A ideia 2016 1a parte

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n.º 77/78/79/80 – Outono de 2016

designar as potencialidades imaginárias das sociedades pós-revolucionárias, do século XIX em diante. Grande parte da literatura sociológica entretém-se a procurar a melhor abordagem da modernidade. Uma noção semelhante, em vários sentidos, com a de crime. Vejamos. Como o crime, a modernidade não tem substância. É pura criação literária. Um crime, como o carácter moderno, é um atributo que se aplica, sob forma de controvérsia, a alguma acção. Se eu disser que um banqueiro é criminoso, logo aparece alguém a dizer que não. Se a acusação recair sobre alguém socialmente isolado, ninguém irá defendê-lo. É assim que se fazem criminosos. Se eu disser que as prisões são modernas, como o fez Foucault, isso pode ser contestado: a prática do sequestro pelos Estados é uma prática fundadora do poder estatal. Mas, claro, Foucault tem muito mais peso depois de morto que eu vivo. A discussão não pega. Crime é o que os tribunais (ou os jornais) decidem. Moderno é aquilo que os modernistas entendem ser. Quem se atreve a denegrir o moderno ou a valorizar as acções criminalizadas? Violento é o rio, diz o poeta. E não as margens que o comprimem. A violência, no uso corrente, refere-se à violência da pessoa isolada. A violência organizada, pelas polícias ou pelas forças armadas, não é descrita como violência. É a defesa dos cidadãos, do Estado, do povo ou do país. A nossa violência é sempre defensiva. Para manter a ordem. A dualidade de critérios é que explica serem homens pobres quem vai para a prisão. A sociedade é uma luta contra a misoginia, o elitismo e a dissimulação produzidos socialmente, milenarmente. A divisão de O poeta na prisão, desenho de Pierre Deloche, calabouços da polícia judiciária de Lisboa, finais de 1975. trabalho de acordo com o género tem de ter uma forma. A subordinação das mulheres não é a forma obrigatória mas é a forma predominante. O facto de se prenderem praticamente apenas homens decorre do facto de as mulheres estarem, de facto, afastadas socialmente de disputar os lugares de poder social. A elas está entregue a missão de serem visitas dos presos (vejam as filas às portas das prisões). Os homens, pelo contrário, são representados como ameaças potenciais aos poderosos. De facto, muitas vezes surgem do nada, das revoltas oprimidas, para lugares de topo (Dores, 2010). O poder, cego pela soberba, sem a qual dificilmente se afirma, produziu milenarmente formas de detectar e evitar, antes que seja tarde, as fontes de contestação. A selecção dos homens para as prisões a níveis de 95% é sinal da misoginia social vigente (que outro sentido poderia ter?). O sistema criminal está montado para dispersar o poder que possa surgir de baixo para cima. Mas como é cego, dispara em todas as direcções (enquanto não é politicamente manipulado). São exercícios de “justiça” para sacrifício dos desvalidos e mobilização em casos de emergência política, quando há


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