Em Estado Permanente de Flor

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Em Estado Permanente de Flor

Karla Bardanza

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Edição eletrônica não comercial


Yasmim e Brunna: este livro ĂŠ de vocĂŞs duas.


Em Estado Permamente de Flor: em pÊtalas abertas para o todo infinito quando o instante capta a beleza emocionada, a dissolução do agora e ensina a olhar para dentro enquanto se olha para fora.


Apresentação

Este livro é uma tentativa ousada de inclusão neste mundo mágico e vasto do fazer poético. Parir poesia é uma dor suavemente absurda e recompensadora. Contudo, a satisafação fica sempre para o próximo poema: aquele que sairá de minhas entranhas e conquistará a minha eterna redenção. Foi assim que nasceu este livro: da busca incessante pelo poema quase perfeito. Ele ainda não chegou. Espero-o com os olhos pousados na lua, com as mãos procurando estrelas e mansidão, espero que ele venha em estado permanente de flor. Um dia, ainda serei poeta. Porém, enquanto este momento não chega, fico gestando delicadeza e ambiguidades diariamente, buscando a hora certa do parto. Escrever é dar à luz a metáforas e todo o seu além. Escrever é lutar com imagens e nunca sair vencedor. Faço isto saltando para o infinito que pára e observa a minha alma assustada e inquieta. Estranho, saio de mim e quando volto, a porta esta sempre aberta. Espio a mulher lá dentro, sempre pronta para mais um delírio, para abocanhar o tempo e entendo as razões da poesia. E entendo um pouco mais de mim mesma quando nem sei como explicar o que sou, porque mesmo sem saber ou aprender, posso ainda ser poeta.

Karla Bardanza, 2011

Karla Bardanza

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Em Estado Permanente de Flor


Dupla Cidadania

achei que estivesse do lado dentro das belezas delicadas.

achei

se me perguntarem onde estou agora, direi que estou no exílio.

ou talvez não diga nada.

na distância, encolho a terra, acolho o silêncio, tenho dupla cidadania.

ora minha pátria é você, ora apenas a poesia.

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Insatisfação

A munição não é apenas balas e bombas. Disparo palavras a esmo, combato a mim mesma numa luta insana. Todo dia, enfio a faca no peito para sangrar poemas e sentir as coisas que permanecem imutáveis. O efeito é mais do que estético: a dor é catártica, é necessária. E quando tudo termina, olho o papel insatisfeita, procurando a melhor metáfora, a emoção singular das letras, e nunca consigo ser poeta.

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Des-canso

Algumas coisas cansam: São bombas explodindo Nas sombras impuras E o ar quase não se pode Definir. O peso é tão mais Insuportável. Respirar é possível?

A temporada da desrazão Chega ao fim. Meus ombros Curvados lamentam tudo Que morre no vento. Largo as malas pelo chão: Liberto-me para andar Mais rápido. Nem olho para trás: olhar Também cansa.

Perco de vista os detalhes Levianos, as pequenas Intraduzíveis mentiras

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E pego o caminho sem Atalhos e descalça. Num ato falho, lembro Das letras desbotadas E, definitivamente, jogo Fora todas aquelas (tuas) Palavras inutÊis e amassadas.

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Enquanto a noite treme dentro de mim

Durma mais algumas horas, Deitado em ponteiros cegos Enquanto o vento torce as Horas com graça e a noite Treme dentro de mim.

O teatro não convida para O próximo ato. Assisto A fumaça, tragando da Última fila. Não recomendo Este espetáculo com atores Desumanos e sonolentos.

Essa emoção da alvorada Nunca me fez gozar. O melhor prazer é saborear O (uni)verso.

Des-canso. Re-penso. Estrelo outro céu. Durmo Mais feliz, escrevendo Um outro roteiro No corpo. Karla Bardanza

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Carteira de Identidade

A família de meu pai é italiana e eles diziam que eu não tinha cara de maccaroni.

A família da minha mãe é preta e eles diziam que eu era branca.

Identidade zero.

A pobreza era dos dois lados e isto nos uniu e dissolveu as cores.

Descobri que não era nem branca, nem preta. Era somente pobre.

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Ai! Estou tão confusa!

Já nem sei mais a diferença entre alone e lonely. Ficou tudo a mesma coisa depois da última porrada ou será torrada? Ai! Estou confusa! Meu vocabulário anda tão carente de emoções. Tomei um porre sem beber. É, eu sei, é um porre essa vida sem aqueles poetas que você me enviou. Fiz um download tão rápido. Só não consegui foi baixar esses muros que nos separam, esse desacerto filho da mãe que me escurece todo dia antes tentar, antes de ser. Estou doente: devo ter somatizado tudo que deu errado. Minha garganta dói. Deve ser por causa dessas coisas entaladas, achatadas dentro de mim. Hoje, me aborreci só para variar. Fiquei ameaçadoramente louca e impotente, gritando com a garganta inflamada, descobrindo que eu sou assim um pouco parecida

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com um zero à esquerda ou será um grande nada? Ai, estou tão confusa! Providenciem um divã e se não der certo, chame um psiquiatra. Meu Id, Ego e Super-Ego estão entregues às baratas. Podem me amarrar na cama ou quem sabe me pôr numa camisa de forças. Essa droga ainda vai dar confusão. Ai, estou tão confusa! Por que será que eu sempre me deixo na mão?

Karla Bardanza

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Letramento

O meu letramento veio com o vento. Com ele aprendi a voar e a ler as pétalas das azaléias sem muita pressa.

