parque Científico e Tecnológico da UFJF

sas apontaram que o caminho era a criação de um parque tecnológico. “Começamos a estudar as experiências internacionais e brasileiras e observamos a necessidade de uma série de condições estabelecidas para que o parque pudesse ser criado. Encomendamos, então, o Estudo de Viabilidade Técnica Econômica (EVTE) do empreendimento que constatou que, além de viável, atuaria como um dos principais vetores de desenvolvimento da Zona da Mata Mineira, provendo a “inteligência”, a infraestrutura e os serviços necessários ao crescimento e fortaleci-

mento das empresas intensivas em tecnologia”, explica o secretário. Além de analisar a dinâmica da economia de Juiz de Fora e região, suas oportunidades, condições fiscais oferecidas, logística e Arranjos Produtivos Locais (APLs) existentes, o EVTE apontou um dado importante para a efetivação de um parque tecnológico: uma fervilhante produção de conhecimento – não só dentro da UFJF, mas nas outras seis universidades federais da região – recurso fundamental para a competitividade das empresas na economia globalizada.

Para o professor do Departamento de Física do Instituto de Ciências Exatas (ICE) da UFJF e assessor do Parque, Paulo Barone, apenas recentemente as universidades se qualificaram. “Em 1994, tínhamos menos de 30 doutores na UFJF e o processo de produção de conhecimento na instituição era isolado. Hoje temos um terreno completamente diferente, fértil, com professores mais titulados. Demos um salto significativo na pós-graduação, passando de três mestrados para cerca de 50 cursos de pós-graduação. E com os programas de incentivos à inovação, A3 A3-Abril - Abril a Agosto/2014

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com a incubação de empresas, por meio do Critt (Centro Regional de Inovação e Transferência de Tecnologia), que foram capazes de trazer ao terreno da economia alguns dos aportes de aplicação do conhecimento gerados na UFJF, a instituição se mostra capaz de catalisar ainda mais este impulso inovador, por meio do Parque Tecnológico, dinamizando a economia da região.”

PLANO DE NEGÓCIOS Quando o Parque Tecnológico começar a operar – previsto para o primeiro trimestre de 2015 –, terá um diferencial qualitativo importante em relação às outras experiências do Brasil: um Plano de Negócios bem estruturado. Este documento norteador das ações estratégicas do empreendimento, elaborado por uma equipe multidisciplinar, com supervisão da Fundação Dom Cabral, foi concluído no segundo semestre de 2013 e já é considerado um dos melhores do país, segundo a Finep – empresa pública ligada ao MCTI. O Plano de Negócios foi parte importante de um projeto que recebeu R$ 4.257.593,01 em uma chamada pública do Governo federal. Cerca de 40 parques no Brasil participaram da concorrência, nove foram selecionados, e o de Juiz de Fora ficou atrás somente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Unicamp. O documento também recebeu R$ 900 mil do Governo de Minas Gerais. A presidente da Associação Nacional de Entida-

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des Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec), Francilene Procópio Garcia, confirma o potencial do Plano de Negócios do Parque da UFJF, afirmando que os projetos apresentados na chamada pública foram considerados pelo MCTI como altamente qualificados. “Há um entendimento, por parte do Governo federal, que os parques alavancam o desenvolvimento regional e sustentável e, portanto, devem ser mais do que apenas espaço para instalação de empresas. Por isso, os projetos selecionados para receber estes recursos deveriam apresentar informações bem consolidadas, o que de fato acabou ocorrendo.” Durante a elaboração do Plano de Negócios, várias ferramentas de interpretação foram usadas. Dados brutos da economia da região transformaram-se em um quadro analítico compreensível que contribuirá para consolidar uma economia baseada no conhecimento, capaz de aumentar a produtividade, agregar valor e dar competitividade ao setor industrial, agrícola, têxtil, moveleiro e a outros serviços já estabelecidos na Zona da Mata Mineira. Outro diferencial do Plano apontado pelo exsecretário de Estado de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Minas Gerais, Alberto Duque Portugal, atual consultor do Parque, é o fato de que a mesma equipe que elaborou o estudo será responsável por implantá-lo. “Este grupo de jovens talentos se debruçou sobre a realidade da região e buscou conhecer as diferentes facetas da nossa economia e, hoje, sabem onde e como

o Parque deve operar. O processo de elaboração deste documento foi diferente. Não contratamos um consultor externo, apenas a orientação metodológica da Fundação Dom Cabral. O desenvolvemos com inteligência local, por isso ele é tão consistente e adequado à nossa realidade. Esta dinâmica adotada vai ao encontro dos valores do Parque que tem como uma de suas premissas a valorização das pessoas.”

ÁREAS DE ATUAÇÃO Os serviços que serão oferecidos pelo Parque foram distribuídos em três áreas de negócio denominadas como Projetos, Imobiliário e Processo de Incubação. A área de Projetos será responsável por receber todas as demandas que chegarem ao Parque, analisar a possibilidade de realização e, em seguida, encaminhá-las para o devido setor de negócio. As demandas intensivas em conhecimento, que não forem destinadas ao Processo de Incubação ou Imobiliário, serão executadas na forma de projeto por esta área. O setor Imobiliário será destinado às empresas de base tecnológica e centros de PD&I que possuem interesse em se instalarem no Parque e às fornecedoras de serviços e comércio, alocados em zonas exclusivas, com o intuito de fornecer suporte às atividades do local. Já a área de Incubação de Empresas será dividida em três processos: Pré-Incubação, Incubação e Associação de Empresas.


D E S E N VO LVI MENTO REGIONA L

A Incubação de Empresas – processo já realizado pela UFJF desde 1995 por meio do Critt – é uma grande oportunidade de novos negócios entrarem no mercado, transfigurando ideias em empreendimentos inovadores. Estas novas empresas são classificadas como Start-ups, companhias geradas a partir de ideias ou resultados de pesquisas que derivam em protótipos, tecnologia e, finalmente, produtos. De acordo com o secretário de Tecnologia da UFJF, a Incubadora de Base Tecnológica do Critt passará a operar no Parque assim que este estiver em funcionamento. “Do ponto de vista do desenvolvimento regional, a incubação é um processo fundamental dentro da filosofia do Parque. Empresas que nascem em uma determinada região são mais comprometidas com a realidade local devido às questões históricas. Contudo, queremos colocar Juiz de Fora e região no mapa da tecnologia mundial e, além de captar empresas âncoras, com inserção internacional, vamos também dar uma visão global para Start-ups e Spinoffs acadêmicas locais” destaca Nepomuceno. Uma destas empresas âncoras já confirmadas é a portuguesa Nanium Participações Ltda., fabricante de semicondutores e fornecedora de serviços de desenvolvimento, testes e engenharia. No dia 10 de fevereiro de 2014, em reunião realizada na UFJF, executivos da Nanium reafirmaram compromisso de se instalarem no Parque já no início de 2015. O HidroEX – centro de capacitação e pesquisa em águas, com sede em Frutal (MG), que integra o programa hidroló-

gico internacional da Unesco, também já assinou protocolo de intenção para instalar um dos seus núcleos no empreendimento, assim, como, o Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores (Inesc), centro de pesquisas da Universidade do Porto (Portugal).

ESTRUTURA FÍSICA O Parque Científico e Tecnológico da UFJF está sendo construído em um terreno adquirido pela Universidade de 1.022.000 metros quadrados localizado à margem direita da Rodovia BR-040, Km 790, em frente ao Expominas. O investimento total é de cerca de R$ 100 milhões e a maior parte dos recursos é proveniente da União. O local contará com áreas de serviços e comércio e de administração. Terá, ainda, restaurante, bar, hotel, academia de ginástica, agências bancárias e de comércio exterior. A área Administrativa e de Apoio abrigará 12 laboratórios, dois auditórios, dez salas de reuniões, setor de incubação de empresas e um centro de eventos. A área de Pesquisa e Produção será o espaço destinado à instalação

Mapa da Logística de empresas. O Parque conta com certificação ambiental, podendo construir qualquer tipo de edificação, sejam centros de PD&I ou produção. O projeto arquitetônico chama a atenção por ser inovador, dentro da lógica da construção green building, envolvendo uma série de questões de sustentabilidade aplicadas às edificações empresariais. No momento de planejamento e execução do projeto urbanístico do Parque levou-se em consideração o ativo ambiental existente no terreno como, por exemplo, duas nascentes localizadas no local.

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empresas das regiões da Zona da Mata e do Sul Fluminense respondem a questionário para detectar as demandas na área de tecnologia e inovação. O resultado constará no plano de ação do empreendimento.

