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Mano Azagaia A voz que não se calará

Seu nome significa arma de luta africana, mas nunca recorreu à força para fazer a revolução. Força foi usada, sim, muitas vezes contra si para o calar, mas não se calou. Continuou determinado por uma causa nobre – que outrora os que o combateram também defenderam –, a liberdade do povo, usando seu instrumento de intervenção política, a música RAP. E, através do microfone, o rapper Azagaia fez ecoar a sua voz de denúncia das injustiças que o povo moçambicano vive no dia-a-dia. Era a voz do povo, aquela que não se cala. Chamou-se a si "eterno vencedor das causas perdidas", e perdeu a vida aos 38 anos, vítima de doença. Um dia ele disse que quando chegasse a sua hora não queria ser chorado, mas que fosse honrado o pacto celebrado com o seu povo, o de dar continuidade à sua luta.

“Eu sou da geração que não deixa o nó da gravata prender o grito de liberdade que explode na garganta”, Azagaia in “Geração da viragem” (2011)

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"A sua passagem no mundo não foi em vão", citando as palavras do cantor angolano Big Nelo, que não ficou indiferente ao desaparecimento físico daquele que é considerado um dos maiores ícones da música moçambicana e da lusofonia. A morte prematura de Azagaia chocou Moçambique e todo o mundo lusófono. Através dos media e das redes sociais, chegaram inúmeras mensagens, não só da classe artística, mas de políticos, académicos e diversas personalidades de diferentes esferas socias dos PALOP, onde as músicas de forte intervenção social do rapper irreverente atravessaram, impactaram e influenciaram toda uma geração.

Azagaia foi muito além de um rapper. Foi um africanista e defensor dos direitos humanos. Com uma escrita vanguardista, progressista, combativa e revolucionária, ultrapassou a dimensão de crítico nacional para crítico universal. Escreveu vários temas que levaram a sociedade civil e a academia a reflectir e a estudar, como “A marcha”, “Combatentes da fortuna”, “Homem bomba”, “Geração da viragem”, “As verdades”, “Abc do preconceito”, “Maçonaria”, “Cão de raça”, “Ai de nós”, “Só dever” e “As mentiras da verdade”, de resto a música que o tornou famoso, entre outras composições.

A VOZ DOS SEM VOZ

Azagaia era um contador de histórias destemido, que descrevia as narrativas, as vivências, a realidade do povo como ninguém. Na verdade, a música pela qual logo se destacou como interveniente destemido contra o poder do dia foi “As mentiras da verdade”, tema que integra o seu disco de estreia “Babalaze” (‘ressaca’, na língua Changana), editado pela Cotonete Records, em 2007. Nela faz uma retrospectiva dos principais acontecimentos em Moçambique e critica o regime político instituído, elencando, entre outros, males sociais como a corrupção e o nepotismo e fazendo reflectir sobre eles. O álbum “Babalaze” bateu recordes de vendas. Azagaia tornou-se um “herói” para o povo e um apóstolo da desgraça, persona non grata do regime. Em 2008, na sequência da revolta popular a 5 de Fevereiro daquele ano em Maputo, Azagaia apresentou o tema “Povo no poder”, que veio a se tornar a sua principal mensagem, sua causa, em todas as suas intervenções. O impacto da música

“Povo no poder” lhe valeu uma intimação à Procuradoria-Geral da República, suspeito de atentado contra a Segurança de Estado. Foi absolvido no processo e não se acobardou. Continuou a colocar o dedo na ferida, explorando temas proibidos e incomodativos para os políticos. Mostrou ser um homem corajoso no “País do medo”. País esse que amou e pelo qual tanto lutou até a morte.

Lendas N O Morrem

Edson da Luz, conhecido no meio musical pelo nome Azagaia, era filho de pai cabo-verdiano e mãe moçambicana. Nasceu na vila fronteiriça da Namaacha, província de Maputo, a 6 de Maio de 1984. Iniciou a sua carreira musical aos 13 anos de idade, integrando o grupo Dinastia Bantu com o Mc Escudo. Juntos lançaram o álbum “Siavuma”, em 2005. Depois de “Babalaze”, em 2013, Azagaia lançou o seu segundo álbum de originais “Cubaliwa” (que significa renascer, na língua Sena). Neste álbum, encontram-se nomes como Stewart Sukuma, Dama do Bling, a banda Licúti, Júlia Duarte, Ras Haitrim, MCK e Valete. Já em 2019, lançou o single “Só dever”, com participação da rapper moçambicana Gina Pepa. A música que retrata o escândalo das dívidas ocultas em Moçambique deu nome a esta EP, seu terceiro trabalho discográfico. O teor crítico das suas letras no geral levou a que ele fosse censurado na rádio e televisão pública moçambicana. Mesmo assim, a sua música cruzou o Sul, o centro e o norte do país, o continente e a diáspora, deixando uma marca indelével. O seu legado é “imaterial”, como considerou o jornalista angolano Victor Hugo Borges, e “insubstituível” para Duas Caras, rapper com quem partilhou o microfone em vários projectos musicais ao longo da sua carreira.