Aprendi também a interpretar os carneirinhos nas nuvens e as estrelas e também a entender um pouco mais a Lua e os seus enigmas.

O vento levantava os meus cabelos e me incentivava a ler as diversas tipologias intertextuais dos caules das árvores, especialmente quando havia um coração e dois nomes distintos neles.

Lentamente me apropriei da escrita e comecei então a fazer poesia da vida assim como quem não quer nada, querendo quase tudo.

Karla Bardanza

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Minha leitura do mundo sempre foi fundamentada no imediatismo do sonho e no surrealismo da alma. Às vezes, as minhas palavras não estão nem dicionarizadas. Melhor dessa forma que informa o nada e abraça o vazio com voracidade. -Verdade demais deforma-

Sempre recorro ao vento quando fico indecisa diante das metáforas e das figuras de linguagem em geral. Sento no melhor jardim e arranco os olhos para sentir.

Sentir é sempre melhor do que saber.

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Auto-relato

Quando eu sou eu mesma, arranco os olhos para sangrar e sentir a melhor dor.

Fico parada e o céu morre dentro de mim com tanta graça e exaustão.

Quando eu sou um pouco de mim, os pés não estão plantados no chão, nem estão no ar. As mãos estão na boca e toda metáfora está muda ou louca. Karla Bardanza

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Sinto as árvores, as aranhas, as maçãs, as pedras, as águas transbordando as mágoas

Afogo-me em mares desequilibrados e quando alguém resgata o meu corpo, meu desespero está mais maduro e abençoado.

Quando eu sou o meu próprio alter-ego, nego e Karla Bardanza

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me renego tr锚s vezes antes do galo cantar.

E quando volto para o meu lugar, fico um pouco mais coisa, um pouco mais folha, um pouco (mais?!) menor enquanto a vida boceja cheia de olheiras e d贸.

Karla Bardanza

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Escrevo para daqui a cem anos

Não leia essas coisas que tento escrever, que finjo ajoelhar para escrever. O desgoverno das palavras me governa. O acriançamento de minha poesia é psicológico. Sou ainda dos brinquedos, das bonecas, dos escaravelhos. Escrever requer um merecimento, uma fibra de lagartas quase borboletas. Talvez se eu meditasse mais... Esse nirvana de Manuel de Barros é para quem escolhe e encolhe os horizontes. Sou disso ainda não. Sou apenas a musa-palhaça de algum alguém que escreve bem melhor que eu. Quando eu for magnificada, estarei de vermelho e negro ao lado de Stendhal. Karla Bardanza

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Quando eu for gente grande

Quando eu for gente grande Vou desaprender tudo que ouvi. Meus olhos vão continuar vivos E os meus braços nunca estarão Cansados para abraçar.

Enquanto meus cabelos forem Ferozes e as minhas mãos não estiverem Fechadas para descobrir as joaninhas Escondidas nas pétalas das flores, Não serei o que não quero ser.

Abro os olhos e há tanto prazer Em molhar os pés no mar ou correr Atrás das borboletas. Abro os olhos mais ainda e as nuvens Constroem castelos no céu.

Antes que eu pegue essa doença Incurável, vou viver de assombros E descobertas, vou deixar a porta

Karla Bardanza

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Aberta para que todos os meus Sonhos possam entrar.

Ser gente grande é uma dura tarefa De embrutecimento. Não quero chegar lá porque não Vou nunca esquecer o barulho Bom do vento ou cheiro de terra Fresca molhada.

E se não tiver jeito mesmo, E eu tiver que ser gente grande, Que pelo ao menos a minha alma Seja encantada.

Karla Bardanza

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O amor, esse amor que me deu um lugar para morrer

O amor, Esse amor À meia luz, Que faz queimar As palmas de minhas mãos E me sustém para além de Todos os poemas foi uma Única lâmpada acesa, presa No teto sem vida dos meus Poros quando até o Tempo era mais Presente e Futuro.

O amor, Esse amor Que te amou E te ama em curvas tão Retas que param e não Chegam ao sol sem força, Tenta durar mais que um Lírio, que o delírio

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Que me mantém Em noites sem Respostas, Sem bem, Sem.

O amor, Esse amor Que me deu um Lugar para morrer Em paz à beira das Dúvidas e da perda, É o alento que mata, O corte da faca, o medo Do sempre amanhã que Chega com suas armas Brancas, com a sua luta Santa e palavras que Desacatam a minha Verdade pequena E pueril. É o fuzil Pronto para me Matar todas

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E quantas Vezes mais.

O amor, Esse amor Esquecido da paz É o meu calendário sem Sorte onde todos os dias Tem a dimensão do por Enquanto, do quando. Olho para ele com a Face contorcida, com A dor que me abençoa, Olho para ele como uma Mulher à toa que já sabe Como ir e vir na calçada Sem desperdiçar os saltos Dos sapatos, os atos Que amarram e Pedem pra Ficar.

O amor, Esse amor É tudo que sabes Me dar. Karla Bardanza

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A mulher no pedestal

Olho para ela sem entendimento. Há tanta coisa para dizer e milhares de palavras que não são suficientemente boas para expressar a nossa diferença.

Aquela individualidade não é mais minha. Aquela pele tem vida própria, aquela boca fala coisas que me desgovernam e alucinam.

Um ser misterioso almoça comigo, dorme e sonha. Algo nos separa, algo me aniquila e supera.

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Tento não partir. Tento.

Meu coração bate naquele peito, meu sangue escorre. Ela corre. Ela cresce como uma metáfora enquanto limpo as unhas e choro por nós.

Ela me deixa sem mim, sem voz. Um nunca espia os meu cabelos nevarem. Ela me olha. Ela me ama.