COOPERAÇÃO E GERAÇÃO DE RIQUEZA

O consultor externo Alberto Portugal; o secretário de Ciência e Tecnologia da UFJF, Paulo Nepomuceno; e o professor de Física da UFJF e assessor Paulo Barone

POLÍTICA DE COMUNICAÇÃO E PLANO DE MARKETING Como o Parque tem o compromisso de alavancar o desenvolvimento regional, um dos seus maiores desafios será a gestão da informação. Ele terá por obrigação ir ao encontro de empresários da região no sentido de sondar quais são as oportunidades, os desafios de caráter de inovação e/ou tecnológico e quais processos e produtos que poderá impulsionar. Terá o papel de mostrar novas ideias e tecnologias que surgem e com isso aguçar o interesse do empresário. Para direcionar esta comunicação, a UFJF contratou o jornalista e professor da Universidade Metodista de São Paulo, Wilson da Costa Bueno, para elaborar a Política de Comunicação do Parque. O documento foi concluído em janeiro de 2014 e é o primeiro do Brasil na área de parques tecnológicos. Enquanto o Plano de Negócios visa atender ao conjunto de demandas e expectativas dos públicos estratégicos do Parque com a oferta de produtos e serviços adequados, a Política de Comunicação concentra-se no esforço institucional

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para dar visibilidade à sua atuação, buscando, a partir de canais adequados e competentes de relacionamento, divulgar as atividades do empreendimento, captar demandas e percepções dos stakeholders e consolidar sua imagem e reputação. Esta política orientará o desenvolvimento de ações e estratégias que favoreçam não só a prospecção das demandas do mercado, em particular das principais cadeias produtivas que caracterizam a região, mas implementará canais e estratégias para uma interação permanente, criando laços de relacionamento sólidos e duradouros que potencializam o crescimento do Parque e o desenvolvimento regional. Para Alberto Portugal, um empreendimento inovador que pretende impactar a economia de toda uma região precisa, necessariamente, de uma Política de Comunicação bem definida. “O ciclo de inovação possui três fases importantes: saber, querer e poder. Primeiro é necessário saber que existe uma oportunidade para depois fazer a decisão política de querer utilizá-la e, por último, ter capital e gente qualificada para implementá-la. Mas se não acontecer o primeiro, não acontece o resto. Neste ponto, a Política de Comunicação é extremamente importante no papel de informar o empresário e levar a ele o que há de mais avançado na área que atua.” Finalizada esta Política de Comunicação, os gestores do Parque trabalham, agora, no Plano de Marketing. No momento, cerca de 540

O Produto Interno Bruto (PIB) da Zona da Mata Mineira – composta por 142 municípios e uma população de 2.173.374 – é o quarto de Minas Gerais, representando apenas 7,29% do que o Estado arrecada. A região possui 8.937 indústrias, sendo 2.384 em Juiz de Fora, com vocação em confecção, têxtil, produtos alimentícios, móveis, metalurgia, metal-mecânica, celulose e papel e construção civil, entre outras. Em Ubá está localizado o segundo maior polo moveleiro do Brasil, com cerca de 510 indústrias. Temos, ainda, Arranjos Produtivos Locais fortes no setor de confecção, localizados nas cidades de São João Nepomuceno e Muriaé, além de 189 laticínios dos 960 existentes em Minas Gerais. Para o presidente da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) – Regional Zona da Mata, Francisco Campolina, apesar de nosso PIB ter crescido de 5% para 7,29% nos últimos cinco anos, a região ainda tem participação pequena na economia mineira. Campolina caracteriza este baixo desempenho à falta de investimentos, principalmente em tecnologia e inovação. “Não se produz riqueza se não for por meio da inteligência competitiva. Precisamos incentivar o espírito empreendedor dos nossos empresários e o Parque terá papel fundamental nesta missão. Para exemplificar, cito a produção leiteira da região que chega a dois milhões de litros dia. Cerca de 70% deste leite é soro e vai para o lixo. Se o Parque Tecnológico consegue realizar uma pesquisa que transforme este soro em proteína pura para suplementos alimentares, como acontece em outros países, teremos um ganho importante na economia da Zona da Mata.” Outra oportunidade de negócios apontada pelo presidente é o trabalho de pesquisa na área de energia eólica realizado pela Energiza – segunda maior companhia de energia de Minas Gerais. “A empresa, que fica a cem quilômetros de Juiz de Fora, montou nas suas dependências um núcleo chamado Energiza Soluções para pesquisar e desenvolver energia eólica. Este trabalho poderia estar dentro do Parque, utilizando toda a estrutura oferecida, aliada à expertise de professores das universidades da região. Esta interação


D E S E N VO LVI MENTO REGIONA L

entre empresas e setor acadêmico é essencial para criar um ambiente necessário para melhorar o resultado da nossa economia.” Dentro desta lógica de transformar conhecimento em produtos, o Parque Científico e Tecnológico da UFJF colocará em prática a interação entre universidades, empresas e governo, modelo conhecido como Tríplice Hélice. As universidades e os centros de pesquisa produzem o conhecimento, as empresas transformam conhecimento em produto, ou seja, fazem a inovação, e o governo motiva a interação entre estes dois elementos, facilitando e induzindo o diálogo. Para o reitor da UFJF, Henrique Duque, este é um dos novos desafios postos às universidades brasileiras. “A participação no progresso da sociedade, por meio das aplicações tecnológicas do conhecimento, tornou-se tão relevante quanto às atividades clássicas associadas às universidades. Neste quadro, os desafios para a academia envolvem a sua participação em atividades distintas daquelas em que convencionalmente atua, inserindo o país na economia globalizada baseada no conhecimento.” O assessor do Parque, Paulo Barone, afirma que as universidades brasileiras ainda têm dificuldade de compreender a pesquisa de natureza aplicada associada a uma agenda de interesse do país. Segundo Barone, ainda há um preconceito ideológico em relação à possibilidade de que as cooperações Universidade-empresa interfiram nas lógicas internas do trabalho acadêmico e na autonomia para definir a agenda de pesquisa institucional. “Esta é uma questão relevante, que requer a adoção de salvaguardas e deve ser submetida a restrições de natureza ética. No entanto, é também relevante analisar o que aconteceu nos países pioneiros neste processo, onde a estratégia de indução à colaboração Universidade-empresa não foi adotada em detrimento das políticas de incentivo à pesquisa básica. E é desta forma que precisamos começar a trabalhar aqui. Os pesquisadores das sete universidades da região não podem enxergar nas lojas do polo moveleiro de Ubá, por exemplo, apenas possíveis clientes para uma ideia que surja dentro destas instituições e que eventualmente poderia ser aplicada lá. Eles precisam ver as fábricas de móveis como potenciais criadoras de problemas que devem ser investigados para gerar aportes de conhecimento úteis para o polo moveleiro. É necessário estabelecer uma via de mão dupla. E este também será um dos papeis do Parque.”

Perspectiva Geral

INCENTIVOS FISCAIS A atuação dos governos também assume caráter essencial na efetivação do Parque Tecnológico por meio de mecanismos tributários, regulatórios e de proteção às empresas intensivas em conhecimento. Além dos incentivos fiscais já concedidos pelo Governo federal, como a Lei da Inovação, empresas que se instalarem no Parque da UFJF terão outros incentivos dos governos de Minas Gerais e Juiz de Fora. O município sancionou, em 2014, a Lei 12.838 que reduz o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) de 5% para 2% para as empresas do setor de Tecnologia da Informação (TI) que se instalarem na cidade. Segundo o prefeito Bruno Siqueira, a legislação foi feita pensando principalmente no Parque Tecnológico, “uma vez que trazendo empresas de tecnologia para Juiz de Fora vamos garantir empregos com uma remuneração melhor e, consequentemente, desenvolver o município em uma área em que ainda temos muito a explorar”. Bruno adianta que a Prefeitura já está analisando outras legislações que possam garantir a redução de impostos para empresas intensivas em conhecimento que se instalarem na cidade. Esta é a segunda Lei Municipal criada para beneficiar diretamente ao Parque. A primeira foi sancionada em julho de 2010 (12.099)

que dispõe sobre a inclusão da Área de Especial Interesse Econômico – AIEIE Parque Tecnológico – no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Juiz de Fora. Outra legislação que beneficia diretamente o empreendimento é a aplicabilidade do Decreto 45.218/09, do Governo de Minas, legislação utilizada para combater a guerra fiscal com o Rio de Janeiro. O instrumento legal equipara a 2% o percentual de cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) a ser arrecadado das indústrias de Minas ao praticado em cidades próximas à divisa com o Estado do Rio de Janeiro – por meio da Lei Estadual 4.533/05, conhecida como Lei Rosinha. Para o presidente da Fiemg – Regional Zona da Mata, Francisco Campolina, o decreto, apesar de não ser abrangente, foi importante para que mais indústrias não saíssem da cidade. “A legislação conseguiu estancar as indústrias que estavam indo embora, trouxe outras empresas, mas precisamos avançar muito, com legislações mais modernas”, afirmativa que Paulo Nepomuceno compartilha: “O mundo da inovação e da tecnologia é muito dinâmico. E para acompanhá-lo precisamos ter uma legislação moderna. Para isso, estamos estudando junto à Prefeitura e aos demais parceiros o que existe de legislação no Brasil com o objetivo de propor algo que seja realmente inovador e moderno”, garante o secretário de Desenvolvimento Tecnológico da UFJF.

