IHU On-Line 499 - Hospitalidade Desafio e Paradoxo. Por uma cidadania ativa e universal

Page 61

DE CAPA

IHU EM REVISTA

A hospitalidade incondicional, ou justa, chega de surpresa para romper com a hospitalidade condicional do Direito paz perpétua3. Em Derrida, a hospitalidade transcende para além do Direito. Ela nos remete à figura do “estrangeiro”. A hospitalidade incondicional, ou justa, chega de surpresa para romper com a hospitalidade condicional do Direito, por, como aqui pretendo sustentar, saber lidar com a aporia de não poder ser destinada somente ao estrangeiro, no sentido da soberania jurídica entre territórios, mas sim ao totalmente outro, que não detém documentos ou até mesmo é impedido de comunicar-se devido à dificuldade idiomática. Enfim, destinada a um novo sentido que podemos atribuir à ideia de estrangeiro – ao totalmente estrangeiro e não somente o estrangeiro do direito ou da soberania. IHU On-Line – Quais as semelhanças e diferenças entre a hospitalidade justa e a hospitalidade de direito? Gustavo de Lima Pereira – Poderíamos fazer uma analogia entre e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto de conhecimento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. A IHU On-Line nº 93, de 22-3-2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador com o título Kant: razão, liberdade e ética, disponível para download em http://bit.ly/ ihuon93. Também sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU em formação número 2, intitulado Emmanuel Kant – Razão, liberdade, lógica e ética, que pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem02. Confira, ainda, a edição 417 da revista IHU On-Line, de 6-52013, intitulada A autonomia do sujeito, hoje. Imperativos e desafios, disponível em http:// bit.ly/ihuon417. (Nota da IHU On-Line) 3 São Paulo: L&PM, 2008. (Nota da IHU On-Line)

a hospitalidade “de convite” e a hospitalidade “de visitação” para estabelecermos mais detidamente a diferença entre a hospitalidade incondicional (ou justa) e a hospitalidade condicional (ou condicionada ao direito), proposta pelo pensamento de Derrida. Com respeito a esse acolhimento ou hospitalidade incondicional, Derrida estabelece justamente a distinção entre o convite (invita­ tion) e a visitação (visitation). Enquanto convite é o dirigido a quem, de algum modo, já preenche o rumo da cadeia prévia de expectativas, segundo normas sócio-político-morais, a visitação rompe com conjunto natural da organicidade temporal e surpreende o tempo, sem notificá-lo antecipadamente. A distinção entre ambos não é do tipo quantitativo, pois não se inscrevem gradualmente em uma mesma dimensão processual – como se fossem dois momentos distintos da hospitalidade inseridos no campo do possível. Convite e visitação são duas dimensões que se compatibilizam por sua incompatibilidade. Exatamente demarcam a estrutura aporética da própria compreensão da hospitalidade. Para compreendermos essa problematização aporética, devemos ter em mente que a relação de hospitalidade com o convidado é do tipo horizontal, ou seja, é, por um lado, uma relação que implica um código comum e uma demarcada reciprocidade (ele entra no espaço do próprio vindo de um outro espaço próprio), e que, por outro, implica uma pré-visão – exatamente o olhar prévio, inserido num horizonte antecipativo, que amortece o impacto da surpresa: o convidado

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2016 | EDIÇÃO 499

é visto quando se espera por ele, porque a hora da sua vinda está prevista e pode até aguardá-lo à janela para vê-lo vir. Já a relação sem relação com o visitante é do tipo vertical: o visitante “cai sobre o hospedeiro”, meteoricamente, interrompendo e estilhaçando o curso do esperado no cotidiano e do conjunto prévio de possibilidades pré-imaginárias. Na impossibilidade de antecipação de sua vinda, o outro fende o horizonte enxertando-lhe com uma verticalidade dissimétrica e irredutível a qualquer configuração espacial concebida pela racionalidade de quem acolhe.

O tempo do convidado e o tempo do visitante O tempo como convidado é o tempo cronológico pensado a partir do presente: ele aparece à hora marcada (mesmo que chegue adiantado ou atrasado, mantém ordenado o conjunto prévio de expectativas). Em contrapartida, o tempo do visitante é o tempo espectral do fantasma: a vinda do visitante deu-se sempre já em um tempo imemorial e irredutível a qualquer presente-passado e um porvir absolutamente aberto e eternamente diferido porque igualmente irredutível a qualquer presente-futuro. Por isso, o visitante está sempre já ao mesmo tempo radicalmente adiantado e radicalmente atrasado. Adiantado porque a sua chegada é inantecipável e atrasado porque, ainda que sua vinda seja breve e inoportuna, ela nunca chega propriamente. Quando sua chegada inesperada se concilia com a acomodação ao tempo do hóspede, ele já partiu. Esse é o traço aterrorizante da hospitalidade. A hospitalidade, portanto, é sempre catastrófica. Não há festividade no pensamento da hospitalidade (como alguns a assim entendem). A hospitalidade é sempre o trabalho do luto de ter que lidar com a fantasmagoria do outro4. 4 O trabalho de luto, podemos observar, mesmo que tratando-se de um luto político, como

61


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.