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Uma atriz pronta

O ano de 1968 começou difícil para Bete Mendes, e ela passava por dificuldades financeiras para sobreviver estudando e trabalhando na ‘selva de pedra’ que era a capital paulista. A atriz morava em uma pensão no centro de São Paulo que ela classifica como ‘um horror’, onde dividia quarto com mais quatro pessoas. Suas colegas de quarto eram empregadas domésticas, prostitutas, mulheres separadas, alcoólatras. “Essa convivência – só percebi isso muito depois – foi muito enriquecedora em termos de observação da alma humana, mas nessa época estava era mesmo completamente apavorada em viver num lugar assim.”4 Com uma renda limitada que cobria de forma muito precária seus gastos com condução e alimentação. Por vezes, Bete não podia pagar o sanduíche nos lanches do colégio, e seus colegas lhe ofereciam. Ainda assim, persistia no movimento estudantil. Foi quando surgiu uma oportunidade que mudou sua história: ela fez teste para uma produção teatral e foi aprovada. Assim, ela estreou nos palcos sob a direção de um dos nomes mais icônicos das artes cênicas brasileiras: Antunes Filho. O espetáculo era A Cozinha, de Arnold Wesker, com tradução do escritor e dramaturgo Millôr Fernandes, em que ela dividiu a cena com nomes como Irene Ravache e Juca de Oliveira. “Foi a minha estreia profissional no teatro, registrada em carteira de trabalho, que me apresentava como comerciária. Na época, a profissão de atriz ainda não havia sido regulamentada.”5 A Cozinha acompanha um dia de trabalho em um restaurante e se torna uma metáfora sobre a Babel do mundo contemporâneo. A personagem era pequena, mas com talento e sagacidade Bete foi construindo as suas oportunidades. “Eu estava no último papel da peça, que era uma garçonete. Era uma cozinha de um restaurante onde havia os cozinheiros, as garçonetes, o mestre, e era um debate na hora do rush”, relembra a atriz. “O espetáculo foi um sucesso absoluto. Uma atriz que fazia o chamado penúltimo papel da peça – 4 Ibidem, p. 64 5 Ibidem, p. 65

porque eu não tinha fala, eu só tinha uma ação cênica – ficou gripada e teve que ser substituída. Eu fui chamada e fiz o espetáculo.” Esse trabalho também marcou o encontro de Bete com uma das maiores atrizes brasileiras, Eva Wilma, que era assistente de direção de Antunes Filho, e traz uma das primeiras memórias profissionais e de estímulo à sua carreira. “Nesse espetáculo eu tive um dos primeiros presentes da minha vida. A Eva Wilma reuniu o elenco para colocar as questões que deveriam ser qualificadas para melhorar o trabalho. Ela estava falando com todos juntos, era um elenco muito grande. Aí ela virou e falou pra mim assim ‘você está pronta, você é uma atriz’. Fiquei emocionadíssima e felicíssima.” Em função dos inúmeros compromissos que surgiram na televisão depois da sua estreia teatral, a atriz só retornou aos palcos em 1974 com o espetáculo As Desgraças de uma Criança, de Martins Penna, sob a direção de Antonio Pedro. Dividiam a cena com a atriz Marco Nanini e Camila Amado, além do estreante Wolf Maia. “Era um elenco maravilhoso. Eu estreei em São Paulo substituindo a Marieta Severo. Foi um sucesso fantástico, absoluto. Estávamos em cartaz, felizes. Eu fazia televisão e teatro, dava pra conciliar com muito esforço, porque era uma correria danada.” Na sequência, em 1975, ela participou de outro momento histórico da cultura brasileira ao integrar o elenco do espetáculo Gota D’Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, a partir do texto de Medeia, de Eurípedes. “Nós estreamos. Foi um escândalo! Foi um sucesso! O teatro tinha 500 ou 600 lugares, não lembro bem. Além das cadeiras, eram as escadarias, gente de pé... Explodiu a plateia! Naquela época fazíamos terça, quarta, quinta e sexta. Sábado e domingo duas sessões. A gente ficava exausto, mas feliz. O espetáculo explodia.” O convite para participar da peça veio quando a atriz interpretou Lia, na novela O Bravo!, de Janete Clair. E o ritmo de trabalho era frenético. “Eu era a protagonista. A gente gravava das sete e meia da manhã às oito horas da noite, de 50 a 60 cenas por dia. Era essa máquina maluca, alucinante. Me chamaram para a peça e eu fui para os ensaios no teatro Tereza Rachel, em Copacabana. Eu