MAIS Plano de Negócios do Parque Científico e Tecnológico da UFJF: http://www.ufjf.br/critt/parque-tecnologico/plano-de-negocios/

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E NCONTROS POSSÍVE I S

A memória humana em mídia: da arte em pedra ao chip Fred Belcavello Tradução e texto

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á alguns meses tenho ensaiado começar um diário. A sensação de deixar se perderem no vento as delícias de passagens cotidianas tem me atormentado. Até mesmo para o simples registro de dados me pego vacilando, por exemplo, ao encontrar ex-alunos pela rua: “Oi, Fred!”. “E aí, moça?!” - é o que devolvo, para não errar. Isso se agrava ao lembrar que quando criança construí no meio familiar uma razoável fama de garoto com “boa memória”. Sabia de cabeça escalações de times de futebol, países e capitais, datas de aniversário de parentes não muito próximos, números de telefone. Esse tipo de habilidade, porém, já não parece fazer tanto sentido (faz?). Tudo, uma vez armazenado, pode ser encontrado rapidamente numa pesquisa na internet, em infinitos bancos de dados ou arquivos pessoais digitais. E o que fazer com a nossa memória? Em passagem pelo Brasil, para vários eventos, a chefe do Departamento de Cultura, Mídia e Indústrias Criativas da King’s College de Londres, Anna Reading, expôs conceitos e pesquisas que fundamentam a discussão acerca da memória na atualidade, em face do contexto digital. Em Juiz de Fora (MG), no Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), conversou com a revista “A3”, em entrevista conduzida por mim e pela diretora do Mamm, Nícea Nogueira. - Fred Belcavello: Como as tecnologias digitais vêm impactando a noção de memória, as práticas e formas de linguagem? - Anna Reading: Penso que a memória digital ou o que chamaria de memória “globital”, a qual está relacionada com a digitalização, as práticas digitais e a globalização, está alterando radicalmente a memória humana de diversas maneiras. Primeiro, em termos das práticas nas quais estamos envolvidos, que largamente já se tornaram inconscientes. Assim, por exemplo, se você esquece o nome de alguém e precisa enviar um e-mail, você pode acessar seus arquivos digitais e localizar o nome e o e-mail por meio de uma pesquisa. E isso não é muito diferente do processo utilizado para armazenar aquela informação anteriormente. Também significa, em termos de processos educacionais, uma vez que há tecnologias digitais e conectividades, não ensinar crianças nas escolas a memorizar grandes calhamaços de poemas, literatura, ou datas e acontecimentos históricos. Trata-se muito mais de “o que fazer com aquela informação” do que ensinar crianças a decorar, porque a informação está em todo lugar, e o conhecimento está lá, em algum lugar da “nuvem”, para ser acessado por nós. Isso também significa que a linguagem atual e as metáforas que usamos para descrever nossas memórias mudaram. Assim, influenciados pelos softwares que usamos, falamos em “googar” coisas, por exemplo.

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“O ato de performance de certas memórias, a performance de canções, a leitura de um livro ‘material’, o aprendizado de um poema, ainda penso serem cruciais como valores de humanidade” - Fred Belcavello: Você se preocupa com os prós e os contras da memória digital? - Há grandes benefícios que a memória digital nos traz. Um deles é a capacidade de mudar as relações de poder, no sentido de grupos privados de direitos - minorias - capturarem memórias que, por algum motivo, tinham se perdido. Há uma pesquisa que faço, em websites, para capturar memórias da comunidade romena, da comunidade cigana na Europa. Trata-se da maior etnia minoritária, somando 11 milhões de pessoas, em 21 países europeus. Mas os ciganos estão em todo lugar, porque foram forçados a migrar. Assim, há ciganos na Austrália, na América Latina, na América do Norte. E é realmente interessante perceber como eles podem capturar em vídeo danças, poemas, elementos de cultura, histórias... e há passagens horrendas, relacionadas com o holocausto. E essas histórias podem se conectar de maneiras novas e contribuem para mudar a autopercepção do povo romeno. Isso muda sua identidade, de maneira muito positiva.

- Fred Belcavello: E os contras? - Acho que os contras estão relacionados a quanto tempo nós gastamos olhando para telas. E isso me preocupa. Muitas vezes me pego com a TV ligada, iPhone em uma mão, iPad ao colo. Com quantas telas podemos nos relacionar de uma só vez?! E penso que isso se estende para o fato de que devemos, também, lidar com tecnologia analógica. Outro fragmento de pesquisa que realizo, por exemplo, observa um grupo de protesto na Malásia que promove campanha contra uma companhia de mineração. Os manifestantes acreditam que a empresa pode causar poluição e radiação. Ao longo das negociações, a companhia permitiu a entrada dos manifestantes no local, mas proibiu que tirassem fotos - digitais - do relatório que a empresa preparou, detalhando o que faria com o lixo produzido. O que os manifestantes fizeram? Usaram lápis e papel! Era um grupo de 30 pessoas, que permaneceram no local por uma hora, escreveram o máximo que puderam e, assim, conseguiram os documentos que precisavam. Então, acho que


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tecnologias digitais podem atuar como fantásticos facilitadores para memórias, particularmente para culturas marginalizadas, mas o ato de performance de certas memórias, a performance de canções, a leitura de um livro “material”, o aprendizado de um poema, ainda penso serem cruciais como valores de humanidade. - Nícea Nogueira: Por que a globalização é fator primordial nas discussões sobre memória digital? - Acadêmicos trataram globalização e digitalização como independentes, por um longo período. E a maneira que considero em minhas pesquisas, particularmente nas relativas a telefones celulares, concluiu que ambas trabalham juntas. Assim, tem-se digitalização e globalização como dinâmicas sinergéticas que estão mudando a memória humana. “Globital” é a palavra que criei para descrever isso, juntando “global” e “bit”, a menor sequência contígua de dados em computação. “Globital” sugere que o processo de acesso às tecnologias digitais, múltiplos telefones, múltiplos tablets, não é o mesmo para todos no planeta; “Globital” é para sugerir que se trata de um processo desigual, experimentado diferentemente por diferentes populações nos estados nacionais, em termos de classe. Classes sociais significam acessos sociais, e, possivelmente, isso vale também para gêneros e etnias.

“Muitas vezes me pego com a TV ligada, iPhone em uma mão, iPad no colo. Com quantas telas podemos nos relacionar de uma só vez?! E penso que isso se estende para o fato de que devemos, também, lidar com tecnologia analógica”

- Fred Belcavello: Por que você diz que a memória é fluida, polilógica e performativa? - Por muito tempo, particularmente no que tange às explanações sociológicas sobre memórias coletivas, os estudos eram feitos, frequentemente, dentro do contexto dos estados nacionais e do senso de memória nacional. E esse senso de memória era amarrado e fixo e, geralmente, direcionado a um objeto de análise para o qual poder-se-ia “olhar para” - analisar um museu particular, por exemplo, em termos dos seus artefatos e exposições; ou a captura de histórias de um povo específico. Mas, novamente, esse tipo de pesquisa fixa os objetos. O meu ponto de vista é o de que a memória não é algo fixo; ela está sempre mudando. Esta entrevista [gravada em vídeo], assim que for publicada na internet, será - espero - “tuitada”, segmentada, reutilizada. E isso, na minha visão, é bom. Permite-nos escapar dentro da “rede”, de uma maneira que, anteriormente, seria muito mais lenta para mudar as “memórias em mídia”. - Nícea Nogueira: Como você explicaria o conceito de “memória em mídia”? - Acho que “memória em mídia” é um conceito muito importante. Trata-se de pensá-lo em três diferentes formas: uma, em termos do que A3 - Abril a Agosto/2014

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E NCONTROS POSSÍVE I S

Em passagem pelo Mamm, Anna Reading se encantou com a exposição “Um olhar livre”, do lituano Antanas Sutkus, um dos maiores fotógrafos da antiga União Soviética

chamaria de orgânico, é o corpo, o corpo humano em várias formas. E, em seguida, temos o dado, o dado digital que pode ser dividido em dois: há o vegetal - papel, livros etc. - e há a memória mineral. A memória mineral, é claro, está presente nos computares, em forma de silício, ouro, nos conectores e nas conexões. Esses três diferentes tipos de memória têm longa história. Eu vivi por quase dois anos na Austrália, e foi importante para mim em termos de me encontrar com a longevidade da “memória em mídia” aborígene. Há exemplar de arte em pedra na Austrália de 50 mil anos e foi constantemente escoriado por todo esse tempo. Aquilo é “memória em mídia”, é o senso de primeira “memória em mídia”. Existem seres humanos fazendo arte em pedra, canções, danças. E, atualmente, temos diferentes formas de “memória em mídia”, que são imagens em iPads, websites, bem como na grande mídia tradicional, como jornais, livros, televisão etc. Eu incluiria, ainda, em termos de elementos da “memória em mídia”, como elementos materiais, espaços e edifícios. Uma das coisas que me marcaram no meu curtíssimo tempo aqui no Brasil é o significado da arquitetura. Existem edifícios realmente belos, alguns estupendos arquitetos brasileiros com

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esse senso de um edifício como um espaço de memória por um longo tempo que está por vir. São os espaços pelos quais nos movemos que realmente importam. Eles também são “memória em mídia”.

“Onde estão aqueles espaços de memória autorreflexivas que acreditávamos serem privados? Onde poderemos externar os pensamentos privados que não diríamos a ninguém mais?”