A música de Azagaia cruzou o sul, o centro e o norte do país, o continente e a diáspora, deixando uma marca indelével. O seu legado é insubstituível.

Azagaia faleceu a 9 de Março de 2023, após uma crise de epilepsia, sofrida em casa, segundo a família do artista. O velório, que antecedeu o funeral, decorreu no dia 14 de Março, no Paços do Município da Cidade de Maputo, na Praça da Independência, e reuniu milhares de pessoas, de todas as idades e todas as camadas sociais, jovens na sua maioria, que quiseram prestar a última homenagem à “lenda”, como o descreveu Adriano Nuvunga: “Lendas não morrem. E Azagaia é uma lenda”. Em lágrimas, inconsoláveis e eufóricos, milhares de fãs do mano Azagaia, como era tratado, entoaram as suas músicas no último adeus, transmitido em directo pelas televisões privadas do país. “Azagaia inspirou gerações na busca de respostas para os desafios da sociedade”, afirmou a ministra da Cultura e Turismo, Edelvina Materula, durante o velório do rapper. “Morreu um dos maiores rappers da língua portuguesa. Um dos seres humanos que mais admirei em toda a minha vida. Um verdadeiro patriota. Amou África e Moçambique como poucos. O irmão que nunca tive”, escreveu Valete na sua página oficial no Facebook. O rapper Gabriel o Pensador também reagiu usando a mesma plataforma. “Grande perda para nossa música e cultura hip hop. Seu legado é eterno, mano, descanse em paz. Obrigado por tudo”.

Durante todo o percurso até a última morada do rapper controverso, no cemitério de Muchafutene, a 25 quilómetros do centro da cidade, a multidão que se posicionou ao longo das avenidas por onde passou o cortejo fúnebre que acompanhava a urna com restos mortais de Azagaia assaltou literalmente a estrada para prestar a última homenagem ao artista cuja obra impactou profundamente a sociedade moçambicana. E todos com punho erguido no ar gritavam a sua principal mensagem, "Povo no Poder", repetidamente.

O Ltimo Desejo De Azagaia

“Eu falo de povo para povo Porque eu sou povo e tu és povo Usamos a mesma linguagem E quando tu falas eu te oiço Quando eu falo tu me ouves Partilhamos as mesmas dores Se te cansaste de pedir favores Então venha para marcha” (Azagaia, in “Povo no poder”, 2008)

Em vida, Azagaia disse que a melhor forma de reagir ao seu desaparecimento físico era dar continuidade à sua causa, era continuar a marcha pela liberdade, pelos direitos fundamentais. “Ai de nós se desistirmos”, “ai de nós se não formos militantes”, “ai de nós se deixarmos calar” (Azagaia, in “Ai de nós”, 2022). Azagaia nunca se calou perante as injustiças sociais. Punha o dedo na ferida pelo bem do povo, a quem pediu, antes de partir, para cumprir o seu último desejo. Muitas vezes rotulado pelos políticos como “do contra”, “antipatriota”, “mensageiro da oposição”, Azagaia morreu a defender o que é certo, o que é justo.

“SOU DO PARTIDO DA VERDADE SEM LUGAR NO PARLAMENTO”

Vão me causar de fraude quando mostrar o meu pensamento” (Azagaia, in “Eu não paro”, Babalaze, 2007). A sua música transformou e conquistou os corações dos mais humildes, criou empatia até em pessoas assumidamente desinteressadas pelo RAP, pelo som das batidas em que a sua mensagem chegava. “Eu já não sou importante, porque o que tinha a fazer já fiz. Eu não quero que me aprovem como pessoa, eu só venho deixar as minhas ideias. Vamos fazer o que combinamos, colocar o povo no poder”, Azagaia 1984 - 2023.

O velório de Azagaia reuniu milhares de pessoas, de todas as idades e todas as camadas sociais, nos paços do Município e na Praça da Independência.

Azagaia

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