Karla Bardanza

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Hรก tantos milagres naquela alma.

Estou deitada, ela enfia o rosto no meu pescoรงo e me abraรงa. Estou com sono, meus olhos caem, a boca sussurra um amor feito de pacto e dor.

Uma flor se abre: minha filha procura em mim a morada, o encanto.

Sou um grande espaรงo e ela quer entrar em mim e se acomodar no meu ventre vazio.

Karla Bardanza

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Ela está com frio: agasalho-a com as minhas palavras eternas de devoção.

Há um nó dentro de nós duas que nos ata ao infinito. Ela é Perséfone e eu a busco pelos campos sem vida. Ela é a minha ferida, medo e paz.

Abro os braços e sou Deméter perdida no agora e no éter.

E toda a singularidade me rasga as entranhas: ela cresce e se torna ela mesma.

Karla Bardanza

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Eu sou a busca, o caminho, a forma idealizada, eu sou a mulher que ela p么s no pedestal e mais nada.

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A hora da bruxa

Eu te apresendo a minha hora que se desdobra em planos múltiplos e avança sob a noite,aprofundando o espaço, separando a luz da luz.

Enquanto as estrelas se partem em pétagonos e cinco triângulos isósceles côngruos, dançaremos para celebrar todos os mistérios das águas, todas as melodias do vento, respirando o fogo imortal, a força telúrica que nos une e nos leva para o todo.

Eu te apresento a hora suave, o tempo fora do tempo. Mas, venha nu, venha com as mãos abertas e com os olhos refletindo o luar.

A hora mágica expande-se em palavras. Acorde de teu sono e exploda junto comigo em labaredas sagradas.

Karla Bardanza

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A hora se abre para nos receber, a hora nos abraça. A Luz e a escuridão e tudo que está entre elas se eterniza para além do bem e do mal.

Eu te apresento a hora da bruxa: voaremos nas asas de fogo. Voaremos já.

Karla Bardanza

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O peso da flor

As pálpebras cansadas dissolvem a perenidade, Descobrindo poucas verdades no grande nada, O corpo foge no último barco da eternidade, Abafando a boca muda perdida amedrontada.

A gravidade dissolve o peso da terna ferida Em delicada flor, quando a cega vai embora, Trazendo a morte para os braços da vida, Suavizando a queda mansa da surda hora.

Todo o ruído do coração perde-se no tempo, Ecos ocos ouvidos por quem mais foi leve, E o amor fica emaranhado no doce vento, Esperando que a cura seja perfeita e breve.

Karla Bardanza

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A decomposição do real

A forma naufraga. Limites entre a natureza e A arte. O real decompõe-se: Descompromisso. Fragmentação. A verdade compreendida Pela síntese geométrica. A destruição livre da Clássica e antiga harmonia. A mentira perfeita ou apenas ousadia?

Karla Bardanza

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Ousadia

Extrai segredos do sol está manhã. Fiquei deitada sentindo ele me Molhar enquanto admirava o azul Irônico do céu. Afoguei minhas mãos em meus Lábios cansados de falar e contemplei A beleza exaustiva da natureza. Lembro que meus olhos cegos De verdades só queriam ver os Desenhos que as nuvens faziam. Minha mente estrangulada de Lamento e saudade desvendava O céu com alguma soberba fria, Fascinada pelo nada, pelo tudo, Pelo o momento em que o sonho Se ajustava ao sol. Passei quase a manhã inteira Construindo encantos, colhendo Palavras do ar, pensando que aquele Tempo era a matéria viva sem voz Da minha poesia. Quando o real Voltou a me ferir, perdi a ousadia E voltei a ser eu mesma de novo.

Karla Bardanza

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Quando nada mais tenho

Não é o bastante, O nervo exposto, O sangue sem rumo, O soco no rosto.

A dor é uma volta No círdulo, o infinito Que nunca foi, as indas E vindas da roda da fortuna Quando a carta cai na Mesa.

A delicadeza embrutece: s punhos estão fechados Para o perdão. Tudo silencia nesta fábula, Menos a poesia.

Bendita sois vós que me Alimenta o corpo sem paraíso.

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Bendito ĂŠ o fruto do teu Ventre fecundo. Quando mais nada tenho, Tenho ainda o mundo.

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Ventania

O desamparo abriu-se: O adeus abrigou-se E na caridade tensa Escrita pelo limiar, o Desejo incriado fez-se Verbo e colheita, Navegando pelo ar.

O silêncio consumiu-se Na chama lúcida, ferindo Toda a fragilidade nascida Da letargia.

Quando a última gota caiu, Só havia a ventania.

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Ontem tive coragem

Ontem tive coragem: chorei.

Depois recolhi todas as lágrimas e guardei dentro do bolso do meu pijama sem graça.

O amor deve ser isso: o abraço (e)terno do ontem agora.

A falta líquida

solidificada em dor.

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Os fios do infinito

Deitados juntos ao céu, os amantes sonham Com o amor, abrindo a porta do tempo, Perdendo os corações que dormem juntos Com a paixão, fazendo a música da lua Com suas vozes de perfume e flor. Uma claridade mística cobre os seus olhos De um azul inacessível. Tudo embriaga e evoca horas absurdas. Tudo é exaustão encantada. E ali, naquele instante quase mágico, À beira do nada, os fios do infinito Dobram lentamente, tecem poemas, Bordam palavras, arrematam a eternidade.