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Fred Belcavello: O que é “memobilia” e quão importantes são os telefones celulares para a memória digital? - Os celulares são realmente importantes para a memória digital, para a memória humana, atualmente. A grande diferença é que pode-

mos colocá-los no bolso, na bolsa, eles vivem conosco. E, sejamos francos, quando não os temos conosco nos sentimos ansiosos! Eu fiz um estudo com alunos da London Southbank University - instituto no qual trabalhava na época - que disseram que quando não tinham os celulares consigo sentiam-se nus, solitários, ansiosos, e poucos deles, curiosamente, apontaram se sentirem livres. Portanto, esse é o tipo de sentimento misto que temos com nossos celulares. Entretanto, eles são uma “prótese de memória vestível” e carregam memórias tão mundanas quanto “lembre-se de trazer pão”, que pedimos aos nossos companheiros no caminho de casa por meio de mensagem de texto, e isso permanece lá por muito tempo, assim como “eu te amo” e muitas outras mensagens, misturadas, todas juntas. E há as imagens que temos nos celulares. É interessante perceber como as pessoas compartilham imagens de suas famílias nos locais de trabalho, porque as imagens estão nos seus celulares. Não faríamos isso há 20 anos. Não levaríamos nosso álbum de família para o trabalho, mas, rapidamente, compartilhamos imagens nos nossos celulares. Essa tecnologia provê um tipo de espaço protegido que faz com que não haja problema em mostrar


E N CO N T ROS POS S ÍVEIS

o celular. Portanto, ele é muito importante. E o que também mudou é a conectividade. O fato de que mais espaços, atualmente, sejam pontos de conexão, cobertos por rede wi-fi, significa que, rapidamente, podemos publicar em redes sociais as imagens que capturamos, acessar arquivos de informação etc. Assim o que se tem são as “memobilias” - representadas, por exemplo, por jovens fotografando “selfies” (imagens de si mesmo), trocando-as ao longo do dia infinitamente, publicando-as, preocupando-se com essas imagens. E há, ainda, o que eu chamaria de “wemobilia”, aquelas memórias que podemos ter em situações coletivas.

“Há condições materiais inerentes à nuvem para as quais o usuário do sistema também precisa ser alertado”

No Brasil, poderia ser o carnaval: você tira fotos do carnaval e compartilha; poderia ser o futebol. Mas temos, ainda, “wemobilia” no caso de imagens que testemunham atrocidades. Quando ocorreram os atentados a bomba em Londres em 2005, a primeira coisa que muitas pessoas fizeram foi pegar o celular e tirar fotos, porque os jornalistas não estavam nos locais atingidos, ainda. Vemos mais e mais na dinâmica das grandes empresas de notícias o uso de imagens de telefones celulares que, por sua vez, tem prazo de validade muito curto. A pesquisa que fiz sobre esse evento mostra que as imagens dos atentados a bomba em Londres desapareceram cinco anos depois. Portanto, elas não permanecem, e o que se tem no lugar são memoriais físicos para as atrocidades e mortes, túmulos, que continuam importantes. Todavia, os celulares são, ainda, os reis em termos de serem capazes de, instantaneamente, capturar memórias de eventos e compartilhá-las.

- Fred Belcavello: Nesse contexto, o que acontece com os limites entre a memória pública e a memória individual? - Essa é uma área mais problemática em face da conectividade. Acho interessante, por exemplo, que muitos pais optem por colocar imagens de seus filhos no Facebook. Eu tenho dois filhos e a política na nossa família é de que não publicamos fotos deles, porque eles não podem consentir. Quando eles completarem 18 anos, poderão consentir. Fora isso é caso a caso. Uma biografia on-line, sobre à qual crianças não têm controle algum, é muito diferente de ter um álbum de família, no qual há imagens das nossas crianças compartilhadas por familiares. Outra mudança interessante se dá pelos blogs e o deslocamento de um diário privado para a escrita para terceiros, o que significa sempre estar em diálogo com outro. Isso pode ser bom, e também mau. Onde estão aqueles espaços de memória autorreflexivas que acreditávamos serem privados? Onde poderemos externar os pensamentos privados que não diríamos a ninguém mais? Assim, penso que há grandes deslocamentos em termos do privado e do público que ainda estão por chegar a uma definição. Não sabemos ainda o impacto para nós, como seres humanos.

riais. Frequentemente, as empresas estão em tensão com comunidades locais, já que muitas se instalam em cidades pequenas, porque os terrenos são mais baratos, e, então, isso muda o ambiente. Dessa forma, há condições materiais inerentes à nuvem para as quais o usuário do sistema também precisa ser alertado.

- Fred Belcavello: Quais as implicações da adoção do sistema de nuvem como o principal modelo de arquivamento de informação digital? - O sistema de nuvem é interessante, em certa maneira, até mesmo a metáfora por si só: é vaporoso! Sugere que não está em lugar nenhum, que a memória não está alojada em lugar nenhum, e que não precisamos nos preocupar com isso. Entretanto, nós nos preocupamos, porque não sabemos onde estão. E o fato que importa é que a nuvem não é uma nuvem. A nuvem é uma fábrica. A nuvem é feita de vastas fábricas, habitualmente em zonas rurais, porque são necessárias grandes extensões de terra para armazenar essa informação. Alguns sites, Google, por exemplo, são tão grandes em termos de área, que dão aos empregados bicicletas para que eles possam circular. E a nuvem também consome muita energia elétrica e outros recursos mate-

- Nícea Nogueira: Qual seria seu conselho para um museu como esse, o Mamm, para preservar em mídia digital sua coleção de literatura e arte? - Durante meu curto período na Austrália, fiquei impressionada com o que o Governo fez em termos do desenvolvimento do sistema chamado “Trove”. Ele digitaliza objetos de uma maneira particular que permite acessá-los a partir de diferentes arquivos locais, permite que as plataformas estejam conectadas. O grande problema para a informação digital é, primeiro, a longevidade. Frequentemente, digitalizamos materiais sem o senso de como vamos realimentá-los no futuro, porque eles vão requerer realimentação no futuro. O outro problema são as conexões entre os recursos. Assim, a melhor maneira é fazer parte de um sistema que não tenha apenas as coleções do seu museu, mas de todos os museus pelo Brasil afora.

“A linguagem atual e as metáforas que usamos para descrever nossas memórias mudaram. Assim, influenciados pelos softwares que usamos, falamos em ‘googar’ coisas, por exemplo”

MAIS Anna Reading http://www.kcl.ac.uk/artshums/depts/cmci/people/academic/reading/index.aspx http://annareadingarchive.com/ Confira a entrevista na íntegra: www.youtube.com/tvufjf Confira a exposição “Um olhar livre”, do fotógrafo lituano Antanas Sutkus: http://www.museudeartemurilomendes.com.br/exposicoes/antanas/antanas.html

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D IS S ERTAÇÕES

As modificações no trajeto do Paraibuna ao longo dos séculos Levantamento historiográfico feito pela mestre Camila Brasil relaciona o crescimento de Juiz de Fora às interferências no traçado do rio e abre debate sobre sua revitalização

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stabelecida ainda na antiguidade, a relação entre rios e cidades vem sofrendo com a urbanização um grande desgaste - de essenciais para o desenvolvimento do tecido urbano, os rios tornaram-se elementos de ruptura, fontes de conflitos e deterioração ambiental. Em Juiz de Fora (MG) não foi diferente. O rio de águas escuras que corta a cidade, o Paraibuna, mudou muito. Seus níveis de poluição são preocupantes, não há mais peixes e seu traçado foi alterado de forma bastante significativa, tornando suas curvas

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suaves e ajustadas ao concreto. O plano da natureza, contudo, era outro e pode ser visto na ilustração abaixo, elaborada com base em estudo feito pela pesquisadora Camila Brasil. Interessada no resgate desse patrimônio, a mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ambiente Construído da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) realizou um levantamento histórico sobre o traçado do rio por meio de mapas antigos, planos diretores municipais, jornais, revistas e livros. Como em um quebracabeça, transformou cada parte no todo,

Carolina Nalon Repórter

desenhando como seria o natural curso d’água no século XIX e suas posteriores alterações pelo homem. Na dissertação, também evidenciou as implicações, tanto positivas quanto negativas, dessas intervenções, chamando atenção para a importância de um planejamento que minimize os impactos no meio ambiente. Segundo a autora, o trabalho é inédito. “Há obras que tratam sobre as inundações em Juiz de Fora e muitas outras sobre a poluição das águas, mas nenhuma delas reúne as modificações do traçado.”