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ensaiava de madrugada. Como a Globo era no Jardim Botânico, a minha locomoção era rápida. Às nove horas eu estava no teatro, ensaiava até duas da manhã, dormia um pouquinho, levantava, ia gravar. Sempre essa correria.” Uma das memórias de Bete, ainda sobre a formatação de Gota D’Água, foi o ensaio para a censura que, na época do regime militar, aprovava ou não a estreia de um espetáculo. “Íamos estrear e tinha o ensaio pra censura. Três censores, dessa vez uma mulher e dois homens, sentaram na primeira fileira para avaliar se a gente estava certo, correto e aquelas bobagens. Como se eles fossem críticos de teatro. Como se eles entendessem alguma coisa do que a gente fazia no palco. Na verdade eles queriam censurar, cortar, proibir. O risco da proibição era para todos nós. Todas as produções eram mais ou menos corporativas. Ninguém tinha condição de produzir com apoiador, ninguém apoiava. Era no grito e na vontade. Se o espetáculo fosse censurado, ia ser um caos para aquele elenco enorme, para os músicos, para o diretor, para todo mundo. A gente foi fazer o ensaio pra censura e, como a peça é em versos, a gente fez o pior ensaio da vida da gente. A gente falava quase sussurrado.” Depois de uma alteração, a retirada de um palavrão no texto da peça, o espetáculo foi liberado e se tornou um clássico da dramaturgia brasileira. Mas Bete Mendes saiu logo depois dos primeiros meses da estreia, em função de uma estafa pelo excesso de trabalho. “Eu tive um problema de saúde ainda nos ensaios da peça. Porque eu gravava de segunda a sábado e ensaiava de segunda a domingo, sem tempo nem pra dormir direito. Fui para o hospital, fiquei no oxigênio, uma coisinha ‘revigora moça’. Mas, depois de três meses, começou a me dar uma fraqueza, eu fui ao médico e ele disse que eu precisava dar uma parada. Aí eu tive que sair do espetáculo, que continuou brilhando. E Bibi Ferreira [protagonista de Gota D’Água] brilhando anos seguidos.” Dois anos depois, ela retornou ao teatro com uma encenação extremamente original. “Eu sempre estava querendo experimentar, no teatro e no cinema. Nessa época eu fui chamada pelo Aderbal Freire Filho para fazer A Morte de Danton(1977), de George Büchner.

E era um espetáculo maravilhoso. Só que nós representamos nas obras do metrô da Glória”, conta a atriz, que, alguns meses depois, precisou deixar o projeto. “Então era uma loucura em termos de saúde, porque era muita poeira. Aí por problemas de saúde eu tive que sair do espetáculo.” No ano que encerrou a década de 1970, após o término do seu contrato na Rede Globo, Bete Mendes retornou para os palcos em A Calça(1979), do dramaturgo alemão Carl Sternheim, e teve a direção de Maurice Vaneau, que foi um dos diretores do Teatro Brasileiro de Comédia, o histórico TBC, na década de 1950. No trabalho, a atriz dividiu a cena com nomes como Ítalo Rossi, Jacqueline Laurence e Natália do Valle. “Era maravilhosa a peça, eu estava no teatro, precisando muito financeiramente, porque eu vivia do meu trabalho.” Na década de 1980, ela encenou Patética (1981), de João Ribeiro Chaves Neto, com direção de Celso Nunes. A peça conta a vida do jornalista Vladimir Herzog, morto durante o período da ditadura militar. No ano seguinte, ela foi uma das estrelas do espetáculo Pegue e Não Pague, de Dario Fo, que marcou seu reencontro com Gianfrancesco Guarnieri, diretor da peça e parceiro no filme Eles Não Usam Black-Tie. “Era uma delícia de espetáculo. O Dario Fo ganhou o Nobel, né? Ele é genial. E nós adorávamos fazer. Era uma brincadeira em cena extraordinária. O espetáculo durava mais de três horas porque a gente improvisava muito, principalmente Guarnieri e Renato Borghi, e o espetáculo ia porque ninguém queria parar. E o público ficava e assistia, adorando.” Em função da sua carreira parlamentar e de alguns trabalhos na televisão, Bete Mendes só voltou ao teatro quase uma década depois no monólogo Ária de Serviço (1991), escrito pelo multiartista Victor Giudice, sob a direção de Marco Antonio Braz. Em 1993, ela fez As Primícias, um texto de Dias Gomes sobre uma fábula da Europa medieval. Com direção de Sidney Cruz, a encenação atualizou a dramaturgia – escrita originalmente na década de 1970 – e se tornou um musical com canções de Aldir Blanc e Guinga. Nos palcos com a atriz, Bemvindo Siqueira, Suely Franco e outros 14 atores. Dois anos

depois, ela reencontrou Ítalo Rossi (com quem atuou em A Calça), desta vez como diretor, na versão brasileira do texto de Harold Pinter, À Luz da Lua (1995), ao lado de Selton Mello e Cláudio Corrêa e Castro. O espetáculo aborda a dificuldade do ser humano em trocar afeto e se comunicar. Nos anos 2000, Bete Mendes atuou na peça Momentos, Beijos(2000). O espetáculo é uma adaptação de sete crônicas da coluna A Vida Como Ela É, escrita por Nelson Rodrigues, feita por Braz Chediak e Nelson Rodrigues Filho, que também assina a direção. No ano seguinte, ela fez a peça Bárbara do Crato (2001), de Heloneida Studart, com direção de Wilma Ducetti. Seu trabalho mais recente nos palcos é Anjo Negro (2005), texto clássico de Nelson Rodrigues. O espetáculo tem como tema central o preconceito e o racismo e foi dirigido por Nelson Rodrigues Filho.