Karla Bardanza

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Quando crucifiquei as palavras

Crucifiquei todas as palavras naquele momento em que a noite uivava. Não me perdoe pai, eu sabia o que estava fazendo. Eu só queria o sangue morno escorrendo pelas letras disformes e nada mais. Quando as metáforas ofegavam no papel, enfiei a última estaca e morremos juntas, sem entender essa perda das asas.Não consigo mais voar. Não consigo entender de amor. Tudo eu que queria era ser uma boa tecelã e ter nas mãos as linhas certas que me levassem ao infinito. Tudo que eu queria era apenas os fios de um texto sem dor. No entanto, o pedágio da vida é sempre alto. Então, mato e morro. Eu juro que eu tentei viver. Quando morri a primeira vez, a própria vida me perdoou e me deu uma segunda chance. Agora, sinto a roupa respingada por dúvidas novamente, sinto essa vontade de abrir a janela e pular para quem sabe, cair nos braços da poesia e morrer com sonoridade. A rima perfeita não combina com o amor, nem com o desejo. A rima perfeita dilue o beijo que nunca chegou a ser. O que sinto, solidifica o ar. O que sinto, desmaia por trás de mim em poemas que açoitam a alma. Abro as mãos e mal aguento o peso dos versos livres, porque algo ainda vive escondido. Esta compreensão é uma coroa de espinhos, uma estigmata. Não tento curar esta chaga. O amor é um corte profundo sem direito à sutura ou cirurgia. E, no entanto, morro sempre na UTI da utopia, rabiscando palavras que foram signo e sorte e que agora, escrevem o meu epitáfio e anunciam a minha morte

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Um desejo para chamar de seu

Quando a sala suspira é porque as paredes chamam o passado para dividir o mesmo copo vazio da insatisfação. Ela não bebe quase nada. Detesta o gosto amargo do que ainda resta na borda da taça cheia de possibilidades.

A tinta amarela derrete, a novela chora com as mesmas dores, tudo está tão igual. Ela vive roubando o presente das suas possíveis surpresas. Nada é tão importante assim. Ontem, ela estava com o mesmo olhar sem caminho. Ontem, ela estava com a mesma calça jeans e a mesma camiseta. Algo desaconteceu. Ela está viva em alguns dias da semana: justamente aqueles em que seus seios apontam para o seu obscuro objeto de prazer.

Quando as horas calam mansas, ela investiga o desejo com os seus olhos oblíquos. O momento é feito de sal e vontade. O gosto fica na boca elevando e abaixando a pressão. Os altos e baixos do corpo que arqueja sem arquejar, da cerveja que morre na mesa coberta de solidão, de tudo que fica na penumbra, no baú nunca aberto.

Ela não sabe mais como fazer belas teias, ela não mata mais as vítimas: ela não entende mais de caçadas. A idade chegou com o peso do silêncio e do bom senso. E agora?

Não há respostas, nem eternidades. Não há descanso. Toda a tranquilidade é fictícia. O teatro pede tantas máscaras. Ela perdeu algumas pelo caminho. No momento, tem usado a mesma. A vida ficou tão real que chega a ferir. Hoje ela já acordou exausta com a mesma realidade. Amanhã ela não pretende sair de casa. Talvez, lave roupa, talvez cozinhe. Talvez. Há tantas opções que não escolheu.

Ela precisa apenas de uma única coisa: um desejo para chamar de seu ou quem sabe entrar e contato com o seu deus. Enquanto o rio flue, ela veste a mesma camiseta sem graça e dorme cedo. E nem dormindo, sonha mais

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O aluguél da vida está atrasado

Preciso pagar as contas vencidas: O aluguel da vida está atrasado. Meses e meses acumulados dentro Da gaveta cheia de recordações.

Dívidas sujas de dor e sangue, Um amor que perdeu o crédito, Milhares de credores à porta Pedindo paciência e delicadeza.

E eu com o nome no vermelho: A cor perfeita dessa derrota. Tomará que amanhã não chegue Hoje.

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Quando o vento geme parindo flores

Quando o vento geme, parindo flores E todas as montanhas são apenas sombras E restos de solidão e esperança, todas as Árvores curvam-se, sentindo suas seivas De sangue fluindo docemente.

A vida que parece tão distante, gritando Forte pelos campos ilusórios do pensamento, Acorda os sete corpos, iluminando o todo Escondido pelos véus silenciosos.

E eu que antes não podia sentir a magia, Recebo esta visão, olhando para dentro, Percebendo os deuses guardados nos Bolsos da Mãe Natureza, pendurados Nas nuvens e nas estrelas.

Todo o encanto é sempre para quem Está dentro do círculo, protegido de Seu próprio coração e sentimento. E quando isto acontece, eu não sou Quem me habita, eu sou apenas o vento.

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O pior amor é o último

O pior amor é sempre o último. Olha-se para ele com os olhos vazados, com as unhas roídas, com vontade de vomitar. O pior amor é sempre o último. É o morto que nada mais revela salvo as imperfeições da angústia e as palavras arrancadas do meio dos dentes. Nele, cospe-se. Nele, joga-se pedras. O pior amor é o último. Ele é o morto inútil, o corpo cheirando a sangue fresco, o folhetim quixotesco, a lava fria. O pior amor é o último. A poesia mingua, o cigarro espera no bar da esquina junto com a primeira puta, a bebida esquenta com o calor.

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O pior amor é o último.

Mas, ele morre também como tudo que há, como a música velha, como a roupa puída, como a própria vida.

Nele, pode-se ver espectros. Nele, apenas o resto do resto.

E quando ele pára e pensa, diz a si mesmo: "Eu não presto...Eu não presto..."