DIS S ERTAÇÕES

Para seu orientador, o professor da Faculdade de Engenharia da UFJF, José Alberto Barroso Castañon, a dissertação tem enorme valor no que diz respeito à recuperação de informações esquecidas ou perdidas da história de Juiz de Fora e, principalmente, à grande influência do rio Paraibuna no desenvolvimento da cidade. “O trabalho de Camila foi extremamente minucioso, retomando períodos e informações nebulosas, clareadas por ela.” As intervenções no Paraibuna foram sempre pautadas pela tentativa de se evitar as enchentes e, apesar de promoverem grandes benefícios para a população, hoje iriam de encontro aos modelos urbanos e paisagísticos ideais para as cidades. A preservação da paisagem natural, além de contribuir com a qualidade de vida, constrói uma identidade própria do lugar. “Sabemos que não é mais aceitável pensar em retificar um rio, revestir seu leito vivo com calhas de concreto, e substituir suas margens vegetadas por vias asfaltadas, como uma alternativa de projeto para sua inserção na paisagem urbana”, explica a autora no trabalho. Ainda de acordo com Camila, Juiz de Fora adaptou o rio às suas necessidades, crescendo sem integrá-lo como elemento dinâmico da paisagem. Ela acredita que estudos de memória, como o dela, podem ser capazes de despertar o olhar da população e do poder público para o

protagonismo do Paraibuna. “Grande parte das pessoas que passa pelas margens não percebe seu significado histórico, econômico e social para a formação da cidade.”

O PASSADO NA CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM DE HOJE O texto da dissertação atravessa os três séculos relacionando as transformações do Paraibuna ao crescimento da cidade. Mapas de ocupação da região, desde os primeiros assentamentos após a abertura do Caminho Novo (1707) até os dias atuais, foram elaborados por Camila com o sentido de evidenciar como a mancha urbana se estabeleceu ao longo do vale. Com as construções da Estrada União Indústria (1861) e da Estrada de Ferro D. Pedro II (1875), a mancha passa a se adensar, caminhando em direção às montanhas que cercam Juiz de Fora e também em direção à Zona Norte, cuja população deu um grande salto nas décadas de 1960 e 1970. O estudo não poderia deixar de contextualizar os momentos econômicos e sociais de cada época para justificar as alterações do curso d’água. As primeiras delas foram observadas ainda em 1884, quando se inicia o período de industrialização da cidade. Intervenções corretivas foram promovidas com o intuito de

solucionar os problemas urbanos de saneamento e os grandes pontos de alagamentos, já que Juiz de Fora sempre foi uma região bastante pantanosa. Aos poucos, essas áreas alagadiças foram aterradas, dando lugar às novas fábricas e às residências de trabalhadores recém-chegados à “Manchester Mineira”. Um dos exemplos é o local onde hoje se encontra a Praça Antônio Carlos e a Praça do Canhão (1). Bem próxima a um grande meandro do rio, a área sofria regularmente com suas cheias, sendo aterrada e vendida aos comerciantes da época por baixo custo. A primeira tentativa de um plano diretor do município aconteceu em 1893, quando a Câmara Municipal encomenda ao engenheiro francês Gregório Howyan o Plano de Saneamento e Expansão da Cidade de Juiz de Fora. Na época, o transbordamento das águas dos rios, em conjunto com as chuvas, causavam alagamentos nas áreas centrais da cidade. Como era costume jogar o esgoto nos cursos d’água, os dejetos se misturavam com as águas transbordadas gerando graves quadros de doenças. A proposta não pôde ser colocada em prática de imediato e os alagamentos continuaram frequentes até que uma grande inundação em 1940 motivou a elaboração de um novo plano - o de Defesa de Juiz de Fora contra as Inundações do Paraibuna. As medidas planejadas para modificar o

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DIS S ERTAÇÕES

Camila Brasil: “Há obras que tratam sobre as inundações em Juiz de Fora e muitas outras sobre a poluição das águas, mas nenhuma delas reúne as modificações do traçado do rio Paraibuna”

Em seu trabalho, a pesquisadora também evidenciou as implicações, tanto positivas quanto negativas, dessas intervenções, chamando atenção para a importância de um planejamento que minimize os impactos no meio ambiente 52

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rio dentro do perímetro urbano incluíram dragagem, desmonte de rochas, escavações, aterros, proteção das margens, reconstrução e alargamento de pontes, desvio da Rodovia União Indústria e desapropriações. Também em 1940 tem início o projeto de construção da Avenida Brasil (2), localizada às margens do rio e chamada na época de Avenida Paraibuna. Para a retificação do rio e construção da via, diversas propriedades foram desapropriadas, fazendo com que as margens tivessem uma área de respiro. As mudanças, segundo a pesquisa de Camila, faziam parte do idealismo de um novo centro urbano, com avenidas e praças ajardinadas. Na década seguinte, em 1950, as intervenções tiveram prosseguimento com a conclusão da Variante Howyan (3), prevista pelo engenheiro francês ainda no século XIX. O

amplo canal, que altera uma das curvas do rio, é reforçado com paredes laterais calcadas de pedra e percorre os bairros Costa Carvalho e Poço Rico. Já entre os anos de 1960 e 1970, as modificações ficam mais restritas à Zona Norte, com o estabelecimento de novas fábricas no local. Diversos pontos foram desviados e aterrados, principalmente ao longo dos bairros Jóquei Clube (4) e Distrito Industrial (5). Neste último, as correções atingem cerca de 30 quilômetros e visavam regular a vazão de água da barragem Chapéu D’Uvas. Até hoje acontecem inundações do Paraibuna na Zona Norte. A autora cita ainda inúmeras obras, do passado e contemporâneas, que contribuíram para a configuração urbana da atual Juiz de Fora. Outros personagens também têm sua


DIS S ERTAÇÕES

importância registrada, como os engenheiros Francisco Saturnino Rodrigues de Britto e Lourenço Baeta Neves, que propuseram em 1915 o Plano de Saneamento de Juiz de Fora; Francisco de Paula Bicalho, responsável por dar prosseguimento ao plano de Gregório Howyan; e Itamar Franco, que promoveu a canalização do córrego central, transformado-o em via: a Avenida Independência, atual Avenida Presidente Itamar Franco (6).

As intervenções no Paraibuna foram sempre pautadas pela tentativa de se evitar as enchentes e, apesar de promoverem grandes benefícios para a população, hoje iriam de encontro aos modelos urbanos e paisagísticos ideais para as cidades Para a pesquisadora não há dúvidas de que Juiz de Fora e o Paraibuna seriam bastante diferentes sem as intervenções. “O processo de crescimento da cidade altera diretamente a hidrologia, a morfologia e a qualidade da água, afetando toda uma estrutura das funções do rio. E, por outro lado, sem as modificações, a distribuição dos efluentes ficaria comprometida e a disposição dos logradouros, da mancha urbana, teria outro formato. É a proximidade com o curso d’água que direcionou a configuração espacial da cidade ao longo da história.”

PERSPECTIVAS O estado do rio Paraibuna hoje é crítico, justamente no trecho em que ele passa por Juiz de Fora. Seu Índice de Qualidade da Água (IQA), que leva em conta fatores como oxigenação, temperatura, presença de coliformes e resíduos, é considerado ruim e está na faixa entre 26 e 50. Para ser classificado como bom, o IQA deveria ser superior a 70. A mesma realidade atinge grande parte dos rios do país. O rio das Velhas, que cruza Belo Horizonte, possui 800 quilômetros de área degradada, contando com esgoto de 2,3 milhões de pessoas, lixões nas suas margens, areais clandestinos e ocupação irregular. Além do esgoto, o rio das Velhas possui um alto índice de substâncias tóxicas, segundo o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam). O Tietê, em São Paulo, apesar de ainda em condição bastante ruim, começa a colher resultados do plano de revitalização iniciado em 1992. Duas das quatro fases do projeto já foram executadas, permitindo a redução de cerca de 160 quilômetros na mancha de poluição e o reaparecimento de peixes em trechos afastados do centro. A intenção é que o índice de coleta e tratamento do esgoto chegue a 100% em 2024. Exemplo mundial, a revitalização do Cheonggyecheon, que corta a cidade de Seul (Coreia do Sul), demorou bem menos que isso para ser concluída. Em apenas quatro anos, foi possível promover a despoluição do rio, retirar uma autoestrada construída para cobrir seu curso, criar parques e recuperar grande parte da vegetação. As obras, além de devolverem a região aos moradores, contribuíram para modificar até mesmo a temperatura de Seul que, na área revitalizada no canal, caiu em média 3,6°C em relação a outros locais da cidade. Para o professor José Alberto Castañon, já existe uma consciência global de que não há sobrevivência das metrópolis sem a participação de seus rios.

Resguardadas as devidas proporções, Juiz de Fora pode caminhar neste sentido, se houver um esforço contínuo das gestões municipais, tornando o Paraibuna uma prioridade da agenda política. Criado em 2006 e com orçamento atual de R$ 130 milhões, o Programa de Revitalização Urbana e Recuperação Ambiental do rio Paraibuna passou por várias interrupções, mas pode este ano tomar corpo com a instalação de redes interceptadoras e a construção de uma nova Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), na região Sudeste. A previsão é de que, em dois anos, seja possível aumentar de 10% para 65% o índice de esgoto tratado na cidade e, em cinco anos, chegar à totalidade do tratamento. Em uma segunda etapa, ainda sem data definida, o projeto prevê a revitalização paisagística e o reflorestamento das margens do rio em 20 quilômetros lineares - um grande ganho em qualidade de vida para a população que já adota as calçadas estreitas e irregulares de suas margens para a prática de corrida e caminhada. “É chegada a hora de começarmos a ver o Paraibuna, não só como partícipe do esgotamento dos efluentes, mas, também, como um ‘ser vivo’ e componente da cidade, tão importante que, sem ele, a cidade não existiria”, avalia o professor Castañon. É esta também a percepção da pesquisadora Camila Brasil. Para ela, é importante que a população esteja envolvida no projeto de revitalização, entendendo seu papel na preservação do meio ambiente. “A ação integrada do poder público, de técnicos, ambientalistas e da população faz-se não só urgente, como imperativa. Sem a articulação dos muitos atores que têm interesses e preocupações diversas sobre o espaço urbano, deixaremos que muitos rios urbanos percam sua função primordial de alento à vida comunitária para serem vistos como vilões numa história em que são mais vítimas do que algozes.”