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Despertar pedras

Despertar pedras Caladas, medrosas Em sono desigual. Acordar rochas Inertes, fortes E de braços cruzados. Ensinar o alÊm, O impossível e o Bem. Transformar pedras Em bocas, em mentes Constantemente. Tentar o absoluto Para lapidar o ser. Deslimitar para que As pedras possam voar

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Pretexto para ser poeta

Retalhar a palavra até a morte. Signo e sorte. Despedaçá-la E refazê-la. Perdê-la. Achá-la. Refletir a palavra No espírito.Desarmá-la, Descoisifica-la. Pari-la em prefixos, Em sufixos,em sintaxe, Criá-la no laboratório Da mente,perdidaMente. Poetizar a palavra Em fios e tramas E dramas.Sonhá-la Em contextos, em Textos, pretexto Para ser poeta. Para reinventar A si mesmo.

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O corpo fala

O corpo fala... Cala minha pele, Move meus olhos. O corpo é um texto Da tessitura do desejo. O corpo é fogo, É jogo Do inconsciente... O corpo sente... Sente...O corpo Lê o outro, Fecha-se. Abre-se. Entrelinhas e além, Denotação da alma. O corpo é uma rosa. Branca pétala macia. O corpo é simetria. O corpo é O verbo calado. É a gramática Silenciosa. O corpo é A poesia em prosa.

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O Rio de Janeiro por outro ângulo

Meu coração sangra deliciosamente E apenas Heine pode entender o que Acontece dentro de mim, quando Atravesso a Avenida Brasil e vejo o Rio de Janeiro por outro ângulo, por Um diferente ponto de vista, da pista Eternamente engarrafada que corta O meu olhar em dois.Bem ali o Rio Que nenhum turista vê.A zona oeste Entre colinas verdes, áreas solitárias, Distantes do movimento, do tempo, Das belezas conhecidas daqui.Eu me Perco de mim, estou num jardim que Conheço tão bem.Faço esse trajeto Já há tantos anos.No início, tudo era Longe.Agora, tudo é tão perto.Meus Olhos descobrem sempre algo lindo, Diferente, presente na paisagem que Não enfeita cartão postal.Mas, que Está pronta para ser colhida por qualQuer um que esteja disposto a sonhar. Atravesso tantos bairros:Bonsucesso, Penha,Cidade Alta, Irajá,Coelho Neto, Guadalupe,Deodoro,Realengo,Bangu, Campo Grande e de repente,Santa Cruz. Lugares com graça especial, esquecidos Dos cartões-postais,do governo, de quase Tudo.Um mundo dentro do Rio de Janeiro. Estarão sempre fazendo o meu coração Sangrar de saudade quando eu me for. Serão a delícia que provei e que aprendi A amar com calma tranqüilidade.O amor Que veio com o tempo, com a arte de Encontrar sempre uma nova beleza na Vida, em tudo que o olhar alcança.

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A delicadeza rude do rio

Quando a enchente chegou, ela ficou em cima da cama, olhando a água subir e inundar a casa inteira. Ela não teve medo: ela quase nunca tem medo. Ficou parada, observando a delicadeza rude do rio com os olhos desabitados e a alma sem palavras. Mal podia pensar: a água subia com tanta graça e força. A noite era um abismo gentil, uma surpresa doente. Ficou muda, geralmente, ela fica muda quando a emoção chega sem avisar. Acho que foi ali que ela aprendeu a se afogar e a sobreviver. Não sei, mas ela sentiu aquela correnteza, devastando tudo tão de repente. Alguém falou uma frase tão perfeita. Aquilo foi como ter se afogado novamente. Pela primeira vez, ela teve medo e se sentiu tão ridícula, tão sozinha, tão plena de sombras e vazios. ”Gostar errado, gostar errado, gostar errado”. Tudo ficou vibrando nos olhos dela, rasgando todos os rios silenciosos e traiçoeiros que ela ainda insiste em sepultar dentro de si mesma. Raramente, fala daquele momento tatuado na pele, raramente permite-se ter medo. Quando acordou, estava em cima da cama mais uma vez, vendo a água inundar tudo: a sala, o sofá, o sentimento, as palavras. Olhou sem olhar, ouviu sem ouvir, aterrorizada por sentir, por apenas sentir. Ela apenas se lembra das meias azuis, de tudo que é distante, doce e ameaçador. Fugiu. Pegou o primeiro ônibus que passou, colocou os óculos escuros e chorou, olhando a velha paisagem. Metade dela continua calada, vendo a água subir e a destruição chegar. A outra, eu creio que a enchente levou para sempre.

Karla Bardanza

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Delicadeza

Cortou os pulsos com rapidez. Cortou-os enquanto via a novela das oito e o silĂŞncio pensava mais do que podia.

Cortou os pulsos sem olhar para trĂĄs, sem nem ver o que fazia. Cortou os pulsos do sonho, e sangrou apenas poesia.

Karla Bardanza

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Poema sem delicadeza

Para suportar a claridade sem mistério É preciso apreciar vulcões desnecessários, Enquanto os oceanos renovam as águas E as almas caladas bordam os seus sudários.

O olhar penetra e devora a disforme matéria, Contemplando e abandonando a alteridade. Tudo que jaz sem delicadeza é para esquecer. A vida é um lago onde morre até a subjetividade.

É assim andando pelas alamedas sem paz ou cor Que a apreensão do real é um tiro insano a esmo. A grande verdade, se há alguma, reside naquele Que aprendeu a se proteger até de si mesmo.

Karla Bardanza

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Sentimento

As letras embaralham, sumindo com o redemoinho.

As palavras são levadas por aquela estranha água que brota das entranhas, da mais profunda mágoa.

Gotas caem sem licença sobre as metáforas inacabadas.

O poema encharca-se de dor.

Tudo sentido perde o sentido.

E é ali que sempre esteve o amor.

Karla Bardanza

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O tao do amor

Abro a luz com suavidade, deixo que você venha pisando mansamente pelos poemas, pelas palavras que sussurram a música do céu. A força da água acompanha a minha alma: fluo com docilidade pelas tuas mãos. Segure os meus sonhos: não permita que eu caía das nuvens, não deixe que as estrelas fujam de meus olhos. Sou Yin e de onde vim, a noite fala. Ela me amamentou por doze luas e me ensinou todos os mistérios que carrego em paz. Às vezes, fico calada, deitada dentro de mim pacientemente, recolhida em minhas pétalas sempre abertas para a tua mente yang, para a lógica do teu coração enquanto nos encaixamos num perfeito abraço, que não deixa espaço para nada além do desapego necessário. Esse desapego que conhece a hora certa e que faz com que o amor cresça e evolua em silêncio divino. O amor muda. Eu sei. Deixo que ele voe com delicadeza. O caminho verdadeiro é sempre aquele que navega com a natureza em oceanos raros, em absoluta calma. Nada é totalmente certo, tampouco, plenamente errado. A mais bela certeza é saber sempre que o amor é sagrado. Nenhuma transformação pode ocorrer sem respeito e emoção. Nenhuma. Estendo minha mão e caminhamos para o destino maior e nessas horas em que todo o universo se alarga, somos tudo que os deuses sonharam para o céu e a terra.

Karla Bardanza

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Minha psicologia barata

Ontem minha pulsão de vida descansou. Acho que estava no lixo junto com o princípio do prazer. A minha pulsão de morte falou mais alto e esmurrou repetidas vezes a minha cara de paisagem. Eu também me autoflagelei: não conseguia me amar com tantos números e conceitos na minha frente. Nada minimizava a minha angústia, o meu estado de inércia. Nem Freud entendeu o que estava acontecendo. Fiquei olhando o meu objetivo de vida por horas, buscando alívio em coisas sem alívio. Não sabia onde estava nada, apenas a morte. Hoje estou um pouco melhor: tomei duas colheres de poesia e uma injeção de Sophia de Mello Breyner na veia. Fiquei dopadíssima: primeiro achei que era poeta, depois sereia. No final das contas percebi que sou uma aranha com amnésia e sem teia. Freud explica.

Karla Bardanza

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A menina que roubava livros

Todas as páginas eram apenas emoção. Desenhos da eternidade, palavras traçadas Com poesia. O mundo cabia no papel e ela, E ela agarrava as letras e viajava para dentro De si, pintando as estrelas, flutuando pelas Frases, pelo encantamento do sentir.

Ela tinha doze anos e quando não tinha o Que comer, devorava os livros roubados Da biblioteca, bebia as consoantes e as Vogais com todo o prazer, com a alegria Desmedida, com uma margarida nos cabelos.

Ela nunca entendeu porque a fome passava Quando lia. Porém, lá dentro de seu nobre Coração, ela sempre soube que tinha fome De poesia. Então, acumulou livros, juntou Fantasias, fez de cada um que leu, um novo Amante.

Viveu toda a alegria de ler e de repente, Descobriu o sabor de saber, o prazer de Brincar com a fome, o sonho guardado em Suas mãos e em seu nome.

Karla Bardanza

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Oceanos sem navios

Em oceanos sem navios, Ela navega sem olhos, Impregando o vento de Dúvidas, buscando no céu Aqueles caminhos desencontrados Da terra, da sua guerra surda Com a delicadeza de uma sereia Sem voz.

Dentro dela, Existe um mar que morre Devagar após o jantar, Após os passos pesados Dele pela casa à deriva.

Quando ele percebe Que ela respira é sempre Tarde demais. E ela, afogada na distância, Nunca quer mais.

Karla Bardanza

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Chapeuzinho vermelho à minha maneira

Quando a raposa Foi atrás dela, chovia. O silêncio engolia a noite E ela, com as mãos na boca, Sangrou obedientemente.

A vovozinha nunca percebeu Os dentes da raposa cravados Em sua pele, nem as manchas De sangue em sua capa Vermelha. A vovozinha nunca soube Quantas vezes, a raposa Esteve em sua cama.

Um dia, Ela contou a sua história Para vovozinha que estava Surda demais para ouvir Tantas verdades, cega demais Para ver o que acontecia Ao seu redor.

Karla Bardanza

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Ela nรฃo tinha muito Mais o que fazer. Pegou a capinha vermelha E fugiu de vez para A floresta sem olhar Para trรกs.

Jรก a vovozinha Continuou morando Com a raposa Em paz.

Karla Bardanza

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As pequenas coisas delicadas

Ele despetalava Toda noite nos braços Daquela flor, E nem se lembra mais Quando tudo começou A germinar.

Logo ele que sempre Teve vocação para ser Semente dormente, Transformou-se em Um girassol cheio de Plenitude e amanhã.

Ela era uma mistura de Amor-perfeito com petúnia E floresceu gentilmente No outono dele, quando Quando a vida era um Nada brotando de um Canteiro cansado.

Karla Bardanza

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E eu que nunca entendi Muito de flores e ĂĄrvores, Aprendi que a ciĂŞncia pode Dar conta de tudo, inclusive Das pequenas coisas delicadas.