MAIS Camila Campos Grossi Brasil Mestre em Ambiente Construído pela UFJF; especialista em Gestão do Patrimônio Cultural pela Faculdade Metodista Granbery; arquiteta e urbanista pela UFJF; atualmente é analista de projetos da Secretaria de Atividades Urbanas da Prefeitura de Juiz de Fora Leia a dissertação em http://migre.me/hwqPR http://lattes.cnpq.br/3583202035257735 millagrossi@gmail.com

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INICIAÇÃO CIENTÍ FIC A

Quando viveremos em ecocasas?

A

s habitações sustentáveis ou ecocasas utilizam recursos naturais mais responsáveis e eficientes, em comparação com as construções convencionais. A incorporação de práticas sustentáveis é feita em todas as fases: concepção, construção, operação e demolição. Em um alto nível de aperfeiçoamento, a residência pode até mesmo ser construída autossuficiente. Alguns benefícios da implantação de tecnologias sustentáveis são: redução no consumo de energia elétrica, água e insumos; diminuição do custo de operação da casa; e preservação dos recursos naturais para as gerações futuras. Por definição, as habitações sustentáveis se comprometem a consumir o mínimo possível de recursos energéticos e hídricos; utilizar materiais de construção de proveniência certificada; garantir reciclagem e descarte adequados do lixo; não poluir o meio-ambiente; e zelar pela biodiversidade local. O conforto e o bem-estar dos moradores, bem como a acessibilidade, são aspectos fundamentais na concepção de uma residência sustentável. Em conjunto, as habitações sustentáveis dão origem às vilas sustentáveis. Além do benefício individual de cada unidade, as vilas compartilham serviços prestados e rateiam custos como usinas de compostagem, drenagem sustentável, aquecedores solares e centrais de água. Mas com todas essas vantagens, por que não moramos todos em ecovilas hoje? No Brasil, as iniciativas sustentáveis são individuais e esparsas. Atualmente, a maior desvantagem do processo de construção de uma residência ecologicamente responsável é o preço. As soluções sustentáveis não estão disponíveis em larga escala no mercado doméstico: muitas são patenteadas e/ou importadas e requerem mão de obra especializada. O alto custo inicial é, entretanto, compensado com a redução nas contas de

Julia Castro Mendes*

serviços durante toda a vida útil, e pelo valor agregado devido à iniciativa sustentável. Infelizmente, ainda falta a percepção do governo, empresários e consumidores quanto à recuperação do investimento em uma residência desse tipo. Na vanguarda das construções sustentáveis, países como Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos já perceberam esse retorno há anos. Segundo dados do governo, até junho de 2013, o Reino Unido havia lançado cerca de 200 mil casas sustentáveis. O governo britânico é o principal investidor em tecnologias ecológicas, buscando diminuir sua dependência em combustíveis fósseis, além de garantir a disponibilidade futura de recursos naturais. Nosso país começa hoje a ver as sementes de mudança. Podem-se citar os novos Planos Diretores Sustentáveis das cidades de Curitiba (PR) e Florianópolis (SC), a instalação de painéis solares em alguns conjuntos habitacionais do programa Minha Casa Minha Vida, e a certificação ecológica de edifícios nas grandes cidades desde 2004, como evidência que engatinhamos na direção certa. Em Juiz de Fora (MG), foi lançado o Projeto Vila, pela ONG Onda Solidária, que busca desenvolver um modelo de vila ecológica focada no desenvolvimento ambiental e social da comunidade. O Brasil possui enorme potencial sustentável, ainda dormente. Liderança e subsídios por parte do governo brasileiro estão em falta, e são fundamentais nessa etapa do desenvolvimento sustentável. É ainda, necessário que a indústria da construção civil abrace a causa, deixando para trás sua atual filosofia de lucro-máximo-a-qualquer-custo. Principalmente, é necessária uma mudança na mentalidade do brasileiro: nossos recursos naturais são finitos e insubstituíveis. Assim, com educação e incentivo certos, poderemos construir nossa casa sustentável muito em breve.

* Estudante do 10º período de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFJF, venceu o concurso de redação do Grupo de Educação Tutorial (GET) do curso, realizado em 8 de novembro de 2013

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A RT E

Intermidialidade: invenção e descoberta de novos processos de linguagem

João Queiroz* Daniella Aguiar**

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intura, dança, música, literatura ... tais “formas artísticas”, que reconhecemos como independentes, são estudadas por domínios também mais ou menos independentes. Historicamente separados, identificamos esses domínios como “departamentos” e seus objetos como “expressões artísticas”. Não nos confundimos ao atribuir o termo “cinema” a um filme de Tarantino, e “dança” a uma peça de balé clássico. Nem hesitamos ao chamar de “música” um quarteto de Cage, de pintura uma tela de Klee. Mas muitos exemplos podem criar problemas. Como classificar uma exposição-dança-instalação da coreógrafa Sasha Waltz? Ou um poemavisual de Augusto de Campos (Imagem 1)? Casos típicos de objetos inclassificáveis, no limite entre diversos processos de linguagem, eles encontram-se entre a dança, a cenografia e as artes visuais, no primeiro exemplo, e entre a poesia, as artes visuais e o design gráfico, no segundo. Seus estudos também apresentam dificuldades interessantes, porque são exigidos métodos combinados. Testemunhamos, nos últimos anos, o surgimento de um fértil ambiente, recém-revigorado pelo aparecimento de muitos centros de pesquisa, e nutrido pelo cruzamento de diversos domínios artísticos. Eles são conhecidos como fenômenos de Intermidialidade. Qual sua importância? Temos afirmado, em diversos trabalhos, que tais

fenômenos representam “laboratórios de experimentação” de linguagem envolvendo novos tratamentos de “velhos processos”, em novos meios. A ideia de que tais fenômenos podem representar a invenção ou a descoberta de novos processos deve estar relacionada à “desautomatização de hábitos” de leitura e de padrões interpretativos. Mas tal ideia merece ainda uma exploração mais cuidadosa, e temos trabalhado nisso. Recentemente iniciamos, no Instituto de Artes e Design (IAD) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em colaboração com o Programa de Pós-graduação de Estudos Literários, por meio de Daniella Aguiar, um núcleo de produção dedicado à intermidialidade e tradução intersemiótica (http://www.ufjf.br/traducaointersemiotica/). Este grupo é constituído por alunos de graduação, pós-graduação, professores da UFJF e de outras instituições brasileiras e estrangeiras. Como informamos no website, o “grupo dedica-se à exploração de teorias sobre tradução intersemiótica e fenômenos de intermidialidade e à produção criativa de traduções, em diversos domínios.” Trata-se de um grupo em fase inicial de produção, mas já se encontram em fase intermediária de tradução, autores como Borges, Chao Yuen Ren (Imagem 2), Edgar Poe, Gertrude Stein e outros.

* Professor da graduação e do Programa de Mestrado do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF ** Pós-doutoranda no Programa de Pós-graduação em Letras - Estudos Literários da UFJF.

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L A NÇAMENTOS

Boas dicas de leitura entre as novidades da Editora UFJF

Fernando Lobo

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aulo Freire, no livro “A importância do ato de ler” diz que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele”. E, para podermos mais uma vez abrir estradas rumo à compreensão deste mundo, por meio das palavras, nada melhor do que dar uma olhada nos lançamentos da Editora UFJF. E as opções são boas, começando pela pesquisa que revela os caminhos das universidades de Coimbra (a mais antiga de Portugal) e UFJF. Outra leitura interessante mostra retratos diversos - migrante, catador de papel, morador de favela - revelados na profundidade de seus sentidos culturais. E, ainda, o resgate do trabalho deCharles Sanders Peirce, fundador do pragmatismo e um lógico que contribui em várias áreas.

QUE UNIVERSIDADE? INTERROGAÇÕES SOBRE OS CAMINHOS DA UNIVERSIDADE EM PORTUGAL E NO BRASIL

ESPAÇOS RESIDUAIS: ANÁLISE DOS DEJETOS COMO ELEMENTOS CULTURAIS (Raquel Rennó – R$ 29)

(Luís Reis Torgal e Angelo Brigato Esther – R$ 46) Duas experiências universitárias distintas e uma interrogação pertinente sobre o papel de uma das instituições mais duradouras conhecida atualmente. Este é o enredo escolhido pelos autores para lançar luz sobre as histórias das universidades brasileira e lusitana. A onipresente pergunta “Que Universidade?” abre o debate sobre o sentido das universidades e dos ensinos superiores em geral, levando a pensar criticamente sua fundação, suas reformas e suas realidades e perspectivas atuais. Esta parceria entre a Universidade de Coimbra e a UFJF presenteia os leitores, portanto, com ricos aportes de reflexão sobre a universidade nos dois países e sobre os desafios mais amplos da educação superior.