Karla Bardanza

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Roubei os ponteiros do relógio

Roubei os ponteiros do relógio: a hora não mais transborda.Posso contê-la entre as paredes vazias do agora. Não ouço mais o tic-tac ensurdecedor desse tempo que me controla. O silêncio escoa manso e não mais separa o meu corpo da minha alma. Posso, finalmente, libertar essa escrava que vive dentro de mim, tão amiga de Camus, tão distante do corpo e todos os princípios do prazer. Estou livre e a verdade não liberta. Não sei como andar sem as correntes. O agora é um carro em alta velocidade. O amanhã pode ser um desastre. Observo o relógio sem os ponteiros, morto, em cima da mesa enquanto o tempo passa. Sim, o tempo passa mesmo quando eu quero crer que o tenho nas mãos. Fingo não contá-lo e, no entanto, ele extravasa no meu corpo, arrumando-me cabelos brancos, perfurando mais uma vez o meu coração esmagado pelo peso do medo, estilhaçando os meus olhos de vidro. Continuo a escrava da areia que escorre incessantemente na ampulheta do agora e que morre sem permissão. Deito em cima de mim, lavo as mãos. Tempo-Deus, que seja feita a vossa vontade.

Karla Bardanza

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Toda suja de saudade

Descobri um buraco cheio de flores dentro do meu peito. Abaixei-me e comecei a cavar, buscando o que havia nas minhas profundezas. Quanto mais cavava, mais flores brotavam daquele silêncio. Encontrei o céu lá dentro também, havia tanta coisa: mares, nuvens, borboletas e palavras que arrematavam a eternidade.

Senti minhas mãos cheias de infinito, desses tesouros que quase possuí quando eu não me continha e abraçava as árvores. Descobri tantos mistérios nos meus oceanos: havia essa paz que apenas os amantes conhecem. Dentro daquelas águas eu e você. Dançávamos, celebrando a claridade da vida e do amor. Fiquei ali, contemplando aquele enigma, compreendedo tão pouco nossa odisséia.

Quando voltei para fora de mim, para longe daquela terra tão distante, estava cheia de poeira e passado, toda suja de saudade.

Karla Bardanza

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Aquele que nada tem

O desejo some no fogo, As palavras morrem na boca, O corpo deita só, procurando Ver constelações dentro De seus abismos.

As mãos desnorteadas Tateiam o nada absoluto, As extremidades do infinito Que desaparecem lentamente, Quando a fantasia eclode Entre o suspiro e o grito.

E quando a noite morre Entre uma convulsão e outra, Ele nada tem, além De si mesmo.

Karla Bardanza

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A geometria inexplicável do amor

Ouço os teus blues E os miosótis azuis do meu vestido Desabrocham: Pétalas acariciando os teus cabelos.

Contemplo as tuas mandalas Cheias de profundidades caladas E me visto da geometria Inexplicável do amor.

Leio tuas incansáveis palavras E sou resgatada pelas tuas Metáforas, pelas tuas mãos Sempre abertas ao meu desvario.

Sim, sigamos as musas. Todos os teus poemas São quadros pintados, São céus cobertos De promessas.

A vida está calma: Sento à beira do teu lago Karla Bardanza

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Cheio de prosperidade E mistérios, procurando O meu rosto nas tuas Mansas águas.

Algo flutua junto com A flor de lótus, algo Caminha nas horas E nunca vai embora De mim quando costuras As tuas asas nos meus Pés.

Sim, sigamos as musas Enquanto a noite escorrega Para dentro de nós dois E a poesia descansa no Colo da madrugada. Sim, sigamos as musas Porque a vida está completa E não precisamos de Mais nada.

Karla Bardanza

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Me ame mesmo assim

Quando eu chegar atrasada, Sem as unhas pintadas, com O batom borrado e com o cabelo Cansado: - me ame mesmo assim.

Quando eu deitar no sofá Calada e com os pés sujos, Após um dia inteiro de trabalho Com o ar distraído. -me ame mesmo assim.

Quando eu esquecer de ir ao Mercado ou à feira ou mesmo Quando eu falar um monte de Besteira: -me ame mesmo assim.

Quando eu não esquentar a sua Comida ou esquecer o ferro em Cima de sua camisa preferida: -me ame mesmo assim. Karla Bardanza

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Quando eu deixar a toalha Molhada em cima da cama Ou não me portar como uma Dama: -me ame mesmo assim.

Quando eu não tiver mais tantas Curvas e os meus seios não resistirem À gravidade e a verdade do desejo: -me ame mesmo assim.

Quando eu fizer um escândalo Na rua por cíume ou andar nua Em casa por puro prazer: -me ame mesmo assim.

Quando eu parecer uma criança E chorar sozinha no banheiro Ou quando eu fizer uma guerra De travesseiro: -me ame mesmo assim.

Karla Bardanza

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E mesmo depois que tudo For apenas saudade, angĂşstia Ou apenas silĂŞncio: -me ame mesmo assim.

Karla Bardanza

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Soneto de Júlio Saraiva

Algumas coisas a sorte atroz e vã esquece pelas dobras da tarde mansa, enquanto a noite dorme de manhã e o amor apenas sorri e descansa.

Outras, o céu escreve no infinito quando os deuses buscam amplidão, e eu, sem voz, sento na lua e te fito caminhando sem os pés na minha direção.

Em momentos assim plenos de delicadeza, a minha alma floresce em súbita surpresa, chamando novamente a tua aurora infinda.

E quando chegas com o sol no peito, seguro tuas mãos com calor e jeito sussurrando que te amo ainda.

Karla Bardanza

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A claridade bruta do meu coração

O sol me encontrará ainda hoje Quando a minha sombra estiver menor E menos só. Não consigo carregá-la nos bolsos. Não consigo afastá-la desse sono Que afaga os meus cabelos.

Eu sento, Ela deita no meu colo. Eu ando, Ela agarra as minhas pernas.

Minha escuridão sorri. Nada fica exposto à claridade bruta Do meu coração.

Quase sempre sonho Com os pés nos chãos. Quase sempre.

O sol me encontrará ainda hoje. Só não consigo lembrar-me Se dei o meu endereço a ele.

Karla Bardanza

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Erro de percurso

Ele entrou em casa mais pobre, Mais cego e surdo. Abriu a geladeira e bebeu A saideira.

Depois pegou um papel amassado Que estava em cima da mesa E leu pela milésima vez. Nada mudou: Os olhos nunca se acostumaram a Ficar sem as cartas dela.

Então, levantou, foi até a janela, Olhou para baixo e viu sua única Possibilidade.

Quando ele chegou lá, Ela já estava o esperando.

Karla Bardanza

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Água Como água amoldo-me ao destino, (es)correndo sem rumo ou rota.

E toda vez que desemboco é para dentro de ti.

Bebei-me: sou água da vida, sou a poesia numa gota, caindo mansa na tua boca.

Karla Bardanza

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Antes de dormir

Antes de dormir, As ilusões descem dos olhos E escrevem tão pouco: Vogais e consoantes do puro Desespero gritam o escuro De si mesmo.

Os cantos das mãos sujos, As brincadeiras rastejantes, O quase nada fabricado Com alguma sofreguidão.

Antes de dormir, Promessas que não amanhecem, A culpa imortal do olhar insano, A felicidade clandestina que Não resiste à realidade.

Dentro da alma, O estrago, o estilhaço, Os pedaços quebrados do Ontem, o saber exaustivo Karla Bardanza

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Da mentira.

Antes de dormir, A consciĂŞncia de que Isso e aquilo tĂŞm os dias contados. O olhar esmagado pelo O limite do desejo e o desespero Do grande nada. A pequena morte E grande fatalidade do Ser.

Antes de dormir, Apenas o teto frio, Apenas vocĂŞ.

Karla Bardanza

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Kamikaze

Insatisfeita,

Busco o que a vida esconde, Metendo o nariz onde não devo. Enfiando os pés pelas mãos, Andando na corda bamba.

Não me arrependo: Ensaios, erros, tentativas. O importante é sempre o desafio, O fio amarrando as emoções, A palavra interdita, O teu olhar acusador Quando me fita.

Karla Bardanza

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Ousa melhor quem engole O medo e p천e fogo pela Boca, assumindo com generosidade: Sou louca, Sou louca, Sou louca.

Karla Bardanza

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Beleza sossegada

Essa beleza sossegada que trago na bainha do vestido foi costurada sem pressa.

Alinhavei as dúvidas, sentada de frente para a lua, com a boca nua de palavras, com os olhos deitados nas estrelas.

Existo para além.

O tempo dissolve os laços da saia amassada, os botões presos ao pensamento. Abro o sutian, amanhã será apenas eu e eu mesma e os meus seios enfrentando os perigos desses fios, dessas linhas frágeis Karla Bardanza

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que insistem em arrematar a eternidade.

Traรงo novos moldes que cabem o horizonte, me visto de vontade e ousadia, me dispo desses andrajos: restos de fantasia.

Reajo. Reajo.

Karla Bardanza

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Índice Apresentação

5

Dupla cidadania

7

Insatisfação

8

Des-canso

9

Enquanto a noite treme dentro de mim

11

Carteira de Identidade

12

Ai! Estou tão confusa!

13

Letramento

15

Auto-relato

17

Escrevo para daqui a cem anos

20

Quando eu for gente grande

21

O amor, esse amor que me deu um lugar para morrer

23

A mulher no pedestal

26

A hora da bruxa

31

O peso da flor

33

A decomposição do real

34

Ousadia

35

Quando nada mais tenho

36

Ventania

38

Ontem tive coragem

39

Os fios do infinito

40

Quando crucifiquei as palavras

41

Um desejo para chamar de seu

42

A aluguél da vida está atrasado

43

Quando o vento geme, parindo flores

44

O pior amor é o último

45

Despertar pedras

47

Pretexto para ser poeta

48

O corpo fala

49


O Rio de Janeiro por outro ângulo

50

A delicadeza rude do rio

51

Delicadeza

52

Poema sem delicadeza

53

Sentimento

54

O Tao do Amor

55

Minha psicologia barata

56

A menina que roubava livros

57

Oceanos sem navios

58

Chapeuzinho Vermelho à minha maneira

59

As pequenas coisas delicadas

61

Roubei os ponteiros do relógio

63

Toda suja de saudade

64

Aquele que nada tem

65

A geometria inexplicável do amor

66

Me ame assim mesmo

68

Soneto de Júlio Saraiva

71

A claridade bruta do meu coração

72

Erro de percurso

73

Água

74

Antes de dormir

75

Kamikaze

77

Beleza sossegada

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Sobre a autora Formada em letras anglo-germânicas e com mestrado em Literatura brasileira, Karla Bardanza é professora da rede pública e privada do Rio de Janeiro. Você pode encontrar poemas da autora nas seguites antologias: Antologia Luso-Poemas (2008), 46ª Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos (2008) e Antologia 7 Pecados (2011). Siga os blogs de Karla Bardanza: http://karlabardanza.blogspot.com http://osfiosdoinfinito.blogspot.com http://asmoonsewsthesatinstars.blogspot.com

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