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(Lafayette de Moraes e João Queiroz – R$ 36) Resíduos: tudo aquilo que foi descartado ou subjugado pela sociedade, mas para Raquel Rennó são os elementos escolhidos para trabalhar. Ela nos expõe os resíduos da cultura como uma poética do intersticial e do excluído. Numa rigorosa pesquisa acadêmica, a autora confere voz e sentido ao que é usualmente relegado ao lugar de excluído, sujo, sobra, sucata. Cenas brasileiras e internacionais são percorridas, onde espaços e práticas residuais são recolhidos, recuperados e ressignificados. Numa epistemologia em que o marginal ganha o centro, retratos diversos, como os de migrantes, catadores e moradores de favela, são revelados na profundidade de seus sentidos culturais.

A Editora UFJF está situada na Rua Benjamin Constant 790, no prédio do Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm) - Juiz de Fora/MG. Tel: (32) 3229-7646 secretaria@editoraufjf.com.br www.editoraufjf.com.br

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A LÓGICA DE DIAGRAMAS DE CHARLES SANDERS PEIRCE: IMPLICAÇÕES EM CIÊNCIA COGNITIVA, LÓGICA E SEMIÓTICA

Peirce foi o fundador do pragmatismo e um lógico que contribuiu em diversas áreas como meteorologia, psicologia experimental, fotometria estelar, economia matemática, filosofia, linguística, história, dentre outras. Porém, por mais admirável que seja seu trabalho, este permaneceu na obscuridade por muito tempo, principalmente sua teoria sobre os Grafos Existenciais (GE). E, por mais difícil que possa ser a tarefa de analisar e avaliar os impactos dos GEs, o livro conta com vários pensadores e estudiosos na área que, de diferentes formas e perspectivas, lançam luz em diversos campos de estudos.


L IT ER AT UR A

O Holocausto Brasileiro: 60 mil mortes em Barbacena

M

esmo bem antes de o Brasil compreender o verdadeiro significado do livro, a jornalista Daniela Arbex sintetiza suas pesquisas em torno do tratamento psiquiátrico no então hospital Colônia, na cidade de Barbacena (MG) e publica, em 2013, a obra “Holocausto Brasileiro”, pela Editora Geração. Trata-se de tarefa árdua, pois revela a verdade e, como entre nós soemos acontecer, a afirmação da verdade quase sempre coloca seu autor em situação bastante melindrosa diante da sociedade; de seus pares. O certo é que a obra relata fatos ocorridos e comprovados no tempo e no espaço que menciona, resultando na morte de um número em torno de 60 mil pessoas e colocando em xeque o tratamento psiquiátrico no Brasil... realmente é preciso muita coragem! De se observar que o título é bastante contundente: “Holocausto brasileiro”. O sacrifício, o sofrimento, a dor, a desesperança,

a solidão, o vazio... o nada de pessoas que sofrem de alguma enfermidade mental e procuram ou são levadas a se tratarem. Todavia, fora utilizado para rotular uma fração muito pequena do sofrimento dos pacientes psiquiátricos no Brasil, sem retirar a importância dos eventos relatados em Barbacena. É que o holocausto brasileiro, infelizmente, é muito maior do que isso e, pois, não faz parte somente do passado, mas está bem presente tanto em hospitais, quanto em consultórios médicos, tendo como protagonistas não só os pobres, abandonados, incapacitados e miseráveis, mas também os ricos, abastados e poderosos. É o momento em que o princípio da igualdade se faz presente de forma mais efetiva e convincente: na barbárie e no empirismo do tratamento psiquiátrico no Brasil. São inúmeros os casos de pacientes alvos da ignorância médica, não apenas quando são levados a ingerir quantidades enormes de medicamentos e em

Glauco Moreira de Moura*

doses elevadas (muitas vezes incompatíveis entre si), provocando reações adversas terríveis, mas também quando são submetidos a quantidades excessivas de eletrochoques em casos que sabidamente são eles inúteis, mas não deixam de expor o paciente aos riscos da anestesia e ao estado de torpor pós-choque. Isso, sem mencionar os demais aspectos circunstanciais da tragédia vivida por essas pessoas e, claro, os aspectos éticos bioéticos. Nessa ordem de ideias, parece que a jornalista Daniela Arbex chamou para si uma enorme responsabilidade: continuar relatando o holocausto brasileiro, para o que necessitaria ainda, no mínimo, de uns 80 volumes subsequentes, só para ficar no âmbito do tratamento psiquiátrico. Assim, fica a sugestão e a esperança de que esta obra não seja uma última palavra, mas o início de uma conversa.

* Advogado e professor

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“Contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”

Foto: divulgação

CINEM A

Alessandra Brum*

A atriz Anna Karinne Ballalai e o cineasta, produtor e roteirista Roman Stulbach em uma das cenas mais hilárias e líricas do filme

“C

ontra a cópia, pela invenção e pela surpresa”, essa é uma das frases contidas no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, publicada no “Correio da Manhã”, em 18 de março de 1924. Essa frase poderia perfeitamente nos servir para definir “Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo” (82min), primeiro longametragem de ficção de Luís Rocha Melo, cineasta, pesquisador e professor do Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens e do curso de Bacharelado em Cinema e Audiovisual do Instituto de Artes e Design (IAD) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A inspiração para o título de seu filme veio justamente deste Manifesto de Oswald de Andrade. O processo de produção, por si só, mereceria um olhar diferenciado para o filme. Realizado de forma totalmente independente, no sentido pleno da palavra, com poucos recursos financeiros, sem incentivo fiscal, com equipamento digital não profissional, uma equipe pequena contando com a participação de amigos, “Nenhuma fórmula…” se insere no conjunto de filmes do cinema brasileiro atual que buscam quebrar as regras estabelecidas por um mercado cinematográfico padronizado e opressor que se fecha para a diversidade, a criatividade e a invenção. “Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo” narra as desventuras do processo criativo da jovem escritora Carola Brecker que em crise após ter se separado do marido Mickey, se muda do Rio de Janeiro para São Paulo a convite do gangster cultural Al Gazarra para escrever 42 peças de teatro sobre o deus Pan, que será encenada pelo diretor polonês Tadeusz Karkovski. De forma cômica, a excentricidade do diretor polonês levará Carola Brecker a um passo da loucura.

Destacamos a atuação de Anna Karinne Ballalai, também roteirista do filme, no papel de Carola Brecker, e do cineasta, produtor e roteirista Roman Stulbach, recentemente falecido, atuando pela primeira vez em filmes, no papel do diretor polonês. Os dois protagonizam juntos uma das cenas mais hilárias e líricas do filme. Luís Rocha Melo investe numa direção de atores que privilegia uma atuação livre, e algumas vezes improvisada, em perfeita harmonia com a cidade. Aliás, ponto alto é exatamente a forma como Luis Rocha Melo nos introduz organicamente no ambiente urbano das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, entre ruas e avenidas, restaurantes, e até mesmo num grande passeio por uma exposição em homenagem ao cineasta Rogério Sganzerla. Sem nenhum medo de experimentar, Luís Rocha Melo e Anna Karinne fazem uma grande homenagem ao próprio cinema, com referências a vários gêneros do cinema clássico, como os filmes de gangster e os musicais, passando pela chanchada, o cinema marginal e a Nouvelle Vague, tudo em perfeito diálogo com sua própria concepção de criação, sem fórmulas preconcebidas, e que não se acomoda esteticamente. Luís Rocha Melo nos mostra que é possível realizar um cinema de qualidade com pouco recurso financeiro, bastando para isso uma boa ideia, bons amigos e uma enorme vontade de fazer cinema, encorajando aqueles que querem se lançar na realização de filmes. “Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo” é a expressão criativa de quem tem o que dizer e sabe como contar uma história, deixando para nós a lição de que o essencial está em ver e ouvir com olhos livres!

* Professora do Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens e do Bacharelado em Cinema e Audiovisual do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF

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E N SAIO FOTOGR Á FICO

O fotógrafo vê a história Rodrigo Barbosa *

O povo nas ruas de Juiz de Fora e sua luta por liberdade e democracia pelo olhar de Humberto Nicoline

Em frente ao Cine-Theatro Central (em 1984, antes da restauração) a luta pelas eleições diretas estava nas ruas (e na cara)

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E NSAI O FOTOGR ÁFI CO

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fotógrafo nunca está na rua impunemente. Há muito ele renunciou ao direito de andar sem olhar, àquele flanar que nós, demais mortais, praticamos usualmente. Lá vamos nós – eu e você – pelas ruas, olhando para os nossos pensamentos, para os problemas que vamos enfrentar no nosso destino, para as palavras que teremos que usar quando chegarmos, para as imagens que deixamos para trás (ou que nos deixaram), para aquela notícia lida no jornal, para aquela canção que tocou no rádio. Caminhamos com nossas ideias, nossos planos, nossas raivas, nossas pequenas e grandes emoções. Às vezes, sorrimos e até falamos sozinhos. O fotógrafo não. O fotógrafo anda com seus olhos de ver a cidade. De ver as coisas, de ver as pessoas, de ver os prédios, de ver as árvores. De enxergar o grande e o pequeno. A história se apresenta por imagens, despudorada, ao olhar arregalado do fotógrafo. E ele a vê. Torna-se prisioneiro da história que desfila diante dele e dá o troco: aprisiona, captura, faz da história refém eterna de sua lente, extensão dos seus olhos. A história está nas ruas porque a história está nas pessoas – e as pessoas estão nas ruas. É claro, as pessoas (e a história) também estão nas alcovas, nos palácios, nos templos, nos escritórios, nas casas (e o fotógrafo, aliás, também está lá, com seu olho espião). Mas, desde nossos tataravôs gregos, os fatos, os destinos, as decisões estão explodindo nas ágoras, nas praças, nas avenidas, nos boulevards, nos largos e parques. São nestes espaços que a história se faz mais viva ou, talvez, mais visível para o olhar inquieto do fotógrafo.

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Na despedida de mais um ano, 1982, a tradicional chuva de papel picado salpicava de renovada esperança a face (e o coração) da juizforana


E N SAIO FOTOGR Á FICO

O fotógrafo nos convida: vem pra rua! Vem comigo ver a história! A palavra rua vem do latim ruga, que significa isto mesmo que você está lendo e pensando: ruga, sulco, dobra. Lá no comecinho de Roma, as ruas eram marcadas pelas rodas das carroças, que deixavam a terra com aquele aspecto de sulcada, “enrugada”. Assim como a roda da nossa história pessoal deixa suas marcas no nosso rosto, no nosso corpo, enrugados. A ruga/rua é a tatuagem da história; do homem e da cidade.

Nas ruas/rugas de Juiz de Fora, o povo fez história. E o fotógrafo foi atrás. Estas mesmas ruas que foram pisadas pelas tropas que marcharam há 50 anos, em março de 1964, rumo ao Rio de Janeiro e ao Golpe Militar, foram ocupadas nas décadas seguintes pelos sonhos e lutas do povo. Estivemos lá, juiz-foranos, estudantes, professores, trabalhadores, artistas, homens, mulheres de todas as idades e de todos os cantos da cidade (e o fotógrafo, é claro!).

Do Campus da UFJF, nos anos 80, um rio de indignação e de luta nascia para depois inundar a cidade

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E NSAI O FOTOGR ÁFI CO

A ordem militar quebrada por gestos e olhares inocentes, em desfile na Avenida Getúlio Vargas, Centro de Juiz de Fora, em 1982

O povo marcou as ruas de Juiz de Fora com os sulcos da indignação, da esperança, da coragem que transforma. Grudou no rosto e no corpo sua mensagem por liberdade e democracia. Formou o imenso cordão de gente, que desceu feito um rio do Campus da Universidade para o centro. Fez vigília no Parque do fundador da cidade para vibrar feito

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A3 - AbrilaaAgosto/2014 A3-Abril Agosto/2014

um gol por cada voto lá em Brasília em defesa do direito de escolher o Presidente. Furou a barreira de coturnos (mistérios da língua: será coincidência que esta palavra tanto se pareça com “soturno”?). Espiou pela fresta da parede de soldados e apanhou no chão o catavento-bandeira como quem colhe no asfalto a rosa do povo de Drummond.


E N SAIO FOTOGR Á FICO

O POVO AO PODER Castro Alves Quando nas praças s’eleva Do Povo a sublime voz... Um raio ilumina a treva O Cristo assombra o algoz... (...)

Desde cedo, aprendendo a protestar, em manifestação contra fechamento de uma escola no bairro São Pedro, em Juiz de Fora, em 1984

A Praça ! A praça é do povo Como o céu é do condor É antro onde a liberdade Cria águias em seu calor

Os punks também registravam a sua vontade em manifestação em janeiro de 1984 A3 - Abril a Agosto/2014

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E NSAI O FOTOGR ÁFI CO

No coração da cidade, esquina de Avenida Rio Branco e rua Halfeld, a representação política ganha as ruas e novos partidos, como o PT (novembro de 1982)

De olho no placar e ouvidos atentos aos alto-falantes, a “torcida” da Diretas se reuniu no Parque Halfeld, em abril de 1984

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E N SAIO FOTOGR Á FICO

A fé superando o desconforto durante visita da imagem de Nossa Senhora de Aparecida, em Juiz de Fora, em 1986

O olhar do fotógrafo nos convida a ver a história na rua. O povo na praça. E “Quando nas praças s’eleva / Do Povo a sublime voz... / Um raio ilumina a treva / O Cristo assombra o algoz...”, cantou o poeta. O raio que ilumina a treva cria a imagem que fica. E a imagem que fica não é a do General Mourão Filho e sua tropa saindo do quartel no Mariano Procópio para inaugurar a

ditadura. A imagem que não se apaga é a imagem da praça: a praça! A praça que é do povo como o céu é do condor. O povo na rua, neste “antro onde a liberdade cria águias em seu calor!”, é o retrato da Juiz de Fora que vale a pena. A Juiz de Fora que o fotógrafo – antes de nós e mais do que nós – vê.

Humberto Nicoline, jornalista e poeta da imagem, que vive nas ruas a decifrar Juiz de Fora, com seu jeito doce, sua sensibilidade e seu suor, com suas câmeras antes analógicas e hoje digitais e, principalmente, com seu olhar de ver a história.

*Secretário-adjunto de Comunicação e professor da Faculdade de Comunicação da UFJF

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L E IA-ME

Iacyr Anderson Freitas*

Ilustração: Raniel Andrade

Tamanhos rigores

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onseguira. Poderia respirar sem sobressalto. A fronteira sumira no horizonte e o rio estava calmo. Tão calmo naquele trecho, assim tão detido e compassado, que o barco parecia flutuar, um palmo acima da linha d’água. Há pouco recebera, dos companheiros destacados para acompanhá-lo, as notícias dos últimos três meses em que estivera fugindo. Na mais absoluta clandestinidade. Três meses de uma viagem alucinada, sem esperança de sucesso. E só então, naquele momento, as terríveis notícias. Seria outra prova, talvez ainda mais dura, talvez insuportável, estar vivo para sabê-las. Um comboio de crimes contra seu corpo. Mas ele conseguira. Esse misto de prêmio e de castigo era seu, custasse o que custasse. Três longos meses sob fome e frio, vagando a esmo, sendo caçado como um animal qualquer, desde que os inimigos tomaram sua cidade. Nela deixara seus pais e irmãos, abatidos no auge dos combates, segundo lhe disseram os companheiros de embarcação. Por sorte fugira, com um pequeno grupo de amigos, levando consigo a esposa e a filha de 5 anos. Fazia já um bom tempo que sua cabeça estava a prêmio. Queriam-no vivo ou morto. Era imperativo alcançar a fronteira. Grávida de 3 meses, sua esposa caiu, entretanto, nas garras do inimigo, cerca de uma semana após a conquista da cidade. Foi assassinada naquela mesma noite, disseram-lhe agora. Sua filha adoeceu e teve de ser deixada, sob cuidados

médicos, num dos acampamentos encontrados pelo caminho. A despeito dos esforços, não resistiu a uma pneumonia dupla, tendo sido sepultada num cemitério clandestino qualquer, encravado no meio inóspito do chapadão. Essa notícia veio agora, 40 dias depois. Do pequeno grupo inicial, restara apenas ele. Seu melhor amigo não logrou atravessar um campo minado, quase às margens da fronteira ocidental. Os outros foram caindo pouco a pouco nas garras inimigas. Todas essas baixas eram enumeradas ali, sem muitos floreios, colocando em primeiro plano o seu mérito. O solitário mérito de estar vivo, que vibrava como festa para os demais companheiros. A felicidade dos que o escoltavam reluzia a todo instante. Era-lhe difícil imaginar, após tamanhos rigores, o vinho e a boa comida. O rio permanece calmo. Somente o seu coração não se acostuma. Desviando de leve os olhos do madeirame encardido, ele tira do bolso a foto que o acompanha desde o princípio da jornada. Lá estavam, à beira de um domingo sem nuvens, no velho papel amassado e úmido, seus pais e irmãos, sua esposa e sua filha, além do velho cão de guarda. Todos mortos. O barco adeja sem pressa. Rompe uma chuva miúda, de doer nos ossos. Duas aves cruzam o céu de chumbo. Ele está vivo, eis o que importa. Sonda com as mãos o próprio e castigado corpo. Ele está vivo, ele está vivo, segundo lhe disseram.

* Poeta, ensaísta e contista, com vários livros publicados. Sua obra é divulgada na Argentina, no Chile, na Colômbia, na Espanha, nos Estados Unidos, na França, na Itália, em Malta, no Peru, na Suíça e em Portugal. Publicou, entre outros, os livros “Viavária” (2010) e “Ar de Arestas” (2013)

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Fotomontagem digital de janela do Forum da Cultura, realizada pela fotĂłgrafa, artista plĂĄstica e professora do Instituto de Artes e Design da UFJF, ValĂŠria Faria


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